Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
274/23.9JELSB.L1.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: ANTERO LUIS
Descritores: RECURSO PARA O SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES
ASSOCIAÇÃO CRIMINOSA
AFASTAMENTO DO TERRITÓRIO NACIONAL
DUPLA CONFORME
PENA PARCELAR
PREVENÇÃO GERAL
PENA ÚNICA
Data do Acordão: 10/01/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário :
I. Verificada dupla conforme, o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça apenas pode abranger a discussão sobre penas ou pena unitária aplicadas se superiores a 8 anos de prisão, sem prejuízo do conhecimento oficioso de vícios ou nulidades.

II. Situando-se a moldura abstracta do cúmulo jurídico, entre um mínimo de sete (7) anos e um máximo de quatorze (14) anos de prisão e estando em causa um crime de tráfico de estupefacientes agravado e um crime de associação criminosa, é razoável e proporcional a condenação do arguido numa pena única de 9 (nove) anos e 6 (seis) meses de prisão.

Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça


I. Relatório

1. No Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa – Juízo Central Criminal de Lisboa – Juiz 13, por acórdão de 27 de Novembro de 2024, foi o arguido AA condenado:

a) pela prática, como autor, de um crime de tráfico de estupefacientes agravado, p. e p. nos artigos 21º nº 1 e 24º al. c) por referência à tabela I-B do Decreto-lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, na pena de 7 (sete) anos de prisão;

b) pela prática, como autor, de um crime de associação criminosa, p. e p. no artigo 28º nº 2 do Decreto-lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, na pena de 7 (sete) anos de prisão;

c) Em cúmulo jurídico na pena única de 9 (nove) anos e 6 (seis) meses de prisão.

d) Na pena acessória de afastamento do território nacional, por 7 (sete) anos - cf. artigos 22.º, n.ºs 1 e 3 e 23.º, da Lei 37/2006, de 9 de Agosto e artigo 34º n.º 1 do Decreto-lei n.º 15/93 de 22 de Janeiro

2. Inconformado com o decidido, recorreu o arguido para o Tribunal da Relação de Lisboa, que, por acórdão de 9 de Abril de 2025, decidiu julgar totalmente improcedente o recurso interposto pelo arguido e, em consequência, confirmar na íntegra a decisão recorrida (embora dando nova redacção aos factos não provados 5, 6 e 7).

3. Novamente inconformado com tal acórdão, o arguido AA interpôs recurso para este Supremo Tribunal de Justiça, apresentando as seguintes conclusões: (transcrição)

1. O arguido foi condenado à pena única de 9 anos e 6 meses de prisão por um crime de tráfico de estupefacientes e por um crime de colaboração com associação criminosa ligada ao tráfico.

2. Subjacente à condenação está a abordagem feita pelas autoridades portuguesas ao veleiro do arguido, o M..., de nacionalidade polaca e na zona económica exclusiva de Portugal.

3. Tal abordagem foi manifestamente ilegal, violando o direito internacional e o direito interno, uma vez que as autoridades portuguesas não obtiveram autorização da Polónia para abordar e penetrar na embarcação.

4. O Tribunal de 1.ª instância, porém, considerou que a abordagem havia sido regular e que a prova aí colhida era válida.

5. O arguido recorreu do acórdão de 1.ª instância mas o Tribunal da Relação não lhe deu razão.

6. Em síntese, o Tribunal da Relação considerou que:

a. O Estado polaco incumpriu o dever de responder à solicitação das autoridades portuguesas sem demora;

b. O Estado polaco anuiu tacitamente à atuação das autoridades portuguesas;

c. O Estado polaco deveria ter colaborado com o Estado português ao abrigo do direito da União Europeia;

d. A obtenção da prova não padece de qualquer invalidade baseada em normas de direito processual penal interno.

7. Estes argumentos são falhos, sendo que o Tribunal da Relação nem sequer é claro a identificar que normas são ou não aplicáveis para resolver o caso, o que implica pelo menos a correção do acórdão nos termos conjugados dos artigos 380.º e 425.º, n.º 4 do Código de Processo Penal.

8. Em primeiro lugar, não há qualquer razão para sustentar que o Estado polaco incumpriu o dever de responder às autoridades portuguesas, ou que anuiu tacitamente à abordagem ao M....

9. Na verdade, o Estado polaco respondeu, dizendo que ainda não tinha entidade interna com competência para apreciar o pedido feito pelas nossas autoridades, pelo que não autorizou qualquer abordagem.

10. A este respeito, nota-se que o Tribunal da Relação ignorou completamente o guia prático das Nações Unidas sobre esta matéria, guia prático esse mencionado pelo arguido no seu recurso. Na verdade, o Tribunal da Relação cita ou ignora os instrumentos das Nações Unidas consoante o que acha que lhe dá «jeito», numa evidente seletividade que mais não mostra do que uma desesperada busca de argumentos…

11. Quanto à necessidade de o Estado polaco colaborar com o Estado português ao abrigo do direito europeu, o Tribunal da Relação invoca a Decisão-Quadro 2004/757/JAI, de 25 de outubro de 2004, e a Convenção relativa ao auxílio judiciário mútuo em matéria penal entre os Estados Membros da União Europeia.

12. O apelo à Decisão-Quadro 2004/757/JAI, de 25 de outubro de 2004 é completamente deslocado uma vez que tal Decisão não tem nada que ver com obrigações de natureza processual penal ou com colaborações marítimas.

13. Por outro lado, nunca, em momento algum, houve qualquer configuração nestes autos da comunicação das autoridades portuguesas enquanto pedido de auxílio judiciário ao abrigo da Convenção relativa ao auxílio judiciário mútuo em matéria penal entre os Estados Membros da União Europeia. O apelo do Tribunal a esta convenção mostra mais uma vez um verdadeiro desespero argumentativo.

14. Por outro lado, conforme artigo 1.º, n.º 1, alínea a) da Convenção, a mesma visa somente completar as disposições e facilitar a aplicação entre os Estados membros da União Europeia da Convenção Europeia de Auxílio Judiciário Mútuo em Matéria Penal, de 20 de Abril de 1959.

15. Nos termos do artigo 1.º, n.º 1 da Convenção Europeia de Auxílio Judiciário Mútuo em Matéria Penal, de 20 de Abril de 1959, as partes contratantes comprometem-se, de acordo com as disposições da convenção, a conceder mutuamente o mais amplo auxílio judiciário possível nos processos relativos a infrações cuja repressão seja da competência das autoridades judiciárias da Parte requerente.

16. Por sua vez, no artigo 2.º, alínea b) do mesmo instrumento, determina-se que o auxílio judiciário pode ser recusado se a Parte requerida considerar que o cumprimento do pedido pode atentar contra a sua soberania.

17. Ora, está por estabelecer que a repressão da infração fosse da competência do Estado português (era preciso a tal autorização… que não foi obtida… porque a Polónia não a deu… logo… a competência era da Polónia) e, para além disso, fica expressamente salvaguardada a soberania da Polónia, que aliás a exerceu, sobre um navio com pavilhão polaco…

18. Não há, pois, qualquer norma ou instrumento do direito da União que tenha sido violado ou incumprido pela Polónia.

19. Quanto ao argumento da inexistência de invalidade da prova ao abrigo do processo penal interno, nota-se que o mesmo tem por absurda consequência admitir que um despacho do juiz de instrução pode derrogar o direito internacional público ao qual o Estado português se encontra vinculado. É ainda um argumento que não se ajusta minimamente à regra de que a violação das regras de competência do tribunal constitui uma nulidade insanável.

20. Se Portugal não pode entrar no M..., porque a Polónia (e o direito internacional) não deixa, não pode de modo algum valorar a prova que obteve dentro do M..., só porque o juiz de instrução emitiu um despacho nesse sentido. É aliás espantoso considerar-se que o juiz de instrução tem estes poderes de gestão da política externa portuguesa… e seria deixar entrar pela janela o que o direito internacional quis fechar pela porta.

21. Enfim, o Tribunal da Relação de Lisboa sabe perfeitamente que o arguido tem razão, e só não lha deu porque está em causa um crime de tráfico.

22. Concluindo:

a. As autoridades polacas não afirmaram a sua vontade, enquanto Estado do pavilhão, pela visita, inspeção, apresamento ou adoção de medidas judiciais contra o M..., não havendo autorização que legitime a intervenção das autoridades portuguesas;

b. A Polónia tinha a exclusividade do direito de jurisdição sobre o M... na zona em que o mesmo foi abordado, com a proibição do seu exercício pelos outros Estados sem expressa autorização para tal;

c. Na falta de autorização pelo Estado polaco, o Estado português não adquiriu soberania nem jurisdição nem quaisquer outros poderes referentes à repressão do tráfico de droga sobre a embarcação M... na sua zona económica exclusiva, em respeito pelos artigos 56.º, n.º 1, alíneas a) e b) da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, artigos 2.º, n.º 2 e 17.º, n.ºs 3 e 4 da Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Estupefacientes e de Substâncias Psicotrópicas, artigo 16.º, n.º 1, alínea c), subalíneas i) e ii) da Lei n.º 34/2006, de28 de julho e 49.º, alínea b) do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro;

d. A abordagem e subsequentes buscas pelas autoridades portuguesas ao M... constituíram assim uma violação do direito internacional ao qual o Estado português se encontra vinculado, mormente ao artigo 17.º, n.ºs 3 e 4 da Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Estupefacientes e de Substâncias Psicotrópicas;

e. As provas obtidas através das buscas ao M... são, pois, proibidas por lei, nos termos da parte final do artigo 125.º do Código de Processo Penal;

f. Acresce que, nos termos do artigo 126.º, n.º 3 do Código de Processo Penal, são nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante intromissão na vida privada, não havendo dúvidas de que, sendo as provas obtidas fora dos parâmetros de atuação permitidos às autoridades portuguesas, é clara intromissão na vida privada do arguido, que aliás residia no M...;

g. Destarte, são nulas as buscas e as apreensões feitas à ena embarcação M..., sendo igualmente nula a prova obtida no interior da embarcação, devendo o arguido ser absolvido de todos os crimes pelos quais veio acusado, sendo-lhe igualmente devolvidos todos os bens apreendidos à ordem dos autos;

h. São inconstitucionais, por violação do artigo 8.º, n.º 2 da Constituição, que estabelece o princípio da primazia do direito internacional sobre o direito ordinário nacional, as seguintes normas:

i. Norma constante no artigo 49.º, alínea b) do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, se interpretada no sentido de que a lei penal portuguesa é aplicável a factos cometidos na zona económica exclusiva nacional quando praticados a bordo de navio com pavilhão estrangeiro contra o qual Portugal não tenha sido autorizado a tomar as medidas previstas no artigo 17.º da Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Estupefacientes e de Substâncias Psicotrópicas de 1988;

ii. Norma constante no artigo 5.º, n.º 2 do Código Penal, no sentido segundo o qual a lei penal portuguesa é aplicável a factos cometidos em embarcação estrangeira navegando na zona económica exclusiva portuguesa em relação à qual o Estado português não tenha sido autorizado a tomar as medidas previstas no artigo 17.º da Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Estupefacientes e de Substâncias Psicotrópicas de 1988;

iii. A norma constante, isolada ou conjugadamente, dos artigos 4.º, n.º 2 e 6.º, n.ºs 1 e 2, alínea k) do Decreto-Lei n.º 43/2002, de 2 de março, no sentido segundo o qual é válida a busca realizada em navio de pavilhão estrangeiro navegando na zona económica exclusiva portuguesa para a qual não foi obtida a autorização prevista no artigo 17.º, n.º 4 da Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Estupefacientes e de Substâncias Psicotrópicas de 1988; A norma constante, isolada ou conjugadamente, dos artigos 125.º e 126.º, n.º 3 do Código de Processo Penal no sentido segundo o qual é válida a prova obtida mediante busca realizada em navio de pavilhão estrangeiro navegando na zona económica exclusiva portuguesa para a qual não foi obtida a autorização prevista no artigo 17.º, n.º 4 da Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Estupefacientes e de Substâncias Psicotrópicas de 1988.

23. O arguido recorreu também para o Tribunal da Relação de Lisboa quanto à pena aplicada pelo crime de associação criminosa e quanto à pena aplicada em cúmulo.

24. O Tribunal da Relação não deu razão ao arguido, remetendo fundamentalmente para o acórdão do tribunal de 1.ª instância.

25. O arguido não se conforma, mantendo que a pena do cúmulo tem de ser revista.

26. Desde logo, foram considerados «factos» na fixação da medida da pena que não estão provados.

27. Por exemplo, não consta dos factos provados que a organização com a qual o arguido colaborou detinha vastos meios de financiamento, transporte, humanos.

28. Não consta dos factos provados que a organização tinha capacidade de corte laboratorial e de distribuição na Europa.

29. Não consta dos factos provados que o arguido colaborou com um «cartel».

30. Para além disso, os factos provados quanto à associação criminosa, ou seja, os factos provados 1 a 3, 4 (no segmento na prossecução do referido projeto), 21 e 22, nem deveriam ter sido considerados escritos, por serem genéricos e conclusivos.

31. Acresce que é o próprio ato singular de tráfico que consubstancia a «colaboração» com a associação criminosa. Porém, sob pena de violação do princípio da proibição do ne bis in indem, o conceito de colaboração não pode juridicamente ser preenchido com o próprio (e único!) ato de tráfico. A condenação por associação criminosa é manifestamente errada, como aliás o arguido referiu no recurso interposto perante a Relação.

32. Por outro lado, as instâncias não deram relevância ao seguinte: o arguido não tinha armas consigo; o arguido não praticou quaisquer atos de violência, nem foi registado no processo qualquer indício de violência; o arguido estava sozinho em alto mar; o arguido assumiu ab initio uma postura de colaboração com as autoridades; não foi demonstrada uma única ligação entre a associação criminosa e a violência, a extorsão, a corrupção ou o branqueamento.

33. O arguido é primário e não existe qualquer indício de lealdade do arguido perante qualquer grupo organizado, assim sendo totalmente inverosímil que, depois de cumprida a pena, o arguido volte para o grupo com o qual colaborou, uma vez que o arguido dispõe de todas as condições e competências para ter uma vida de trabalho dentro da legalidade.

34. Há ainda que relevar que o arguido tem família e tem todas as condições para regressar à sua terra natal, fora de Portugal, e sustentar-se a si e apoiar os seus.

35. O arguido foi preso preventivamente em 2 de junho de 2023, tendo à data 53 anos de idade. Com uma pena de 8 anos, por exemplo, a mesma encontrar-se-á cumprida em 31, tendo o arguido 61 anos de idade.

36. Face ao exposto, 8 anos (no máximo) mostram-se mais do que suficientes para acautelar todas as necessidades de prevenção geral e especial, tutelando também de forma adequada o perigo para os bens jurídicos que constituiu a conduta do arguido.

Violaram-se as seguintes disposições:

- artigos 2.º, n.º 2 e 17.º, n.ºs 3 e 4 da Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Estupefacientes e de Substâncias Psicotrópicas de 1988;

- artigo 56.º, n.º 2 da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar;

- artigo 49.º, alínea b) do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro;

- artigo 16.º, n.º 1, alínea c), subalíneas i) e ii) da referida Lei n.º 34/2006, de 28 de julho;

- artigo 71.º, n.ºs 1 e 2 do Código Penal;

- artigos 125.º e 126.º, n.º 3 do Código de Processo Penal;

- artigo 8.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa.

Nestes termos, deve o presente recurso obter provimento. (fim de transcrição)

3. O Ministério Público junto do Tribunal da Relação de Lisboa, respondeu ao recurso, retirando da respectiva motivação as seguintes conclusões: (transcrição)

1. O arguido AA recorre do acórdão proferido a 9 de abril de 2025, pela 3.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, que julgou improcedente o recurso que apresentara e confirmou na íntegra a decisão proferida pelo Tribunal de 1.ª Instância,

2. O acórdão proferido pelo Tribunal de 1.ª Instância condenou o Recorrente pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes agravado, previsto e punido pelos arts. 21.º, nº1, e 24.º, alínea c), por referência à Tabela I-B, do Decreto-Lei nº15/93, de 22 de janeiro, e de um crime de associação criminosa, previsto e punido pelo art. 28.º, nº2, do mesmo Diploma, na pena de 7 anos de prisão por cada um deles, e em cúmulo na pena única de 9 anos e 6 meses de prisão.

3. Considerando o quantum das penas parcelares em que o Recorrente foi condenado, importa antes do mais, verificar se o acórdão em crise é recorrível para o Supremo Tribunal de Justiça em toda a sua extensão,

4. Com efeito, da limitação do direito ao recuso consagrada no art. 400.º, nº1, alínea f), do Código de Processo Penal, decorre que não é admissível recurso de “acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de 1.ª instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos”,

5. Sendo que, conforme tem afirmado a jurisprudência, a irrecorribilidade abrange todas as questões processuais ou de substância que tenham sido objeto da decisão, nomeadamente, as questões relacionadas com proibições de prova, nulidades, qualificação jurídica dos factos, concurso de crimes, autoria, cumplicidade e com a determinação das penas parcelares.

6. Nesse sentido, será de rejeitar o recurso interposto pelo Arguido AA em tudo o que respeita à impugnação da matéria de facto e à sua qualificação jurídica, bem como no que concerne à condenação nas penas parcelares aplicadas por cada um dos crimes por que foi condenado.

7. O Recorrente sustenta que, mantendo-se a condenação pela prática do crime de associação criminosa, será de reduzir a medida das penas aplicadas pelo Tribunal a quo, devendo a pena única ser fixada em 8 anos de prisão, medida esta que se mostra suficiente «para acautelar todas as necessidades de prevenção geral e especial, tutelando também de forma adequada o perigo para os bens jurídicos que constituiu a conduta do arguido».

8. Todavia, tendo presente a moldura penal aplicável aos ilícitos em causa, o circunstancialismo que rodeou a prática dos factos, as agravantes e atenuantes e, globalmente, a culpa do arguido, sendo esta reconduzível a um juízo valorativo que atende a todos os elementos aduzidos e conjugando-os com as regras de experiência comum, forçoso era concluir que o Tribunal a quo bem andou ao determinar a aplicação de uma pena única de 9 anos e seis meses de prisão,

9. Nesta conformidade, o acórdão recorrido não merece qualquer reparo, tendo feito correta interpretação e aplicação do direito, não tendo violado qualquer preceito legal nem quaisquer princípios gerais, devendo assim ser confirmado na íntegra. (fim de transcrição)

4. Neste Supremo Tribunal o Senhor Procurador-Geral Adjunto, emitiu o seu douto parecer e após rebater os argumentos expendidos pelo recorrente, aderindo à resposta ao recurso já elaborada, concluiu que “Deve ser rejeitado o recurso quanto à discussão relativa à prática e punição dos crimes em questão, conhecendo apenas da medida da pena única (dupla conforme);

A pena única de 09 anos e 06 meses prisão é ponderada, justa e criteriosa.”

5. Notificado o recorrente, o mesmo respondeu concluindo que “este Supremo Tribunal pode e deve corrigir o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa nos termos constantes de todas as conclusões de recurso do arguido, ajustando a atuação das autoridades nacionais ao direito internacional, assim contribuindo para prevenir eventuais problemas diplomáticos do Estado português e para reforçar o princípio da separação de poderes”. Arguiu ainda inconstitucionalidades várias decorrentes da posição expressa na posição quanto ao âmbito do recurso expressa no parecer.

Realizado o exame preliminar, colhidos os vistos, cumpre decidir.

II. Fundamentação

6. Resultaram provados, com relevância para a presente decisão, os seguintes factos: (transcrição)

1. “Indivíduos não identificados constituem um grupo organizado, que se dedica à aquisição e transporte para a Europa, através de Portugal, de produtos estupefacientes, com vista à sua entrega a terceiros, a troco de quantias monetárias, formado para essa finalidade.

2. Para o efeito, no seio daquele grupo foi arquitectado um plano, que se traduzia na introdução na Europa, através de Portugal e por via marítima, de mais de uma tonelada de cocaína.

3. Na prossecução do apontado projecto, o arguido foi encarregado de proceder ao transporte de cocaína, por via marítima, na embarcação M..., do tipo veleiro, com pavilhão da Polónia, registo POL000EUO e MMSI .......45.

4. Na prossecução do referido projecto, antes do dia 29.05.2023, o arguido embarcou, no Suriname, no aludido veleiro M....

5. O arguido e outras pessoas carregaram para o referido veleiro mil placas de cocaína (cloridrato) com o peso líquido de 1002231g (mil e dois quilos duzentos e trinta e um gramas) e grau de pureza entre 74,2% e 79,4%.

6. Depois, o arguido tomou o rumo de Portugal aos comandos daquela embarcação;

7. No dia 31.05.2023, pelas 03h05m, o arguido navegava aos comandos da referida embarcação nas coordenadas 38º 12.258N 12º 27.198W, ao largo da costa portuguesa.

8. O veleiro não arvorava qualquer bandeira ou pavilhão.

9. Nas apontadas circunstâncias a embarcação foi abordada pela Marinha Portuguesa.

10. Nessa sequência o veleiro foi escoltado para a Base Naval de Lisboa, no Alfeite.

11. No dia 01.06.2023, pelas 10h15m e na mencionada base, o arguido tinha no interior do veleiro, dissimuladas em diversos espaços, as sobreditas mil placas de cocaína (cloridrato) com o peso líquido de 1.002.231g.

12. O arguido tinha também dentro da embarcação uma embalagem que continha MDMA com o peso líquido de 3,192g e grau de pureza entre 74,2% e 79,4%.

13. Para além disso, o arguido transportava dentro do veleiro, entre outras coisas, o seguinte:

a) Dois computadores portáteis;

b) Um mini PC;

c) Um Ipad;

d) Dois discos rígidos externos;

e) Três telemóveis;

f) Um hotspot de acesso à internet;

g) Um transmissor de internet via satélite;

h) As quantias de €32.050,00, 60 reais do brasil e $25 USD;

i) Carteiras de criptomoedas, concretamente 9,13828 Bit correspondentes a € 785.188,66; 21,0562 ETH – correspondentes a € 63.011,63; Tether USD no valor de $ USD 2 836,1941; Tron (USD $ 75,04), Cronos (€ 341,36), Cardano (€ 1128, 61) e Mana (€ 446,45);

14. As referidas quantias monetárias e criptomoedas foram entregues ao arguido para transporte da cocaína do Suriname para Portugal.

15. Os restantes dispositivos acima elencados destinavam-se às comunicações do arguido com as pessoas a quem entregaria a cocaína.

16. A cocaína é vendida em média em Portugal por €33,91/grama.

17. Assim sendo, a venda da supracitada quantidade de cocaína proporcionaria a obtenção de pelo menos € 33.985.653,21.

18. O arguido nasceu em ..., Espanha e é cidadão dos Países Baixos.

19. O arguido não tem quaisquer familiares, amigos ou emprego em Portugal, onde apenas se deslocou para praticar a factualidade acima narrada.

20. O arguido agiu com o propósito concretizado de receber e carregar consigo a supracitada cocaína, cujas características, naturezas e quantidades conhecia, da América do Sul para Portugal, com o fito de a entregar a terceiros, a troco de uma quantia monetária, sabendo que a quantidade de cocaína transportada e o seu valor tornavam a sua conduta particularmente séria.

21. O arguido actuou em conjugação de vontades e esforços com os aludidos indivíduos, com o desígnio conseguido de prestar colaboração ao referido grupo, que foi constituído com o fito de receber e transportar o produto estupefaciente do continente americano para a Europa e de o entregar a terceiros a troco de quantias monetárias; o arguido sabia que o cumprimento das respectivas tarefas era indispensável à prossecução dos objectivos do grupo.

22. Para tanto o arguido quis e logrou colocar os seus meios individuais na disponibilidade do grupo, mediante o pagamento de uma contrapartida monetária, para ajudar a levar a cabo os objectivos acima aludidos.

23. O arguido actuou sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que todas as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.

24. Em relatório social datado de 18 de Setembro de 2024, escreveu-se que À data dos alegados factos constantes na presente acusação, AA não tinha morada certa e residia num barco que terá adquirido em 2021/2022, no qual viajava sozinho desde essa altura tendo, segundo alega, passado pelo Mar Mediterrâneo, Atlântico e com a intenção de se deslocar ao Pacífico (Argentina e Chile).

25. De acordo com o próprio, subsistia através do rendimento obtido no âmbito de alguns trabalhos de reparação de barcos em regatas que ocorriam em alguns destes locais onde passava, aí permanecendo o tempo necessário para desenvolver esses trabalhos. Nesse sentido, previamente à reclusão, o arguido terá permanecido no Brasil durante dois a três meses, onde se dedicou à reparação de um veleiro que participava numa regata. Ao longo do seu percurso profissional, o arguido menciona rendimentos incertos e variáveis, em média entre 2500,00 euros e 5000,00 euros, de acordo com os trabalhos efectivamente prestados.

26. O seu gosto particular pelo mar remonta já ao período de infância em que participava em provas náuticas junto do pai, na altura proprietário de um barco. AA estudou na Marinha Mercante, apesar de não ter completado os estudos a nível superior. Contudo, segundo refere, os conhecimentos que adquiriu eram os suficientes para se dedicar à construção e reparação de barcos, actividade à qual esteve sempre ligado para além de participar, durante alguns períodos da sua vida, em provas náuticas de competição.

27. Assim, aos 23 anos, iniciou a sua actividade laboral como marinheiro em embarcações de luxo, que manteve durante quatro anos. Juntamente com um sócio, estabeleceu uma empresa de aluguer de barcos, que se manteve em funcionamento durante 10 a 12 anos. Posteriormente, estabeleceu uma nova empresa, em sociedade, de construção e manutenção de barcos, a qual manteve por mais dez anos e que vendeu em 2020. O arguido alega que manteve funções até 2021, até conseguir adquirir o barco no qual passou a viajar por vários locais do mundo, até ter sido preso.

28. Filho de mãe belga e pai holandês, AA nasceu em Espanha, mas tem nacionalidade holandesa. Os pais separaram-se quando tinha um ano de idade, tendo o arguido ficado a viver com a mãe, que faleceu em 1998. O pai, actualmente a residir na Bélgica, não se terá constituído uma figura muito presente uma vez que viajava frequentemente por motivos profissionais. Não obstante, alega manter com este um bom relacionamento assim como com os irmãos, um uterino e outro consanguíneo, residentes em Espanha. Terá vivido até aos 35 anos em Barcelona, idade em que se mudou para ..., onde ainda mantém morada.

29. No plano afectivo, mantém um relacionamento há cerca de 11 anos com uma cidadã brasileira, com a qual contraiu matrimónio em 2015. O arguido tem uma filha de 26 anos, fruto de uma relação entretanto terminada. Segundo refere, a actual mulher reparte residência entre Espanha (...) e o Brasil. Esta não trabalha, subsistindo do património imobiliário de ambos, ou seja, de rendas de casas que adquiriam e que terão herdado em Espanha e no Brasil.

30. Relativamente à saúde, o arguido menciona manter pontualmente consumos de MDMA e cocaína em situações de convívio social.

31. Em termos futuros, AA pretende regressar a Espanha (...) e a retomar a sua actividade profissional, ligada à manutenção de veleiros, que desenvolverá onde for necessário e/ou onde ocorrerem as provas náuticas, considerando que não terá dificuldades em obter trabalho.

32. Do contacto mantido com o arguido, este evidenciou um temperamento calmo, uma postura adequada, bem como capacidades cognitivas e autonomia pessoal para fazer as opções de vida que entende como adequadas e vantajosas para si, recursos pessoais que lhe permitem utilizar um discurso consonante com a adequação social, num quadro de algumas dificuldades ao nível do pensamento consequencial, essencial ao processo de tomada de decisão.

33. AA deu entrada no Estabelecimento Prisional de ... em 23/02/2024, vindo transferido do Estabelecimento Prisional instalado na Polícia Judiciária de Lisboa, onde deu entrada em 02/06/2023. Encontra-se à ordem dos presentes autos, não sendo conhecidos processos pendentes. De acordo com os dados disponíveis, tudo indica que o actual processo é o primeiro contacto do arguido com o sistema de administração da justiça penal.

34. O arguido centra as principais repercussões da actual situação jurídico-penal em si e no impacto da privação da liberdade em termos pessoais e emocionais. Apesar do sofrimento causado na família decorrente da sua reclusão, o arguido continua a beneficiar de suporte familiar, durante e após a reclusão.

35. No estabelecimento prisional, tem revelado uma postura adequada e colaborante, procurando corresponder positivamente ao que lhe é solicitado, de forma a progredir no seu percurso prisional. No anterior estabelecimento prisional, trabalhou na cozinha e na enfermaria, entre 01/09/2023 e 22/02/2024 e, no actual estabelecimento, trabalha no ... desde 01/09/2024. Do ponto de vista disciplinar, regista uma infracção em 13/03/2024, por posse de objectos/valores proibidos, a qual se encontra ainda em averiguações no gabinete jurídico do estabelecimento prisional. Recebe visitas regulares, mensais ou bimensais, por parte do cônjuge que se desloca a Portugal com essa regularidade.

36. AA tem actualmente 54 anos de idade e, a crer na forma como nos apresenta a sua trajectória de vida, esta terá sido pautada por elementos de adequação e regularidade no país de origem sem a emergência de problemáticas específicas.

37. Da análise do caso em apreço consideramos, como factores de risco, algumas fragilidades que aparenta em termos do processo de tomada de decisão e do pensamento consequencial que se poderão constituir como as suas principais necessidades. Ainda assim, o arguido revela capacidades cognitivas e recursos pessoais que, se rentabilizados pelo próprio, poderão contribuir para a tomada de opções de vida pró-sociais.

38. Face ao exposto, e em caso de condenação, pensamos que a intervenção junto de AA deverá ser direccionada para a interiorização dos valores ético-jurídicos e do bem jurídico em causa, como forma de adoptar um projecto de vida condigno com as normas sociais, importando que desenvolva consciência crítica e descentração social, ou seja, que reflicta sobre a origem dos seus comportamentos criminais e das suas consequências para si e para os outros.

39. O arguido não tem condenações anteriores registadas.”

7. Apreciando.

7.1 Questões a decidir.

É pacífica a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça1 e da doutrina2 no sentido de que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo, contudo, das questões do conhecimento oficioso que ainda seja possível conhecer.3

Da leitura dessas conclusões o recorrente coloca a este Supremo Tribunal, as seguintes questões:

A abordagem à embarcação foi ilegal e viola as normas de direito internacional, por não ter sido autorizada pelas autoridades da Polónia, enquanto país do pavilhão;

As provas obtidas na busca ao barco são proibidas por lei e, por isso, nulas;

Não estão provados os elementos típicos do crime de associação criminosa;

Violação do princípio ne bis in idem;

A pena pelo crime de associação criminosa e a pena única são excessivas e desproporcionais;

Inconstitucionalidade das seguintes normas:

Artigo 49.º, alínea b) do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro;

Artigo 5.º, n.º 2 do Código Penal;

Artigos 4.º, n.º 2 e 6.º, n.ºs 1 e 2, alínea k) do Decreto-Lei n.º 43/2002, de 2 de Março;

Artigos 125.º e 126.º, n.º 3 do Código de Processo Penal.

7.2. Questão prévia: da restrição do objecto do recurso decorrente da verificação de dupla conforme no que respeita às penas parcelares e questões conexas.

O Senhor Procurador-Geral Adjunto neste Supremo Tribunal de Justiça, veio no seu parecer, tal como já havia feito o Ministério Público junto do Tribunal da Relação de Lisboa na resposta ao recurso, requerer a rejeição do recurso, excepto na parte que respeita à pena única em que o recorrente foi condenado, por haver dupla conforme na parte restante.

Vejamos.

O arguido foi condenado em 1.ª instância por um crime de tráfico de estupefacientes agravado, p. e p. nos artigos 21.º, n.º 1, e 24.º, al. c), por referência à tabela I-B do Decreto-lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, na pena de 7 (sete) anos de prisão; um crime de associação criminosa, p. e p. no artigo 28.º, n.º 2, do Decreto-lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, na pena de 7 (sete) anos de prisão; em cúmulo jurídico, na pena única de 9 (nove) anos e 6 (seis) meses de prisão e na pena acessória de afastamento do território nacional por 7 (sete) anos, nos termos dos artigos 22.º, n.os 1 e 3, e 23.º, da Lei 37/2006, de 9 de Agosto, e do artigo 34º, n.º 1, do Decreto-lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro.

Na decisão do recurso interposto para o Tribunal da Relação de Lisboa, estas penas foram integralmente confirmadas.

Ainda inconformado, recorre agora o arguido para o Supremo Tribunal de Justiça, renovando as questões já apresentadas no recurso para a Relação.

Nos termos do artigo 434º do Código de Processo Penal, “O recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça visa exclusivamente o reexame de matéria de direito, sem prejuízo do disposto nas alíneas a) e c) do n.º 1 do artigo 432.º”.

O artigo 432º do Código de Processo Penal, estatui que “Recorre-se para o Supremo Tribunal de Justiça:

a) De decisões das relações proferidas em 1.ª instância, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito ou com os fundamentos previstos nos nºs 2 e 3 do artigo 410.º;

b) De decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas relações, em recurso, nos termos do artigo 400.º;

Por sua vez o artigo 400º do Código de Processo Penal, entre as várias decisões que não admitem recurso, estatui, na sua alínea f), que não cabe recurso dos “acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de 1.ª instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos”.

Perante este enquadramento legal e analisado o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa sob recurso, constata-se que o mesmo apreciou as questões aqui suscitadas, de novo, pelo recorrente, como ele próprio reconhece na sua motivação de recurso e nas conclusões (cfr. 5, 6, 7, 8, 9, 10, 21, 22, 23 e 24), considerando, contudo, que tal apreciação é incorrecta e insuficiente e, por isso, não concorda com a mesma.

Ora, a discordância com o decidido, em recurso, pela Relação é irrelevante para efeitos de recurso para este Supremo Tribunal de Justiça, já que a mesma não abala ou extingue a dupla conforme estabelecida, a qual tem como consequência a irrecorribilidade da decisão proferida em relação às matérias abrangidas pela mesma.

Como bem nota no seu douto parecer o Senhor Procurador-Geral Adjunto neste Supremo, «ocorre uma situação de “dupla conforme”, assente na concordância das duas Instâncias quanto ao mérito da causa, pelo que, no caso, o recurso apenas será admissível quanto à impugnação da pena única aplicada (cfr, arts. 400º/1-f) e 432º/1-b) do Código de Processo Penal) .

(...)

Motivo por que – como bem salienta o Ministério Público junto do “Tribunal a quo” – se impõe que o Acórdão sub judice seja legalmente insusceptível de recurso no que tange à impugnação deduzida relativamente aos crimes em questão e suas penas parcelares, conforme as disposições processuais-penais já acima fixadas, pelo que deve ser rejeitado nesta parte, restando a impugnação relativa à medida da pena única (cfr, os arts. 414º/2 e 420º/1-b) do Código de Processo Penal).»

Na verdade, o artigo 400.º do Código de Processo Penal (CPP) consagra uma excepção ao regime-regra de recorribilidade das decisões judiciais previsto no artigo 399.º do CPP. Da restrição do direito ao recurso ali consagrada, para o que agora importa, decorre da al. f) do n.º 1 que não “de acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de 1.ª instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos”.

Decorre, então, expressamente da lei, que só é admissível recurso de decisão confirmatória da Relação (geradora de dupla conforme) quando a pena aplicada seja superior a oito anos de prisão, sendo objecto de conhecimento em recurso somente as questões referentes à condenação ou às condenações em pena superior a oito anos (seja pena parcelar ou pena única).

Assim tem decidido o Supremo Tribunal de Justiça em jurisprudência pacífica e reiterada.

Veja-se, a título ilustrativo, o acórdão do Supremo de 10-03-2021,4 onde, com referência ao acórdão do Supremo de 19-02-20145, se lê que “só é admissível recurso de decisão confirmatória da Relação quando a pena aplicada for superior a 8 anos de prisão, quer estejam em causa penas parcelares ou singulares, quer penas conjuntas ou únicas resultantes de cúmulo jurídico.

Irrecorribilidade que é extensiva a todas as questões relativas à atividade decisória que subjaz e que conduziu à condenação, incluída a fixação da matéria de facto, nulidades, os vícios lógicos da decisão, o princípio in dubio pro reo, a qualificação jurídica dos factos, a escolha das penas e a respetiva medida. Em suma, todas as questões subjacentes à decisão, submetidas a sindicância, sejam elas de constitucionalidade, substantivas ou processuais, referentes à aplicação do direito, conhecidas e confirmadas pelo acórdão da Relação, contanto a pena aplicada, parcelar ou conjunta, não seja superior a 8 anos de prisão.”

Trata-se de jurisprudência uniforme destes Supremo Tribunal, adotada e seguida no Ac. de 19/06/20196, desta mesma secção, onde se decidiu: “As questões subjacentes a essa irrecorribilidade, sejam elas de constitucionalidade, processuais e substantivas, enfim das questões referentes às razões de facto e direito assumidas, não poderá o Supremo conhecer, por não se situarem no círculo jurídico-penal legal do conhecimento processualmente admissível, delimitado pelos poderes de cognição do Supremo Tribunal”.

Assim foi decidido outrossim no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11-03-20217, em cujo sumário se lê: “Tendo em conta o disposto no art. 400.º, n.º 1, al. e), do CPP, onde se impede a possibilidade de recurso das decisões do Tribunal da Relação que apliquem pena de prisão não superior a 5 anos de prisão, e o disposto no art. 400.º, n.º 1, al. f), do CPP, onde apenas se admite (a contrario) o recurso de acórdãos da Relação que, confirmando decisão anterior, apliquem pena de prisão superior a 8 anos, e sabendo que, segundo a jurisprudência deste STJ, ainda que a pena única seja superior a 8 anos de prisão, se analisa a recorribilidade do acórdão relativamente a cada crime individualmente considerado, necessariamente temos que concluir não ser admissível o recurso das condenações relativas a cada crime, do Tribunal da Relação, quando seja aplicada pena não superior a 5 anos de prisão; e das condenações em pena de prisão superiores a 5 anos de prisão e não superiores a 8 anos de prisão, quando haja conformidade com o decidido na 1.ª instância.

Encontramos ainda na fundamentação do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29.04.20158 um elenco muito informativo da jurisprudência do Tribunal Constitucional rejeitando a inconstitucionalidade da norma em apreço interpretada no sentido aqui adoptado. Ali se lê:

O Tribunal Constitucional tem vindo a afirmar que o direito ao recurso como garantia de defesa do arguido não impõe um duplo grau de recurso. (…)

A constitucionalidade da norma do artigo 400.º, n.º 1, alínea f), do Código de Processo Penal, na actual redacção, na medida em que condiciona a admissibilidade de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça aos acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas Relações, que confirmem decisão de 1.ª instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos, foi apreciada pelo Tribunal Constitucional, que decidiu não a julgar inconstitucional – acórdão n.º 263/2009, de 25 de Maio, processo n.º 240/09-1.ª Secção (Acórdãos do Tribunal Constitucional – ATC –, volume 75, pág. 249), acórdão n.º 551/2009, de 27 de Outubro - 3.ª Secção, versando a questão, inclusive, ao nível do artigo 5.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2 do artigo 5.º do CPP (ATC, volume 76, pág. 566), acórdão n.º 645/2009, de 15 de Dezembro, processo n.º 846/2009 - 2.ª Secção (ATC, volume 76.º, pág. 575 - em sumário e com referência ao artigo 5.º, n.º 2, do CPP), o infra mencionado acórdão n.º 649/2009, de 15 de Dezembro - 3.ª Secção, confirmando decisão sumária que emitiu juízo de não inconstitucionalidade (ATC, volume 76, pág. 575, igualmente em sumário), e acórdão n.º 174/2010, de 4 de Maio, processo n.º 159/10-1.ª Secção.

Por seu turno, o acórdão n.º 424/2009, de 14 de Agosto, proferido no processo 591/09-2.ª Secção, decidiu não julgar inconstitucional a norma do artigo 400.º, n.º 1, alíneas e) e f), conjugada com a norma do artigo 432.º, n.º 1, alínea c), do CPP, na redacção emergente do Decreto-Lei n.º 48/2007, quando interpretada no sentido de que não é admissível recurso para o STJ de acórdão da Relação que, revogando a suspensão da execução da pena decidida em 1.ª instância, aplica ao arguido pena não superior a 5 anos de prisão efectiva.

E, mais recentemente, no acórdão n.º 385/2011, de 27 de Julho de 2011, proferido no processo n.º 470/11, da 2.ª Secção, foi decidido “Não julgar inconstitucional a norma do artigo 400.º, n.º 1, alínea f) do CPP, interpretada no sentido de ser irrecorrível uma decisão do Tribunal da Relação que, apesar de ter confirmado a decisão de 1.ª instância em pena não superior a 8 anos, se pronunciou pela primeira vez sobre um facto que a 1.ª instância não havia apreciado”.

Ainda a propósito da irrecorribilidade nas situações de dupla conforme, veja-se o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12 de Janeiro de 2023, no qual se considerou “ O propósito do legislador, nas alterações introduzidas no art. 400.º, n.º 1, al. f), do CPP, pela Lei n.º 20/2013, de 21-02, substituindo no texto da lei a referência a pena aplicável, por pena aplicada, foi reduzir a admissibilidade de recurso para o STJ dos acórdãos proferidos, em recurso pela Relação, em caso de “dupla conforme, acolhendo a jurisprudência o entendimento de que ocorrendo “dupla conforme” e tendo sido aplicadas várias penas por diversos crimes em concurso que nos termos do art. 77.º do CP, devam ser aglutinadas numa única pena, só quanto à pena única superior a 8 anos de prisão e aos crimes punidos também com penas de tal dimensão, é admissível recurso para o STJ. Constitui jurisprudência sedimentada do STJ, que o recurso para este tribunal não só não é admissível quanto às penas propriamente ditas não superiores a 8 anos de prisão, como também em relação a todas as questões processuais e de substância com elas conexas colocadas a montante que digam respeito a essa decisão, tais como, as relativas às nulidades, vícios indicados no art. 410.º do CPP, à apreciação da prova, incluindo o respeito da livre apreciação da prova e do princípio in dúbio pro reo, à qualificação jurídica dos factos e à determinação da medida da pena (...).9

Como ficou referido, este entendimento jurisprudencial tem tido respaldo nas decisões do Tribunal Constitucional, porquanto legislador constitucional não exige um duplo grau de recurso.10

Assim, seguindo a jurisprudência reiterada e uniforme deste Supremo Tribunal de Justiça, quando haja dupla conforme, o recurso apenas pode abranger a discussão sobre a pena unitária aplicada se superior a 8 anos de prisão, sem prejuízo do conhecimento oficioso de vícios ou nulidades, o que não é manifestamente o caso.

Tendo em conta que a admissão do recurso pela Relação não vincula este Supremo Tribunal de Justiça (artigo 414.º, n.º 3) e nos termos dos artigos 400º, n.º 1, alínea f), 432º, n.º 1, alínea b), 420º, n.º 1, alínea b), e 414º, n.ºs 2 e 3), todos do Código de Processo Penal rejeita-se o recurso, nesta parte (A abordagem à embarcação foi ilegal e viola as normas de direito internacional, por não ter sido autorizada pelas autoridades da Polónia, enquanto país do pavilhão; As provas obtidas na busca ao barco são proibidas por lei e, por isso, nulas; Não estão provados os elementos típicos do crime de associação criminosa; Violação do princípio ne bis in idem; Inconstitucionalidade das seguintes normas: Artigo 49.º, alínea b) do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro; Artigo 5.º, n.º 2 do Código Penal; Artigos 4.º, n.º 2 e 6.º, n.ºs 1 e 2, alínea k) do Decreto-Lei n.º 43/2002, de 2 de Março e Artigos 125.º e 126.º, n.º 3 do Código de Processo Penal), por inadmissibilidade legal.

Temos assim que o recurso deve ser rejeitado na parte referente às penas parcelares, incluindo tal rejeição todas as questões suscitadas no âmbito da condenação nessa parte.

Destarte sobre apenas como questão a apreciar a da medida da pena única.

7.3 Medida da pena única.

O arguido no seu recurso, não distingue entre os pontos atinentes à impugnação das penas parcelares e os atinentes à impugnação da pena única, como devia ter feito.

Sem embargo, apreciar-se-ão todas as razões invocadas que respeitem à medida da pena única (e somente a esta, visto que só esta pode ser apreciada).

Pretende o recorrente a redução da pena para, no máximo, 8 (oito) anos de prisão, com base no seguinte:

“[A]s instâncias não deram relevância ao seguinte: o arguido não tinha armas consigo; o arguido não praticou quaisquer atos de violência, nem foi registado no processo qualquer indício de violência; o arguido estava sozinho em alto mar; o arguido assumiu ab initio uma postura de colaboração com as autoridades; não foi demonstrada uma única ligação entre a associação criminosa e a violência, a extorsão, a corrupção ou o branqueamento.

33. O arguido é primário e não existe qualquer indício de lealdade do arguido perante qualquer grupo organizado, assim sendo totalmente inverosímil que, depois de cumprida a pena, o arguido volte para o grupo com o qual colaborou, uma vez que o arguido dispõe de todas as condições e competências para ter uma vida de trabalho dentro da legalidade.

34. Há ainda que relevar que o arguido tem família e tem todas as condições para regressar à sua terra natal, fora de Portugal, e sustentar-se a si e apoiar os seus.

35. O arguido foi preso preventivamente em 2 de junho de 2023, tendo à data 53 anos de idade. Com uma pena de 8 anos, por exemplo, a mesma encontrar-se-á cumprida em 31, tendo o arguido 61 anos de idade.

36. Face ao exposto, 8 anos (no máximo) mostram-se mais do que suficientes para acautelar todas as necessidades de prevenção geral e especial, tutelando também de forma adequada o perigo para os bens jurídicos que constituiu a conduta do arguido.”

Pronunciou-se o Ministério Público, tanto na Relação como no Supremo, no sentido da confirmação da medida da pena única.

No acórdão recorrido, justificou-se a determinação da medida da pena nos termos seguintes:

“Definida a pena concreta para cada um dos crimes praticados pelo arguido, a decisão recorrida formulou as seguintes considerações no momento de definir a pena única a aplicar:

Em cúmulo jurídico, cfr. artigo 77º e 78º do Código Penal, ponderados todos os factores relativos ao ilícito, culpa, dolo e de prevenção geral e especial já enunciados, acrescentar-se-á que o transporte de droga é meio frequente de introdução de produto estupefaciente de origem ultramarina em território europeu. Portugal, atenta a sua localização geográfica, é ponto privilegiado de entrada no espaço Schengen. Por conseguinte, por razões de segurança interna e cumprimento cabal dos compromissos de integridade assumidos perante os restantes países membros, cumpre-lhe prevenir e dissuadir a permeabilização das suas fronteiras ao tráfico de estupefacientes.

Pelo que, se comina a pena única de 9 anos e 6 meses de prisão ao arguido.

Atenta a medida concreta da pena aplicada (prisão efectiva de 9 anos e 6 meses) o elevado grau de ilicitude dos factos, atentatório da saúde pública e segurança dos cidadãos nacionais, bem como a circunstância do arguido não possuir laços familiares ou profissionais em Portugal, o Tribunal comina a pena acessória de expulsão da arguido de território nacional – 34º nº 1 do Decreto-lei nº 15/93, de 22.01 e ainda o por referência ao disposto nos artigos 22.º, n.ºs 1 e 3 e 23.º, da Lei 37/2006, de 9 de Agosto, o Tribunal fixa em 7 anos o período de afastamento do arguido, cidadão da união europeia, de território nacional.

Considerando que a moldura abstracta do cúmulo jurídico das penas, no seu máximo, permitia uma pena de quatorze anos de prisão e, no seu mínimo, sete anos de prisão, consideramos adequados os fundamentos para a fixar ligeiramente abaixo da medida média contida na moldura abstracta, tal como resultou fixado na decisão recorrida.”

Como se vê, no acórdão recorrido, acolheu-se a fundamentação da medida das penas parcelares e da pena única. Na sindicância do acórdão recorrido, vai então atender-se também ao dito no acórdão da 1.ª instância.

Começa-se por assinalar que na decisão sobre a pena relevam unicamente os factos dados por provados no acórdão recorrido, tanto os relativos à culpabilidade quanto os relativos à situação pessoal do arguido.

Ora, dos factos provados não consta a “colaboração” do arguido com as autoridades por ele agora invocada.

Dito isto, importa salientar que o legislador estatui como parâmetros de determinação da mesma que deve ser fixada - “(…) dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção” visando a aplicação das penas “(…) a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade; em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa” e levando ainda em conta “(…) todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele (…)” considerando, nomeadamente, os factores de determinação da pena a que se referem as várias alíneas do n.º 2 do artigo 71.º do Código Penal (artigos 71º, nº1 e nº2 e 40º, nº1 e nº2) do mesmo código.

A densificação jurisprudencial destes critérios tem sido feita, por este Supremo Tribunal de Justiça, de modo a considerar e ponderar o equilíbrio entre “exigências de prevenção geral”, a “tutela dos respectivos bens jurídicos”, a “socialização do agente” e o seu grau de culpa, enquanto limite ético da pena.

Como refere este Supremo Tribunal de Justiça, ponderando os referidos equilíbrios, “(...) Na graduação da pena deve olhar-se para as funções de prevenção geral e especial das penas, mas sem perder de vista a culpa do agente”,11 ou “(...) a pena, no mínimo, deve corresponder às exigências e necessidades de prevenção geral, de modo a que a sociedade continue a acreditar na validade da norma punitiva; no máximo, não deve exceder a medida da culpa, sob pena de degradar a condição e dignidade humana do agente; e, em concreto, situando-se entre aquele mínimo e este máximo, deve ser individualizada no quantum necessário e suficiente para assegurar a reintegração do agente na sociedade, com respeito pelo mínimo ético a todo exigível”12.

Ao nível doutrinal, refere Figueiredo Dias que a medida da pena "(...) há-de ser dada pela medida da necessidade de tutela dos bens jurídicos face ao caso concreto (...) a protecção de bens jurídicos assume um significado prospectivo, que se traduz na tutela das expectativas da comunidade na manutenção da vigência da norma infringida".13

No mesmo sentido, Fernanda Palma considera que, “(…) A protecção de bens jurídicos implica a utilização da pena para dissuadir a prática de crimes pelos cidadãos – prevenção geral negativa, incentivar a convicção de que as normais penais violadas são válidas e eficazes e aprofundar a consciência dos valores jurídicos por parte dos cidadãos – prevenção geral positiva. A protecção de bens jurídicos significa ainda prevenção especial como dissuasão do próprio delinquente potencial. Por outro lado, a reintegração do agente significa a prevenção especial na escolha da pena ou na execução da pena. E, finalmente, a retribuição não é exigida necessariamente pela protecção de bens jurídicos. A pena como censura da vontade ou da decisão contrária ao direito pode ser desnecessária, segundo critérios preventivos especiais, ou ineficaz para a realização da prevenção geral”.14

Ainda, no mesmo sentido, Anabela Rodrigues considera também que a finalidade essencial e primordial da aplicação da pena reside na prevenção geral, o que significa “que a pena deve ser medida basicamente de acordo com a necessidade de tutela de bens jurídicos que se exprime no caso concreto...alcançando-se mediante a estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma jurídica violada (…)”. Acrescenta a autora, que a prevenção especial se traduz na “(…) necessidade de socialização do agente, embora no sentido, modesto, mas realista, de o preparar para no futuro não cometer outros crimes”, sendo certo que ambas são balizadas pela culpa “ (…) a desempenhar o papel de limite inultrapassável de todas e quaisquer considerações preventivas (…) Sendo a pena efectivamente medida pela prevenção geral, ela deve respeitar o limite da culpa e, assim, preservar a dignidade humana do condenado”.15

Neste mesmo sentido, Figueiredo Dias considera, “(…) culpa e prevenção são assim dois termos do binómio com auxílio do qual há-de ser construído o modelo da medida da pena ( em sentido estrito ou de determinação concreta da pena”)16, acrescentando, “ (…) comete à culpa a função (única, mas nem por isso menos decisiva) de determinar o limite máximo e inultrapassável da pena; à prevenção geral (de integração) a função de fornecer uma «moldura de prevenção», cujo limite máximo é dado pela medida ótima de tutela dos bens jurídicos - dentro do que é consentido pela culpa - e cujo limite mínimo é fornecido pelas exigências irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico; e à prevenção especial a função de encontrar o quantum exacto de pena, dentro da referida «moldura de prevenção», que melhor sirva as exigências de socialização (ou, em casos particulares, de advertência ou de segurança) do delinquente».17

Elencados os grandes princípios jurisprudenciais e doutrinais em sede de medida da pena, voltemos ao caso concreto.

Como ficou referido, para alem da colaboração com as autoridades por parte do arguido, a qual não resulta dos factos provados, as restantes circunstâncias invocadas no recurso com correspondência nos factos provados no acórdão da Relação, mostram-se devidamente ponderadas no processo de determinação da medida da pena.

Vejam-se, nomeadamente, as seguintes passagens: “o arguido era o único tripulante do veleiro e assumia sozinho [o] encargo e a responsabilidade do tráfico”; “O arguido encontra-se integrado em agregado familiar e recebe visitas regulares; não tem condenações anteriores registadas”.

Muito devidamente, o tribunal atendeu não só às circunstâncias que depunham a favor do arguido como também às menos favoráveis, como a de que o arguido “admitiu apenas os factos que não podia negar, não revelando qualquer arrependimento”.

Foram igualmente considerados factos relevantes como a elevada quantidade de droga em causa (mais de uma tonelada de cocaína), o potencial de adição a ela associado, ou a intensidade do dolo e a tenacidade do agente na sua atitude criminosa.

De tudo resulta que, na avaliação do ilícito global, pode dizer-se amplamente justificada uma pena de prisão situada abaixo do ponto médio da moldura abstracta – 7 (sete) anos a 14 (catorze) anos de prisão.

Diga-se, a concluir, que, sendo jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça que o recurso serve de remédio jurídico também em matéria de pena18, não abrange ele “a determinação (...) do quantum exacto de pena, excepto se tiverem sido violadas regras da experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada19.

Nenhuma destas excepções se verifica no caso presente, mostrando-se a pena aplicada justificada por razões de prevenção e contida no limite da culpa do arguido.

Na verdade, perante a factualidade dada como provada e tendo em conta o que fica referido a pena aplicada afigura-se proporcional à gravidade dos factos e à culpa do recorrente, e mostra-se necessária para satisfazer as acentuadas necessidades de prevenção geral acima assinaladas, só assim se protegendo de forma eficaz e bastante as expectativas da comunidade quanto à revalidação das normas jurídico-penais violadas.

Consequentemente, não merece intervenção corretiva a pena de 9 anos e 6 meses de prisão, imposta ao arguido no acórdão recorrido, a qual é de confirmar.

Não havendo sido impugnada a pena acessória de expulsão, nada mais cumpre apreciar.

Em resumo, rejeita-se parcialmente o recurso e no mais confirma-se o acórdão recorrido.

III. Decisão

Pelo exposto, acordam no Supremo Tribunal de Justiça, 3ª Secção Criminal, em:

a. Rejeitar o recurso na parte referente a: A abordagem à embarcação foi ilegal e viola as normas de direito internacional, por não ter sido autorizada pelas autoridades da Polónia, enquanto país do pavilhão; As provas obtidas na busca ao barco são proibidas por lei e, por isso, nulas; Não estão provados os elementos típicos do crime de associação criminosa; Violação do princípio ne bis in idem; Inconstitucionalidade das seguintes normas: Artigo 49.º, alínea b) do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro; Artigo 5.º, n.º 2 do Código Penal; Artigos 4.º, n.º 2 e 6.º, n.ºs 1 e 2, alínea k) do Decreto-Lei n.º 43/2002, de 2 de Março e Artigos 125.º e 126.º, n.º 3 do Código de Processo Penal), por inadmissibilidade legal;

b. Julgar improcedente o recurso e em consequência, confirmar o acórdão recorrido.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 5 (cinco) UC’s - artigo 513.º, n. º1 do Código de Processo Penal e artigo 8º n.º 9 e tabela III anexa ao Regulamento das Custas Processuais).

Lisboa, 01 de Outubro de 2025.

Antero Luís (Relator)

António Augusto Manso (1º Adjunto)

Maria Margarida Almeida (2ª Adjunta)

____________

1. Neste sentido e por todos, ac. do STJ de 20/09/2006, proferido no Proc. Nº O6P2267.

2. Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág.335; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 8.ª ed., Rei dos Livros, 2011, pág.113.

3. Acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95 de 19/10/1995, publicado no DR/I 28/12/1995.↩︎

4. Proc. nº 330/19.8GBPVL.G1.S1, in www.dgsi.pt↩︎

5. Proc. 9/12.1SOLSB.S2, in www.dgsi.pt↩︎

6. Proc. 881/16.6JAPRT-A.P1.S1, in www.dgsi.pt↩︎

7. Proc. nº 809/19.1T9VFX.E1.S1 in www.dgsi.pt↩︎

8. Proc. nº 181/13.3GATVD.S1, in www.dgsi.pt↩︎

9. Proc. n.º 757/20.2PGALM.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt↩︎

10. Acórdão do Plenário n.º 186/2013, de 4 de Abril de 2013, disponível em https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20130186.htm↩︎

11. Sumário do acórdão de 31-01-2012, Proc. Nº 8/11.0PBRGR.L1.S↩︎

12. Acórdão Supremo Tribunal de Justiça de 22-09-2004, Proc. n.º 1636/04 - 3.ª ambos in www.dgsi.pt

  No mesmo sentido, Prof. Figueiredo Dias (“O Código Penal Português de 1982 e a sua reforma”, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 3, Fasc. 2-4, Dezembro de 1993, págs. 186-187).↩︎

13. Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime - Noticias Editorial, pág. 227).↩︎

14. As Alterações Reformadoras da Parte Geral do Código Penal na Revisão de 1995: Desmantelamento, Reforço e Paralisia da Sociedade Punitiva” in “Jornadas sobre a Revisão do Código Penal”, 1998, AAFDL, pág. 25-51 e in “Casos e Materiais de Direito Penal”, 2000, Almedina, pág. 31-51.↩︎

15. A Determinação da Medida da Pena Privativa de Liberdade", Coimbra Editora, pág. 570 e seguintes).↩︎

16. Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime”, Editorial Notícias, 1993, pág. 214.↩︎

17. Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 3, 2.º a 4.º, Abril-Dezembro de 1993, pág. 186 e 187,↩︎

18. Veja-se, acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de Maio de 2009, “A intervenção do STJ em sede de concretização da medida da pena, ou melhor, do controle da proporcionalidade no respeitante à fixação concreta da pena, tem de ser necessariamente parcimoniosa, sendo entendido de modo uniforme e reiterado que «no recurso de revista pode sindicar-se a decisão de determinação da medida da pena, quer quanto à correcção das operações de determinação ou do procedimento, à indicação dos factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, à falta de indicação de factores relevantes, ao desconhecimento pelo tribunal ou à errada aplicação dos princípios gerais de determinação, quer quanto à questão do limite da moldura da culpa, bem como a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção, mas já não a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto da pena, salvo perante a violação das regras de experiência, ou a desproporção da quantificação efectuada.” Processo nº 19/08.3PSPRT, disponível em www.dgsi.pt↩︎

19. Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português, Tomo II: As Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra: Coimbra Editora, 1993, p. 197.↩︎