Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
| Processo: |
| ||
| Nº Convencional: | 3.ª SECÇÃO | ||
| Relator: | JOSÉ CARRETO | ||
| Descritores: | ESCUSA UNIÃO DE FACTO RECURSO JUIZ | ||
| Data do Acordão: | 10/15/2025 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | ESCUSA/RECUSA | ||
| Decisão: | PROVIDO | ||
| Sumário : | I - Para que o Juiz possa ser escusado é necessário que a intervenção do juiz no processo e no caso concreto possa ser considerada suspeita, e que essa suspeita derive de existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade. II – Tendo o Mº Juiz e a sua companheira ( Procuradora do Mº Pº) intervenção no mesmo processo (um acusando e outro julgando), e vivendo em união de facto (como se de marido e mulher se tratasse há mais de 20 anos e com uma filha em comum), existe entre eles uma proximidade relacional e intima, a qual é suscetível de ser considerada suspeita e adequada a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do Sr Juiz, pelo que é de deferir o pedido de escusa | ||
| Decisão Texto Integral: |
Acordam, em conferência, os Juízes Conselheiros na 3ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça. No Proc. nº 100/24.1SMLSB.L1 a correr termos na 5.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, em que é arguido AA, veio o Mº Juiz Dr. BB, Juiz Desembargador na 5.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa apresentar pedido de escusa, para intervir nesses autos de recurso. Para o efeito alega que: “1. O processo de recurso 100/24.1SMLSB.L1 foi distribuído no dia 12.09.2025, sendo o Signatário sorteado para intervir como Relator. 2. O processo é proveniente do Juízo Central Criminal de Lisboa, J22. 3. Nesse processo, e no exercício das suas funções, teve intervenção em julgamento [cfr. actas de julgamento de 06.05.2025, 27.05.2025 data em que alegou e 24.06.2025, data da leitura] bem como na promoção de dia 26.05.2025, a Digna Procuradora da República CC, à qual coube a representação do Ministério Público. 4. O Signatário e a identificada Procuradora da República vivem em situação de união de facto há mais de vinte anos e têm uma filha em comum. 5. Entende o Signatário que tal situação constitui motivo sério e grave que justifica a potencial desconfiança quanto à sua imparcialidade…” O presente incidente foi instruído com certidão do processado Colhidos os vistos, procedeu-se à conferência, com observância do formalismo legal. Cumpre decidir. Com interesse para a decisão, em face do alegado e documentos juntos, há a considerar. - O processo de recurso nº 100/24.1SMLSB.L1 proveniente do Juízo Central Criminal de Lisboa, J22 foi distribuído ao Mº Juiz Desembargador requerente, como Relator. - Nele foi julgado o arguido AA e condenado pelos crimes de roubo e homicídio tentado - Nesse processo, e no exercício das suas funções, interveio em julgamento a Digna Procuradora da República CC, em representação do Mº Pº / parte acusadora, com quem o requerente vive em situação de união de facto há mais de vinte anos e têm uma filha em comum. + O incidente processual de escusa de juiz (tal como o de recusa), está previsto no art. 43º do CPP, nos termos do qual: “1. A intervenção de um juiz no processo pode ser recusada quando correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.(…) 4. O juiz não pode declarar-se voluntariamente suspeito, mas pode pedir ao tribunal competente que o escuse de intervir quando se verificarem as condições dos nº 1 e 2”, e assenta em princípios e direitos fundamentais das pessoas, próprios de um Estado de direito democrático, visando assegurar a imparcialidade dos tribunais, o que exige também garantias de independência e imparcialidade dos seus titulares - os juízes - cuja importância foi elevada à consagração internacional - cfr. os arts. 2º, 8º, 20º, 202º e 203º da CRP; art. 4º nº 2 da LOFTJ; artºs 4º, 5º e 6º do EMJ; art. 6º § 1 da CEDH; art. 10º da DUDH; art. 14º nº 1 PIDCP e do artº 47º da CDFEU - e as regras estabelecidas em vista dessas garantias emergem também do direito de acesso aos tribunais (artº 20º 1 CRP), e constituem, atenta a sua estrutura acusatória do processo penal (art. 32 nº 5 da CRP), um meio de impor e acautelar os princípios das garantias de defesa e do juiz natural (art. 32º nºs 1 e 9 CRP). É o dever constitucional e legal de imparcialidade e independência que determina o pedido de escusa do juiz, por impor no exercício das suas funções judiciais uma transparência total de que a publicidade da audiência ou a fundamentação dos atos são apenas uma parte das exigências, e que constitui a única maneira de administrar a justiça em nome do povo – artº 205º CRP, e de os cidadãos confiarem na justiça, e que constitui a razão de ser desta. Para que o Juiz possa ser escusado é necessário que a intervenção do juiz no processo e no caso concreto possa ser considerada suspeita, e que essa suspeita derive de existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade. O instituto da escusa visa “Mais do que garantir uma atuação dentro da legalidade, objetividade e independência, está em causa defender todo o sistema de justiça da suspeita de a não ter conservado, não dar azo a qualquer dúvida, reforçando por esta via a confiança da comunidade nas decisões dos seus magistrados, de acordo com a velha máxima inglesa not only must Justice be done; it must also be seen to be done (Jorge de Figueiredo Dias e Nuno Brandão, «Sujeitos Processuais Penais: o Tribunal», p. 12-13). Esta é uma exigência do processo justo e equitativo.1 Mas a lei não define tais conceitos abertos (motivo sério e grave), pelo que a situação deve ser ponderada caso a caso (já que no aspecto teórico não se suscitam divergência dignas de nota). Certo é que o motivo invocado: ter a sua companheira tido intervenção como parte acusadora no julgamento do arguido no processo em que este foi condenado e de que foi interposto recurso e que lhe foi distribuído como relator, deve ser avaliado segundo uma perspectiva de natureza subjectiva, traduzido na averiguação de saber se o juiz de algum modo manifestou ou tem motivo ou interesse pessoal no processo, e outro segundo uma perspectiva de natureza objectiva ou seja, saber se do ponto de vista da generalidade das pessoas, de um cidadão comum, de um homem médio conhecedor das circunstâncias do caso, tal situação cria uma desconfiança na imparcialidade e isenção do juiz. Quanto ao primeiro aspecto, o Mº Juiz não manifesta nenhum interesse no caso nem se vê que possa existir, e inexistindo uma relação pessoal com as partes no processo pelo que na perspectiva subjectiva não ocorre motivo para a escusa. Numa perspectiva objectiva, já existem razões para que ocorra uma qualquer desconfiança, pois o Mº Juiz e a sua companheira têm intervenção no mesmo processo (um acusando e outro julgando), e vivendo em união de facto (como se de marido e mulher se tratasse há mais de 20 anos e com uma filha em comum), existe entre eles uma proximidade relacional e intima, a qual é suscetível de ser considerada suspeita e adequada a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do Sr Juiz Desembargador que vai apreciar o recurso que o arguido interpôs. Afigura-se-nos por isso, que o motivo invocado pelo Sr. Juiz é sério e grave, e adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade, para a generalidade das pessoas que dessa relação tenham conhecimento, o que se impõe evitar, concedendo a escusa de intervenção nos autos em causa.2 + Pelo exposto o Supremo Tribunal de Justiça decide: Julgar procedente o presente incidente e em consequência defere o pedido de escusa do Mº Juiz Desembargador Dr. BB de intervir na apreciação do recurso interposto pelo arguido no proc. nº 100/24.1SMLSB.L1 que lhe fora distribuído, como relator. Sem custas. Notifique. Dn + Lx e STJ, 15/10/2025 José A. Vaz Carreto (relator) Maria da Graça Silva Maria Margarida Almeida __________
1. In ac. STJ 20/10/2022 proc 981/17.5PBMTS.P2-A.S1 www.dgsi.pt Cons. António Gama 2. Assim, ac. STJ 8/11/2023 proc. 77/19.5JBLSB.L1-A.S1 Cons. Maria do Carmo Silva Dias “… III. O facto de, neste caso, um dos Membros do Coletivo que vai decidir os recursos interpostos pelos ditos arguidos, ser companheiro (porque vive em união de facto) da Magistrada do Ministério Público que respondeu aos mesmos recursos, pugnando pela sua improcedência (além de ter participado no seu julgamento, enquanto representante do MP), iria gerar dúvidas sobre a forma como era administrada a justiça, principalmente se os mesmos viessem a ser no todo ou em parte julgados improcedentes. IV. Impõe-se, pois, salvaguardar o sistema de justiça e a forma isenta e imparcial como é administrada a justiça num Estado de direito e democrático, para que o cidadão médio continue a ter confiança nos tribunais. V. Com efeito, no plano das representações da comunidade, o que se expôs pode constituir um motivo sério e grave suscetível de gerar a desconfiança dos cidadãos quanto à imparcialidade da decisão que viesse a ser proferida e, nessa medida, iria criar desconfiança no sistema de Justiça, considerado como um todo, o que também põe em causa o próprio Estado de direito, justificando-se a concessão da escusa.” www.dgsi.pt |