Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 1.ª SECÇÃO | ||
Relator: | MANUEL AGUIAR PEREIRA | ||
Descritores: | RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL ACIDENTE DE VIAÇÃO CÁLCULO DA INDEMNIZAÇÃO DANO BIOLÓGICO DANOS FUTUROS DANOS PATRIMONIAIS PERDA DA CAPACIDADE DE GANHO INCAPACIDADE PERMANENTE PARCIAL EQUIDADE DANOS NÃO PATRIMONIAIS PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA | ||
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Data do Acordão: | 12/06/2022 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | -CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA DA AUTORA -NEGADA A REVISTA DA RÉ | ||
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Sumário : | I - O conceito de dano biológico tem natureza instrumental na determinação do valor da indemnização traduzindo o reconhecimento que a afectação e diminuição das capacidades pessoais, psíquicas e/ou somáticas do lesado tem repercussão na vida que o lesado passará a ter e é susceptível de gerar a obrigação de reparação pelo autor do facto ilícito. II - O dano biológico constituiu fundamento para a reparação dos danos tradicionalmente enquadráveis na categoria de danos patrimoniais bem como a daqueles que, não tendo uma expressão patrimonial directa, mereçam a tutela do direito e importe quantificar, com base em critérios de equidade. III - O uso de fórmulas de cálculo da vertente patrimonial do dano biológico é adequado, enquanto método de aproximação à determinação do valor da indemnização a arbitrar pelos danos patrimoniais futuros, desde que nelas se introduzam como factores determinantes a esperança média de vida do lesado, o grau de deficiência funcional de que ele ficou a padecer e o valor dos rendimentos auferidos anteriormente, sendo o respectivo resultado equitativamente corrigido em função das circunstâncias do caso. IV - Não estando as decisões das instâncias que fixaram equitativamente o montante da indemnização vinculadas a um estrito critério normativo, a sua alteração só se justificará quando o julgador se não tiver contido, numa perspectiva actualista, dentro da margem de discricionariedade consentida pelo recurso à equidade. V - Afigura-se ajustada e equitativa a atribuição de uma indemnização de € 30 000,00 para reparação de danos de natureza não patrimonial sofridos por uma mulher de trinta e sete anos de idade que passou a registar após o facto ilícito, e por causa dele, um défice de 11 pontos de eficiência funcional de integridade físico-psíquica por sintomatologia ansiosa e depressiva reactiva ao acontecimento, sem sequelas físicas definitivas, por agravamento de impacto moderado de anterior quadro psiquiátrico. | ||
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Decisão Texto Integral: |
EM NOME DO POVO PORTUGUÊS, acordam os Juízes Conselheiros da 1.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça ֎ RELATÓRIO Parte I – Introdução 1. AA, instaurou acção declarativa com processo comum contra N Seguros, SA, actualmente integrada por fusão na Lusitânia – Companhia de Seguros, SA, pedindo a sua condenação nos termos seguintes: - a pagar-lhe uma indemnização no valor global de 448.185,97 euros, por danos patrimoniais e não patrimoniais por ela sofridos; - a pagar-lhe uma indemnização a liquidar em posteriormente relativa a danos patrimoniais e não patrimoniais futuros, decorrentes, nomeadamente, de exames e acompanhamento médico, tratamentos e medicação; - pagar-lhe os juros de mora vencidos e vincendos calculados, em alternativa, nos termos que indica e aqui se dão por reproduzidos. Alegou a autora para o efeito, muito em síntese, que no dia 22 de agosto de 2011 ocorreu um acidente de viação em que tiveram intervenção um veículo automóvel conduzido pela autora e sua propriedade e um outro veículo conduzido por BB e que embateu violentamente na parte traseira do primeiro quando este se encontrava parado numa fila de trânsito compacta, tendo resultado de tal acidente para a autora múltiplos ferimentos e lesões traumáticas, apresentando desde então as queixas, lesões e sequelas que descreve. 2) A ré contestou o pedido, sem pôr em causa a responsabilidade do seu segurado na produção do acidente, mas alegando que dele resultaram apenas ferimentos ligeiros na pessoa da autora e que esta na autora apresentava desde os seus 22 anos um quadro depressivo grave, tendo acabado por abandonar o acompanhamento que os serviços clínicos da ré vinham fazendo sem permitir uma avaliação final do dano sofrido. 3) No termo da tramitação em primeira instância, após a audiência final viria a ser proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente e condenou a ré Lusitânia – Companhia de Seguros, S.A. a pagar à autora a quantia global de € 118.051,22, acrescida de juros de mora, vencidos e vincendos, à taxa legal, a partir da citação e até integral pagamento, absolvendo-a dos restantes pedidos formulados, e ao Instituto de Segurança Social, IP a quantia de € 4.367,29, acrescidos de juros de mora, vencidos e vincendos, à taxa legal, a partir da citação e até integral pagamento, absolvendo-a do restante pedido. Na condenação do pagamento da indemnização à autora estão englobados os danos de natureza não patrimonial – € 40.000,00 – e os de natureza patrimonial – € 78.051,22 – nas suas várias vertentes: dano biológico e de perda de capacidade de ganho (40.000,00 euros), perdas salarias (2.832,71 euros), despesas médicas e medicamentosas (9.887,89 euros), deslocações (1.570,62 euros), e as consultas e tratamentos médicos futuros (23.760,00 euros). 4) Inconformadas interpuseram recurso de apelação a autora e a ré. Por acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 7 de abril de 2022, foram ambos os recursos julgados parcialmente procedentes e a sentença de primeira instância parcialmente alterada, sendo a ré condenada a pagar à autora a quantia global de € 121.011,21 (cento e vinte e um mil onze euros e vinte e um cêntimos), assim repartidos: - a quantia de 61.320,00 euros para ressarcimento do dano biológico (valor actualizado); - a quantia de 21,640,00 euros para ressarcimento do dano não patrimonial (valor actualizado); - as restantes quantias relativas a danos patrimoniais descritas na sentença de primeira instância (perdas salarias – 2.832,71 euros, despesas médicas e medicamentosas – 9.887,89 euros, deslocações – 1.570,62 euros, consultas e tratamentos médicos futuros – 23.760,00 euros) no valor de 38.051,22 euros. O Tribunal da Relação do Porto, além disso, confirmou a sentença impugnada quanto à absolvição da ré pelos danos alegados concernentes à perda de investimento financeiro e bem assim quanto ao valor da indemnização por danos patrimoniais relativos às alegadas perdas salariais. ֎ ֎ Parte II – A Revista 5) Ainda inconformadas a autora e a ré interpuseram recurso de revista. A) Recurso de revista interposto pela autora: A.1. Inconformada a autora interpôs recurso de revista, que viria a ser admitido pela formação de Juízes Conselheiros a que alude o artigo 672.º n.º 3 do Código de Processo Civil, a título excepcional, quanto à definição do montante indemnizatório relativo aos danos patrimoniais e não patrimoniais emergentes do dano biológico em consequência da perda ou diminuição de capacidades funcionais decorrente de défice funcional permanente de integridade físico-psíquica. A autora, ora recorrente, formula as seguintes CONCLUSÕES nas suas alegações de recurso [1]: “1) A Autora não concorda com o valor indemnizatório que lhe foi atribuído a título de “dano biológico” quer enquanto dano patrimonial (perda ou diminuição de capacidades funcionais decorrente do Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica 11 pontos que lhe foi fixado), quer enquanto dano moral (para sua vida em geral e a própria saúde). 2) A Autora não concorda com o valor indemnizatório que lhe foi atribuído a título de danos não patrimoniais. 3) A Autora não concorda com a absolvição e a não condenação da Ré em indemnizar a Autora na quantia de €17.024,00, a título de perda de investimento financeiro, por ter tido de trespassar o estabelecimento comercial que montou e cedido a sua quota na firma “G... Unipessoal, Lda”. 4) A Autora não concorda com o valor indemnizatório que lhe foi atribuído a título de perdas salariais relativas ao período de tempo compreendido entre 22/08/2011 e até 22/08/2013. 5) Atenta a matéria de facto dada como provada e constante dos itens n.ºs 17, 33, 34, 41, 42, 47, 48, 49, 50 e 52 dos factos julgados como provados e com interesse para a determinação do montante indemnizatório a atribuir à Autora a titulo de dano biológico na vertente de dano patrimonial (diminuição da sua capacidade de ganho para a sua profissão em concreto em consequência da diminuição de capacidades funcionais decorrentes do Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica de 11 pontos que lhe foi fixado), deverá o mesmo ser fixado equitativamente em quantia nunca inferior a € 100.000,00 (Cem Mil Euros). 6) Tal montante indemnizatório, deverá ter em linha de conta, os seguintes fatores: 1. A Autora, à data do embate, tinha 37 (trinta e três) anos de idade, tendo nascido a .../.../1974 – fls. 61/62 (L). 2. Ao exame objetivo, a Autora apresenta: - discinesias faciais e do membro superior esquerdo; - adota postura assimétrica à custa da elevação do ombro esquerdo com projeção anterior do mesmo, cotovelo esquerdo ligeiramente fletido e membro em adução; - levanta-se com frequência da cadeira ou adota ligeiras alterações na sedestação; - mobilidades dolorosas na coluna lombar. 3. Exames complementares de diagnóstico: c) exame de psiquiatria realizado no ... do qual se extrai: considera-se que a examinanda preenche critérios para o diagnóstico psiquiátrico de perturbação neurótica não especificada. Não obstante os antecedentes psiquiátricos prévios, após o acidente de viação verificou-se um claro agravamento do quadro psiquiátrico, com sintomatologia ango-depressiva e somática relevante e reativa ao acontecimento, com necessidade de ajustamentos e intervenções terapêuticas complementares. Atendendo à natureza e grau das alterações psicopatológicas referidas, considera-se que o seu impacto adicional na eficiência pessoal e profissional da examinanda, relativamente ao grau de funcionamento prévio, é moderado. d) Exame neurológico levado a cabo na Delegação do Centro do qual releva: paciente com antecedentes psiquiátricos, depressões major recorrentes com ideação suicida, revelando marcadas alterações do humor correspondentes a estado angodepressivo não controlado, com repercussão comportamental e afetiva, a que se associa quadro discinético-distónico generalizado, mas assimétrico de predomínio braquial esquerdo com dolorosa repercussão funcional motora ativa e passiva. Este enquadramento clínico determina um sinergismo sintomático intensamente eficaz, concretizando uma espiral de agravamento clínico e sintomático. Trata-se, portanto, de uma situação de distonia tardia de provável indução farmacológica a que não é alheia também a instabilidade emocional e afetiva que a sinistrada padece. 4. O défice funcional permanente da integridade físico-psíquica é fixável em 11 pontos: sintomatologia ansiosa e depressiva reativa ao acontecimento enquadrável em Nb 1202 – 11 pontos; 5. As sequelas de que a Autora ficou a padecer são, em termos de repercussão permanente na atividade profissional de gestora de estabelecimento de estética, compatíveis com exercício de tal atividade profissional, mas implicam esforços suplementares. 6. A Autora padece, ainda, das seguintes queixas: a) náuseas e tonturas; b) períodos de obstipação; c) humor lábil, com períodos de depressão e tristeza; já teve ideação suicida; d) alterações de memória, do sono, e da capacidade de concentração; e) sente que a sua vida se desmoronou desde o acidente; f) lombalgias e cefaleias ocasionais; g) sente tremores que lhe condicionam falta de precisão na manipulação de objetos; h) socialmente sente-se afetada pelos tiques que evidencia. 7. A Autora concluiu, a 11/07/2003, o primeiro ciclo de estudos em Gestão na Universidade ... – fls. 821. 8. A Autora tem também como habilitações a categoria profissional de “...” – fls. 121/122. 9. A Autora trabalhou por conta de outrem: a) para a sociedade C..., S.A., entre novembro de 2008 e abril de 2009, auferindo a remuneração base de € 1.250,00 – fls. 901/902; b) para a sociedade P... Sociedade Unipessoal, Lda, entre janeiro e março de 2007, auferindo a remuneração base de € 2.160,00 – fls. 902. 10. À data do acidente (22/08/2011), a A. encontrava-se a desenvolver um projeto de criação de uma empresa no ramo da estética, da qual seria gestora. 11. A A. exerceu as funções de “..., ... e de ...” entre fevereiro de 2012 e dezembro de 2012 – fls. 901. 12. No cálculo do valor indemnizatório a atribuir a titulo de danos patrimoniais na vertente do dano biológico decorrente da perda ou diminuição de capacidades funcionais em consequência do Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica de 11 pontos, deve ter-se em conta a esperança média de vida, uma vez que, como é óbvio, as necessidades básicas do lesado não cessam no dia em que deixa de trabalhar por virtude da reforma (em Portugal, no momento presente, a esperança média de vida das mulheres já ultrapassa os 80 anos, e tem tendência para aumentar); 13. Como vetor a atender nesse cálculo, deve ainda ter-se em conta o salário mensal de €1.250,00, na medida em que, por um lado, foi esse o último salário auferido pela Autora quando trabalhou por conta de outrem para a sociedade C..., S.A., entre novembro de 2008 e abril de 2009, auferindo a remuneração base de € 1.250,00 – fls. 901/902), 14. A Autora com a sua Licenciatura em Gestão, não fossem as lesões, queixas e sequelas com que a mesma ficou a padecer em consequência do acidente de viação descrito nos autos, tinha e tem (ainda que com bastantes limitações) possibilidades de ganho em qualquer atividade comercial, industrial, de ensino e de serviços, as quais lhe permitem aspirar no futuro a uma remuneração mensal ilíquida entre os €1.000,00 e os €2.000,00, tendendo a mesma subir ao longo da vida. 15. Segundo dados do INE publicados em Agosto de 2019, o salário médio em Portugal fixou-se nos €1.180,00, no segundo trimestre de 2018, mais 3,4% em termos homólogos. 16. Para efeitos de determinação de indemnização por danos patrimoniais futuros será de atender ao salário médio acessível a um jovem dotado de formação profissional superior (Licenciatura na área de Gestão), salário que, em termos de normalidade e previsibilidade, é de situar em quantia nunca inferior a €1.250,00 euros mensais, tendendo a subir ao longo da vida. 7) Atenta a matéria de facto dada como provada e constante dos itens n.ºs 33, 44, 47, 57, 62 dos factos julgados como provados e com interesse para a determinação do montante indemnizatório a atribuir ao Autora/Recorrente a título de dano biológico na vertente de dano moral (para sua vida em geral e a própria saúde) deverá o mesmo ser fixado equitativamente em quantia nunca inferior a € 50.000,00 (Cinquenta Mil Euros). 8) Tal montante indemnizatório, deverá ter em linha de conta, os seguintes fatores: 1. Ao exame objetivo, a Autora apresenta: - discinesias faciais e do membro superior esquerdo; - adota postura assimétrica à custa da elevação do ombro esquerdo com projeção anterior do mesmo, cotovelo esquerdo ligeiramente fletido e membro em adução; - levanta-se com frequência da cadeira ou adota ligeiras alterações na sedestação; - mobilidades dolorosas na coluna lombar 2. Dependências permanentes de ajudas: tratamentos médicos regulares 3. A Autora padece, ainda, das seguintes queixas: - náuseas e tonturas; - períodos de obstipação; - humor lábil, com períodos de depressão e tristeza; já teve ideação suicida; - alterações de memória, do sono, e da capacidade de concentração; - sente que a sua vida se desmoronou desde o acidente; - lombalgias e cefaleias ocasionais; - sente tremores que lhe condicionam falta de precisão na manipulação de objetos; - socialmente sente-se afetada pelos tiques que evidencia. 4. A Autora sentiu-se impossibilidade de continuar a gerir o estabelecimento comercial. 5. Na altura do acidente sofreu a angústia de poder vir a falecer. 9) Atendendo à matéria de facto dada como provada, mais concretamente nos itens n.ºs 6, 7, 10, 14, 15, 20, 21, 22, 2, 24, 25, 26, 27, 28, 29, 30, 33, 34, 35, 36, 37, 38, 39, 40, 43, 44, 47, 61 e 62 com interesse para a determinação do montante indemnizatório a atribuir à Autora a título de danos não patrimoniais, deverá o mesmo ser fixado equitativamente em quantia nunca inferior a €75.000,00 (Setenta e Cinco Mil Euros). 10) Tal montante indemnizatório, deverá ter em linha de conta, os seguintes fatores: 1. Do “Diário Clínico” do Hospital ... junto a fls. 63/64 consta, ainda, o seguinte: - doente vítima de acidente de viação da qual resultou traumatismo craniano; - refere cefaleias, sem vómitos e sem tonturas, cervicalgia e parestesias dos membros, dor referida à região dorsal, dor referida ao membro superior esquerdo; 2. Na observação de ortopedia constatou-se: - dorsalgia à palpação; - dor axilar esquerda 3. A A., a 27/09/2011, iniciou seguimento nos Serviços Clínicos da Ré, manifestando cefaleias, náuseas, tonturas posicionais, fotofobia, intolerância ao ruído, dor na inserção do tendão rotuliano direito e dores musculares paravertebrais à direita; 4. No dia 27/11/2012 deu entrada no Serviço de Urgência do C... por agravamento de sintomatologia depressiva com início há cerca de dois anos e meio, na sequência de acidente de viação, manifestando angústia. O exame mental evidenciou humor deprimido, lentificação psicomotora, ideias recorrentes de morte, sentimentos de desvalorização pessoal, labilidade emocional, sentimentos de revolta contra si própria, adenonia, adinamia, alterações do sono (pesadelos recorrentes) e diminuição do apetite. Foi medicada com Risperidona, Escitalopram, Omeprazol e Alprazolam. Na sequência deste episódio foi internada na Casa de Saúde ..., em ..., entre 10/12/2012 e 10/01/2013 com quadro de Depressão Major. Durante o internamento realizou tratamento psicofarmacológico, psicoterapia de apoio e intervenção familiar. 5. Do relatório médico de Ortopedia da C... datado de 10/11/2012 consta: “tem sido seguida em consultas de ortopedia na C..., na sequência de acidente de viação em agosto de 2011. Vem referindo desde a altura do acidente, onde terá sofrido traumatismo da coluna cervical e anca direita, náuseas e vómitos frequentes, tonturas e hipotensão ortostática. 6. Relatórios psiquiátricos do Dr. CC: a) consulta de 25/10/2012: insónias, pesadelos, sonha com o acidente de carro. Isolada. Sozinha emocionalmente. (…) Ideação suicida. Discussão frequente com o namorado, melhor relacionamento com a irmã, com a mãe imprevisível. Infeliz. (…) Explosões de agressividade. Conflitos. Berra. (…) A empresa corre mal, teve 7 funcionários que a deixaram, mantém 2. Poucos clientes. Medicada com Alprazolam, Adalgur, Escitalopram e Dogmatil. b) Consulta de 23/01/2013 – esteve internada um mês em .... Fechou a loja. O sonho acabou. Voltou a ter ideação suicida (…). c) Datado de 02/04/2013: “A Sra. D. AA tem sido seguida por mim em consultas de psiquiatria desde o início de agosto de 2012. Na altura apresentava quadro de Distúrbio de Stress pós traumático subsequente a acidente de viação que tivera a 22/08/2011. Do quadro psiquiátrico fazem parte: pesadelos recorrentes sobre o acidente, pensamentos diários e constantes sobre o acidente (que considera ter afetado de modo permanente a sua vida), hiperreatividade e irritabilidade, insónia, dificuldade em conduzir. A situação da doente entretanto complicou-se de Depressão Major com ideação suicida e a D. AA teve de ser internada na Casa de Saúde ..., em ..., durante um mês dezembro de 2012 a janeiro de 2013) – Psiquiatra: Dr. DD). A doente necessita de tratamento psiquiátrico a longo prazo e apoio de psicologia”. d) Consulta de 02/09/2013 – sobre o acidente de viação acha que a sua vida se desmoronou desde aí. Pesadelos. Anda de carro quer travar e não consegue. Prescrita Cymbalta, Valdoxam, Xanax e Diazepam. e) Datado de 04/10/2013: “… quadro de Depressões Major recorrentes. Piorou nas últimas semanas e ressurgiu ideação suicida (com plano e já andou à procura na net maneiras de o fazer). Aumentei por isso a medicação, pedi a vigilância da família e caso a situação seja incontrolável faço o internamento da doente (…)”. f) Datado de 13/03/2014: “Nos últimos meses apresenta quadro de Depressão Major grave com ideação suicida e plano suicida”. g) Datado de 23/05/2014: episódios de Depressão Major, forma recorrente. No final de fevereiro fez novo quadro depressivo grave com ideação suicida e plano suicida. i) Datado de 19/12/2014: “A Sra. D. AA encontra-se melhorada do seu quadro depressivo grave com ideação suicida. Apresenta, contudo, um quadro neurológico de discinesias que envolvem a face e membro superior esquerdo. Foi por isso enviada à consulta de Neurologia (coexiste tremor e por isso pode também existir quadro parkinsónico) e a medicação, nomeadamente o Haldol vai ser reduzido (tem resultado bem para baixar a impulsividade e ideias auto-agressivas)”. 7. Informação clínica do Dr. EE (médico psiquiatra): observada pela primeira vez a 26/02/2015 apresentando-se deprimida e ansiosa, com ideação de tonalidade obsessiva, com cefaleias mais acentuadas à direita, tiques e várias queixas orgânicas. Seguiu medicada com Elontril 150, Triticum 100, Unisedil, Seroxat e Risperidona. Na consulta de 26/03/2015 ténues melhoras tendo introduzido o Kainever em SOS. 8. Declaração do médico neurologista Dr. FF datada de 18/01/2017: “… por sintomatologia depressiva grave associada a distonias multifocais marcadas que não têm cedido à terapêutica e a incapacitam não só para a profissão como nas suas atividades de vida diária. Esta situação contribui para o seu quadro depressivo que também não tem melhorado com a medicação”. 9. D... – C..., L.da, datada de 16/03/2017: “… efetuou tratamentos de Medicina Física e Reabilitação na nossa clínica por queixas de cervicodorsalgia, lombalgias e coxalgia. Os tratamentos tiveram início a 17/06/2014 e terminaram a 13/08/2017”. 10. Hospital ... – Consulta de Neurologia datada de 27/04/2017: acidente de viação a 22/08/2011. Whiplash cervical. Alguma sensação de movimento, tipo vertiginoso, metamorpsias, sensação de desequilíbrio. Teve apoio da psiquiatria – Risperidona, Elontril, Triticum, Unisedil, Seroxat, Proaxen. Atualmente a fazer Seroxat, Triticum AC, Rivotril, Akineton retard. Movimentos involuntários de tipo discinético e distónico do membro superior esquerdo. São movimentos associados a neurolépticos. Distonia tardia associada aos neurolépticos, precisa de orientação na consulta de cirurgia funcional e apoio de psiquiatria, entretanto Tetrabenzina e depois cirurgia funcional – pedir a médica assistente Alert P1 para consulta de cirurgia funcional de distonias de movientos. 11. Ao exame objetivo, a A. apresenta: - discinesias faciais e do membro superior esquerdo; - adota postura assimétrica à custa da elevação do ombro esquerdo com projeção anterior do mesmo, cotovelo esquerdo ligeiramente fletido e membro em adução; - levanta-se com frequência da cadeira ou adota ligeiras alterações na sedestação; - mobilidades dolorosas na coluna lombar. 12.Exames complementares de diagnóstico: a) exame de psiquiatria realizado no ... do qual se extrai: considera-se que a examinanda preenche critérios para o diagnóstico psiquiátrico de perturbação neurótica não especificada. Não obstante os antecedentes psiquiátricos prévios, após o acidente de viação verificou-se um claro agravamento do quadro psiquiátrico, com sintomatologia ango-depressiva e somática relevante e reativa ao acontecimento, com necessidade de ajustamentos e intervenções terapêuticas complementares. Atendendo à natureza e grau das alterações psicopatológicas referidas, considera-se que o seu impacto adicional na eficiência pessoal e profissional da examinanda, relativamente ao grau de funcionamento prévio, é moderado. b) Exame neurológico levado a cabo na Delegação ... do qual releva: paciente com antecedentes psiquiátricos, depressões major recorrentes com ideação suicida, revelando marcadas alterações do humor correspondentes a estado angodepressivo não controlado, com repercussão comportamental e afetiva, a que se associa quadro discinético-distónico generalizado, mas assimétrico de predomínio braquial esquerdo com dolorosa repercussão funcional motora ativa e passiva. Este enquadramento clínico determina um sinergismo sintomático intensamente eficaz, concretizando uma espiral de agravamento clínico e sintomático. Trata-se, portanto, de uma situação de distonia tardia de provável indução farmacológica a que não é alheia também a instabilidade emocional e afetiva que a sinistrada padece. 13. A data da estabilização médico-legal das lesões é fixável em 22/08/2013, ou seja, dois anos após o acidente em apreço, tempo habitualmente necessário à estabilização do quadro psiquiátrico. 14. O período de défice funcional temporário total é fixável num período de 45 dias. 15. O período de défice funcional temporário parcial é fixável num período de 685 dias. 16. O período de repercussão temporária na atividade profissional total é fixável num período de 32 dias. 17. O período de repercussão temporária na atividade profissional parcial é fixável num período de 397 dias. 18. O quantum doloris é fixável no grau 4/7. 19. Repercussão permanente na atividade sexual fixável no grau 3/7. 20. Dependências permanentes de ajudas: tratamentos médicos regulares. 21. Estes tratamentos médicos regulares consistem numa consulta de psiquiatria de dois em dois meses, em média, e em tomar a correspondente medicação. 22. A Autora padece, ainda, das seguintes queixas: a) náuseas e tonturas; b) períodos de obstipação; c) humor lábil, com períodos de depressão e tristeza; já teve ideação suicida; d) alterações de memória, do sono, e da capacidade de concentração; e) sente que a sua vida se desmoronou desde o acidente; f) lombalgias e cefaleias ocasionais; g) sente tremores que lhe condicionam falta de precisão na manipulação de objetos; h) socialmente sente-se afetada pelos tiques que evidencia. 23. A Autora sofreu dores intensas e frequentes durante o período que mediou entre o acidente dos autos e a sua recuperação. 24. Na altura do acidente sofreu a angústia de poder vir a falecer. 11) Atendendo à matéria de facto dada como provada, mais concretamente nos itens n.ºs 25, 33, 35, 39, 47, 53, 53, 55, 56, 57 e 58, deverá ser a Ré condenada a pagar à Autora a quantia de €17.024,00 a título de perda de investimento financeiro, por ter tido de trespassar o estabelecimento comercial que montou e cedido a sua quota na firma “G... Unipessoal, Lda 1. Dos Relatórios psiquiátricos do Dr. CC consta a seguinte informação: A empresa corre mal, teve 7 funcionários que a deixaram, mantém 2. Poucos clientes. Fechou a loja. O sonho acabou. Voltou a ter ideação suicida (…). 2. À data do acidente (22/08/2011), a Autora encontrava-se a desenvolver um projeto de criação de uma empresa no ramo da estética, da qual seria gestora. 3. A Autora exerceu as funções de “..., ... e de ...” entre fevereiro de 2012 e dezembro de 2012 – fls. 901. 4. A firma “G... Unipessoal, Lda”, com sede na Rua ..., ..., ..., foi constituída a 16/02/2012 – fls. 124/127. 5. A Autora investiu neste projeto e teve de liquidar pessoalmente do seu próprio bolso os seguintes financiamentos concedidos à G... Unipessoal, Lda, avalizados pela A.: a) linha de crédito ...: € (36.000,00+9.000,00=) 45.000,00; b) ...: € 15.000,00. 6. A Autora sentiu-se impossibilidade de continuar a gerir o estabelecimento comercial. 7. Tendo trespassado o referido estabelecimento, a 04/10/203, e cedido a sua quota na firma “G... Unipessoal, Lda”, por, pelo menos, € 42.976,00 – fls. 130. 12) Atendendo à matéria de facto dada como provada, mais concretamente nos itens n.ºs35, 39, 48, 49, 50, 52, 53, 58 e 59, deverá ser a Ré condenada a pagar à Autora a quantia de €23.528,60 a título de perdas salariais relativas ao período temporal compreendido entre de 22/08/2011 a 22/08/2013. 13) Tal quantia deverá ter em linha e conta: 1. O salário mensal de €1.250,00, na medida em que foi esse o último salário auferido pela Autora quando trabalhou por conta de outrem para a sociedade C..., S.A., entre novembro de 2008 e abril de 2009 (fls. 901/902) e por ser esse o salário mensal médio adequado/ acessivel às aptidões e habilitações literária da Autora (Licenciatura em Gestão) e à situação dos autos, pois que se aproxima notoriamente do salário mensal médio dos Portugueses Licenciados. 2. A data da estabilização médico-legal das lesões é fixável em 22/08/2013, ou seja, dois anos após o acidente em apreço, tempo habitualmente necessário à estabilização do quadro psiquiátrico. 3. O período de repercussão temporária na atividade profissional parcial é fixável num período de 397 dias. 4. A Autora concluiu, a 11/07/2003, o primeiro ciclo de estudos em Gestão na Universidade ... – fls. 821. 5. A Autora tem também como habilitações a categoria profissional de “...” – fls. 121/122. 6. A Autora trabalhou por conta de outrem: a) para a sociedade C..., S.A., entre novembro de 2008 e abril de 2009, auferindo a remuneração base de € 1.250,00 – fls. 901/902; b) para a sociedade P... Sociedade Unipessoal, Lda, entre janeiro e março de 2007, auferindo a remuneração base de € 2.160,00 – fls. 902. 7. À data do acidente (22/08/2011), a Autora encontrava-se a desenvolver um projeto de criação de uma empresa no ramo da estética, da qual seria gestora. 8. A Autora exerceu as funções de “..., ... e de A Autora sentiu-se impossibilidade de continuar a gerir o estabelecimento comercial. 9. Tendo trespassado o referido estabelecimento, a 04/10/203, e cedido a sua quota na firma “G... Unipessoal, Lda”, por, pelo menos, € 42.976,00 – fls. 130. 14) O referido valor em divida a título de perdas salariais, deverá assim ser calculado da seguinte forma: €17.500,00 (salario anual de 1.250,00 x 14 meses: 365 dias: €47,94 salário dia X 732 dias (22/08/2011 a 22/08/2013) = 35.095,89, 15) Valor esse ao qual deverão ser abatidas as seguintes quantias: €7.200,00 (remuneração paga pela ... no montante mensal de €800,00 entre março e novembro de 2012, ou seja, 9 meses x €800,00 = 7.200,00) e €4.367,29 (valor recebida do ISS), 16) Motivo pelo qual, tem a Autora/Recorrente, o direito a receber da Ré, a quantia de €23.528,60 (€35.095,89 – €11.567,29 (€7.200,00 + €4367,00) a título de perdas salariais relativas ao período temporal compreendido entre 22/08/2011 e até 22/08/2013. 17) O Douto Acórdão, violou, entre outros que V Exas mui doutamente suprirão, as seguintes disposições legais: os artigos 483º, 496º, 562º, 563º, 564º, nº1 n.º 2, 566.º, n.ºs1, 2, 3 todos Código Civil, artigo 609º/2, do Código de Processo Civil e artigos 36º, n.º 1 alínea e), n.º 5, 37, n.1 alínea c) e nº 2 alínea a), 38º, nº 3 e 39º, nº 2, da Lei do Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel. ֎ A.2. A ré apresentou articulado de resposta às alegações do recurso de revista interposto pela autora, concluindo como segue: “1- Não concorda a Recorrente com o teor das alegações de recurso da Autora. 2- Quanto aos tópicos Perda de Investimento e Perdas Salariais, entende a Recorrente que existe dupla conforme, tendo em conta o artigo 671 nº3 do Código de Processo Civil, pelo que não pode ser admitida revista quanto a estas duas matérias. 3- As matérias relativas à Perda de Investimento e Perdas Salariais não podem ser alvo de recurso de revista excecional, porque não preenchem os requisitos indicados no artigo 672 nº1 do Código de Processo Civil. 4- Aceita a Recorrente o valor atribuído pelo Tribunal da Relação do Porto a título de danos não patrimoniais. 5- O acórdão do STJ, com o processo nº 237/13.2TCGMR.G1.S1, junto pela Autora com as suas alegações, não tem qualquer similitude com o acidente em discussão nestes autos. 6- Ignora a Autora, nas suas alegações, quanto aos danos não patrimoniais o seu historial de antecedentes psiquiátricos de depressão que nada se relacionam com o acidente. 7- O valor arbitrado pelo Tribunal da Relação a título de danos não patrimoniais está de acordo com algumas decisões do STJ para análogos (cujos exemplos constam das alegações). 8- Não concorda a Recorrente com o raciocínio da Autora em relação ao qual o Dano Biológico deve ser ponderado como Dano Patrimonial, dano moral e dano não patrimonial, apurando-se assim o valor final de quase €175.000,00. 9- O raciocínio seguido pela Autora quanto ao dano biológico duplica indemnizações sobre o mesmo dano, o que se torna manifestamente injusto, 10- Tendo em conta os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 14.07.2021 relativo ao processo 4961/16.0T8LSB.L1.S1 e de 13.07.2017 relativo ao processo 3214/11.4TBVIS.C1.S1., não existe qualquer prova no processo acerca das implicações de alcance económico, no sentido daqueles acórdãos do STJ, para que o dano biológico seja valorado na vertente patrimonial. 11- Os cálculos da Autora são feitos tendo por base o salário de €1.250,00, contudo tal valor não corresponde ao montante que esta auferia ao tempo do acidente, tendo ficado provado, ponto nº 18, que a Autora estava desempregada, naquela altura, não tendo, inclusivamente, ficado provado, sequer, que a Autora iria auferir com o projecto da ... a remuneração de €1.500,00.” ֎
B) Recurso de revista interposto pela ré B.1. A ré seguradora interpôs igualmente recurso de revista (normal), tendo formulado as seguintes conclusões: “1-Na valoração do dano biológico o tribunal a quo, alterando a decisão anterior, ampliou o valor deste dano, com atualizações, para o montante de € 61,320,00, o que não merece o acolhimento da Recorrente. 2- O valor da condenação pelo dano biológico não refletiu a diminuição do défice de 14 para 11 pontos, o que por inerência, e logica, fazia diminuir o valor do dano biológico, sendo que, pelo contrário, o tribunal a quo aumentou-o. 3- A fórmula adequada para determinar o apuramento do dano biológico não é através do rendimento do último salário da Recorrida, como fez o tribunal a quo, tendo em conta o entendimento sufragado pelo STJ que defende que esse cálculo deve assentar em juízos de equidade. 4- Olvidou o tribunal a quo que a Recorrida, ao tempo do acidente, estava desempregada, tendo em conta o ponto 18 da matéria assente, o que levaria a que o cálculo pelo dano biológico, segundo o critério do tribunal a quo, devesse ser feito tendo em conta valor inferior aos € 800,00, 5- O valor arbitrado a título de dano biológico é manifestamente atentador das regras de equidade, tendo em conta decisões semelhantes, cujos exemplos constam das alegações. 6- Insurge-se a Recorrente relativamente ao valor de 8,2% de atualização do valor do dano biológico, através de uma informação que não se aplica ao presente caso. 7- O acórdão da relação deve ser revogado na parte relativa á valoração do dano biológico.” ֎ B.2. – Os autos não evidenciam que a autora tenha apresentado resposta às alegações de recurso da ré. ֎ C) Admitidas as revistas interpostas por autora e ré e colhidos que foram os Vistos dos Senhores Juízes Conselheiros que intervêm no julgamento, cumpre apreciar e decidir, ao que nada obsta. Atendendo ao teor das conclusões das alegações das revistas, as quais, como é sabido, delimitam o seu objecto, sem embargo da possibilidade de conhecimento oficioso de outras questões ou da desconsideração de questões que resultem prejudicadas pela solução dada a outras, e tendo ainda em conta o teor do acórdão proferido nestes autor pela formação de Juízes Conselheiros a que alude o artigo 672.º n.º 3 do Código de Processo Civil, as questões que se identificam prendem-se, exclusivamente com a quantificação do montante da indemnização a atribuir à autora a título de indemnização pelo dano biológico por ela sofrido. ֎ ֎ FUNDAMENTAÇÃO Parte I – Base factual A) Vejamos em primeiro lugar quais os factos considerados provados pelas instâncias, tendo já em conta a decisão do Tribunal da Relação do Porto quanto ao ponto 41 dos factos que se passam a descrever: 1 - No dia 22 de agosto de 2011, pelas 18,30 horas, na Estrada Nacional nº ...35, ao km 8,200, em ..., ..., ocorreu um acidente de viação no qual foram intervenientes o veículo ligeiro de passageiros, de matrícula ..-GH-.., conduzido pela ora Autora, sua proprietária, e o veículo ligeiro de passageiros, de matrícula ..-..-GP, conduzido por BB, e propriedade de GG. 2 – Nas circunstâncias de tempo e lugar referidos em 1, o veículo de matrícula ..-GH-.. circulava no sentido ... – ..., a velocidade inferior a 50 km/hora, com as luzes de cruzamento (médios) acesas, dentro da hemifaixa direita de rodagem (sentido ... – ...). 3 – O veículo de matrícula ..-GH-.. teve de reduzir a velocidade e parar por à sua frente se encontrarem parados e imobilizados vários outros veículos automóveis, designadamente o veículo com a matrícula ..-..-XS, os quais formavam uma fila de trânsito compacta. 4 - O veículo de matrícula ..-GH-.. encontrava-se completamente parado e imobilizado quando foi embatido em toda a sua parte traseira pela parte frontal do veículo de matrícula ..-..-GP, que circulava no mesmo sentido ... – .... 5 – Em consequência deste embate, o veículo de matrícula ..-GH-.. foi projetado para a frente, acabando por embater com a sua parte frontal na parte traseira do veículo de matrícula ..-..-XS que o precedia. 6 - Após o acidente, a Autora foi transportada pelo INEM para o Serviço de Urgências do Hospital de..., foi vista pela 1ª vez no serviço de urgência às 20,41 horas e teve alta pelas 00,49 horas com indicação “tem alta medicada com recomendações habituais. Deverá manter vigilância clínica em ambulatório” – fls. 64. 7 - Do “Diário Clínico” do Hospital ... junto a fls. 63/64 consta, ainda, o seguinte: - doente vítima de acidente de viação da qual resultou traumatismo craniano; - refere cefaleias, sem vómitos e sem tonturas, cervicalgia e parestesias dos membros, dor referida à região dorsal, dor referida ao membro superior esquerdo; - antecedente de “asma brônquica”; - consciente, colaborante e orientada. 8 - A ecografia abdominal feita à Autora apresenta: - sem evidência de lesão traumática do fígado, pâncreas, rins e baço; - sem derrame intra ou retro peritoneal; - fundos de saco plural livres. 9 - No TAC realizado à Autora concluiu-se: - não há focos de contusão, sangue subaracnoideu ou coleções pericerebrais; - o sistema ventricular tem morfologia e dimensões normais; - os sulcos da convexidade são simétricos e apresentam amplitude normal; - a charneira nervosa occipito-vertebral é normal; - não se individualizam traços de fratura; - sem hemossinus ou hemotímpano. 10 - Na observação de ortopedia constatou-se: - dorsalgia à palpação; - sem alterações neurológicas evidentes; - dor axilar esquerda – sem alterações do ombro esquerdo; - RX sem alterações evidentes agudas; - alta de ortopedia com indicação para analgesia. 11 - A responsabilidade civil por danos causados a terceiros com a circulação do veículo de matrícula ..-..-GP encontrava-se transferida, à data do acidente, para a Ré Seguradora por contrato de seguro titulado pela apólice nº ...57 – fls. 572/573. 12 - A ora Ré, após ter solicitado a empresa de averiguações as circunstâncias do acidente, informou a Autora, por carta e email, “que a responsabilidade pela produção do acidente em referência deve-se ao veículo ..-..-GP, em 100%, por o seu condutor não ter mantido a distância suficiente, em caso de súbita paragem ou diminuição de velocidade do veículo que o precedia, desrespeitando o nº 1 do artigo 18.º do C. Estrada” – fls. 132/133. 13 - Por email de 22/09/2011, a Ré informou ainda a Autora que “terminada a instrução do nosso processo, concluímos pela total responsabilidade do condutor do veículo por nós garantido. Nestas condições, estamos à sua disposição para marcar uma consulta nos nossos serviços médicos. Para o efeito deverá V. Exa dirigir-se à Casa de Saúde ... (…) acompanhando-se deste email e de toda a documentação clínica de que disponha (exames e relatórios médicos)”. 14 - A Autora passou a ser acompanhada pelos serviços clínicos contratados pela ora Ré - Casa de Saúde ... – a 27/09/2011. 15 - A assistência ambulatória na Casa de Saúde ... decorreu até janeiro de 2012, data a partir da qual a Autora decidiu não comparecer em mais nenhuma consulta nesta Unidade de Saúde. 16 - A Ré pagou à Autora os danos materiais causados no veículo desta de matrícula ..-GH-... 17 - A Autora nasceu a .../.../1974 – fls. 61/62. 18 - A Autora encontrava-se desempregada na data em que ocorreu o acidente de viação. 19 - O Instituto da Segurança Social, IP, pagou à ora Autora, a título de prestação de doença, no período de 10/12/2012 a 22/08/2013, a quantia total de € 4.367,29 – fls. 593. 20 – A Autora, a 27/09/2011, iniciou seguimento nos Serviços Clínicos da Ré, manifestando cefaleias, náuseas, tonturas posicionais, fotofobia, intolerância ao ruído, dor na inserção do tendão rotuliano direito e dores musculares paravertebrais à direita. À data encontrava-se medicada com Betaserc e Cinet. Foi solicitada a realização de TAC cerebral e radiografias do crânio que não viriam a evidenciar alterações. Nestes serviços viria a ser observada pelas seguintes especialidades: - Medicina Dentária - observada a 28/09/2011 por fratura coronária do dente 3.6, que já se encontrava restaurada, apresentando dor à palpação no fundo do vestíbulo, na zona em correspondência com tal dente; realizou ortopantomografia que mostrou lesão apical do dente 3.6 com anos de evolução, a qual foi considerada sem relação com o acidente; teve alta da especialidade nessa mesma observação; - Neurocirurgia – iniciou observações a 28/09/2011, com queixas de cefaleias, tonturas posicionais, náuseas e ansiedade, que manteria ao longo do período de seguimento; efetuou TAC e RMN cerebral, que não evidenciaram alterações; teve alta desta especialidade a 02/11/2011; - Otorrinolaringologia – foi observada pela primeira vez a 28/09/2011, com queixas de tonturas e ansiedade, objetivamente evidenciando “Romberg para a dta?”; efetuou medicação com Vastarel, Omeprazol e Cinet e realizou reabilitação vestibular; tal tratamento condicionou uma melhoria sintomatológica; a última observação consta de 27/12/2011; - Ortopedia – observada em consulta da especialidade por gonalgia à direira, dor na região nadegueira direita e a nível do grande trocânter direito; realizou ecografia da coxa direita que mostrou “ligeiro espessamento e hipoecogenicidade do tendão adutor longo da coxa direita, junto à inserção púbica direita, alterações compatíveis com fenómenos ligeiros de tendinite/tendinose” e RMN do joelho direito que evidenciou “Condropatia patelar de grau II com pequena área milimétrica de grau IV, associada a edema do osso subcondral subjacente”, “Incidente derrame articular” e “Amputação do corpo do menisco interno aspeto que no contexto de anterior cirurgia é compatível com meniscectomia parcial interna discreta”; foi-lhe prescrita a realização de fisioterapia por síndrome miofascial que levou a uma melhoria sintomatológica; a última observação da especialidade de Ortopedia consta de 27/12/2011, na qual mantinha mialgias nas inserções isquiotibiais à direita, nos flexores e rotadores da anca direita, na musculatura paravertebral lombar e romboides, sintomatologia que ditou nova prescrição de fisioterapia; nessa mesma data realizou RMN da anca direita que não revelou alterações; - Oftalmologia – foi observada a 27/02/2011 por alterações visuais inespecíficas; o exame oftalmológico não evidenciou alterações, pelo que nesse mesmo dia teve alta de tal especialidade; - Psiquiatria – observada a 03/01/2021 apresentando-se chorosa, excitada, logorreica e falando alto; referência a “Dismofofobia” e “Toada muito apelativa e histriónica”; teve alta nessa mesma consulta; - Consulta da Dor – observada a 05/01/2012; ao exame objetivo apresentava contratura do psoas ilíaco direito, que foi alvo de infiltração com Ropivacaina 0,2%, condicionando alívio; foi-lhe indicado fazer exercícios de mobilização da coxa direita no domicílio, por um período de 8 a 10 dias. 21 – No dia 27/11/2012 deu entrada no Serviço de Urgência do C... por agravamento de sintomatologia depressiva com início há cerca de dois anos e meio, na sequência de acidente de viação, manifestando angústia. O exame mental evidenciou humor deprimido, lentificação psicomotora, ideias recorrentes de morte, sentimentos de desvalorização pessoal, labilidade emocional, sentimentos de revolta contra si própria, adenonia, adinamia, alterações do sono (pesadelos recorrentes) e diminuição do apetite. Foi medicada com Risperidona, Escitalopram, Omeprazol e Alprazolam. Na sequência deste episódio foi internada na Casa de Saúde ..., em ..., entre 10/12/2012 e 10/01/2013 com quadro de Depressão Major. Durante o internamento realizou tratamento psicofarmacológico, psicoterapia de apoio e intervenção familiar. 22 – Do relatório médico da Clínica ... consta: enviada a esta clínica pelos serviços clínicos da Companhia de S..., a 02/12/2011, com a seguinte informação clínica “síndrome miofascial e contusão medular da rótula – todos os exames realizados à anca e joelho sem alterações”. Referia ter sofrido acidente de viação em agosto do ano anterior, com traumatismo do joelho, nádega e região trocantérica direita. O exame objetivo revelou-se muito difícil por queixas exuberantes e grande defesa da doente, mas referia dores na pressão da região lombosagrada, trocantérica e face externa da rótula direita. Efetuou tratamento no período compreendido entre 05/12/2011 e 25/01/2012 com avaliações periódicas em consulta. A 23/12/2011 apresentava alguma melhoria “já tolero a posição sentada”, referindo persistência de dores de difícil caracterização, na região dorsolombar, nádega direita, isquiotibiais internos e virilha direita. Quando procedemos à palpação da coluna vertebral sentiu-se mal, com náuseas e vómitos, pelo que o exame físico ficou limitado. O último registo de consulta data de 27/01/2012. “Mantém queixas dolorosas acentuadas na inserção sup. do trapézio D, nos paravertebrais dorsolombares D, isquiotibiais e adutores D, em particular, nas suas extremidades superiores. Mantém, também, queixas de náuseas e vómitos com os movimentos dos globos oculares, particularmente, os movimentos verticais dos mesmos. A fisioterapia, segundo a própria, evita o agravamento das queixas, mas não as tem solucionado. Penso que seria aconselhável que fizesse hidroterapia”. A RMN da anca direita realizada a 27/12/2011 não revelou alterações. A ecografia das partes moles da Coxa direita datada de 25/10/2012 não revelou alterações dignas de relevo. 23 – Do relatório médico de Otorrinolaringologia da C..., datado de 01/10/2012, extrai-se: “…avaliação de queixas desequilíbrio e auditivas. O estudo audiovestibular completo revelou-se totalmente normal mas desenvolveu durante o exame vestibular resposta exagerada revelando um trauma emocional ainda não superado. Sem cuidados a propor por ORL …”. 24 - Do relatório médico de Ortopedia da C... datado de 10/11/2012 consta: “tem sido seguida em consultas de ortopedia na C..., na sequência de acidente de viação em agosto de 2011. Vem referindo desde a altura do acidente, onde terá sofrido traumatismo da coluna cervical e anca direita, náuseas e vómitos frequentes, tonturas e hipotensão ortostática. Foi efetuado TAC na primeira observação que não mostrou alterações osteo-articulares. Pela manutenção da sintomatologia foi efetuada ressonância magnética em 30/10/2012, que mostrou normal alinhamento dos elementos vertebrais cervicais, menor amplitude do canal de conjugação â direita em C3-C4, discreta protusão discal em C4-C5 que molda parcialmente o espaço contíguo. Em C5-C6 procidência disco-osteofitária circunferencial em contexto de discartrose e em C6-C7 protusão discal parasagital esquerda posterior com estenose relativa do canal de conjugação após a saída da raiz ipsilateral. Pela persistência das queixas a nível da anca direita e região isquiática, na inserção proximal dos ísquio-tibiais, foi solicitada ecografia que não revelou alterações”. 25 – Relatórios psiquiátricos do Dr. CC: a) consulta de 25/10/2012: insónias, pesadelos, sonha com o acidente de carro. Isolada. Sozinha emocionalmente. (…) Ideação suicida. Discussão frequente com o namorado, melhor relacionamento com a irmã, com a mãe imprevisível. Infeliz. (…) Explosões de agressividade. Conflitos. Berra. (…) A empresa corre mal, teve 7 funcionários que a deixaram, mantém 2. Poucos clientes. Medicada com Alprazolam, Adalgur, Escitalopram e Dogmatil. b) Consulta de 23/01/2013 – esteve internada um mês em .... Fechou a loja. O sonho acabou. Voltou a ter ideação suicida (…). c) Datado de 02/04/2013: “A Sra. D. AA tem sido seguida por mim em consultas de psiquiatria desde o início de agosto de 2012. Na altura apresentava quadro de Distúrbio de Stress pós traumático subsequente a acidente de viação que tivera a 22/08/2011. Do quadro psiquiátrico fazem parte: pesadelos recorrentes sobre o acidente, pensamentos diários e constantes sobre o acidente (que considera ter afetado de modo permanente a sua vida), hiperreatividade e irritabilidade, insónia, dificuldade em conduzir. A situação da doente, entretanto, complicou-se de Depressão Major com ideação suicida e a D. AA teve de ser internada na Casa de Saúde ..., em ..., durante um mês dezembro de 2012 a janeiro de 2013) – Psiquiatra: Dr. DD). A doente necessita de tratamento psiquiátrico a longo prazo e apoio de psicologia”. d) Consulta de 02/09/2013 – sobre o acidente de viação acha que a sua vida se desmoronou desde aí. Pesadelos. Anda de carro quer travar e não consegue. Prescrita Cymbalta, Valdoxam, Xanax e Diazepam. e) Datado de 04/10/2013: “… quadro de Depressões Major recorrentes. Piorou nas últimas semanas e ressurgiu ideação suicida (com plano e já andou à procura na net maneiras de o fazer). Aumentei por isso a medicação, pedi a vigilância da família e caso a situação seja incontrolável faço o internamento da doente (…)”. f) Datado de 13/03/2014: “Nos últimos meses apresenta quadro de Depressão Major grave com ideação suicida e plano suicida”. g) Datado de 23/05/2014: episódios de Depressão Major, forma recorrente. No final de fevereiro fez novo quadro depressivo grave com ideação suicida e plano suicida. Teve de ficar sob vigilância de familiar e amigos e foi aumentada dose de Topiramato, antidepressivos e introduzido Haldol para diminuição da agressividade. A doente mantém lentificação psicomotora, fala arrastada, tremores e rigidez. Nesta data faz: Omeprazol, Topiramato, Cymbalta, Alprazolam, Triticum, Haldol, Diazepam. h) Datado de 10/07/2014: “O quadro depressivo da Sra. D. AA encontra-se de momento melhorado, contudo existem queixas de náuseas, cefaleias, desequilíbrio que vão ter de ser analisadas nas próximas semanas”. i) Datado de 19/12/2014: “A Sra. D. AA encontra-se melhorada do seu quadro depressivo grave com ideação suicida. Apresenta, contudo, um quadro neurológico de discinesias que envolvem a face e membro superior esquerdo. Foi por isso enviada à consulta de Neurologia (coexiste tremor e por isso pode também existir quadro parkinsónico) e a medicação, nomeadamente o Haldol vai ser reduzido (tem resultado bem para baixar a impulsividade e ideias auto-agressivas)”. 26 – Informação clínica do Dr. EE (médico psiquiatra): observada pela primeira vez a 26/02/2015 apresentando-se deprimida e ansiosa, com ideação de tonalidade obsessiva, com cefaleias mais acentuadas à direita, tiques e várias queixas orgânicas. Seguiu medicada com Elontril 150, Triticum 100, Unisedil, Seroxat e Risperidona. Na consulta de 26/03/2015 ténues melhoras tendo introduzido o Kainever em SOS. 27 – Consulta de Neurologia do Dr. HH datada de 02/12/2015 efetuada na ...: acidente em 2011. Diz que desenvolveu movimentos involuntários do MSE tipo distónico. Seguimento por psiquiatria – foi medicada com Paroxetina, Elontril, Trazodona, Risperidona e Unisedil. Tem agravado movimentos involuntários. Exame neurológico: CCO, movimentos distónicos mas bizarros, com manobras de distração aliviam … sem défices motores. Terá feito RMN que seria normal. Fico com dúvidas se se trata de quadro conversivo vs movimentos hipercinéticos em contexto de discinesia tardia. Sugiro iniciar o Clonazepam + Zolpidem. 28 – Declaração do médico neurologista Dr. FF datada de 18/01/2017: “… por sintomatologia depressiva grave associada a distonias multifocais marcadas que não têm cedido à terapêutica e a incapacitam não só para a profissão como nas suas atividades de vida diária. Esta situação contribui para o seu quadro depressivo que também não tem melhorado com a medicação”. 29 - Declaração de F...- Clínica de Fisioterapia, L.da, datada de 16/03/2017: “… efetuou tratamentos de Medicina Física e Reabilitação na nossa clínica por queixas de cervicodorsalgia, lombalgias e coxalgia. Os tratamentos tiveram início a 17/06/2014 e terminaram a 13/08/2017”. 30 – Hospital ... – Consulta de Neurologia datada de 27/04/2017: acidente de viação a 22/08/2011. Whiplash cervical. Alguma sensação de movimento, tipo vertiginoso, metamorpsias, sensação de desequilíbrio. Teve apoio da psiquiatria – Risperidona, Elontril, Triticum, Unisedil, Seroxat, Proaxen. Atualmente a fazer Seroxat, Triticum AC, Rivotril, Akineton retard. Movimentos involuntários de tipo discinético e distónico do membro superior esquerdo. São movimentos associados a neurolépticos. Distonia tardia associada aos neurolépticos, precisa de orientação na consulta de cirurgia funcional e apoio de psiquiatria, entretanto Tetrabenzina e depois cirurgia funcional – pedir a médica assistente Alert P1 para consulta de cirurgia funcional de distonias de movimentos. 31 – Como antecedentes patológicos e/ou traumáticos relevantes para a situação em apreço, a Autora referiu quadro depressivo aos 23 anos, com 3 tentativas de suicídio com seguimento pelo Dr. CC. 32 – De acordo com os registos clínicos, a Autora iniciou seguimento em consulta de psiquiatria aos 26 anos com história de conflitos familiares e com o namorado, com tentativas de suicídio com intoxicação medicamentosa. Por essa ocasião foi medicada com Diplexil, Tuneluz, Mutabon D, Dredipax 5 e Halcion. 33 – Ao exame objetivo, a Autora apresenta. - discinesias faciais e do membro superior esquerdo; - adota postura assimétrica à custa da elevação do ombro esquerdo com projeção anterior do mesmo, cotovelo esquerdo ligeiramente fletido e membro em adução; - levanta-se com frequência da cadeira ou adota ligeiras alterações na sedestação; - mobilidades dolorosas na coluna lombar. 34 – Exames complementares de diagnóstico: a) exame de psiquiatria realizado no ... do qual se extrai: considera-se que a examinanda preenche critérios para o diagnóstico psiquiátrico de perturbação neurótica não especificada. Não obstante os antecedentes psiquiátricos prévios, após o acidente de viação verificou-se um claro agravamento do quadro psiquiátrico, com sintomatologia ango-depressiva e somática relevante e reativa ao acontecimento, com necessidade de ajustamentos e intervenções terapêuticas complementares. Atendendo à natureza e grau das alterações psicopatológicas referidas, considera-se que o seu impacto adicional na eficiência pessoal e profissional da examinanda, relativamente ao grau de funcionamento prévio, é moderado. b) Exame neurológico levado a cabo na Delegação ... do qual releva: paciente com antecedentes psiquiátricos, depressões major recorrentes com ideação suicida, revelando marcadas alterações do humor correspondentes a estado angodepressivo não controlado, com repercussão comportamental e afetiva, a que se associa quadro discinético-distónico generalizado mas assimétrico de predomínio braquial esquerdo com dolorosa repercussão funcional motora ativa e passiva. Este enquadramento clínico determina um sinergismo sintomático intensamente eficaz, concretizando uma espiral de agravamento clínico e sintomático. Trata-se, portanto, de uma situação de distonia tardia de provável indução farmacológica a que não é alheia também a instabilidade emocional e afetiva que a sinistrada padece. 35 – A data da estabilização médico-legal das lesões é fixável em 22/08/2013, ou seja, dois anos após o acidente em apreço, tempo habitualmente necessário à estabilização do quadro psiquiátrico. 36 – O período de défice funcional temporário total é fixável num período de 45 dias. 37 – O período de défice funcional temporário parcial é fixável num período de 685 dias. 38 – O período de repercussão temporária na atividade profissional total é fixável num período de 32 dias. 39 – O período de repercussão temporária na atividade profissional parcial é fixável num período de 397 dias. 40 – O quantum doloris é fixável no grau 4/7. 41 – O défice funcional permanente da integridade físico-psíquica é fixável em 11 pontos, resultantes de sintomatologia ansiosa e depressiva reativa ao acontecimento enquadrável em Nb 1202. 42 – As sequelas de que a Autora ficou a padecer são, em termos de repercussão permanente na atividade profissional de gestora de estabelecimento de estética, compatíveis com exercício de tal atividade profissional, mas implicam esforços suplementares. 43 – Repercussão permanente na atividade sexual fixável no grau 3/7. 44 – Dependências permanentes de ajudas: tratamentos médicos regulares. 45 – Estes tratamentos médicos regulares consistem numa consulta de psiquiatria de dois em dois meses, em média, e em tomar a correspondente medicação. 46 – As consultas de psiquiatria têm um preço médio de € 70,00 e a medicação que a Autora necessita (antidepressivo e ansiolítico) custa cerca de € 20,00/mês. 47 – A Autora padece, ainda, das seguintes queixas: a) náuseas e tonturas; b) períodos de obstipação; c) humor lábil, com períodos de depressão e tristeza; já teve ideação suicida; d) alterações de memória, do sono, e da capacidade de concentração; e) sente que a sua vida se desmoronou desde o acidente; f) lombalgias e cefaleias ocasionais; g) sente tremores que lhe condicionam falta de precisão na manipulação de objetos; h) socialmente sente-se afetada pelos tiques que evidencia. 48 – A Autora concluiu, a 11/07/2003, o primeiro ciclo de estudos em Gestão na Universidade ... – fls. 821. 49 – A Autora tem também como habilitações a categoria profissional de “...” – fls. 121/122. 50 – A Autora trabalhou por conta de outrem: a) para a sociedade C..., S.A., entre novembro de 2008 e abril de 2009, auferindo a remuneração base de € 1.250,00 – fls. 901/902; b) para a sociedade P... Sociedade Unipessoal, Lda, entre janeiro e março de 2007, auferindo a remuneração base de € 2.160,00 – fls. 902. 51 – E esteve a auferir prestação de desemprego total entre maio de 2007 e janeiro de 2008, e entre maio de 2009 e novembro de 2010 – fls. 900/901. 52 - À data do acidente (22/08/2011), a Autora encontrava-se a desenvolver um projeto de criação de uma empresa no ramo da estética, da qual seria gestora. 53 - A Autora exerceu as funções de “..., ... e de ...” entre fevereiro de 2012 e dezembro de 2012 – fls. 901. 54 – Auferiu como membro de órgão estatutário da ... uma remuneração de € 800,00/mês entre março e novembro (inclusive) de 2012 – fls. 901. 55 – A firma “G... Unipessoal, Lda”, com sede na Rua ..., ..., ..., foi constituída a 16/02/2012 – fls. 124/127. 56 - A Autora investiu neste projeto e teve de liquidar pessoalmente do seu próprio bolso os seguintes financiamentos concedidos à G... Unipessoal, Lda, avalizados pela Autora: a) linha de crédito ...: € (36.000,00+9.000,00=) 45.000,00; b) ...: € 15.000,00. 57 – A Autora sentiu-se impossibilidade de continuar a gerir o estabelecimento comercial. 58 – Tendo trespassado o referido estabelecimento, a 04/10/203, e cedido a sua quota na firma “G... Unipessoal, Lda”, por, pelo menos, € 42.976,00 – fls. 130. 59 – A Autora por força das lesões sofridas em virtude do acidente dos autos teve de suportar despesas médicas e medicamentosas no valor de € (5.337,22+2.620,50+1.930,17=) 9.887,89 – fls. 201/265, 267/315; fls. 1020/1050 e 1103/1141. 60 – E teve de efetuar várias deslocações em transporte público, bombeiros e transporte próprio a hospitais e clínicas, tendo despendido: a) € 43,00, em comboio; b) € 324,85, em táxi; c) € 53,70, em pagamento aos bombeiros; d) € 1.149,07, em combustível. 61 – A Autora sofreu dores intensas e frequentes durante o período que mediou entre o acidente dos autos e a sua recuperação. 62 – Na altura do acidente sofreu a angústia de poder vir a falecer. 63 – A Autora tinha, antes do acidente, uma relação familiar com a mãe e a irmã bastante complicada. 64 - A Autora abandonou o acompanhamento clínico na Casa de Saúde ... sem permitir qualquer apreciação final sobre a avaliação do dano em direito civil por parte dos serviços clínicos da ora Ré. 65 - O que impossibilitou a Ré de apresentar à Autora uma proposta de indemnização. 66 - A natureza e as circunstâncias clínicas que originaram os pagamentos feitos pela Segurança Social à Autora foram resultado do acidente dos autos. ֎ Parte II – Fundamentação jurídica 1) Conforme resulta do antecedente relatório está em causa a definição do montante da indemnização a atribuir à autora para reparação do dano biológico por ela sofrido em consequência do acidente de viação descrito nos autos e em que teve intervenção, o qual foi ocasionado por conduta imputável exclusivamente ao condutor do veículo ..-..-GP seguro na ré. Incidindo os recursos de revista da autora e da ré sobre a mesma questão essencial e sendo as pretensões formuladas de sentido contrário, a apreciação de ambas as revistas será efectuada conjuntamente. 2) Sobre a obrigação de indemnização derivada de responsabilidade civil regem os artigos 562.º e seguintes do Código Civil. No contexto da responsabilidade civil por factos ilícitos o princípio norteador da reparação – artigo 562.º do Código Civil – é o da reposição natural da situação de facto que existiria se não tivesse ocorrido a lesão de onde deriva o dano. Dado que tal modo de reparar o dano se afigura, na esmagadora maioria dos casos, inviável, prevê o artigo 566.º n.º 1 do Código Civil que, quando a reposição natural da situação de facto anterior não seja possível, não repare integralmente o dano ou seja excessivamente onerosa para o devedor, a indemnização seja fixada em dinheiro. 3) A obrigação de indemnização abrange os danos que o lesado “provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão” – artigo 563.º do Código Civil. A expressão utilizada pelo legislador abarca os danos que tenham com o facto ilícito uma relação de causalidade adequada, directa ou mesmo indirecta, isto é, assente que esteja a relação causal entre o facto ilícito e o dano, estão abrangidos na obrigação de indemnizar não só os danos que sejam directamente produzidos pelo facto, mas também aqueles que sejam por ele desencadeados através de outras circunstâncias que conduzam à sua ocorrência. Numa outra perspectiva, conexa com a que vem de ser mencionada, a obrigação de indemnizar compreende não só o prejuízo directamente emergente do facto ilícito, mas também os benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão, podendo ainda o Tribunal atender aos danos futuros desde que estes sejam previsíveis – artigo 564.º do Código Civil. Quanto à fixação do concreto montante da indemnização em dinheiro ela tem por medida a diferença entre a actual situação patrimonial do lesado e a que ele teria se não se tivesse verificado o dano (artigo 566.º n.º 2 do Código Civil), socorrendo-se o Tribunal de critérios de equidade caso não possa ser averiguado o seu exacto valor (artigo 566.º n.º 3 do Código Civil). 4) No caso presente está essencialmente em causa a fixação do valor da indemnização pelo dano biológico futuro. O conceito de dano biológico tem natureza instrumental na determinação do valor da indemnização, centrando a obrigação de indemnizar na reparação de todas as consequências negativas do facto para a vida do lesado que sejam decorrentes, directa ou indirectamente, da afectação das suas capacidades funcionais tenham ou não tradução patrimonial directa. Em verdade, ele mais não traduz do que o reconhecimento de que a afectação e diminuição das capacidades pessoais, psíquicas e/ou somáticas, do lesado, seja temporária ou definitiva, tem natural repercussão na vida que o lesado passará a ter e é susceptível de gerar a obrigação de reparação pelo autor do facto ilícito. Daí que tenda a constituir fundamento para a reparação dos danos tradicionalmente enquadráveis na categoria de danos patrimoniais bem como a daqueles que, não tendo uma expressão patrimonial directa, importe quantificar, desde que se encontrem nas condições expressas no artigo 496.º n.º 1 do Código Civil. Feita esta breve introdução, vejamos então o caso dos presentes autos.
5) No que se refere ao dano biológico sofrido pela autora na vertente do dano patrimonial futuro, entende a autora, ora recorrente, ter direito a uma indemnização não inferior a 100.000,00 euros (conclusões 5 e 6). O montante da indemnização em causa reporta-se aos valores que a autora deixará, presumivelmente, de auferir, tendo em conta os rendimentos anteriormente auferidos e a maior dificuldade com que irá desenvolver no futuro a sua actividade. E, autonomizando uma vertente não patrimonial futura do dano biológico sofrido, entende a autora ter direito a uma indemnização de valor não inferior a 50.000,00 euros (conclusões 7 e 8).
6) Como bem se refere no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24 de fevereiro de 2022 (revista 1082/19.7T8SNT.L1.S1) de que foi relatora a Sr.ª Juíza Conselheira Dr.ª Graça Trigo (consultável em www.dgsi.pt e citado no acórdão recorrido), a indemnização pela afetação da capacidade geral ou funcional deve ser fixada com recurso à equidade em função, nomeadamente, da idade do lesado, do seu grau de défice funcional permanente e das suas potencialidade de obtenção de ganhos anteriores à lesão. Assim também o Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 23 de outubro de 2018 (revista 902/14.7TBVCT.G1.S1), de que foi relator o Sr. Juiz Conselheiro Dr. Henrique Araújo (disponível em www.dgsi.pt) avançando um critério para a atribuição de uma indemnização equitativa pelos danos patrimoniais futuros: “A indemnização por danos patrimoniais futuros deve corresponder a um capital produtor do rendimento de que o lesado ficou privado e que se extinguirá no termo do período provável da sua vida, determinado com base em critérios de verosimilhança ou de probabilidade (v.g. esperança média de vida, flutuação do valor do dinheiro, expectativas de aumentos salariais e de progressão na carreira) e com recurso à equidade.”
7) A dificuldade, de que a jurisprudência tem dado conta, no cálculo de uma justa indemnização pelos danos patrimoniais futuros está relacionada com o facto de se tratar de danos, ainda que previsíveis, de montante passível de variação em função de parâmetros difíceis de avaliar no momento da sua fixação. Daí o recurso à equidade, igualmente válido para o cálculo do valor da indemnização pelos danos de natureza não patrimonial, sejam eles futuros ou não. Vem a propósito adiantar que, contrariamente ao que a autora ora recorrente tem vindo a defender, a indemnização a arbitrar com base no dano biológico futuro é uma só, contemplando a vertente patrimonial e não patrimonial das consequências do facto ilícito, sendo os mesmos os respectivos parâmetros de avaliação. Como se salientou já, o que está em causa é a reparação do dano causado pela afectação das capacidades da pessoa lesada e cujas consequências futuras, podendo ser de ordem patrimonial ou não, terão de ser avaliadas com recurso a critérios de equidade.
8) A equidade é, por definição, a justiça do caso concreto, caracterizada grosso modo por ser flexível e alheia a critérios normativos expressos e em que rege a prudência, o bom senso prático, a justa medida das coisas e a criteriosa ponderação da realidade. A adopção de fórmulas de cálculo com resultado mais objectivo, utilizando os factos provados no processo com possível reflexo na quantificação do dano, é um modo de concretização da equidade e o seu resultado traduz um valor base de referência na aproximação à definição do montante da indemnização, que deverá corresponder a um capital de rendimento de que o lesado ficou privado e que se extinguirá na data provável do termo da sua vida. Mas é de afastar a imperatividade dos resultados de equações de complexidade variável quando extravasem a sua função de auxiliares de orientação com vista à determinação do montante concreto da indemnização.
9) Ponderou-se no acórdão recorrido que, apesar de a autora ora recorrente se encontrar desempregada à data do acidente, haveria que levar em linha de conta no cálculo então operado o valor do último salário recebido pela autora, no valor de 800,00 euros (facto descrito sob o ponto 54), bem como o período de expectativa de vida de 46 anos – a autora tinha 37 anos à data do acidente, e sendo a esperança de vida das mulheres em Portugal estabelecida em 83 anos – e o défice funcional permanente de integridade físico-psíquica de 11 pontos. E, recorrendo a uma fórmula de cálculo habitualmente utilizada, onde integrou os referidos factores, encontrou o acórdão recorrido o montante da indemnização a arbitrar, tendo por referência a data do acidente. Esse valor foi corrigido e actualizado de acordo com a taxa de variação do índice dos preços no consumidor desde a data do acidente até momento da prolação do acórdão.
10) Sem razão critica a ré o facto de ter sido considerado o valor de 800,00 euros na fórmula base de cálculo da indemnização. Apesar de a autora estar desempregada à data do acidente (facto descrito sob o ponto 18), ela auferiu esse vencimento em momento posterior (facto descrito no ponto 54), pelo que tal montante se nos afigura um índice seguro da capacidade de angariação de rendimentos por parte da autora, mesmo após o acidente. Por outro lado, considerando que a indemnização arbitrada desta forma equitativa deve atender ao tempo decorrido desde a lesão e ser actual (artigo 566.º n.º 2 do Código Civil), tem relevância secundária o critério de actualização concretamente utilizado, desde que adequado ao fim visado – no caso, e com discordância da ré, a actualização com base nas taxas de inflação ou de variação do índice de preços no consumidor, sendo que outro poderia, de facto, ter sido usado com idêntico resultado. Importa ter presente que, sempre com base em critérios de equidade e nas concretas circunstâncias do caso, sempre seria admissível, como é típico nesta forma de determinação do montante da indemnização, um ajustamento para valores próximos do resultante da aplicação da fórmula de cálculo inicial.
11) Os factos provados que foram utilizados na fórmula de cálculo inicial são adequados ao estabelecimento de um valor indicativo da indemnização a atribuir à autora a título de danos patrimoniais futuros. O valor encontrado é ajustado à reparação do dano biológico sofrido pela autora, na vertente patrimonial, pelo que nenhuma censura merece o cálculo do montante da indemnização efectuado no acórdão recorrido pelo dano biológico ora em apreciação, sofrido pela autora. Se é certo que a alteração efectuada no Tribunal da Relação não acompanhou a correcção do grau de deficiência funcional da ré que ela própria efectuou, não é menos certo que o superior valor da indemnização resultou de uma diferente avaliação dos critérios de equidade ponderados em primeira e segunda instância, nada havendo que obstasse a essa diferente ponderação em sede de apelação, face ao seu objecto. Neste ponto os recursos de ambas as partes são improcedentes, confirmando-se, por se revelar adequado à reparação do dano biológico sofrido pela autora na vertente o montante arbitrado no acórdão recorrido.
12) E quanto à vertente não patrimonial do dano biológico? Apesar de a autora ter autonomizado os “danos morais” – enquanto vertente do dano biológico conforme conclusões 7 e 8 – dos “danos não patrimoniais” mencionados nas conclusões 9 e 10, estamos em presença da mesma realizada fáctica, emergente da afectação da saúde da autora e susceptível de ser objecto de reparação equitativa à luz das mesmas regras de direito, não havendo qualquer justificação para calcular e atribuir duas distintas compensações indemnizatórias pelos mesmos factos, sendo que todos eles foram considerados na decisão ora impugnada, tal como o haviam sido na sentença proferida em primeira instância.
13) A autora insurgiu-se contra o facto de o acórdão do Tribunal da Relação do Porto ter reduzido o valor da indemnização arbitrada em primeira instância a título de danos de natureza não patrimonial. Apesar de, no presente recurso de revista estar apenas em apreciação a vertente não patrimonial do dano biológico, vejamos se o montante da indemnização arbitrada a título de danos de natureza não patrimonial deve ser alterado.
14) Na determinação do montante indemnizatório haverá que atender ao disposto no artigo 496.º n.º 3 do Código Civil. A sentença de primeira instância ficou a indemnização para reparação dos danos de natureza não patrimonial sofridos pela autora no montante de 40.000,00 euros, valor que foi reduzido para metade pelo Tribunal da Relação. Consta do acórdão recorrido a seguinte fundamentação quanto ao montante da indemnização a título de danos de natureza não patrimonial sofridos pela autora: “Resulta da matéria de facto assente que a Autora sofreu danos de tal modo graves que justificam um ressarcimento, o que nem sequer é discutido, já que o que é objeto de discordância de ambas as partes é o critério da valorização do dano. São convocáveis os factos constantes dos pontos 20 a 34, 35 a 40, 42 e 43, 61 e 62 da sentença com especial relevância para o facto de que Autora ficou padecer de uma repercussão permanente na atividade sexual de 3/7, o quantum doloris ter sido fixado em 4/7, a estabilização médico legal das lesões ter ocorrido em 22/08/2013, o período de défice temporário total ser fixável em 45 dias e o período de défice funcional permanente ser fixável em 685 dias, com um período de repercussão total na atividade profissional de 32 dias e parcial de 397 dias, enquanto o DFPIFP é de 11 pontos. A Autora sofreu dores intensas e frequentes durante o período que mediou entre o acidente dos autos e a sua recuperação e, na altura do acidente, sofreu a angústia de poder vir a falecer. A valoração do dano não patrimonial de caráter equitativo deve ter como critério balizador todas as circunstâncias que rodearam os factos e, bem assim, os danos sofridos, destinando-se a uma compensação por sucedâneo. Entendemos, neste caso, atenta a data do sinistro, que remonta a 2011, a qual baliza o valor a encontrar neste segmento, e a valorização das sequelas supra referidas em face das circunstâncias de vida da Autora, que, muito embora tenha ficado a sofrer de um Défice Funcional de 11%, não teve sequelas físicas relevantes, ou definitivas, ponderando a sua idade à data dos factos e ainda que a mesma já era possuidora de uma doença psiquiátrica, quando foi vítima do sinistro, entendemos não ser fixar uma indemnização superior a 20.000,00 pelo dano não patrimonial.”
15) As lesões físicas sofridas pela autora no acidente ou em consequência dele, minuciosamente descritas nos pontos 20 a 34 da matéria de facto apurada, as dores intensas e frequentes que sentiu até à recuperação, bem como o agravamento do quadro psiquiátrico anterior, aliado à angústia sentida no momento do acidente e aos incómodos sofridos pela autora com o acidente e tratamento das lesões bem como os restantes factores indicados no excerto acabado de transcrever, em especial as consequências permanentes descritas nos pontos 35 a 43 da matéria de facto, justificam, pela sua gravidade, a atribuição de uma indemnização ao abrigo do disposto no artigo 496.º n.º 1 do Código Civil. O seu montante foi fixado de acordo com critérios de equidade, tendo em conta os factos apurados, como determina o artigo 496.º n.º 3 do Código Civil.
16) Como se pondera no Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 10 de novembro de 2016 (revista 175/05.2TBPSR.E2.S1) de que foi relator o Sr. Juiz Conselheiro Lopes do Rego (disponível em www.dgsi.pt), sendo o juízo de equidade alicerçado “não na aplicação de um estrito critério normativo, mas na ponderação das particularidades e especificidades do caso concreto, (…) tal juízo prudencial e casuístico das instâncias deverá, em princípio, ser mantido, salvo se o julgador se não tiver contido dentro da margem de discricionariedade consentida pela norma que legitima o recurso à equidade (…).
17) No caso presente, considerando os factos apurados, em especial que a autora passou a ser portadora de um grau de défice de eficiência funcional permanente de integridade físico-psíquica de 11 pontos, por sintomatologia ansiosa e depressiva reactiva ao acontecimento, por agravamento de impacto moderado de anterior quadro psiquiátrico, mas sem sequelas físicas definitivas, e tendo igualmente em conta os critérios de valoração do dano não patrimonial habitualmente utilizados em casos semelhantes face à relativa gravidade dos factos demonstrados nos autos, a margem de discricionariedade consentida ao julgador no juízo de equidade sobre o montante da reparação justifica que se repondere, numa abordagem mais actualizada que tenha também em consideração a recente evolução da situação monetária e a total ausência de culpa da lesada na produção do acidente de que resultou o dano, o montante da indemnização a arbitrar. Na verdade, o valor da indemnização fixado no acórdão recorrido para reparação da globalidade dos danos de natureza não patrimonial sofridos pela autora afigura-se-nos insuficiente para compensar integralmente o dano sofrido pela autora, numa perspectiva actualizada e global das circunstâncias do caso concreto e atendendo ao artigo 496.º n.º 3 e 494.º do Código Civil. Termos em que se decide alterar o valor arbitrado, fixando o valor da indemnização pelos danos de natureza não patrimonial sofridos pela autora em trinta mil euros. Nesta medida procede parcialmente a revista da autora.
18) Tendo ambas as partes decaído nos recursos de revista por cada uma delas interposto autora e ré são responsáveis pelas custas processuais dos recursos que interpuseram, na medida do respectivo decaimento. ֎ ֎ DECISÃO Termos em que: - Julgam parcialmente procedente o recurso de revista interposto pela autora; - Alteram o acórdão recorrido na parte em que fixou o montante da indemnização a título dos danos de natureza não patrimonial por ela sofridos, que se fixa em 30.000,00 (trinta mil) euros; - Julgam improcedente o recurso interposto pela ré; - Em tudo o mais, confirmam o acórdão recorrido; As custas do recurso de revista interposto pela autora são da responsabilidade da autora e da ré na proporção do respectivo decaimento e as do recurso de revista interposto pela ré são da sua responsabilidade. Lisboa e Supremo Tribunal de Justiça, 6 de dezembro de 2022
Manuel José Aguiar Pereira (relator) Maria Clara Pereira de Sousa de Santiago Sottomayor António Pedro de Lima Gonçalves ___ [1] Não obstante o recurso de revista da autora estar circunscrito nos termos em que foi admitido a título excepcional transcrevem-se integralmente as conclusões apresentadas pela autora. |