Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
654/19.4T8VCD.P3.S1
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO
Relator: MARIA DE DEUS CORREIA
Descritores: ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
DESCARACTERIZAÇÃO DA DUPLA CONFORME
PODERES DE COGNIÇÃO
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
GRAVAÇÃO DA PROVA
TUTELA JURISDICIONAL EFETIVA
PROCESSO EQUITATIVO
PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
REAPRECIAÇÃO DA PROVA
BAIXA DO PROCESSO AO TRIBUNAL RECORRIDO
Data do Acordão: 03/27/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA E ANULADO O ACÓRDÃO RECORRIDO
Sumário :
I - Ao impugnar a decisão sobre a matéria de facto, a parte pode optar pela apresentação da transcrição dos excertos relevantes, em vez de indicar a exacta localização desses mesmos excertos, se o processo, pela sua simplicidade não exigir um trabalho especialmente acrescido por parte do juiz a quem é solicitado o reexame da prova, nem apresentar dificuldade de compreensão do objecto do recurso à parte contrária.

II - A simplicidade do processo e a diminuta extensão das gravações cuja reapreciação é solicitada, tornam desproporcional a negação do conhecimento dessa matéria, a pretexto de que não se encontravam indicadas com exactidão as localizações das gravações, não obstante o recorrente ter procedido à transcrição dos depoimentos das testemunhas que entendeu relevantes.

Decisão Texto Integral:

Acordam na 7.ª secção do Supremo Tribunal de Justiça



I - RELATÓRIO

BBG S.A. com sede na Rua Dr. Francisco Sá Carneiro, 475 C, 4710-010, Esposende, instaurou a presente acção declarativa de condenação com processo comum contra AA, com domicílio em ... Genthod, onde conclui pedindo:

(i) A condenação do Réu a pagar à Autora o valor de €16.949,35. acrescido de juros de mora vincendos, até efetivo e integral pagamento;

(ii) A condenação do Réu a entregar à Autora, devidamente assinado, o auto de receção da obra;

Subsidiariamente,

(iii) A condenação do Réu a designar data para que a Autora possa validar os trabalhos realizados, proceder ao levantamento e correção de eventuais trabalhos adicionais necessários;

(iv) A condenação do Réu a pagar à Autora o valor de €16.949,35 (dezasseis mil, novecentos e quarenta e nove euros e trinta e cinco cêntimos), acrescido de juros de mora vincendos, até efetivo e integral pagamento.

Alegou, para tanto, em síntese, que, no exercício da sua actividade de produção, comércio e instalação de sistemas de caixilharia, contratou com o Réu o fornecimento e montagem de caixilharia numa moradia sita na Suíça – com a especificidades constantes do orçamento/proposta apresentado e aceite pelo Réu – mediante a contrapartida total de €52.709,74, a pagar em prestações, conforme o andamento da obra.

A instalação foi concluída no dia 25 de maio de 2018, em conformidade com o acordado.

Apesar disso, o Réu não procedeu ao pagamento convencionado, alegando falsamente que a obra padece de defeitos e não está concluída, sem contudo permitir à Autora o acesso à mesma para a realizar a vistoria final à obra, por forma a validar os trabalhos realizados ou apurar eventuais trabalhos em falta e assinar o auto de recepção da obra.

Encontra-se, assim, por regularizar o remanescente do preço convencionado, no valor de €15.812,92, ao qual acresce o montante de €500,00, convencionado entre as partes como contrapartida para o transporte de umas portadas de madeira realizado pela Autora, por conta do Réu.


*


O Réu apresentou contestação, na qual invocou a excepção dilatória de incompetência internacional dos tribunais portugueses.

Mais alega, em síntese, que os funcionários da Autora abandonaram a obra sem que a tivessem concluído e que a parte da obra realizada apresenta os defeitos que descreve.

Tal circunstância confere-lhe o direito de reter parte do preço que corresponde ao valor das reparações, trabalhos e substituições que as janelas fornecidas pela Autora necessitam – que ascende à quantia €15.812,92 – tal como comunicou à autora por carta datada de 12 de Junho de 2018, através da qual denunciou os defeitos e trabalhos em falta, pedindo a respectiva conclusão/reparação.

Acresce que o valor peticionado a título de contrapartida pelo transporte de umas portadas em madeira não é devido uma vez que lhe foi garantido, pelo representante da Autora, que não iria ser cobrado qualquer valor pelo referido transporte.

Acontece que nunca a Autora respondeu à solicitação/interpelação do Réu para sanar os defeitos de obra e completar a mesma, não tendo disponibilizado qualquer trabalhador para se deslocar à obra após a haver abandonado.

Deduziu pedido reconvencional, reclamando a condenação da Autora a, no prazo de 60 dias, proceder aos trabalhos de reparação e eliminação dos defeitos que invoca, procedendo, então o Réu ao pagamento da restante quantia de euros 15.812,92.

Subsidiariamente, para o caso de a Autora não proceder à realização/conclusão dos mencionados trabalhos, pede lhe seja reconhecido o direito de reter o indicado valor de euros €15.812,92.

Em qualquer caso, reclama a condenação da Autora a pagar-lhe a indemnização, por danos patrimoniais e não patrimoniais decorrentes do incumprimento contratual a ela imputável, no valor global de €45.864,87, acrescida de juros á taxa legal desde a data da notificação da contestação/reconvenção.

A Autora respondeu à contestação, pugnando pela improcedência da excepção de incompetência internacional e impugnando a factualidade invocada na contestação, concluindo pela improcedência do pedido reconvencional.


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Veio a ser julgada improcedente a excepção de incompetência internacional dos tribunais portugueses, que transitou em julgado

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Realizou-se a audiência prévia onde foi proferido despacho saneador, com fixação de factos assentes e selecção de temas de prova.

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Foi admitido o articulado superveniente do Réu, pelo qual veio à lide dar conta de que, no decurso da presente acção, e uma vez que a Autora/reconvinda não levou a cabo as necessárias rectificações e reparações da obra que realizou, procedeu ele próprio à contratação de terceiros que eliminaram os apontados vícios e defeitos denunciados.

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Realizado o julgamento, foi seguidamente proferida sentença com o seguinte dispositivo:

A) Julgar parcialmente procedente por provada a acção condenando o Réu a pagar à Autora a quantia de €15.812,92 (quinte mil, oitocentos e doze euros e noventa e dois cêntimos), acrescida de juros de mora à taxa legal contados desde a citação até integral pagamento, e no mais absolver o Réu dos pedidos contra ele formulados;

B) Julgar extintos, por inutilidade superveniente da lide, os pedidos reconvencionais formulados pelo Réu sob as alíneas a) e b), bem como absolver a Autora/ reconvinda dos pedidos de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais contra ela formulado pelo Réu/reconvinte.”


*


Inconformado com a sentença, o Réu interpôs recurso de apelação para o Tribunal da Relação do Porto que proferiu acórdão no qual julgou improcedente o recurso, confirmando a sentença recorrida.

Ainda inconformado, o Réu vem interpor recurso de revista excepcional para o Supremo Tribunal de Justiça, formulando as seguintes conclusões:

“a) Não obstante ser a questão do cumprimento do ónus de impugnação de matéria de facto matéria de revista regra (art. 652.º, n.º 1, al. b), tem a mesma em comum com a aferição das consequências de execução defeituosa de empreitada e da existência de abandono de obra supra suscitadas o facto de serem, simultaneamente, geradoras de controvérsia jurídica e terem uma relevância social acentuada, em termos justificativos de ser tido como legalmente pertinente a interposição do presente recurso extraordinário de revisão á luz do art.º 1672º, nº 1, als. a) e b) do Cod. Proc. Civil.

b) A impugnação da decisão relativa á matéria de facto que se traduz na identificação dos pontos de facto e na transcrição dos segmentos dos depoimentos relevantes preenche o ónus contido no art.º 640º, nº 1 e 2, em especial, a alínea a) do mesmo, do Cod. Proc. Civil, sendo consideração contraria inconstitucional, por violadora dos princípios da proporcionalidade e razoabilidade e do princípio do processo equitativo (art. 20º, nº 4, da Constituição da República Portuguesa);

c) O abandono da obra por parte do empreiteiro ocorre quando este deixa de comparecer no local da obra, sem que haja concluído a mesma e sem que a retome em tempo útil ou razoável ou que a não retome de forma espontânea e disponível, não estando tal comportamento legitimado em um qualquer incumprimento por parte do dono de obra;

d) Constituindo uma exigência desproporcional determinar que o dono de obra aguarde pelo termo do processo judicial para poder realizar os trabalhos não efectuados e reparar os trabalhos mal executados, ficando impedido de ver o imóvel objecto de empreitada concluído e apto a preencher o seu fim habitacional durante um lapso de tempo significativo;

e) Caso, como o dos autos, em que tem o dono de obra direito a ser ressarcido no valor dos trabalhos não realizados, nos concretos moldes em que o mesmo teve de suportar financeiramente com tal conclusão por parte de terceiros - arts. 802,º, 884º e 1222º, todos do Cód. Civil.

Termos em que deve o presente recurso ser julgado procedente, revogando-se o Acórdão recorrido, com as legais consequências, por ser de JUSTIÇA!”

II - OS FACTOS

Das instâncias, vieram dados como provados os seguintes factos:

1) A Autora é uma sociedade comercial que se dedica à produção, comércio e instalação de sistemas de caixilharia, com sede em Esposende;

2) No âmbito da sua atividade, no dia 30 de janeiro de 2018, contratou com o Réu o fornecimento e montagem, na casa de habitação deste, na Suíça, de caixilharia constituída por perfil de alumínio, com vidro triplo, vedantes, ferragens e puxadores para uma porta pivotante vertical e vãos de abrir, bem como restantes acessórios necessários à sua correta aplicação e funcionamento, nos termos que constam da proposta junta a fls. 15 e segs., com o teor que aqui se dá por integralmente reproduzido;

3) O fornecimento e montagem dos bens identificados tinha como contraprestação o pagamento do valor total de €52.709,74 (cinquenta e dois mil, setecentos e nove euros e setenta e quatro cêntimos);

4) Ficou expressamente convencionado que o pagamento seria realizado da seguinte forma:

- Um pagamento de 40% do valor total, com a adjudicação da obra;

- Um pagamento de 50% com a entrada em obra, e

- Os restantes 10% com a conclusão dos trabalhos;

5) Definindo-se também que o prazo de fornecimento seria acordado entre as partes, nos termos do ponto n-º 5 da mesma proposta;

6) O Réu pagou à Autora a quantia de €21.083,90 (vinte e um mil, oitenta e três euros e noventa cêntimos), no dia 31.01.2018, pagamento correspondente a 40% do valor total, devido com a adjudicação da obra;

7) E pagou, por transferência bancária, a quantia de €15.812,92 (quinze mil, oitocentos e doze euros e noventa e dois cêntimos), no dia 29.05.2018;

8) A Autora remeteu ao Réu, que recebeu, as comunicações electrónicas enviadas nos dias 25.05.2018, 29.05.2018 e 05.06.2018, cuja cópia esta junta a fls. 21 a 22, com o teor que aqui se dá por integralmente reproduzido;

9) A Autora realizou os trabalhos de montagem das caixilharias, que fabricou a pedido do Réus, na casa destes, entre os dias 23 e 25 de maio de 2018;

10) No dia 28.05.2018 às 12h22m, a Autora, através do seu Diretor Comercial, enviou o email cuja cópia está junta como documento n.º 10 da petição inicial, para agendar uma deslocação à obra, com o objetivo de analisar o trabalho, validar, apurar eventuais trabalhos em falta e assinar o auto de receção de obra;

11) No entanto, não obteve qualquer resposta, o que motivou que a Autora, agora através do CEO, tenha insistido por uma resposta do Réu através dos email dos dias 05.06.2018, 08.06.2018 e 10.06.2018, juntos como documento n.º 11 da petição inicial (fls. 32 a 33), com o teor que aqui se dá por integralmente reproduzido;

12) No dia 12.06.2018, o Réu remeteu à Autora a carta cuja cópia está junta a fls. 34 e vs. - com o teor que aqui se dá por integralmente reproduzido - onde afirma que a Autora incumpriu os prazos acordados e que foram detetados vários defeitos, motivo pelo qual entendeu proceder à retenção de 20% do valor total da empreitada até eliminação dos defeitos;

13) Em resposta a esta carta, a Autora remeteu à Ré, a carta registada com aviso de recepção datada de 6 de Julho de 2018 – cuja cópia está junta como documento 13 da petição inicial, com o teor que aqui se dá por integralmente reproduzido – pela qual, além do mais, solicita que o Réu indique datas para que os colaboradores da Autora pudessem deslocar-se à obra;

14) A Autora, através do seu mandatário judicial, remeteu ao Réu, que recebeu, a carta registada com aviso de recepção datada de 31 de Julho de 2018, cuja cópia está junta a fls. 45, com o teor que aqui se dá por integralmente reproduzido, pela qual termina com a interpelação do Réu para: a) indicar datas para deslocação à obra, para verificar consigo e no lugar qualquer defeito ou imperfeição da instalação realizada , para ser devidamente reparada; b) proceder o pagamento, no prazo de 10 dias, do valor correspondente a 20%, que é o montante em falta para os 50% com a entrada em obra (…);

15) Após deixarem a obra de instalação de caixilharia, no dia 25 de Maio de 2018, verificavam-se os seguintes defeitos/incorrecções/faltas:

- janela da cozinha – sem silicone nos encostos esquerdo e direito; sem silicone nas travessas altas e baixas; sem saída de agua na travessa baixa; sem resguardo;

- janela da sala de jantar - sem silicone nos encostos esquerdo e direito; sem silicone nas travessas altas e baixas; sem saída de agua na travessa baixa; sem resguardo; necessidade de ajuste para o fecho da janela no interior;

- segunda janela da sala de jantar - sem silicone nos encostos esquerdo e direito; sem silicone nas travessas altas e baixas; sem saída de água na travessa baixa; sem resguardo; necessidade de ajuste para o fecho da janela no interior;

- janela da casa de banho - sem silicone nos encostos esquerdo e direito; sem silicone nas travessas altas e baixas; sem saída de agua na travessa baixa; sem resguardo; necessidade de ajuste para o fecho da janela no interior;

- janela do quarto dois - sem silicone nos encostos esquerdo e direito; sem silicone nas travessas altas e baixas; sem saída de agua na travessa baixa; sem resguardo; necessidade de ajuste para o fecho da janela no interior; abertura da janela pelo interior impossível, necessitando de ajuste;

- janela do quarto um - sem silicone nos encostos esquerdo e direito; sem silicone nas travessas altas e baixas; sem saída de agua na travessa baixa; sem resguardo;

- janela do quarto dois - sem silicone nos encostos esquerdo e direito; sem silicone nas travessas altas e baixas; sem saída de agua na travessa baixa; sem resguardo; necessidade de ajuste para o fecho da janela no interior; abertura da janela pelo interior impossível, necessitando de ajuste;

- janela do quarto um - sem silicone nos encostos esquerdo e direito; sem silicone nas travessas altas e baixas; sem saída de agua na travessa baixa; sem resguardo; necessidade de ajuste para o fecho da janela no interior; abertura da janela pelo interior impossível, necessitando de ajuste;

- janela do quarto três - sem silicone nos encostos esquerdo e direito; sem silicone nas travessas altas e baixas; sem saída de agua na travessa baixa; sem resguardo; necessidade de ajuste para o fecho da janela no interior; abertura da janela pelo interior impossível, necessitando de ajuste; - janela do hall interior - sem silicone nos encostos esquerdo e direito; sem silicone nas travessas altas e baixas; sem saída de agua na travessa baixa; sem resguardo;

- janela da sala de estar - sem silicone nos encostos esquerdo e direito; sem silicone nas travessas altas e baixas; sem saída de agua na travessa baixa; sem resguardo; abertura forçada; a travessa alta da janela não fecha correctamente por o fecho da janela não esta alinhado com a abertura; problema de conexão entre os encostos e as travessas; falta de capot de fecho baixo; problema de alinhamento entre a travessa alta e o encosto e entre a travessa baixa e o encosto – esta janela tem de ser refeita completamente;

- segunda janela da sala de estar - sem silicone nos encostos esquerdo e direito; sem silicone nas travessas altas e baixas; sem saída de agua na travessa baixa; sem resguardo;

- janela do escritório - sem silicone nos encostos esquerdo e direito; sem silicone nas travessas altas e baixas; sem saída de agua na travessa baixa; sem resguardo;

- janela da lavandaria - sem silicone nos encostos esquerdo e direito; sem silicone nas travessas altas e baixas; sem saída de agua na travessa baixa; sem resguardo;

- janela da casa de banho da cave - sem silicone nos encostos esquerdo e direito; sem silicone nas travessas altas e baixas; sem saída de agua na travessa baixa; sem resguardo;

- segunda janela do escritório - sem silicone nos encostos esquerdo e direito; sem silicone nas travessas altas e baixas; sem saída de agua na travessa baixa; sem resguardo;

- janela do hall de entrada - sem silicone nos encostos esquerdo e direito; sem silicone nas travessas altas e baixas; sem saída de agua na travessa baixa; sem resguardo;

16) No decurso da presente acção, o Réu recorreu a uma terceira empresa para concluir os trabalhos e eliminar os defeitos mencionados no item anterior;

17) O custo para a realização dos trabalhos de reparação e conclusão dos trabalhos identificados no ponto 14) ascendeu a, pelo menos, euros €15.812,92;

18) Entre 18 de Março de 2018 e e 13 de Maio do mesmo ano, a Autora e Réu trocaram os emails juntos como documentos 5 a 8 da contestação, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido;

19) A Autora realizou, por conta do Réu, o transporte de Portugal para a Suíça de umas portadas em dadeira destinadas à casa a que se destinava a obra de caixilharia;

20) A situação referida em 15) causou transtornos e incómodos ao Réu e à sua família;

E foram dados como não provados os seguintes:

a) A instalação contratada entre as partes foi concluída pela Autora no dia 25 de Maio de 2018.

b) O transporte referido em 18) foi contratado pelo Réu à Autora mediante o pagamento de uma contrapartida monetária;

c) Tal contrapartida monetária foi de €500,00 (quinhentos euros), a que corresponde a fatura n.º 20118/121, junta como documento 4 da petição inicial;

d) No dia 25 de Maio de 2018, o responsável pela equipa da Autora afeta à realização da obra esteve, verificando a ausência absoluta de acuidade do trabalho realizado, assegurou ao Réu e ao técnico responsável da obra que continuaria os trabalhos no dia 28 de Maio de 2018.

e) A situação referida em 15) tornava impossível a habitabilidade no interior do casa do Réu;

f) A Autora recusou a conclusão/reparação das situações aludidas no ponto 15 supra;

g) Logo aquando da descarga do material em obra foram verificados defeitos no próprio material a ser aplicado em obra, tendo, de imediato, sido os mesmos recusados

h) O representante da Autora a quem o Réu solicitou o transporte referido em 19) garantiu a este que não lhe iria ser cobrado qualquer valor de transporte;

i) Quando a Autora considerou a obra concluída, no dia 25 de Maio de 2018, o Réu revelou, no momento e “in loco” que não aceitava aquele trabalho, em resultado dos defeitos de execução e da falta de aplicação de elementos;

j) Nunca qualquer representante da Autora fez qualquer telefonema ao Réu após o dia 25 de Maio de 2018;

l) O Réu, através do seu mandatário, remeteu à Autora, que recebeu, a carta datada de 23 de Agosto de 2018, junta como documento 9 da contestação, com o teor que aqui se dá por integralmente reproduzido, reafirmando a disponibilidade para que a obra fosse vistoriada e concluída pela Autora;

m) Em resultado da situação mencionada em 15), o Réu teve de assegurar um local alternativo para habitar, desde Junho de 2018 até à data da contestação, a quantia de 39.963,15 Francos Suíços, a título de renda;

n) Por causa da mesma situação, o Réu viu frustradas as expectativas de ver a sua casa concluída durante mais de um ano;

o) Passou vergonha de não poder receber amigos na mesma casa, multiplicando-se em explicações e justificações, sempre com grande embaraço e, por isso, viu a sua vida social limitada e coartada.

p) O que lhe causou dores de cabeça frequentes;

q) No dia 25-05-2018, o instalador, o Sr. BB, juntamente com o Réu, confirmou que todas as caixilharias se encontravam a funcionar corretamente;

r) Acordando com o Réu, nessa data, regressar nas duas semanas seguintes, em dia a indicar pelo Réu, para proceder a algum ajuste necessário e finalizar alguns acabamentos e limpeza.

III - Da admissibilidade do recurso e âmbito do recurso

Das conclusões formuladas no presente recurso resulta que uma das questões suscitadas e que o Recorrente pretende ver apreciadas por este Supremo Tribunal de Justiça prende-se com a decisão do Tribunal da Relação de negar a reapreciação da matéria de facto impugnada, com fundamento no incumprimento dos ónus impostos pelo art.º 640.º do CPC.

Ora, embora o Recorrente englobe tal questão no objecto da revista excepcional, deve entender-se que tal decisão que versou sobre o incumprimento, por parte do Recorrente, dos ónus previstos no art.º 640.º, é susceptível de recurso de revista normal.

Com efeito, vem a jurisprudência consolidada deste Supremo Tribunal entendendo que, em circunstâncias como as dos autos, ocorre uma descaracterização da dupla conforme, sendo admissível o recurso de revista, ainda que circunscrito ao conhecimento da questão da interpretação pela Tribunal da Relação do ónus de impugnação da matéria de facto por se tratar de matéria que foi apreciada pela primeira vez pelo mesmo tribunal.1

Assim, admite-se a revista quanto a esta questão e que será apreciada seguidamente. A final, será analisada a admissibilidade da revista excepcional.

IV - O DIREITO

Tendo em conta as conclusões de recurso formuladas que delimitam o respectivo âmbito de cognição do Tribunal, a única questão, por ora, a apreciar consiste em saber se o acórdão recorrido fez correcta aplicação do disposto no art.º 640.º do CPC , ao negar a reapreciação da matéria de facto impugnada, por incumprimento dos ónus impostos ao Recorrente por força daquele preceito legal.

Recordemos o teor do referido art.º 640.º do CPC:

Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

2-No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:

a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;”

Conforme se pode ver das exaustivas alegações de recurso de apelação, o Recorrente impugna, em grande parte das cento e treze páginas da referida peça processual, a decisão da 1.ª instância sobre a matéria de facto, fazendo a transcrição dos depoimentos das testemunhas, evidenciando dessa forma as passagens dos respectivos depoimentos que considerava relevantes para fundamentar a alteração do sentido da decisão.

Porém, decidiu a Relação a este propósito:

no caso dos autos o recorrente sustenta a parte da sua impugnação do julgamento de facto na prova testemunhal e nas declarações de parte.

Não obstante proceder à transcrição de parte dos excertos da prova gravada, não indica minimamente, nem na motivação, nem nas conclusões, (i) os ficheiros ou suporte técnico de tais gravações (ii) a indicação exata das passagens relevantes da gravação da prova que pretende convocar.

Na descrição aleatória a que procede de tais alegados excertos de gravação introduz também, aleatoriamente, uma referência desgarrada a minutos e segundos de áudio alegadamente a depoimento/declaração impercetível. Nada mais.

Verifica-se assim, uma total ausência de cumprimento deste ónus, quer na motivação quer nas conclusões do recurso, o que pôs em causa não só o cabal contraditório pela parte contrária, mas ainda, dificulta relevantemente a sua localização por parte deste tribunal.

Daí que, mesmo modelando a exigência de cumprimento deste ónus por critérios de proporcionalidade e razoabilidade como vem sendo defendido, designadamente, nas citadas decisões do STJ, se não vê, nos presentes autos, como aproveitar a impugnação de facto dirigida à sentença (i) nos ponto de facto em que há ausência total do cumprimento do respetivo ónus pelo recorrente (ii) atenta a patente e relevante dificuldade de localização da prova gravada.

Consequentemente, por não cumprimento absoluto do ónus inserto no artigo 640º, n.º 2 a), do Código de Processo Civil, rejeita-se o recurso da matéria de facto quanto aos pontos de facto não provados para cuja alteração são exclusivamente invocados meios de prova gravados a saber:

Factos não provados constantes das alíneas d), e), i), j). (quanto a este ponto dado que se trata de facto negativo e que não observa as regras do ónus da prova sem prejuízo da sua irrelevância como salienta a recorrente) e, n).

Prejudicado o que se requer quanto à extração de certidão relativa ao depoimento da testemunha CC.

IV - No que respeita aos demais pontos da matéria de faco impugnados atender-se-á ao recurso reapreciando a prova apenas, em face dos documentos apresentados pelo recorrente, para sustentar a alteração e na medida em que a reapreciação da prova possa ter utilidade em ordem a alterar a decisão proferida na sentença.

Em suma, o Tribunal recorrido negou a reapreciação de alguns pontos da matéria de facto, para cuja alteração tinham sido exclusivamente indicados meios de prova testemunhal, com o argumento de não terem sido indicadas as passagens das gravações em que se fundamenta. Quanto aos pontos em que, além da prova testemunhal, tivessem sido indicados como meios de prova, documentos, foram apenas analisados os documentos, com exclusão da prova testemunhal, com idêntico fundamento.

Assim sendo, a questão que se coloca é a de saber se a transcrição dos depoimentos gravados que, no entender do recorrente, fundamentam a impugnação, substituem a indicação da localização das passagens da gravação.

Vejamos:

“Constitui posição firme e consolidada neste Supremo Tribunal de Justiça o entendimento segundo o qual a análise relativa à exigência do cumprimento dos requisitos constantes do artigo 640.º do Código de Processo Civil obedece desde logo aos princípios gerais da proporcionalidade, adequação e razoabilidade, com o primado da substância sobre a forma, em termos de afastar a drástica solução da imediata rejeição da impugnação de facto no caso de as deficiências, estritamente formais, no cumprimento dos requisitos estabelecidos no artigo 640º do Código de Processo Civil permitirem, não obstante, compreender e alcançar o seu exacto sentido, sendo assim perfeitamente possível ao julgador, sem especiais dificuldades ou esforços, aquilatar em toda a sua amplitude e com toda a segurança do respectivo mérito, o que está em consonância com os princípios gerais consagrados nos artigos 18º, nº 2 e 3 e 20º, nº 4, da Constituição da República Portuguesa que prevêem a garantia da tutela da jurisdição efectiva e do direito fundamental a um processo judicial equitativo e justo”.2

Assim sendo, será de admitir (e não rejeitar) a impugnação em relação à qual seja objectivamente possível destrinçar e localizar suficientemente os pontos de facto impugnados, os meios de prova com eles conectados e que justificam a alteração pretendida, bem como, por fim, a resposta alternativa proposta pelo recorrente, em termos da sua segura compreensibilidade pelo julgador quanto ao seu conteúdo e sentido”.3

Certo é ainda, continuando a citar o já mencionado acórdão deste Supremo, que “está aqui igualmente em causa a imprescindível salvaguarda do exercício do contraditório pela contraparte que, ao ser confrontada com uma impugnação genérica e/ou confusa, vê acentuadamente dificultada a sua capacidade de resposta, pela consequente incompreensão das razões para a alteração de facto assim deficientemente apresentadas”.

A propósito do cumprimento dos ónus a cargo do recorrente ao impugnar a decisão sobre a matéria de facto, observa o acórdão deste STJ de 1-10-20154 que a “especificação dos “concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos de facto impugnados diversa da recorrida” (al. b), exigiu ao recorrente que especificasse “a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas” (al. c), sob pena de rejeição do recurso de facto. E à mesma rejeição imediata conduz a falta de indicação exacta “das passagens da gravação em que se funda” o recurso, se for o caso, sem prejuízo de poder optar pela apresentação da “transcrição dos excertos” relevantes.5

E como também eloquentemente se diz no acórdão deste STJ de 06-10-2016,6

A expressão posta no normativo descrito no art.º 640.º, n.º 2, al. a), do C.P.Civil - "incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso..." há-de ser compreendida, como nos exortam as regras da boa interpretação, no particularizado contexto em que é denunciado o erro de julgamento da matéria de facto e tendo sempre na devida conta o pormenorizado envolvimento do modo como é especificadamente tratada e densificada a sua impugnação, isto é, relevando muito para esta exegese o modo como é proposta a alteração preconizada pelo recorrente.

Queremos com isto dizer que a recusa da pedida reapreciação do julgamento sobre a matéria de facto, fundamentada na omissão da “indicação exata das passagens da gravação em que se funda o seu recurso", só será de materializar no caso de essa denotada anotação se tornar indispensável, ou seja, quando, da envolvência circunstancial conferida ao Julgador, se patentear que só com um labor comportamental acrescido e desmedido é que o Juiz haverá de proceder ao exame da prova que lhe é deferido; e tal estorvo não ocorrerá sempre que esse peculiar e rogado discernimento jurisdicional, por parte do tribunal de recurso, seja suscetível de se concretizar sem o recurso a essa formal exigência normativa.”.

A orientação deste STJ tem sido no sentido de que “- Impugnando o recorrente a matéria de facto, o cumprimento do ónus de alegação regulado no art.º 640.º do CPC tem de ser conformado com os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, atribuindo-se maior relevo aos aspectos de ordem material.

Sobre a problemática da indicação exacta das passagens, o STJ tem entendido que, não dizendo a lei como na prática deve ser feita, cumpre interpretar o preceito com cuidado, mas também com suficiente abertura e maleabilidade, tendo em conta o objectivo do preceito, que é evitar a impugnação genérica e discricionária da decisão de facto e a invocação não concretizada dos meios de prova, utilizada como meio exclusivamente dilatório.”7

Ora, dos excertos retirados da Jurisprudência deste Supremo Tribunal, a título exemplificativo, porque muitos mais acórdãos poderiam ser citados, retira-se desde já a resposta à questão colocada: ao impugnar a decisão sobre a matéria de facto, a parte pode optar pela apresentação da “transcrição dos excertos” relevantes, em vez de indicar a exacta localização desses mesmos excertos, especialmente se o processo , pela sua extensão ou complexidade não exigir um “um labor comportamental acrescido e desmedido” por parte do juiz a quem é solicitado o reexame da prova.

É o caso dos autos. A simplicidade do processo e a relativamente diminuta extensão das gravações cuja reapreciação é solicitada, tornam desproporcional a negação do conhecimento dessa matéria, a pretexto de que não se encontravam indicadas com exactidão as localizações das gravações, não obstante a parte se ter dado a um trabalho mais exaustivo do que essa indicação, qual seja o de transcrever os depoimentos das testemunhas, nas partes consideradas relevantes.

Na verdade, o que é importante é que o conteúdo da impugnação deduzida seja compreensível “pela parte contrária e pelo tribunal, não exigindo a sua apreciação um esforço inexigível”8. Caso assim seja, “não há justificação para o não conhecimento desse fundamento de recurso9.

No caso dos autos, não havia, pois, qualquer justificação, considerando a correcta aplicação do normativo legal em análise, de acordo com os princípios jurisprudenciais mencionados, para negar a reapreciação da matéria de facto pela Relação, um dos fundamentos da apelação.

Por outro lado, quanto à decisão da Relação nos termos da qual entendeu reapreciar a prova “apenas” “em face dos documentos apresentados pelo recorrente”, com exclusão da prova testemunhal, importa referir que tal cisão da prova não é admissível.

Com efeito, “o princípio da livre apreciação da prova, plasmado no n.º 5 do art.º 607.º do CPC, vigora para a 1.ª instância e, de igual modo, para a Relação, quando é chamada a reapreciar a decisão proferida sobre a matéria de facto.
Em tal circunstância, compete ao Tribunal da Relação
reapreciar todos os elementos probatórios que tenham sido produzidos nos autos10 e, de acordo com a convicção própria que com base neles forme, consignar os factos que julga provados, coincidam eles, ou não, com o juízo alcançado pela 1.ª instância, pois só assim actuando está, efectivamente, a exercitar os poderes que nesse âmbito lhe são legalmente conferidos.”11

Subjacente ao princípio da livre apreciação da prova consagrado no art.º 607.º n.º5, está, pois, um princípio da unidade da prova, segundo o qual ao Tribunal da Relação “compete reapreciar todos os elementos probatórios que tenham sido produzidos nos autos” , na sua globalidade, sem exclusão dos outros meios de prova, a não ser que por razões legais, tais meios de prova não possam ser considerados, em concreto, em relação a determinados factos. Tal não foi o caso nos presentes autos, como flui do exposto.

Do exposto resulta, pois, que procedem nesta parte as conclusões de recurso, devendo o acórdão recorrido ser anulado a fim de ser reapreciada a decisão sobre a matéria de facto e, seguidamente, ser proferida a decisão de direito em conformidade.

Deste modo, fica prejudicado o recurso de revista excepcional.

IV - DECISÃO

Em face do exposto, acordamos nesta 7.ª secção do Supremo Tribunal de Justiça, em conceder a revista, anulando-se o acórdão recorrido, na parte em que não apreciou a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, e determinando que o processo volte à Relação para que, por intermédio dos mesmos juízes, se possível, aprecie o recurso da decisão sobre a matéria de facto, nos pontos impugnados.

Custas pela Recorrida.

Lisboa, 27 de março de 2025

Maria de Deus Correia (relatora)

Arlindo Oliveira

Nuno Pinto Oliveira

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1. Vide, a título exemplificativo, os acórdãos do STJ de 18-01-2022 (proc. n.º 243/18.0T8PFR.P1.S1 e proc. n.º 701/19.0T8EVR.E1.S1), de 10-02-2022 (proc. n.º 337/16.7T8CSC.L1.S1), de 05-04-2022 (proc. n.º 1916/18.3T8STS.P1.S1), de 05-07-2022 (proc. n.º 3411/19.4T8CSC.L1.S1) e de 15-09-2022 (proc. n.º 556/19.4T8PNF.P1.S1), todos disponíveis em www.dgsi.pt.

2. Vide acórdão do STJ de 16-01-2024, Processo 818/18.8T8STB.E1.S1, disponível em www.dgsi.pt

3. Idem.

4. Processo 6626/09.0TVLSB.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt

5. Destacado nosso.

6. Processo n.º1752/10.5TBGMR-A.G1.S1, disponível em www.dgsi.pt.

7. Acórdão so STJ de 13-10-2016 , Processo 3257/13.3TB.3TBGMR.G1.S1, não publicado, APUD acórdão do STJ de 27-04-2023, já citado.

8. Acórdão do STJ de 14-01-2021, Processo 1121/13.5TVLSB.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt.

9. Idem.

10. Destacado nosso.

11. Acórdão do STJ de 18-05-2017, Processo 4305/15.8T8SNT.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt