Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
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| Nº Convencional: | 1ª SECÇÃO | ||
| Relator: | ANTÓNIO MAGALHÃES | ||
| Descritores: | PRESTAÇÃO DE CONTAS FORMA CONTA CORRENTE MORA CONTAGEM DOS JUROS DIREITO DE CRÉDITO NULIDADE DE SENTENÇA PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO EXAME CRÍTICO DAS PROVAS ÓNUS DO RECORRENTE LEI PROCESSUAL DECLARAÇÃO DE RENDIMENTOS OBRIGAÇÃO DE ALIMENTOS BENS COMUNS REFORMATIO IN PEJUS | ||
| Data do Acordão: | 03/25/2025 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | REVISTA | ||
| Decisão: | CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA | ||
| Sumário : | No âmbito da acção de prestação de contas só existe mora e contagem de jutos a partir do apuramento de um saldo credor | ||
| Decisão Texto Integral: | Revista nº 1510/14.8TMLSB-D.L1.S1 Acordam os Juízes da 1ª Secção Cível do Supremo Tribunal de Justiça: * AA intentou acção de prestação de contas contra BB com vista a obter a prestação de contas quanto aos rendimentos dos bens comuns, descritos nos autos. Notificado para prestar as contas reclamadas pela autora, o Réu contestou a obrigação de prestação de contas, mas foi julgado precludido o direito de o réu contestar a obrigação de apresentação de contas e determinada a notificação da autora para, querendo, apresentar as contas em falta. Desta decisão foi interposto recurso de agravo, que foi admitido. A autora prestou contas, que vieram a ser julgadas, parcialmente procedentes, tendo o réu sido condenado a pagar à autora a quantia de € 1 529 223,95. Mais exactamente, a 1.ª instância decidiu no seguinte sentido: “Pelo exposto, julgo, parcialmente, procedente a presente acção de prestação de contas, reconhecendo a favor da autora, AA, a existência de um saldo favorável à mesma no valor de € 1.529.223,95, o qual lhe deverá ser pago pelo réu, BB, absolvendo este último do demais peticionado. (…)” Desta decisão foi interposto recurso de apelação. Pelo Tribunal da Relação de Lisboa foi proferido acórdão que julgou improcedentes os recursos de agravo e de apelação, confirmando a decisão recorrida. Inconformado, veio o réu interpor recurso de revista para este Supremo Tribunal de Justiça, que foi rejeitado. Porém, o ré reclamou, tendo a reclamação sido deferida nos seguintes termos: “ (…) No caso dos autos, o recorrente coloca em crise o acórdão do Tribunal da Relação, na parte em que conhece da decisão final de mérito e na parte em que conhece de duas decisões interlocutórias da 1.ª instância. Referimo-nos à decisão do acórdão da Relação que confirmou a decisão da 1.ª instância i) que considerou precludido o direito de contestar a obrigação de prestar contas e declarou as contas não prestadas pelo réu e ii) que confirmou a decisão da 1.ª instância que indeferiu a realização de uma 2.ª perícia, requerida pelo réu/recorrente. De facto, estão em causa duas decisões não finais da 1.ª instância, na medida em que não contendem com a resolução material do litígio, como, de resto, o recorrente reconhece ao afirmar, em sede de recurso de apelação, que “constitui ainda objecto do presente recurso a decisão intercalar nela contida que, em conclusão, afirma que inexiste, pois, fundamento bastante para ordenar a realização de uma segunda perícia.”, sendo o agravo, anteriormente, interposto dirigido à impugnação de decisões que não conhecem do mérito da causa. Ora, como é sabido, independentemente da existência de dupla conforme, apenas é possível recorrer de revista do acórdão que apreciou decisão interlocutória da 1.ª instância, nos casos previstos no nº 2 do art. 671º do CPC. No caso que nos ocupa, o recorrente não invocou qualquer fundamento susceptível de ser reconduzido a um caso em que o recurso é sempre admissível, não tendo, igualmente, invocado qualquer contradição de julgados como fundamento do presente recurso. Donde, o recurso de revista da decisão do Tribunal da Relação sobre as mencionadas decisões interlocutórias da 1.ª instância é inadmissível. Em face do exposto, e estando preenchidos os demais pressupostos gerais de admissibilidade do recurso, consideramos que o recurso de revista deverá ser admitido apenas na parte em que o recorrente impugna o acórdão da Relação proferido sobre a decisão da 1.ª instância que conheceu do mérito da causa e que pôs termo ao processo, não devendo o Supremo pronunciar-se sobre a decisão proferida pelo Tribunal da Relação relativamente às decisões interlocutórias proferidas pela 1.ª instância. Pelo exposto, defere-se a reclamação, nos sobreditos termos. (…) “ O Réu formulou no seu recurso de revista as seguintes conclusões: “a) a afirmação de que foram prestadas as contas produzida pelo recorrente quando notificado para o fazer enquadra-se na segunda fase do processo especial de prestação de contas, que é desencadeada no momento em que é definida a existência de uma obrigação genérica de prestação de contas (art. 1014º do Cód. Proc. Civil), tendo então sido ponderadas duas questões determinantes de serem as contas tidas como prestadas: - a existência de um casamento durante o período em que se pretende sejam as contas prestadas; - o facto de a prestação de contas apenas pode abranger os períodos pretéritos e anteriores aquele em que o mesmo pedido foi formulado em juízo; b) não tendo sido, nenhuma das duas, objecto de decisão em primeira instância, vem o Acórdão recorrido, suprir, quanto á primeira, da existência de um casamento, formular pronuncia, mantendo, porem, o silencio quanto à segunda questão, em termos de se reiterar a violação do dever de pronuncia a que alude o art. 668º, nº 1, al. d) do Cód. Proc. Civil, em termos geradores de nulidade; c) quanto à questão da existência de um período em que as partes estiveram casados, a prestação de contas revela-se incompatível com o disposto nos arts. 1671º, nº 1 e 1678º do Cód. Civil, sendo certo que se verifica que o cônjuge que administrar bens comuns ou próprios do outro cônjuge, ao abrigo do disposto nas alíneas a) a f) do nº 2 do art. 1678º, não é obrigado a prestar contas da sua administração – art. 1681º do Cód. Civil, sendo, assim, a exigência nos autos contraria aqueles comandos legais; d) quanto à questão de o processo apenas abranger períodos pretéritos, deriva, desde logo, do art. 1014º do Cód. Proc. Civil e do principio que o processo judicial dispõe sobre situações passadas uma fronteira clara à prestação de contas – e mesmo que o Acordão diga que abrange todo o tempo até à partilha, tal traduz uma realidade diversa, na medida em que tal poderá ser pedido noutro processo, que não no dos autos; e) destinando-se a segunda perícia a corrigir inexactidões ou imprecisões da primeira perícia, não cabe na aferição do recebimento da mesma qualquer juízo de oportunidade, tal como é formulado pelo Acórdão recorrido, não cabendo ao Tribunal aprofundar o bem (ou mal) fundado da argumentação apresentada – arts. 587º, 589º, nº 3 e 487º do Cód. Proc. Civil; f) de qualquer forma, os aspectos que foram invocados para a realização de segunda perícia justificam a mesma, em absoluto, não se podendo louvar em consideração genérica de prestação de contas para obstar á aferição de: - não estarem as despesas consideradas, designadamente os valores de pensão de alimentos, estarem considerados valores de juros de forma abusiva e arbitraria e ter sido aferido o rendimento bruto como ganho; g) aliás, a aferição de tais questões decorre dos próprios documentos juntos aos autos, não sendo necessária qualquer indagação complementar ou aferição de outros documentos; h) sendo a fundamentação sobre a matéria de facto, em termos exclusivos, a remissão para o teor de um relatório pericial, estamos em face de uma situação de evidente nulidade por falta de fundamentação, na medida em que não se mostram especificados, em termos de analise, os elementos inerentes ao exame critico das provas (arts. 158º, nº 1 do Cód. Proc. Civil (correspondente art. 154º do actual Cód.) e 607º, nº 4, do Cód. Proc. Civil; i) se, de facto, como afirma a decisão recorrida, a perícia constitui um elemento relevante de prova, tal não isenta o julgador de verificar o seu teor e conteúdo, não podendo, por via de um recuperar absoluto e cego, delegar a função de julgar num terceiro; j) o Acórdão recorrido mostra-se absolutamente omisso quanto á pertinência do preconizado acionamento do disposto no art. 712º do Cód. Proc. Civil quanto aos pontos 1, 5, 6 e 7 dos factos provados e facto não provado), não sendo de considerar como decisão de tal questão a consideração genérica de que a fundamentação é congruente, inteligível e desprovida de qualquer ambiguidade, sem que tenham sido ponderadas as questões concretas apontadas; k) com efeito, quer a omissão de concretização quanto ao período em que estiveram casados e aquele em que não estiveram (relevante, nos moldes acima assinalados, desde logo porque enquanto casados não há cabeça-de-casal - concretizando, apos o divorcio, A. e R. casaram novamente em 1990 e voltaram a divorciar-se em 1996); l) quer quanto a não concretização e discriminação dos rendimentos imputados (inviabilizando que se afira da sua natureza como própria ou comum e que se distinga rendimento de juros sobre juros e a que taxa), e das despesas que não estão consideradas na sua totalidade (mas apenas as fiscalmente admissíveis em sede de IRS, com exclusão, por exemplo, de IMI ou a sua antecessora contribuição autárquica ou despesas que excedem os limites de dedução em IRS); m) sempre teria de ser concretizada a fundamentação subjacente à fixação de tais factos, positivos ou negativas, sendo que, ao não se ter feito, se violou o disposto no mencionado art. 712 do Cód. Proc. Civil; n) com efeito, tendo as contas em atenção os rendimentos e as despesas, não se poderá aceitar uma imputação de um valor de juros que excede largamente os resultados da exploração da farmácia e os rendimentos prediais, como se afirma serem as contas apresentadas, com a agravante de os juros serem calculados a taxas usurarias, muito acima das previstas no art. 559º do Cód. Civil e respectivas portarias; o) para alem de os juros incidirem não sobre metade, mas sobre a totalidade do valor imputados a título de rendimento, o que faz criar um agravamento significativo sobre o valor dos supostos rendimentos (se tivermos 10 e dividirmos por 2 temos 5, sendo os juros calculados sobre 5, quando, o que as contas, sob a capa de rendimentos, faz, é 10 mais juros, que dá 12 e então divide-se por dois, sendo os juros sobre a parte do recorrente recebidos em metade pela recorrida); p) o Acórdão recorrido não pondera tais questões, sendo omisso na aferição concreta dos mesmos, incorrendo em nulidade por omissão de pronuncia e erro de julgamento; q) estando, no período em que incidem as contas, a recorrida a receber pensão de alimentos paga pelo recorrente, têm as mesmas que ser deduzidas na parte que lhe cabe, sendo tal valor um efectivo adiantamento de valores adiantadas, sob pena de gerar uma desigualdade profunda de distribuição; r) assim, não apenas as contas apresentadas e aceites o foram em violação do art. 1.015º do Cód. Proc. Civil (anterior redacção – actual art. 943º), não tendo o julgamento tido em atenção as falhas apontadas nas presentes conclusões; s) como ainda não foram apresentadas na forma legal exigida pelo art. 1016º, nº 1, do Cód. Proc. Civil (art. 944º do NCPC), pois que: i) não estão em forma de conta corrente); ii) não se especifica a proveniência das receitas; iii) não se especifica a aplicação das despesas; limitando-se a A. a lançar receitas, sem concretizar a que se referem, somar juros sobre juros, ignorar, total ou parcialmente, despesas, sem identificar a sua proveniência, e, assim obter um saldo, tornando impossível a reconstituição dos itens lançados em sede de prestação de contas, com total violação do principio do contraditório e das regras inerentes á prestação de contas; t) o Acórdão recorrido viola, pois, salvo melhor opinião, os comandos legais assinalados nas presentes conclusões de recurso.” A recorrida apresentou contra-alegações sustentando a improcedência do recurso. Cumpre decidir. Foram dados como provados os seguinte factos: “1. BB e AA casaram entre si tendo o casamento sido dissolvido por divórcio decretado por sentença transitada em ....7.1990. 2. AA instaurou contra BB os autos de inventário a que os presentes se encontram apensos com vista à partilha do património comum do extinto casal que formaram. 3. Integraram no período compreendido entre o ano de 1990 e o ano de 2013 o aludido património comum, o direito a metade indivisa do bem imóvel sito na rua ..., 1/3 indiviso do prédio sito na Rua ... e a denominada “ Farmácia ...” sita em ... . 4. BB na qualidade de cabeça de casal explorou os aludidos bens. 5. Ao fazê-lo e por força da exploração do aludido estabelecimento de farmácia e do arrendamento daqueles prédios BB auferiu, no aludido hiato temporal, rendimentos melhor discriminados a folhas 1304 dos autos . 6. Incorreu, ainda, nas despesas de manutenção e exploração ali melhor elencadas. 7. Liquidou impostos nos montantes ali discriminados; 8. Mais pagou a autora AA as pensões de alimentos a que ali se faz alusão.” Não ficou provado que o réu tivesse incorrido em outras despesas. Tendo por referência a decisão singular proferida na reclamação e as conclusões de recurso de revista, as questões a apreciar são as seguintes: a. A violação do disposto no art. 662º do CPC; b. A apresentação das contas em forma de conta corrente; c. Os juros devidos sobre o saldo credor apurado nos autos; d. O pagamento de pensão de alimentos e da necessidade de dedução das quantias pagas a esse título. Todas as demais questões colocadas foram decididas pelo acórdão recorrido na parte que não se mostra recorrível para o STJ. Da violação do disposto no art. 662º do CPC. Considera o recorrente que “o acórdão recorrido mostra-se absolutamente omisso quanto à pertinência do preconizado acionamento do disposto no art. 712º do Cód. Proc. Civil quanto aos pontos 1, 5, 6 e 7 dos factos provados e facto não provado), não sendo de considerar como decisão de tal questão a consideração genérica de que a fundamentação é congruente, inteligível e desprovida de qualquer ambiguidade, sem que tenham sido ponderadas as questões concretas apontadas”. Pretende o recorrente que o Supremo conclua pela violação do disposto no nº 5 do art. 712º do CPC, na redacção anteriormente em vigor, que dispunha que “se a decisão proferida sobre algum facto essencial para o julgamento da causa não estiver devidamente fundamentada, pode a Relação, a requerimento da parte, determinar que o tribunal de 1.ª instância a fundamente, tendo em conta os depoimentos gravados ou registados ou repetindo a produção da prova, quando necessário; sendo impossível obter a fundamentação com os mesmos juízes ou repetir a produção da prova, o juiz da causa limitar-se-á a justificar a razão da impossibilidade.”. Esta norma corresponde à actual al. d) do nº 2 do art. 662º do CPC. Sobre esta matéria, o Tribunal da Relação deixou escrito que: “A decisão recorrida não padece de insuficiência ou omissão de factos e, ou de insuficiência ou deficiência do processo de motivação em que assentou, não afrontando o desiderato definido no artigo 607, n°4 do CPC, e não se identifica de igual passo, vício compaginável com a interpretação restrita de nulidade afirmada no artigo 615, n° l d) do CPC, pronunciando-se sobre todas as questões colocadas pelo Réu e pertinentes para a decisão. Assim, está identificado em suporte da matéria principal provada - o valor do saldo apurado resultante das receitas e despesas - a avaliação pericial, fundada nos elementos contabilísticos e fiscais disponibilizados nos autos; e, no que se prende com a rubrica das despesas, concluiu pela não verificação atendível de outras despesas, além das que foram atestadas e documentadas, em virtude de não ter sido junta documentação que contrarie esse resultado. Do que importa reconhecer que a fundamentação da matéria de facto provada e não provada é congruente, inteligível e desprovida de qualquer ambiguidade.”. Parece resultar da alegação do recorrente a pretensão de que o Supremo se pronuncie sobre a eventual nulidade da sentença da 1.ª instância por falta de fundamentação. Porém, o Supremo não pode conhecer das nulidades da sentença da 1ª instância (cfr. os Acs. STJ de 4.6.2024, proc. nº 1098/20.0T8BRG.G1.S1, de 9.3.2022, proc. nº 11103/17.2T8PRT.P1.S1, e de 5.9.2023, proc. nº 48/14.8T8IDN-A.C1.S3, todos disponíveis em www.dgsi.pt). O que o Supremo pode e deve sindicar é a eventual violação dos poderes-deveres que emergem do disposto no art. 662º do CPC, o que ocorrerá se se verificar que o Tribunal da Relação concluiu pela falta de fundamentação da sentença da 1.ª instância e não determinou a baixa dos autos ao tribunal da 1.ª instância para reformulação da fundamentação. Porém, é manifesto que tal não se verifica nos presentes autos: o Tribunal da Relação pronunciou-se sobre a questão concreta colocada pelo recorrente, tendo concluído que inexistia qualquer falta de fundamentação que pudesse, porventura, inquinar a sentença da 1.ª instância. Assim sendo, não pode o Supremo determinar agora que o Tribunal da Relação conclua pela insuficiência de fundamentação da sentença da 1.ª instância, pois, se o fizesse, estaria a entrar na análise dos vícios da sentença, o que, como vimos, não é possível. Ademais, importa deixar expresso que a análise dos invocados vícios da sentença da 1.ª instância foi levada a efeito pelo Tribunal da Relação no âmbito da livre apreciação da prova produzida, domínio em que, como se sabe, o Supremo Tribunal de Justiça não pode ter qualquer intervenção. Por outro lado, e como resulta da leitura do recurso de apelação interposto nos autos, o recorrente não impugnou a matéria de facto apurada em 1.ª instância. Na verdade, como tem sido entendimento pacífico deste STJ, para que se verifique uma reapreciação da prova a pedido do recorrente, não basta a alegação em sede de recurso de que houve erro manifesto de julgamento e/ou deficiência na apreciação da matéria de facto, devendo ser antes indicados quais os pontos de facto que mereciam resposta diversa, bem como os elementos de prova que levariam à alteração da resposta dada pelo tribunal da 1.ª instância. Labor não foi levado a cabo pelo recorrente. Assim, muito embora resulte do recurso de apelação que o recorrente considera que as contas apresentadas merecem reparos e correcções profundas, não só tal pretensão não surge sustentada em elementos probatórios concretos como não foram indicadas quais as receitas e as despesas que deveriam ser consideradas. Se assim é, temos de concluir que, em rigor, o recorrente se insurgiu apenas contra a falta de fundamentação da sentença da 1.ª instância, vício que foi (em última instância) conhecido pelo Tribunal da Relação e que, se frisa de novo, não pode ser sindicado por este Supremo. Por fim, deve salientar-se que a circunstância de o tribunal recorrido ter concluído em sentido contrário ao pretendido pelo recorrente não significa que aquele tribunal tenha incumprido um qualquer dever ou que tenha omitido a pronúncia requerida. Consideramos, assim, que não se verifica qualquer violação do disposto no art. 662º do CPC, pelo que deve a alegação do recorrente improceder. Da apresentação das contas em forma de conta corrente. Invoca o recorrente que as contas apresentadas pela autora não observaram a forma de conta corrente. Dispõe o art. 943º, nº 1, do CPC que “quando o réu não apresente as contas dentro do prazo devido, pode o autor apresentá-las, sob a forma de conta corrente, nos 30 dias subsequentes à notificação da falta de apresentação, ou requerer prorrogação do prazo para as apresentar.”. Escreve Luis Filipe Pires de Sousa: “as contas, quer sejam apresentadas pelo autor quer sejam apresentadas pelo réu, devem ser apresentadas sob a forma gráfica de conta corrente, a qual se decompõe em receitas, despesas e saldo. As contas apresentam a expressão ou a forma gráfica de conta corrente, quando em colunas separadas se inscrevem as verbas de receita, a verbas de despesa e so saldo resultante do confronto dumas e doutras. As verbas de receita inserem-se em coluna que tem a rubrica haver; as verbas de despesas em coluna encimada pela palavra deve”. Há que indicar separadamente como se obteve a totalidade da receita, quais as quantias que se foram recebendo e donde provieram; assim como é forçoso declarar quais as diferentes despesas que se fizeram e a que fim se aplicaram as respectivas verbas.” (Processos Especiais de Divisão de Coisa Comum e de Prestação de Contas, Almedina, 2016, págs.144 e segs.). Ora, analisados os documentos, afigura-se-nos que a autora apresentou, como lhe competia, as contas da administração pretendidas em forma de conta corrente. De facto, como resulta do requerimento apresentado em 30.7.2014, as contas apresentadas pela autora cumprem as exigências de forma, tendo especificado, em colunas autónomas, os montantes relativos a receitas e a despesas e, a final, a indicação do saldo credor apurado. Acresce, ainda, que, como resulta dos autos, a proveniência das receitas e das despesas se mostra, suficientemente, explicitada, não podendo o réu invocar um desconhecimento sobre esta matéria. Como escreve o autor supracitado, “apesar de o autor estar obrigado a prestar as contas segundo o estilo de conta corrente e a especificar a proveniência das receitas e a aplicação das despesas, na apreciação do cumprimento de tal dever processual não pode o tribunal alhear-se do diverso circunstancialismo fáctico e jurídico subjacente. Na verdade, além de impender sobre o réu a obrigação de prestar contas, o réu tem à sua disposição todos os elementos que lhe permitem fazer a especificação da receita e da despesa na medida em que foi o mesmo que procedeu à administração geradora da obrigação de prestar contas. Diversamente, o autor não dispõe – em princípio – de tais elementos (ou, pelo menos, da sua totalidade), o que conduz a que o autor tenha de se socorrer de elementos vagos e incompletos, sendo-lhe por isso menos exigível que faça tal discriminação de forma cabal e completa” (ob. cit., págs 147 e 148). Por outro lado, importa não esquecer que foi dada uma oportunidade ao réu para proceder à apresentação de contas e que o mesmo optou por não o fazer com a justificação de que as contas pretendidas não eram devidas nos termos peticionados. E por isso, ao ter actuado como actuou, se sujeitou à apresentação de contas pela autora, a qual, com as limitações próprias de quem não tem o domínio da coisa administrada, apresentou as contas com os documentos de que dispunha. Improcede, também, nesta parte, o recurso. Dos juros devidos sobre o saldo credor apurado nos autos. Neste âmbito, considera o recorrente que os juros considerados em sede de prestação de contas não são devidos, devendo, por esse motivo, o montante correspondente aos juros apurados ser deduzido do saldo credor apurado nos autos. Como consta do disposto no art. 943º do CPC, “o réu não é admitido a contestar as contas apresentadas, que são julgadas segundo o prudente arbítrio do julgador, depois de obtidas as informações e feitas as averiguações convenientes, podendo ser incumbida pessoa idónea de dar parecer sobre todas ou parte das verbas inscritas pelo autor”. O que resulta da norma é, pois, que o réu não pode contestar as receitas e despesas indicadas pelo autor. A obrigação de juros é matéria que não se reconduz a qualquer receita ou despesa que tenha resultado da administração do réu, competindo ao juiz determinar se e em que medida são devidos juros e, na afirmativa, qual a taxa a considerar. Daí que tal questão não se mostre precludida pelo facto de o réu não ter apresentado as contas dentro do prazo devido ou por não as ter contestado, podendo tal matéria (de direito) ser conhecida pelo tribunal, como acabou por ser conhecida pelo Tribunal da Relação. Ora, das contas apresentadas resulta que sobre a quantia apurada a título de receitas foram contabilizados juros mensais, calculados de acordo com taxas de juro distintas, desde a data de recebimento de tais receitas até à data da prestação de contas (30.07.2014). Em acórdão de 8.11.2018, proc. nº 92/04.3TBNIS.E3.S1 (não publicado nas bases de dados), o Supremo teve oportunidade de se pronunciar sobre a matéria atinente à contagem de juros no âmbito das acções de prestação de contas, tendo concluído que “antes do apuramento do saldo em sede de prestação de contas não existe qualquer obrigação pecuniária a cargo de quem é obrigado a prestá-las, não havendo lugar à contagem de juros antes da data do apuramento desse saldo.” Não podemos deixar de acompanhar este entendimento. Com efeito, a prestação de contas visa o apuramento das receitas obtidas e despesas realizadas num determinado período, sendo que apenas será reconhecido um direito de crédito caso seja apurado um saldo positivo, pelo que antes do apuramento desse saldo positivo não existe qualquer obrigação pecuniária que deva ser cumprida. Como salientam Maria da Graça Trigo e Mariana Nunes Martins, no Comentário ao Código Civil, UCP, 2021, a pág.1125 “A mora do devedor dogmaticamente concebe-se, portanto, como um ilícito obrigacional que, nos termos gerais, se presume culposo, logo, atribuível ao devedor, competindo a este último produzir prova com vista a demonstrar que a falta de cumprimento da obrigação não procede de culpa sua”. A existência de mora pressupõe, pois, o incumprimento de uma obrigação que, no caso, não existe até ao momento do apuramento de um saldo credor, havendo sempre que contar com a possibilidade de não vir a apurar-se um saldo credor mas um saldo devedor em prejuízo do interessado na prestação de contas. Assim, até ao momento do apuramento de um saldo credor não existe qualquer mora que possa justificar uma contagem de juros, sendo que estes apenas serão de contabilizar após o apuramento do saldo credor que ocorre aquando da prestação de contas (cfr. art. 806º, nº 1, do CC). Por outro lado, de acordo com o relatório apresentado nos autos com o requerimento de 30.7.2014, consta que: “Quanto ao apuramento dos juros de mora, os cálculos foram efectuados, com base nas seguintes taxas: i. No período de 01-05-1991 a 31-12-1993, considerou-se a taxa única de 19,5% determinada com base na taxa máxima para operações activas, definida nos termos do nº3 do Aviso do Banco de Portugal, datado de 17-03-1989 – 17,5% - acrescida de uma sobretaxa de 2% de acordo com o disposto no artigo 7º, nº1, alínea b), do Decreto Lei 344/78 de 17/11 (Doc.6). ii. Para o cálculo dos juros de mora no período de 01-01-1994 a 16-09-1999, as taxas que constam do documento nº 7 em anexo. iii. Para o período de 17-09-1999 a 30-06-2012, as taxas constam do documento nº8 em anexo. iii. Para o período de 01/07/2012 a 30/06/2014, as taxas constam do documento nº9. Considerou-se que, para determinação dos juros de mora (Mapa IV), “o prazo se inicia no primeiro dia do mês seguinte à entrega da modelo 3 do IRS, ou seja, a partir do dia 1 de Maio de cada ano, dado que as tornas deveriam ser pagas no último dia do mês de Abril.” Ora, afigura-se-nos que não existe fundamento legal para considerar aplicável aos autos a taxa máxima para operações activas, uma vez que não está em causa qualquer operação entre um banco e um cliente e muito menos a obtenção de financiamento por parte do réu em relação à autora. Encontrando-nos perante duas pessoas singulares, cremos que serão de aplicar as taxas de juros legais a contar desde o momento do apuramento do saldo credor (30.7.2014 – data da apresentação de contas) até efectivo e integral pagamento (cfr. art. 806º, nºs 1 e 2, do CC). Do pagamento de pensão de alimentos e da necessidade de dedução das quantias pagas a esse título. Sustenta o recorrente que o valor pago a título de alimentos deve ser considerado uma antecipação de pagamento das quantias devidas pelo réu à autora e que, por esse motivo, tal montante deve ser deduzido ao saldo credor apurado. Sobre esta matéria, o Tribunal da Relação deixou escrito que “nada se prende com o objecto legal da prestação de contas, constituindo obrigação que se funda no princípio da recíproca solidariedade pós-conjugal, induzido pela anterior comunhão plena de vida e justificado pelo desequilíbrio que a rutura dessa comunhão possa provocar nas condições de vida de um dos ex-cônjuges em relação ao outro”. Estamos de acordo. Efectivamente, até ao momento do apuramento de um saldo credor inexiste qualquer obrigação que se possa ter por antecipadamente cumprida. Assim, a pretensão de considerar o pagamento da pensão de alimentos como uma antecipação de pagamento do saldo credor que veio a ser apurado em benefício da autora não colhe pelo simples facto de que inexistia até 30.7.2014 qualquer pagamento a realizar, que pudesse, porventura, ser antecipado. A eventual desnecessidade de alimentos decorrente do pagamento do saldo credor apurado é matéria a analisar em sede própria, não podendo, ao contrário do que pretende o recorrente, o pagamento de uma pensão de alimentos ser considerado como antecipação do pagamento de um crédito que apenas veio a ser apurado posteriormente e que assenta em pressupostos completamente distintos. Por outro lado, e independentemente deste entendimento, deve assinalar-se que resulta dos autos que o montante da pensão acabou por ser deduzido ao montante a liquidar a título de tornas. Com efeito, no relatório apresentado nos autos a 14.6.2017 deixou-se expresso que “nos valores apresentados, foi descontado o valor de pensão paga pelo réu à autora, conforme indicado nas declarações de rendimentos modelo 3 de IRS, que foram disponibilizadas”, tendo sido apurado um saldo de € 1 529 223,95, saldo cujo pagamento foi determinado por sentença. Este valor não deveria ter sido, como vimos, deduzido do montante a liquidar pelo réu à autora. Sucede que, não tendo a autora reagido contra a decisão da 1.ª instância, mediante a interposição de recurso de apelação autónomo, não pode o Supremo ir além do decidido em 1.ª instância, pois que tal configuraria uma situação de reformatio in pejus, vedada pelo disposto no art. 635º, nº 4, do CPC (cfr. Ac. STJ de 3.3.2021, proc nº 1310/11.7TBALQ.L2.S1 disponível in www.dgsi.pt). De facto, determinar agora a desconsideração dos montantes pagos a título de alimentos pelo réu afigura-se mais desfavorável ao réu do que a já considerada subtracção de tais quantias ao saldo apurado. Em qualquer caso, deve julgar-se improcedente pretensão do réu. Pelo exposto, acordam os Juízes desta Secção Cível em conceder parcialmente a revista e determinar a contabilização dos juros de mora à taxa legal (juros civis) desde a data do apuramento do saldo credor (30.7.2014) até efectivo e integral pagamento. Custas na proporção de ¾ para a recorrente e ¼ para a recorrida. * Lisboa, 25 de Março de 2025 António Magalhães (Relator) António Domingos Pires Robalo Maria Clara Sottomayor |