Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3424/16.8T8CSC.L1.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: PEDRO DE LIMA GONÇALVES
Descritores: TRIBUNAL DA RELAÇÃO
MATÉRIA DE FACTO
REAPRECIAÇÃO DA PROVA
ÓNUS DA PROVA
FACTOS CONSTITUTIVOS
FACTO NEGATIVO
PREENCHIMENTO ABUSIVO
CHEQUE
CONTRATO DE MÚTUO
INEXISTÊNCIA DO NEGÓCIO
Data do Acordão: 03/09/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULAGO
Sumário :
I. Numa situação como a dos presentes autos, perante os poderes que o artigo 662.º do Código de Processo Civil lhe concede, não podia o Tribunal da Relação deixar de intervir, no que concerne ao facto discutido, porquanto o mesmo se mostrava dubitativo e os factos provados não podem ser dubitativos;

II. Na reapreciação feita pelo Tribunal da Relação este efetuou uma conjugação dos diversos factos provados, com os elementos de prova existentes nos autos, em obediência à lei.

III. O n.º2 do artigo 342.º do Código Civil não prevê uma inversão do ónus da prova quando esteja em causa a prova de factos negativos.

IV. In casu, tendo a A. alegado como factos constitutivos do direito que invoca, o preenchimento abusivo do cheque e a não existência de um contrato de mútuo (facto negativo),  que não conseguiu provar, não poderia a acção proceder.

V. Mesmo no âmbito do enriquecimento sem causa, que tem carácter subsidiário, competiria ao pretenso empobrecido o ónus de alegação e prova da falta da causa justificativa do enriquecimento.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:           


I. Relatório

1. AA, na qualidade de cabeça de casal da herança aberta pela morte de sua mãe, BB, propôs ação declarativa de condenação sob a forma de processo comum contra CC, pedindo que o Tribunal declare como fazendo para da herança a partilhar o montante de €115 000,00 sacados da conta da autora da herança através do cheque nº .....80 da conta nº ........92 do Millennium BCP, ser o pretenso contrato de mútuo declarado nulo nos termos e para os efeitos dos artigos 1143º, 364º, nº 1 e 220º do Código Civil Português e ser o Réu condenado a restituir à herança o montante de €115 000,00 (cento e quinze mil euros), nos termos e para os efeitos do artigo 299º, 1, do Código Civil Português.

Alegou, em síntese, que foi descontado/pago da conta da sua mãe, na Agência de ......, um cheque com o n.º .....80 no valor de € 115.000,00, decorridos cerca de 15 dias após a sua morte, supostamente passado pela sua mãe ao outro herdeiro, CC, ora Réu. Essa quantia deve ser devolvida à herança, pois não há motivo que justifique tal transferência.

2. Citado o Réu veio contestar, defendendo-se por exceção, invocando a incompetência internacional dos tribunais portugueses e a ineptidão da petição inicial, e por impugnação, impugnando os factos articulados pela Autora e referindo que emprestou a referida quantia à mãe para que esta fizesse face a despesas, numa altura em que não tinha dinheiro disponível.

3. Foi dispensada a realização da audiência prévia e foi proferido saneador onde se julgou improcedente as matérias das exceções e fixados os temas da prova.

4. Realizada a audiência de julgamento foi proferida a seguinte decisão:

“…o Tribunal, julgando a presente acção procedente, decide condenar o réu a restituir à massa da herança de BB, a quantia de €115 000 (cento e quinze mil euros)”.

5. Inconformado com esta decisão, o Réu interpôs recurso de apelação para o Tribunal da Relação de ......

6. O Tribunal da Relação de ..... veio a “julgar procedente a apelação, em consequência revogam a decisão recorrida que substituiu por estoutra que julga a acção improcedente por não provada, absolvendo-se o Réu do pedido.”

7. Inconformada com tal decisão, veio a Autora interpor o presente recurso de revista, formulando as seguintes (transcritas) conclusões:

1.ª A ora Recorrente propôs contra o ora Recorrido acção declarativa tendo em vista que o Tribunal declarasse como fazendo parte da herança da falecida mãe de ambos o montante de € 115.000,00 (cento e quinze mil euros), e condenasse o Réu à respectiva restituição;

2.ª Isto porque veio a Autora a ter conhecimento de que o Recorrido havia descontado da conta da sua mãe o referido montante através de cheque, decorridos quinze dias da morte da de cujus, tendo o Réu em sede de procedimento cautelar anterior à presente acção alegado que tal cheque serviria para pagamento de um alegado mútuo, tendo o Réu junto um suposto “recibo de empréstimo” que foi devidamente impugnado por conter rasuras;

3.ª Razão pela qual a Autora na sua Petição Inicial peticionou que o mútuo fosse declarado nulo e o montante de € 115.000,00 (cento e quinze mil euros) fosse consequentemente reintegrado na massa da herança;

4.ª Nos referidos autos ficou provado à saciedade que foi o Réu quem preencheu o cheque e que não existia qualquer contrato de mútuo que justificasse tal movimentação;

5.ª O Tribunal de 1ª Instância, face a toda a prova produzida, julgou procedente a acção intentada pela Autora, condenando o Réu ora Recorrido a restituir à massa da herança de BB, a quantia de € 115.000,00 (cento e quinze mil euros).

6.ª Porém, veio o Réu recorrer para o Tribunal da Relação de ...... que julgou procedente o Recurso interposto.

7.ª Contudo, e salvo o devido respeito, não pode a ora Recorrente conformar-se com o douto Acórdão que faz uma errada aplicação das normas de Direito, e acima de tudo é injusto no que respeita à verdade material dos factos apurados em sede de julgamento, senão vejamos

8.ª Ao contrário do que resulta do douto Acórdão a respeito do ónus da prova, a Autora, ora Recorrente alegou os factos, juntou as provas que tinha em sua posse, produziu prova testemunhal e requereu ao Tribunal que ordenasse ao réu que juntasse o original do contrato de mútuo, os comprovativos dos levantamentos de dinheiro que supostamente teria entregue à sua mãe, o original do alegado recibo de empréstimo e que ordenasse perícia para apurar a veracidade das assinaturas apostas e a autenticidade dos documentos juntos pelo Réu;

9.ª Sendo certo que, nem o Réu juntou aos autos tais documentos, nem o Tribunal de 1ª Instância deferiu a realização de perícia;

10.ª O nº2 do art. 342.º do Código Civil prevê expressamente uma inversão do ónus da prova quando esteja em causa a prova de factos negativos;

11.ª E, tendo sido o Réu a juntar em sede de Procedimento Cautelar e nos presentes autos um “recibo de empréstimo”, como poderia a Autora provar que a sua mãe nunca celebrou um contrato de mútuo com o Réu ora Recorrido?!

12.ª Ao invés, cabia ao Réu provar que efectivamente tal contrato por si alegado foi efectivamente celebrado, que entregou o montante de € 115.000,00 (cento e quinze mil euros) à de cujus e que o cheque em causa no caso sub judice que o Réu preencheu e depositou na sua conta, havia sido emitido e assinado pela sua mãe para pagamento do alegado empréstimo;

13.ª Ainda que não conste do elenco de factos considerados como provados, resultou provado à saciedade que a de cujus nunca teve problemas financeiros, e que era ela quem emprestava dinheiro aos filhos e não o contrário, sendo ainda absolutamente inverosímil que uma senhora transmontana de 83 anos que levava uma vida comedida no Brasil, que como é facto notório tem das maiores taxas de criminalidade do mundo, pedisse € 115.000,00 (cento e quinze mil euros) em dinheiro (numerário) para fazer face a despesas correntes de 2 meses;

14.ª Como resulta da sentença do Tribunal de Primeira Instância o Réu não logrou provar de forma alguma “as circunstâncias concretas em que o cheque de 115.000,00 (cento e quinze mil euros) chegou à conta bancária do Réu, bem se havia fundamento para a existência de tal depósito.” (sublinhados nossos).

E que não se provou que o montante sacado da conta da mãe da autora e do réu, mediante cheque de € 115 000, tivesse correspondido ao pagamento de qualquer empréstimo que o réu tivesse efectuado àquela antes do seu decesso.” (sublinhados nossos).(…)

Resulta, contudo, da matéria de facto provada, que o réu viu integrar no seu património tal quantia, sem que tivesse conseguido fundamentar o motivo para tal evento.” (sublinhados nossos)

15.ª Não existindo contrato de mútuo, não teria cabimento analisar da respectiva nulidade, não merecendo por isso qualquer reparo a sentença de Primeira Instância ao considerar que tal situação configura um claro enriquecimento sem causa, previsto no art. 473.º, n.º1 e 2 do Código Civil;

16.ª Sendo certo que, ainda que assim não fosse o que apenas por mera cautela de patrocínio se equaciona sem contudo conceder, se efectivamente por absurdo os factos dados como provados pudessem configurar a existência de um contrato de mútuo, este suposto contrato sempre teria de ser declarado nulo, nos termos e para os efeitos dos artigos 1143.º e 364.º, n.º1 do Código Civil;

17.ª O Tribunal da Relação veio ainda alterar a redacção da alínea h) dos factos considerados como provados, o que salvo o devido respeito, constituiu excesso de pronúncia, nos termos e para os efeitos do art. 635.º do Código de Processo Civil;

18.ª O pedido de alteração da referida redacção não consta nem das alegações, nem das conclusões do Réu ora Recorrido, nem tão pouco se trata de uma questão de conhecimento oficioso, tratando-se por isso de matéria já transitada em julgado, pelo que não poderia o douto Tribunal da Relação ter-se pronunciado a respeito da mesma;

19.ª Face ao exposto, tendo ocorrido excesso de pronúncia por parte do Tribunal ad quem, estamos perante uma causa de nulidade do Acórdão, nos termos e para os efeitos dos arts. 666.º e 615.º, n.º1, alínea d) in fine do Código de Processo Civil.

20.ª Por sua vez, entendeu ainda o Tribunal da Relação que o Tribunal de Primeira Instância não poderia ter aplicado o instituto do enriquecimento sem causa uma vez que não se encontra demonstrada que na origem da emissão e do desconto do cheque esteja qualquer actuação do Réu, entendimento com o qual a Recorrente não se poderá conformar;

21.ª O Réu juntou em sede de procedimento cautelar devidamente identificado nos autos um alegado recibo que constituía uma certificação de fotocópia feita em Portugal de uma certificação de fotocópia feita em São Paulo datada de 07.11.2013 e depois na acção principal um novo recibo com a assinatura reconhecida por semelhança em 09.07.2016, ou seja, 4 anos depois da morte da de cujus;

22.ª Sendo que, como se chamou à atenção do Tribunal de Primeira Instância se tratavam de dois documentos diferentes, bastando sobrepô-los para aferir das diferenças, documentos esses não legalizados no Consulado e rasurados;

23.ª E, tendo a Autora requerido que o Réu o viesse juntar aos autos nos termos e para os efeitos do art. 429.º do Código de Processo Civil, o Réu nunca o fez.

24.ª A Autora provou efectivamente que não só o Réu enriqueceu à custa da massa da herança, como também que o Réu o fez sem qualquer causa demonstrativa;

25.ª O douto Tribunal de Primeira Instância, face a toda a prova produzida, formou e bem a convicção de que não existiu qualquer contrato de mútuo, nem qualquer outra justificação para que o Réu se fizesse pagar do montante de € 115.000,00 (cento e quinze mil euros), pelo que não merece qualquer reparo a sentença do referido Tribunal que condenou ao Réu ora Recorrido a restituir à massa da herança tal montante, por ser esta a única decisão compatível com a mais elementar justiça.

26.ª No entanto ainda que assim não se entendesse o que apenas por mera cautela de patrocínio se equaciona sem contudo conceder, mais uma vez, e salvo o devido respeito, houve excesso de pronúncia por parte do Tribunal da Relação uma vez que nas alegações do Recorrente e nas suas conclusões não consta qualquer menção ao instituto do enriquecimento sem causa ou à sua inaplicabilidade.

27.ª Pelo contrário, o Réu limitou-se a arguir a nulidade da sentença, nos termos e para os efeitos do art. 615.º, n.º1 b) e c) do Código de Processo Civil, pelo que, e tendo ocorrido excesso de pronúncia do Tribunal ad quem, estamos perante uma causa de nulidade do Acórdão, nos termos e para os efeitos do art. 666.º e 615.º, n.º1, alínea d) in fine do Código de Processo Civil.

28.ª Por último, refere o douto Tribunal da Relação o disposto no art. 33.º da LUCH, porém o que está em causa não é a extinção dos efeitos do cheque. O que está em causa é o facto de o Réu ter preenchido um cheque cuja assinatura foi devidamente impugnada, e ter-se feito pagar do montante de € 115.000,00 (cento e quinze mil euros) quinze dias depois da morte da sua mãe, alegando para o efeito que lhe havia feito um empréstimo nesse montante em numerário que o Tribunal de Primeira instância considerou e bem nunca ter existido, pelo que condenou ao Réu a restituição à massa da herança, com o que se fez justiça.

E conclui pela procedência do recurso.

8. O Réu contra-alegou, pugnando pelo infundado da revista, e concluindo pela improcedência do recurso.

9. Cumpre apreciar e decidir.

II Delimitação do objeto do recurso

Como é jurisprudência sedimentada, e em conformidade com o disposto nos artigos 635º, nº 4, e 639º, nºs 1 e 2, ambos do Código de Processo Civil, o objeto do recurso é delimitado em função das conclusões formuladas pelo recorrente, pelo que, dentro dos preditos parâmetros, da leitura das conclusões recursórias formuladas pela A. / ora Recorrente decorre que o objeto do presente recurso está circunscrito às questões de saber:

- da nulidade do Acórdão, por excesso de pronúncia;

- reapreciação da matéria de facto pela Relação;

- enriquecimento sem causa.


 III. Fundamentação

1. As instâncias deram como provados os seguintes factos:

1.1. A Autora e o seu irmão, CC, ora Réu, são os únicos filhos de BB, que morreu no estado de viúva e intestada.

1.2. A Autora é cabeça de casal da herança aberta pela morte da sua mãe BB.

1.3. Entre as partes supra identificadas corre seus termos processo de inventário com o n.º 2059/........... no Cartório Notarial de ...... do Sr. Dr. DD.

1.4. No âmbito do processo de inventário veio o ora Réu requerer nos termos do artº. 16.º, n.º3 do RJPI, a remessa para os meios judiciais comuns da questão suscitada quanto ao montante de € 115.000,00, sacado da conta bancária da inventariada, BB, a favor do interessado CC, ora Réu, e a prossecução do processo de inventário com vista à partilha.

1.5. Por despacho datado de 27.09.2016, depositado na plataforma www.inventarios.pt sob o número ....284, foi determinado o deferimento da pretensão do interessado, prosseguindo o processo de inventário sem a verba reclamada até que haja decisão definitiva sobre a questão suscitada pela Autora acima devidamente identificada.

1.6. No dia 03 de Dezembro de 2012, a mãe da Autora e do Réu, já supra identificada, entrou em coma, tendo vindo a falecer 3 dias depois (06 de Dezembro de 2013).

1.7. A de cujus era titular de uma conta com o n.º ........92 e de várias aplicações financeiras junto do Millenium BCP, na agência sita na Rua ......................, N.º.., ....-... .......

1.8. Foi descontado/pago da conta da sua mãe, na Agência de ......, um cheque com o n.º .....83480 no valor de € 115.000,00, decorridos cerca de 15 dias após a sua morte, onde consta no lugar do sacado uma assinatura manuscrita com o nome de BB mãe do e como beneficiário, também manuscrito, CC, ora Réu (alterado pelo Tribunal da Relação de ......)

1.9. A Autora apresentou queixa-crime contra CC que correu termos na 3ª Secção de Processos dos Serviços do Ministério Público de ...... com o n.º 2861/13......, cujos autos foram arquivados em 23.03.2017.

1.10. BB tinha dinheiro aplicado em depósitos a prazo, um deles venceu-se e foi parar à conta corrente, sendo que o outro foi automaticamente renovado.

1.11. O vencimento do depósito a prazo que não foi automaticamente renovado foi no valor de € 120.000,00, no dia 03 de Dezembro de 2012.

1.12. Entre as partes correu ainda seus termos uma Providência Cautelar para conservação dos bens da herança com o Proc. N.º 3645/14.............., na … Unidade Local Cível do Núcleo de ......, Tribunal Judicial da Comarca de ..............

1.13. Em Novembro de 2012, BB estava em Portugal.

1.14. As sociedades Petrópolis Paulista Participações, Ldª e Águas Petrópolis Paulista, Ldª. no ano de 2012, não procederam à distribuição de dividendos.

1.15. A mãe da A. e R. deu uma viatura automóvel a um dos filhos da R.

1.16. O R. desempenha cargos nas sociedades Petrópolis Paulista Participações, Ldª e Águas Petrópolis Paulista, Ldª.

1.17. Bem como no Sindicato Nacional de Águas Minerais.

1.18. É .... da sociedade R & B, Rastreabilidade, SA.


2. E deram como não provados os seguintes factos:

2.1. No cheque referido em d) foi aposta data anterior.

2.2. BB tinha quase todo o seu dinheiro aplicado em depósitos a prazo.

2.3. O referido cheque referido em d) foi entregue ao Réu apenas assinado, com o restante preenchimento em branco para um qualquer pagamento e, depois da morte da sua mãe, o réu preencheu-o a seu favor, apesar de não estar autorizado a isso e com completo desconhecimento da sua irmã, ora A.

2.4. Devido a idade avançada de BB (mais de 80 anos), a mesma já deixava todos cheques assinados.

2.5. BB nunca tinha na sua posse dinheiro de elevado montante, pelo contrário, preferia fazer vários levantamentos de pequenos montantes, conforme as suas necessidades para não correr qualquer risco de furto ou roubo.

2.6. Em momento algum, BB necessitou de algum empréstimo dos filhos.

2.7. BB tinha disponíveis aproximadamente € 2.000.000,00 (dois milhões de euros) na sua conta do Brasil.

2.8. O Réu sempre dependeu financeiramente da sua mãe.

2.9. BB assinou o cheque nº ...........77, datado de 04.12.2012, no montante de € 7 500, emitido a favor de EE, escultor, para pagamento da criação e construção de um busto de CC, pai da A. e R..

2.10. O depósito a prazo de € 120 000 referido em l) não foi renovado por vontade da mãe da A. e R., porquanto tal montante se destinava ao pagamento do empréstimo contraído perante o R, bem como a dívida ao escultor, EE.

2.11. A mãe da A. e R. acordou com o R. e com o escultor EE que o pagamento dos cheques por si emitidos e entregues seriam apresentados a pagamento, apenas, após o vencimento da aplicação de €120 000.

2.12. E foi, no cumprimento de tal acordo, que o réu e o escultor EE procederam à apresentação dos cheques emitidos, anteriormente entregues pela mãe da A. e R., apenas no vencimento da referida aplicação.

2.13. A mãe da A. e R. tinha quase todos os seus activos em aplicações financeiras.

2.14. Sendo que, a mesma tinha como exclusiva fonte de rendimento, os lucros das sociedades Petrópolis Paulista Participações, Ldª e Águas Petrópolis Paulista, Ldª.

2.15. Foi por força da situação referida em o) que a mãe da A. e R. teve necessidade de solicitar ao R. o empréstimo de € 115 000.

2.16. Designadamente, para fazer face às despesas da sua deslocação a Portugal, e para fazer face às suas despesas no Brasil (alimentação, saúde e habitação) e no pagamento de uma viatura automóvel de um dos filhos da A..


3. Nulidade do Acórdão

A Recorrente refere que o Acórdão do Tribunal da Relação de ...... é nulo por excesso de pronúncia, nos termos do disposto na alínea d), in fine, do n.º1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil, em duas questões – a alteração da redação da alínea h) dos factos considerados provados (o atrás citado ponto 1.8. dos factos provados) e quando se pronuncia sobre o instituto do enriquecimento sem causa -, porquanto:

“17.ª O Tribunal da Relação veio ainda alterar a redacção da alínea h) dos factos considerados como provados, o que salvo o devido respeito, constituiu excesso de pronúncia, nos termos e para os efeitos do art. 635.º do Código de Processo Civil;

18.ª O pedido de alteração da referida redacção não consta nem das alegações, nem das conclusões do Réu ora Recorrido, nem tão pouco se trata de uma questão de conhecimento oficioso, tratando-se por isso de matéria já transitada em julgado, pelo que não poderia o douto Tribunal da Relação ter-se pronunciado a respeito da mesma;

19.ª Face ao exposto, tendo ocorrido excesso de pronúncia por parte do Tribunal ad quem, estamos perante uma causa de nulidade do Acórdão, nos termos e para os efeitos dos arts. 666.º e 615.º, n.º1, alínea d) in fine do Código de Processo Civil”.

E por: “26.ª No entanto ainda que assim não se entendesse o que apenas por mera cautela de patrocínio se equaciona sem contudo conceder, mais uma vez, e salvo o devido respeito, houve excesso de pronúncia por parte do Tribunal da Relação uma vez que nas alegações do Recorrente e nas suas conclusões não consta qualquer menção ao instituto do enriquecimento sem causa ou à sua inaplicabilidade.

27.ª Pelo contrário, o Réu limitou-se a arguir a nulidade da sentença, nos termos e para os efeitos do art. 615.º, n.º1 b) e c) do Código de Processo Civil, pelo que, e tendo ocorrido excesso de pronúncia do Tribunal ad quem, estamos perante uma causa de nulidade do Acórdão, nos termos e para os efeitos do art. 666.º e 615.º, n.º1, alínea d) in fine do Código de Processo Civil”.

Ora:

A violação das normas processuais que disciplinam, em geral e em particular (artigos 607º a 609º do Código de Processo Civil), a elaboração da sentença - do acórdão - (por força do nº 2 do artigo 663º), enquanto ato processual que é, consubstancia vício formal ou error in procedendo e pode importar, designadamente, alguma das nulidades típicas previstas nas diversas alíneas do nº 1 do artigo 615º do Código de Processo Civil (aplicáveis aos acórdãos ex vi nº 1 do artigo 666º do Código de Processo Civil).

No caso em presença, convoca a Recorrente, de forma expressa, a nulidade típica prevista na alínea d), parte final, do nº 1 do artigo 615º do Código de Processo Civil (excesso de pronúncia).

De harmonia com o disposto no artigo 608º, nº 1, do Código de Processo Civil, o juiz na sentença – Acórdão, por força do disposto no nº2 do artigo 663º do Código de Processo Civil – deve conhecer, em primeiro lugar, de todas as questões processuais (suscitadas pelas partes ou que sejam de conhecimento oficioso, e não se encontrem precludidas) que determinem a absolvição do réu da instância, segundo a ordem imposta pela sua precedência lógica.

Seguidamente, devem ser conhecidas as questões de mérito (pretensão ou pretensões do autor, pretensão reconvencional, pretensão do terceiro oponente e exceções perentórias), só podendo ocupar-se das questões que forem suscitadas pelas partes ou daquelas cujo conhecimento oficioso a lei permite ou impõe (como no caso das denominadas exceções impróprias), salvo se as considerar prejudicadas pela solução dada a outras questões, de acordo com o preceituado no nº 2 do mesmo artigo 608º.

Nesta linha, constituem questões, por exemplo, cada uma das causas de pedir múltiplas que servem de fundamento a uma mesma pretensão, ou cada uma das pretensões, sob cumulação, estribadas em causas de pedir autónomas, ou ainda cada uma das exceções dilatórias ou perentórias invocadas pela defesa ou que devam ser suscitadas oficiosamente.

Todavia, já não integram o conceito de questão, para os efeitos em análise, as situações em que o juiz porventura deixe de apreciar algum ou alguns dos argumentos aduzidos pelas partes no âmbito das questões suscitadas. Neste caso, o que ocorrerá será, quando muito, o vício de fundamentação medíocre ou insuficiente, qualificado como erro de julgamento, traduzido portanto numa questão de mérito.

E o excesso de pronúncia ocorre quando o juiz conheça de questões de que não podia tomar conhecimento, sendo, questões a conhecer, em sede de recurso, apenas as que o recorrente tenha suscitado nas conclusões das suas alegações recursivas, por força do disposto na parte final da alínea d) do nº 1 do artigo 615º do Código de Processo Civil (ex vi artigo 666º, nº1, do mesmo diploma) – cf., ainda, artigo 635.º do Código de Processo Civil.

Esta nulidade apenas incide sobre as questões colocadas pelas partes e não sobre os fundamentos que possam ou não ter sido invocados.

No caso concreto, não se verifica a nulidade arguida pela Recorrente.

Assim:

A Recorrente veio arguir a nulidade do Acórdão recorrido, por excesso de pronúncia, nos termos do disposto na parte final da alínea d) do n.º1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil, invocando duas situações em que terá ocorrido essa nulidade:

A primeira reporta-se à decisão do Tribunal da Relação de ...... à alteração da redação da alínea h) dos factos considerados provados (o atrás citado ponto 1.8. dos factos provados) e a segunda quando se pronuncia sobre o instituto do enriquecimento sem causa.

No entender da Recorrente, o Recorrido, no seu recurso de apelação, não se havia formulado qualquer pretensão sobre essas questões.

O Tribunal de Relação de ......., no seu Acórdão de 8/10/2020 (constante de fls.309/312 dos autos em papel), afirma que não foi cometida essa nulidade, pois o Recorrente havia suscitado a questão da reapreciação da matéria de facto, pretendendo que se alterasse a resposta de não provado relativamente aos factos indicados sob os pontos 15. e 16. (os atrás identificados sob os números 2.15. e 2.16.) e essa reapreciação estava relacionada com a referida alínea h) dos factos considerados provados (o atrás citado ponto 1.8. dos factos provados) e que, por outro lado, no que concerne ao instituto do enriquecimento sem causa, quer nas alegações do recurso de apelação quer nas contra-alegações apresentadas pela ora Recorrente se discutiu a questão da aplicabilidade do instituto do enriquecimento sem causa.

Da análise das alegações do Recorrente (ora Recorrido), no recurso de apelação, verifica-se que aquele suscitou a questão da reapreciação da matéria de facto e a questão da aplicação do instituto do enriquecimento sem causa.

Quanto à primeira questão, o Recorrente no recurso de apelação havia suscitado que os factos dados como não provados e indicados sob os pontos 9, 10, 11, 15 e 16 (atrás indicados como pontos 2.9, 2.10, 2.11, 2.15, 2.16) deveriam ser dados como provados, tendo fundamentado a sua pretensão.

Por outro lado, o Apelante suscitou a questão de ser “titular de um título de crédito – o cheque – que constitui título executivo, nos termos do artigo 703.º alínea c) do C.P.C.”, tendo a ora Recorrente, na sua resposta, referido que “Assim sendo, a douta sentença recorrida, deve ser mantida uma vez que e muito bem o Tribunal “a quo”, fazendo aplicação das mais elementares regras de direito julgou o Réu, ora recorrente viu integrar no seu património tal quantia, sem que tivesse conseguido fundamentar o motivo para tal evento.

Situação que configura um claro enriquecimento sem causa e previsto no artigo 473.º, n.ºs1 e 2 do Código Civil Português.” (conclusões: 21.ª e 22.ª da resposta às alegações apresentadas no recurso de apelação).

Deste modo, se verifica que o Tribunal da Relação de ....... tinha de se pronunciar sobre o instituto do enriquecimento sem causa que tinha sido o fundamento para a condenação do Réu no Tribunal de 1.ª instância, tendo o Apelante invocado que tinha uma causa para enriquecer e a Apelada (no seguimento do que havia decidido o Tribunal de 1.ª instância) que tinha havido um enriquecimento indevido do Apelante em detrimento da herança aberta por óbito da mãe do Apelante e da Apelada.           

Importa, ainda, referir que a pretensão da ora Recorrente que o STJ censure o Tribunal da Relação de ...... por este ter modificado a referida alínea h) dos factos considerados provados (o atrás citado ponto 1.8. dos factos provados) não configura uma nulidade tipificada no artigo 615.º do Código de Processo Civil, podendo, contudo, configurar uma nulidade processual e que se prende com o domínio do julgamento da matéria de facto, o que se apreciará adiante.

Pelo exposto, se concluiu que não se verifica a nulidade do Acórdão arguida pela Recorrente e prevista na parte final da alínea d) do n.º1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil (ex vi artigo 666.º do mesmo diploma legal).


4. Reapreciação da matéria de facto

Como se referiu o Apelante suscitou a questão da reapreciação da matéria de facto, pretendendo que o Tribunal da Relação de ....... passasse a considerar como provados os factos indicados sob os n.ºs 9, 10, 11, 15 e 16 (referidos atrás sob os pontos 2.9., 2.10., 2.11., 2.15., e 2.16.) dados como não provados pelo Tribunal de 1.ª instância.

O Tribunal da Relação de ......, reapreciando a matéria de facto, entendeu que a pretensão do Apelante (ora Recorrido) não podia proceder, mas alterou o facto referido na alínea h) dos factos considerados provados (o atrás citado ponto 1.8. dos factos provados).

Contra esta decisão se insurgiu a ora Recorrente, tendo afirmado que o Acórdão do Tribunal da Relação de ...... era nulo por excesso de pronúncia.

Sobre a questão da nulidade já nos pronunciamos anteriormente, mas importa verificar se ocorre qualquer outra nulidade que coloque em causa a decisão do Tribunal da Relação de .......


Consabido é que o Supremo Tribunal de Justiça, não "julga de facto" mas tão-só "de direito". Ou seja: por regra, o Supremo Tribunal de Justiça apenas conhece de matéria de direito (cf. artigo 46º da Lei de Organização do Sistema Judiciário, LOSJ, aprovada pela Lei nº 62/2013, de 24 de outubro).

Nessa conformidade:

- Em regra, ao Supremo Tribunal de Justiça, como tribunal de revista, compete somente a aplicação, em definitivo, do regime jurídico que julgue adequado aos factos materiais fixados pelo tribunal recorrido (cf. nº 1 do artigo 682º do Código de Processo Civil);

- À Relação comete-se o dever de modificar a decisão sobre a matéria de facto, sempre que os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa, dentro do quadro normativo e através do exercício dos poderes conferidos pelo artigo 662º do Código de Processo Civil.

- Assim, em caso de recurso com impugnação da decisão relativa à matéria de facto (nos termos do artigo 640º do Código de Processo Civil), em decorrência do que dispõe este nº 1 do artigo 662º do Código de Processo Civil, a Relação pode e deve formar e formular a sua própria convicção mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou daqueles que se mostrem acessíveis.

Ou seja, face a esta autonomia decisória, a Relação há-de formar a sua própria convicção, no gozo pleno do princípio da livre apreciação de provas, sem estar de modo algum limitada pela convicção que serviu de base à decisão recorrida.

 Por sua vez, o nº 2 do mesmo artigo 662º do Código de Processo Civil impõe o dever à Relação de, mesmo oficiosamente:

a) Ordenar a renovação da produção da prova quando houver dúvidas sérias sobre a credibilidade do depoente ou sobre o sentido do seu depoimento;

b) Ordenar, em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada, a produção de novos meios de prova;

c) Anular a decisão proferida na 1ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta;

 d) Determinar que, não estando devidamente fundamentada a decisão proferida sobre algum facto essencial para o julgamento da causa, o tribunal de 1ª instância a fundamente, tendo em conta os depoimentos gravados ou registados.

Todavia, excecionalmente, no recurso de revista, o Supremo Tribunal de Justiça:

 i) Pode corrigir qualquer "erro na apreciação das provas ou na fixação dos factos materiais da causa" se houver ofensa pelo tribunal recorrido de uma disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força probatória de determinado meio de prova (prova tarifada ou legal), nos termos das disposições conjugadas dos artigos 682º, nº 2, e 674º, nº 3, ambos do Código de Processo Civil;

 ii) Intervém na decisão sobre a matéria de facto, quando entenda que a decisão de facto pode e deve ser ampliada, em ordem a constituir base suficiente para a decisão de direito, nos termos do nº 3 do artigo 682º do Código de Processo Civil;

 iii) Tem intervenção na decisão sobre a matéria de facto se considerar que ocorrem contradições na decisão sobre a matéria de facto que inviabilizam a decisão jurídica do pleito, nos termos do referido nº 3 do artigo 682º do Código de Processo Civil.

Em síntese:

- Às instâncias compete apurar a factualidade relevante;

- Com carácter residual, a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça destina-se a averiguar da observância das regras de direito probatório material, a determinar a ampliação da matéria de facto ou o suprimento de contradições sobre a mesma existentes.

Contudo, o STJ, como vem sendo uniformemente decidido, pode censurar o mau uso que o tribunal da Relação tenha eventualmente feito dos seus poderes sobre a modificação da matéria de facto, nos termos do disposto nos artigos 640º, nºs 1 e 2, e 662º, nº1, do Código de Processo Civil, bem como pode verificar se foi violada ou feita aplicação errada da lei de processo (alínea b) do nº1 do artigo 674º do Código de Processo Civil).

Vejamos se o Tribunal da Relação de ....... fez um mau uso dos seus poderes sobre a modificação da matéria de facto.

O Tribunal de 1.ª instância considerou provado que:

Foi descontado/pago da conta da sua mãe, na Agência de ......, um cheque com o n.º.......80 no valor de €115.000,00, decorridos cerca de 15 dias após a sua morte, supostamente passado pela sua mãe ao outro herdeiro, CC, ora Réu

 (alínea h) dos factos provados constante da sentença).

O Tribunal da Relação de ...... veio alterar essa alínea dos factos provados e considerou, como provado, que “Foi descontado/pago da conta da sua mãe, na Agência de ......, um cheque com o n.º........80 no valor de €115.000,00, decorridos cerca de 15 dias após a sua morte, onde consta no lugar do sacado uma assinatura manuscrita com o nome de BB mãe do e como beneficiário, também manuscrito, CC, ora Réu.”

Como se referiu, a ora Recorrente insurge-se contra esta decisão do Tribunal da Relação, apontando a nulidade do Acórdão recorrido por excesso de pronúncia, pois o Apelante, ora Recorrido, não tinha suscitado a sua alteração.

Como se afirmou, não estamos em presença de uma nulidade tipificada no n.º1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil e, podemos, desde já, afirmar que não se pode censurar o uso que o Tribunal da Relação deu aos seus poderes de alteração/reapreciação da matéria de facto.

Ao contrário do que parece resultar do referido pela ora Recorrente, o Tribunal da Relação pode apreciar/alterar a matéria de facto quando esta apreciação/alteração é suscitada pelo Apelante, como tem poderes para proceder a essa modificação oficiosamente, como está expressamente previsto no artigo 662.º do Código de Processo Civil.

Assim, para além das decisões suscitadas pelo Apelante, “outras decisões podem revelar-se total ou parcialmente deficientes, obscuras ou contraditórias; resultante da falta de pronúncia sobre factos essenciais ou complementares, da sua natureza ininteligível, equívoca ou imprecisa ou reveladora de incongruências, de modo que conjugadamente se mostre impedido o estabelecimento de uma plataforma sólida para a integração jurídica do caso”

- Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2016, 3.ª edição, pp. 261/262 –

Ora, no caso dos presentes autos, perante os poderes que o artigo 662.º do Código de Processo Civil lhe concede, não podia o Tribunal da Relação deixar de intervir, no que concerne ao facto em causa, porquanto o mesmo se mostrava dubitativo e os factos provados não podem ser dubitativos; por outro lado, o Tribunal da Relação conjugou a reapreciação feita no âmbito da análise dos diversos factos provados e com os elementos de prova existentes nos autos.

Deste modo, também nesta questão, a Recorrente não tem razão.

A Recorrente refere, ainda, que o Tribunal da Relação de ....... violou o disposto no n.º 2 do artigo 342.º do Código Civil, referindo expressamente que “o n.º2 do art. 342.º do Código Civil prevê expressamente uma inversão do ónus da prova quando esteja em causa a prova de factos negativos; E, tendo sido o Réu a juntar em sede de Procedimento Cautelar e nos presentes autos “um recibo de empréstimo”, como poderia a Autora provar que a sua mãe nunca celebrou um contrato de mútuo com o Réu ora Recorrido?!”

Vejamos:

Prescreve o artigo 342.º do Código Civil que:

Àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado (n.º1).

A prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado compete àquele contra quem a invocação é feita (n.º2).

Em caso de dúvida, os factos devem ser considerados como constitutivos do direito (n.º3).

Desta disposição legal resulta que desde que se trate de factos constitutivos do direito invocado pelo A, quer esses factos sejam positivos, quer sejam negativos, é ao requerente que compete fazer a sua prova (artigo 342.º, n.º1, do Código Civil). Tratando-se de factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito do Autor, quer sejam positivos, quer sejam negativos é ao R que cabe fazer a prova da sua verificação (n.º2 do artigo 342.º do Código Civil)

- Antunes Varela, RLJ, Ano 116.º, pág. 341 –

Ou, como refere Pereira Coelho, este artigo não dá relevância à distinção entre factos positivos ou negativos na distribuição do ónus da prova, só podendo admitir-se que a natural dificuldade da prova de factos negativos torne aconselháveis menores exigências quanto à prova dos mesmos factos.

- RLJ, Ano 117.º, pág. 95 -

Assim, e ao contrário do que refere a Recorrente o n.º2 do artigo 342.º do Código Civil não prevê uma inversão do ónus da prova quando esteja em causa a prova de factos negativos, pelo que a sua pretensão não pode proceder.


5. O enriquecimento sem causa

O Tribunal de 1.ª instância julgou a ação procedente e condenou o Réu a restituir à massa da herança de BB a quantia de €115 000, com fundamento no instituto do enriquecimento sem causa (artigo 473.º do Código Civil), com este singelo fundamento: “ Em primeiro lugar cumpre referir que não se provou que o montante sacado da conta da mãe da autora e réu, mediante cheque de €115 000, tivesse correspondido ao pagamento de qualquer empréstimo que o réu tivesse efectuado àquela antes do seu decesso.

A ser assim, não há que analisar a validade do pretenso mútuo.

Resulta, contudo, da matéria de facto provada, que o réu viu integrar no seu património tal quantia, sem que tivesse conseguido fundamentar o motivo para tal evento.

Numa situação como esta há que admitir o funcionamento do instituto do enriquecimento sem causa.”

O Tribunal da Relação de ...... revogou esta decisão e julgou a ação improcedente, com o fundamento que o instituto de enriquecimento sem causa não era aplicável ao caso dos autos (a Autora não havia alegado, na petição inicial, o enriquecimento sem causa, e, sendo este subsidiário, havia uma causa) e com fundamento na emissão do cheque (“na medida em que a causa de pedir é o cheque n.º.....83480 no valor de 115 mil euros, o réu é titular desse crédito – o cheque – pagável à vista e que constitui título executivo nos termos do art.º 703/c do Código de Processo Civil”).

A Autora insurge-se contra esta posição do Tribunal da Relação de .......

Vejamos.

Prescreve o artigo 473.º do Código Civil que:

1. Aquele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou.

2. A obrigação de restituir, por enriquecimento sem causa, tem de modo especial por objeto o que for indevidamente recebido, ou o que for recebido por virtude de uma causa que deixou de existir ou em vista de um efeito que não se verificou.

Desta disposição legal resulta que o enriquecimento sem causa depende da verificação cumulativa dos seguintes requisitos: a) a existência de um enriquecimento; b) que este enriquecimento não tenha causa que o justifique; c) que ele seja obtido à custa do empobrecimento de quem pede a restituição; d) que não haja um outro ato jurídico entre o ato gerador do prejuízo e a vantagem obtida pelo enriquecido.

Por outro lado, nos termos do disposto no artigo 474.º do Código Civil, não há lugar à restituição por enriquecimento, quando a lei facultar ao empobrecido outro meio de ser indemnizado ou restituído, negar o direito à restituição ou atribuir outros efeitos ao enriquecimento.

Referem:

 Galvão Telles, Obrigações, 3.ª edição, p.136, com o carácter subsidiário o legislador quer dizer que, se alguém obtém um enriquecimento à custa de outrem, sem causa, mas a lei faculta ao empobrecido algum meio específico de desfazer a deslocação patrimonial, será esse meio que ele deverá recorrer, não se aplicando as normas dos artigos 473.º e segts.

Almeida Costa, Obrigações, 3.ª edição, p.337, é o geralmente conhecido princípio da subsidiariedade; segundo ele o empobrecido só poderá recorrer à ação de enriquecimento quando a lei não lhe faculte outro meio para cobrir os seus prejuízos.

Em primeiro lugar, importa referir que o Tribunal da Relação de ...... não tem razão quando afirma que o Tribunal de 1.ª instância decidiu julgar procedente a ação com fundamento no enriquecimento sem causa quando a Autora não havia invocado esse instituto na sua petição inicial, porquanto no artigo 28.º desta peça processual a Autora refere que “uma vez que o saque efectuado pelo Réu foi absolutamente ilícito, não podendo deixar de constituir, no mínimo, um enriquecimento sem causa” e no artigo 35.º dessa peça “Cumpre ainda ressaltar que a presente apropriação do valor, constitui no mínimo um verdadeiro enriquecimento sem causa, nos termos e para os efeitos do artigo 473.º, n.º1 do Código Civil, pelo que ainda assim deve o Réu restituir aquilo com que injustamente se locupletou”.

Assim, só se pode concluir que a Autora invocou o instituto do enriquecimento sem causa.

Contudo, o Tribunal da Relação de ....... tem razão quando afirma o carácter subsidiário do enriquecimento sem causa, reportando-se, concretamente, à emissão e ao desconto do cheque.

Assim, encontra-se provado nos autos que “Foi descontado/pago da contada sua mãe, na Agência de ......, um cheque com o n.º.....80 no valor de €115.000,00, decorridos cerca de 15 dias após a sua morte, onde consta no lugar do sacado uma assinatura manuscrita com o nome de BB mãe do e como beneficiário, também manuscrito, CC, ora Réu.”

Daqui resulta que a mãe da Autora e do Réu subscreveu o cheque identificado, sendo beneficiário o Réu, cheque esse que, apresentado a pagamento, foi pago.

O cheque constitui um meio de pagamento, sendo esta uma das suas funções, constituindo uma ordem escrita sobre um banco para que pague ao emitente ou à pessoa inscrita como beneficiário uma certa importância em dinheiro, com base em fundos para o efeito disponíveis.

Como refere Paulo Olavo Cunha, mas se o cheque é essencialmente uma ordem de pagamento dada a um banqueiro e é, classicamente, um título de crédito, o que significa… que é um documento necessário para exercer o direito literal e autónomo nele mencionado; é imprescindível para a constituição do direito, para o seu exercício e transferência. É um documento (título de crédito) que uma pessoa (o sacador) emite à sua ordem, à ordem de terceiro …ou do portador…, sendo a ordem de pagamento (incondicional) (art.1.º, n.º2 da LUCh) dada sobre uma instituição de crédito (banco sacado), na qual o sacador ou emitente tem constituído um depósito em dinheiro (provisão), ou dispõe de crédito (cfr. art. 3.º da LUCh).

… diríamos que o cheque é um título (à ordem ou ao portador) que incorpora o direito a uma prestação em dinheiro, a ser satisfeita por um banqueiro.”

- Cheque e Convenção de Cheque, págs. 91/92 -

Ora, “na realidade do comércio jurídico, a ordem de mobilização de fundos contida no cheque implicará normalmente, ao menos de forma tácita, a admissão da existência de um débito causal perante o respectivo titular, a saldar precisamente através da sua apresentação a pagamento; ou seja embora: a subscrição do cheque, não contenha uma expressamente verbalizada confissão de dívida ou promessa de pagamento do sacador…, constitui um facto que, com toda a probabilidade, revela a existência e admissão pelo devedor de uma obrigação causal subjacente à respectiva emissão…”

- Acórdão do STJ, de 21 de outubro de 2021, consultável em www.dgsi.pt

(No sentido, algo diferente do referido, de que “a emissão de um cheque não se limita a traduzir uma ordem de pagamento a um estabelecimento bancário a favor de um terceiro pois que constitui o reconhecimento de uma obrigação pecuniária em relação a esse terceiro” – cfr. Acórdão do STJ, de 15 de novembro de 2017, consultável em www.dgsi.pt -)

No caso presente:

A Autora alegou que o cheque alegadamente emitido a favor do Réu foi pelo mesmo preenchido;

Sem conceder, que o referido cheque tenha sido entregue ao Réu por título não translativo de propriedade, apenas assinado, com o restante preenchimento em branco para um qualquer pagamento, caso em que obviamente poderia o ora Réu preencher o restante elemento do cheque a seu favor, e depois da morte da sua mãe, a preenchê-lo a seu favor, apesar de não estar autorizado a isso e com completo desconhecimento da sua irmã e ora A.;

O Réu alegou, na oposição de um procedimento cautelar, que o cheque lhe teria sido entregue em 19 de novembro de 2012 para pagamento de um empréstimo por este efetuado à sua mãe em 29 de outubro de 2012, não configurando este documento qualquer contrato de mútuo.

Desta sua alegação, sendo os factos constitutivos do direito que invoca, nomeadamente o preenchimento abusivo do cheque e a não existência de um contrato de mútuo, a Autora nada conseguiu provar.

Como se referiu, àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado, quer esses factos sejam positivos quer sejam negativos (cfr. n.º1 do artigo 342.º do Código Civil.

Mesmo no âmbito do enriquecimento sem causa, compete ao pretenso empobrecido o ónus de alegação e prova da falta da causa justificativa do enriquecimento; ou, como se refere no Acórdão do STJ, de 25/11/2008, consultável em www.dgsi. Pt, “os requisitos do enriquecimento, quer por prestação, quer por intromissão abusiva no património alheio, quer por despesas efetuadas por outrem, quer por pagamento de dívida alheia ou desconsideração de património, devem ser alegados e provados pelo demandante, sendo que “in dúbio” a deslocação patrimonial é considerada com justa causa”.

Deste modo, não tendo a Autora efetuado a prova dos factos constitutivos do direito que invoca, como refere o Acórdão recorrido, a ação teria de improceder.

Por outro lado, encontra-se provado que foi emitido um cheque, com todos os requisitos essenciais constante do artigo 1.º da LUCh, e que o mesmo foi descontado/pago pelo Banco que recebeu a ordem do emitente e ao beneficiário (não constituindo, no caso presente, documento quirógrafo da dívida no valor nele mencionado, como parece resultar da argumentação do Tribunal da Relação de ......).

Assim, e com estes factos, sempre estaria afastado o enriquecimento sem causa, pois se provou uma causa de transferência da quantia reclamada pela Autora para o património do Réu.

Quanto ao citado artigo 33.º da LUCh no Acórdão recorrido, como refere a Recorrente, nenhuma relevância tem para o caso presente.


Deste modo, o recurso tem de improceder

IV. Decisão

Posto o que precede, acorda-se em negar a revista, e, consequentemente, em manter o Acórdão recorrido.

Custas pela Recorrente.


Lisboa, 9 de março de 2021


Pedro de Lima Gonçalves (relator)

Fátima Gomes           

Acácio das Neves


Nos termos do disposto no artigo 15.º-A do decreto – Lei n.º20/2020, de 1 de maio, declara-se que têm voto de conformidade dos Senhores Juízes Conselheiros Fátima Gomes e Acácio das Neves