Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
18476/16.2T8LSB.L1.S2
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: HENRIQUE ARAÚJO
Descritores: EXTINÇÃO DA INSTÂNCIA
INUTILIDADE SUPERVENIENTE DA LIDE
INSOLVÊNCIA
RESOLUÇÃO BANCÁRIA
RESPONSABILIDADE BANCÁRIA
INTERMEDIAÇÃO FINANCEIRA
REENVIO PREJUDICIAL
CARTA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DA UNIÃO EUROPEIA
DIREITO DE PROPRIEDADE
Data do Acordão: 09/07/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: PROCESSOS NÃO CLASSIFICADOS
Decisão: INDEFERIDO O PEDIDO DE REENVIO PREJUDICIAL E NEGADA A REVISTA.
Indicações Eventuais: TRANSITO EM JULGADO
Sumário :

Face à insolvência do Banco Espírito Santo (BES), é de declarar a extinção da instância, por inutilidade superveniente da lide, com base no artigo 227º, alínea e), do CPC, numa acção em que tal entidade vem demandada com fundamento em responsabilidade civil emergente de contrato de intermediação financeira.

Decisão Texto Integral:


      
                                   
PROC.  N.º 18476/16.2T8LSB.L1.S2
                6ª SECÇÃO CÍVEL
                REL. 122[1]

                                                                                              *

ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

I. RELATÓRIO

AA, BB e CC instauraram acção declarativa condenatória, em processo comum, contra o Banco Espírito Santo, S.A., o Banco de Portugal, o Novo Banco, S.A., o Fundo de Resolução, a CMVM – Comissão de Mercado de Valores Mobiliários, e DD, pedindo, a título principal, a condenação solidária dos réus no pagamento da quantia de € 2.448.533,00, acrescida de € 491.879,64 a título de juros vencidos e acrescida de juros de mora calculados desde a data de citação, por responsabilidade civil dos réus enquanto intermediários financeiros, e a título subsidiário a nulidade do contrato de intermediação financeira, com a consequente condenação solidária dos réus no pagamento da quantia de € 2.448.533,00, acrescida de € 491.879,64 a título de juros vencidos e acrescida de juros de mora calculados desde a data de citação. Pedem, em qualquer dos casos, a declaração de nulidade do contrato de mútuo bancário realizado entre autoras e 1o réu e que o réus sejam condenados a ressarcir solidariamente as autoras no montante correspondente ao valor de todas as quantias por estas pagas no âmbito daquele contrato e a apurar em sede de liquidação de sentença ou, caso assim não se entenda a declaração de anulabilidade do contrato de mútuo bancário realizado entre autoras e 1° réu por ocorrência de erro na declaração das autoras e o réus condenados a ressarcir solidariamente as autoras no montante correspondente ao valor de todas as quantias por estas pagas no âmbito daquele contrato e a apurar em sede de liquidação de sentença e, ainda, a titulo principal, a condenação dos réus a ressarcir solidariamente as autoras pelos danos não patrimoniais por estas sofridos.

Depois de apresentadas as contestações dos réus e de as autoras terem às mesmas respondido, foi proferido despacho saneador-sentença em que se decidiu:

Nestes termos, declara-se extinta a instância por inutilidade superveniente da lide, nos termos do art.° 277°, alínea e), do Cód. Proc. Civil, quanto à ré "Banco Espírito Santo, S.A. - Em Liquidação".
(...)
Pelo exposto, julga-se procedente a exceção dilatória de incompetência absoluta do Tribunal em razão da matéria e, em consequência absolve-se a ré "Comissão de Mercado de Valores Mobiliários" da instância.
(...)
Pelo exposto, julga-se procedente a exceção dilatória da incompetência absoluta do Tribunal em razão da matéria e, em consequência, absolve-se o réu "Fundo de Resolução" da instância.
(...)
Pelo exposto, julga-se procedente a exceção dilatória de incompetência absoluta do Tribunal em razão da matéria e, em consequência absolve-se o réu "Banco de Portugal" da instância.
(...)
Pelo exposto, julga-se a presente ação improcedente e, em consequência, absolvem-se as rés "Novo Banco, S.A." e DD de todos os pedidos formulados pelas autoras quer a título principal quer a título subsidiário.

As autoras interpuseram recurso de apelação, mas o Tribunal da Relação de Lisboa confirmou a decisão da 1ª instância, embora com um voto de vencido de um dos Ex.ºs Desembargadores, que entendeu que, de acordo com o disposto no artigo 92º do CPC, deveria a Relação ter conhecido do mérito da causa no concernente à invalidade das deliberações do Banco de Portugal.            

Continuando inconformadas, apresentaram as autoras recurso de revista excepcional.

A Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM) contra-alegou, suscitando como questão prévia a inadmissibilidade da revista excepcional e defendendo que o problema da competência material devia ser decidido no Tribunal de Conflitos.

O acórdão de Formação de fls. 1229 e seguintes fez distribuir o recurso como revista normal quanto à questão da (in)competência material e admitiu a revista excepcional “quanto ao mais”.

Em despacho de 5 de Maio de 2020, operou-se oficiosamente a convolação do requerimento recursivo para o STJ em requerimento recursivo para o Tribunal de Conflitos, no que concerne à questão da competência material, e ordenou-se a extracção de traslado para apreciação e decisão sobre a parte do recurso admitida como revista excepcional, confinada ao segmento do acórdão que confirmou a decisão da 1ª instância de julgar extinta a instância, por inutilidade superveniente da lide, quanto ao 1º Réu, Banco Espírito Santo, S.A.

É, portanto, esta a questão a decidir, caso seja indeferido o pedido de reenvio prejudicial para o TJUE também deduzido pelas recorrentes.

As conclusões da revista atinentes à matéria a apreciar são as seguintes:
1.       Vêm as presentes alegações de recurso interpostas do Douto Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, em 07/06/2018, que julgou improcedente a Apelação e, em consequência, manteve a decisão da Primeira Instância, quanto ao R. Banco Espírito Santo.
2.      Assim, não se conforma, o ora Recorrente, com o entendimento de direito que pugna pela confirmação da decisão de absolvição da instância do Réu, Banco Espírito Santo, S.A., (doravante apenas designado por BES) com fundamento na inutilidade superveniente da lide, por efeito da revogação pelo Banco Central Europeu, da autorização para o exercício da atividade bancária do BES, legalmente equiparada à declaração de insolvência, olvidando que se discutem outras questões de índole não patrimonial, e ainda, que até à presente data não foi decretada com efeito pleno.
3.      Bem como discorda a ora Recorrente, da interpretação feita pela Segunda Instância do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de Uniformização de Jurisprudência (AUJ) n° 1/2014, de 08.05.2013.
4.      Existindo outros Acórdãos das Relações, designadamente o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 29-01-2015, e o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 15-04-2013 (acórdãos fundamento), que apreciaram a mesma questão e julgaram em sentido contrário ao Acórdão em apreço, sem, contudo, entrar em contradição com o AUJ acima referido por se tratar de questão fundamental de direito diversa.
5.       Assim, entende o Recorrente, que o fundamento da presente Revista radica em erro de interpretação e aplicação da lei processual, concretamente, da alínea e) do artigo 277° do Código de Processo Civil, por duas ordens de razão:
6.       Em primeiro Lugar, porque o pedido da presente ação declarativa, não tem índole exclusivamente patrimonial, uma vez que o recorrente de entre outras questões, trouxe à colação a questão da nulidade do contrato de intermediação financeira, pedindo em consequência, a indemnização que por essa causa lhe entende ser devida.

7.      O Tribunal de primeira instância responsável pelo processo de insolvência do Réu, ora Recorrente BES, limitar-se-á a verificar e reconhecer créditos da insolvente, não lhe cabendo decidir sobre a constituição da obrigação de prestar.

8.      Resulta do Acórdão Fundamento do Tribunal da Relação de Évora de 29-01-2015, que:" Por causa da pendência do processo de insolvência não tem que ser julgada extinta uma ação que não visa a declaração de qualquer direito de crédito, mas em que se pede que sejam declarados nulos ou resolvidos os negócios jurídicos celebrados entre as partes, ou seja, em que só estão em causa efeitos reais inerentes à nulidade/resolução/anulação peticionados"

9.       E assim, discutindo-se a nulidade de negócios jurídicos celebrados entre as partes, a insolvência não determina a inutilidade superveniente da lide declarativa, ao contrário do decidido no Acórdão sub judice.

10.      Em segundo lugar, o despacho de prosseguimento nos termos do artigo 9° do Dl. 199/2006 aquele Tribunal de Primeira instância responsável pelo processo de liquidação judicial do Recorrido BES, não declarou aberto o incidente de qualificação da insolvência, e tal significa então, que ainda não é possível determinar se o património do devedor insolvente será suficiente para responder pelos créditos reclamados.

11.      Resulta do Acórdão Fundamental do Tribunal da Relação do Porto de 15-04-2013, que: "A declaração de insolvência do empregador, não conduz de imediato à inutilidade superveniente da lide da ação declarativa proposta pelo trabalhador, quando na sentença de declaração de insolvência foi declarado aberto o incidente de qualificação de insolvência com carácter limitado, e não veio a ser requerida a complementação da sentença.".

12.      Assim, não se encontrando aberto o incidente de qualificação da insolvência, não se poderá concluir pela imediata inutilidade superveniente da lide, e em consequência não será de absolver o Recorrente da instância declarativa, ao contrário do perfilhado no Acórdão em Recurso.

13.      Não está assim, em causa, a aplicação do entendimento sufragado no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência (AUJ) n° 1/2014 (publicado no DR 1a série, n° 39 de 25 de fevereiro de 2014) que serviu de base à decisão em apreço, já que o mesmo teve na base da sua construção, e substância, os casos em que seja "Certificado o trânsito em julgado da sentença declaratória e declarado aberto o incidente de qualificação da insolvência com caráter pleno e fixado o prazo para reclamação de créditos". E tal com o consta da proposta da Exma Procuradora Geral adjunta, transcrita naquele documento.

14.      Assim, ao declarar a inutilidade superveniente da lide, e em consequência absolver o recorrido BES da instância, quando se tratava de apreciar também, mas não só, a nulidade do negócio jurídico e não tendo sido ainda, aberto o incidente de qualificação da insolvência, violou o Acórdão em apreço, a lei processual vertida na alínea e) do artigo 277° do Código de Processo Civil.

15.       Tal demonstra no caso em apreço, a utilidade do prosseguimento da presente demanda para o autor, que poderá pela mesma obter título do seu direito de crédito invocado, e só assim se garantindo o acesso do mesmo à defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos (constitucionalmente protegidos - artigo 20° da C.R.P.)

16.      Encontram-se reunidos os pressupostos da Revista, designadamente, a relevância jurídica da questão, necessária para uma melhor aplicação do direito, revelando-se essencial determinar o sentido e o alcance com que deve ser interpretado e aplicado o disposto na alínea e) do artigo 277° do Código de Processo Civil, em situações de insolvência, e idênticas. O Tribuna! da Relação de Lisboa, já decidiu em sentido diverso, ordenando o prosseguimento dos autos para julgamento em 1a instância relativamente aos RR BES, Novo Banco e DD. (vejam-se os Acórdãos da 6a secção proferidos nos processos ns. 19125/16.4T8LSB.L1 de 11-01-2018, 18455/16.0T8SLB.L2 de 06-12-2017, 19541/16.1T8LSB, e ainda o Acórdão proferido pela 2a secção no processo n° 18595/16.5T8LSB11 de 01-02-2018) bem como a interpretação dada ao Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 1/2014 de 25 de fevereiro.

17.      Os interesses em causa são de particular relevância social, estando em causa a confiança no sistema bancário com todo o alarme social que os recentes acontecimentos têm causado.

18.      O Acórdão sindicado encontra-se em contradição com o Acórdão Fundamento proferido pelo Tribunal da Relação de Évora de 29/01/2015 porquanto decidiram diversamente a mesma questão de direito, a saber, num mesmo contexto jurídico ou situação equiparada, perante o pedido de declaração de nulidade de negócio jurídico, o Acórdão em apreço absolveu o recorrido BES, da instância, por inutilidade superveniente da lide, enquanto o Acórdão fundamento determinou o prosseguimento dos autos.

19.      No que respeita ao Acórdão Fundamento do Tribunal da Relação do Porto, de 15-04-             -2013, verifica-se um tratamento jurídico diferente dado à situação jurídica de abertura de incidente de qualificação da insolvência, defendendo este Acórdão Fundamento, que a declaração de insolvência não conduz de imediato à inutilidade superveniente da lide da ação declarativa, quando a abertura do incidente de qualificação da insolvência não tem caráter pleno, ao contrário do decidido no Acórdão recorrido.

20.     Ao decidir como decidiu, o Tribunal a quo, não só viola as regras do direito nacional, mas também viola as regras do direito comunitário, através da violação das normas constantes na Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais que foi transposta para a ordem jurídica portuguesa.

21.     A Convenção estabelece que os Estados são considerados responsáveis pelos atos das suas autoridades, que in casu sempre será o Banco de Portugal.

22.     Sendo que tais atos não têm de provocar apenas efeitos prejudiciais dentro do estado nacional mas também fora do seu território, sejam eles praticados dentro ou fora das fronteiras nacionais.

23.     Assim, segundo o disposto no artigo 1º do Protocolo n.º 1, com a denominação "Proteção da propriedade" "Qualquer pessoa singular ou coletiva tem o direito ao respeito dos seus bens (...)", pelo que o Autor entende também ser legítimo alegar a violação do artigo Io do Protocolo n.° 1, na medida em que as decisões contra as quais se insurge se reportam aos seus "bens" no sentido desta disposição.

24.     Incluindo-se nesses bens os créditos, por meio dos quais o requerente pode pretender ter, pelo menos, uma "expectativa legítima" de obter o gozo efetivo de um direito de propriedade.

25.     O reenvio é um instrumento de cooperação judiciária, previsto no art° 267° do Tratado de Funcionamento da União Europeia, pelo qual um juiz nacional e um juiz comunitário, são chamados no âmbito das suas competências, a contribuir para uma decisão que assegure a aplicação uniforme do Direito Comunitário nos estados membros". (Acórdão Schawrze, de 01/12/1965, proc. 16/65),

26.     Este instituto jurídico fomenta a cooperação ativa entre as jurisdições nacionais e o espaço europeu, concretizando, assim, aquele que é um dos princípios basilares da União - princípio da lealdade europeia, consagrado no art° 4o do TUE.

27.     Pela sua notoriedade, o recurso prejudicial dá um forte contributo para o contínuo processo de integração europeia.

28.     Num processo pendente em órgão jurisdicional nacional, cuja decisão admita recurso ordinário, (como é o presente caso), este é livre de pedir ao TJUE, que se pronuncie sobre ela, exceto se o juiz nacional se pronunciar sobre a invalidade de um ato europeu, porquanto a competência para declarar a invalidade de um ato de Direito da União Europeia, é exclusivo do TJUE, à luz, entre outros, do Acórdão Foto-Frost de 22-10-87 (Proc. 314/85), segundo o qual, sempre que a validade de um ato ou disposição de Direito derivada da União suscite dúvidas, qualquer tribunal ainda que não esteja a decidir em última instância, tem a obrigação de submeter essa questão da eventual invalidade ao TJUE (consagrando-se assim a obrigação de reenvio para declaração de invalidade de ato da União, que o juiz nacional pretenda inaplicar).

29.     Nos termos ora expostos, entendemos ter havido errónea interpretação das normas supramencionadas, bem com o a violação do disposto nos artigos 20°, 202° e 204° da Constituição da República Portuguesa, motivo pelo qual, deverá ser decidido o reenvio prejudicial, com a consequente suspensão da instância nos termos do disposto nos artigos 269° e 272° ambos do Código de Processo Civil.

30.     Pretendendo o recorrente através do recurso prejudicial, obter resposta à seguinte
questão:
A declarada inutilidade superveniente da lide em relação ao Banco BES, que impede a apreciação de factos que não são suscetíveis de serem apreciados noutra sede, maxime, a responsabilidade civil emergente de operações intermediárias financeiras. sem recurso ao princípio da imediação e sem uso cabal de todos os meios de defesa, não viola o principio do julgamento de forma justa e equitativa, conforme dispõe o artigo 47° da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia?

31.     Perante a declaração de inutilidade superveniente da lide, proferida pelo douto tribunal a quo, em relação ao R. BES, sem que se tivesse pronunciado pelo mérito da causa, incorreu o mesmo na violação de um direito constitucionalmente garantido que é o direito a um julgamento justo, previsto no art° 20° da C.R.P.

32.    Nos termos do art° 47° da Carta do Direitos Fundamentais da União Europeia, "toda a pessoa cujos direitos e liberdades garantidos pelo direito de União Europeia tenham sido violados, tem direito a uma ação perante um tribunal. Toda a pessoa tem direito a que a sua causa seja julgada de forma equitativa, publicamente e num prazo razoável, por um tribunal independente e imparcial, previamente estabelecido por lei. Toda a pessoa tem a possibilidade de se fazer aconselhar, defender e representar em juízo."

33.    Pelo quanto se encontra acima descrito, verificamos que a causa que originou o presente processo, não foi julgada de forma equitativa.

34.    Ficando prejudicada a apreciação dos factos que preenchem todos os elementos para condenação em ação de responsabilidade civil, contidos nos artigos 483° e seguintes do Código Civil.

35.    Constituindo a omissão de pronúncia, em relação às questões colocadas ao Tribunal a quo, verdadeira denegação de justiça!

                                                                       *

           

II. FUNDAMENTAÇÃO

OS FACTOS

Os factos que interessam à resolução da revista são os que se encontram acima relatados, aos quais acresce o seguinte:


- As Autoras são titulares de produtos financeiros, cuja aquisição foi efectuada nos balcões do "Banco Espírito Santo, S.A.", denominados "Es Financial Group, S.A.","Escom Mining Serie D" e "ES Fin 6,875%", "Escom Mining Inc", "Es Tourism (Europe)", "Es International, S.A.", "BES Finance Ltd", "NB Flnance Ltd" e "Es Tourísm", tendo aplicado a quantia de € 2.448.533,00 na aquisição dos mesmos.

O DIREITO

a) Do pedido de reenvio

Relativamente a esta questão, que precede, naturalmente, a discussão sobre a bondade da decisão que julgou extinta a instância por inutilidade superveniente da lide em relação ao Réu BES, servimo-nos, com a devida vénia, da fundamentação usada no acórdão desta mesma Secção, datado de 30.06.2020[2], relatado pela Ex.ª Conselheira Maria Olinda Garcia, ora 1ª adjunta, que se debruçou sobre uma situação com contormos completamente idênticos aos presentes.

“Alega o recorrente que o acórdão recorrido viola não apenas o direito interno, mas também o direito comunitário e, por isso, formula um pedido de reenvio prejudicial (com a inerente suspensão da instância) para o TUJE para que seja respondida a seguinte questão:

 A declarada inutilidade superveniente da lide em relação ao Banco BES, que impede a apreciação de factos que não são suscetíveis de serem apreciados noutra sede, maxime, a responsabilidade civil emergente de operações intermediárias financeiras, sem recurso ao princípio da imediação e sem uso cabal de todos os meios de defesa, não viola o princípio do julgamento de forma justa e equitativa, conforme dispõe o artigo 47° da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia?

O recorrente começa por afirmar (no ponto 20 das conclusões) que: «Ao decidir como decidiu, o Tribunal a quo, não só viola as regras do direito nacional, mas também viola as regras do direito comunitário, através da violação das normas constantes na Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais que foi transposta para a ordem jurídica portuguesa.»

E acrescenta que existiria violação do Protocolo Adicional n. 1 dessa Convenção, que protege o direito de propriedade.

Antes de mais, importa esclarecer as confusões que parecem emergir das alegações do recorrente. A Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, também designada como Convenção Europeia dos Direitos do Homem (estabelecida em 1950), complementada por vários Protocolos Adicionais, entre os quais o Protocolo n.1, que o recorrente invoca para sustentar a violação do seu direito de propriedade, nada tem a ver com o direito comunitário. Como é sobejamente sabido, a competência para apreciar a violação dos direitos fundamentais previstos neste instrumento internacional é da competência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, o qual só pode ser solicitado a conhecer de um assunto depois de esgotadas todas as vias de recurso internas, como se estabelece no art.35º dessa Convenção e nas regras do Regulamento desse tribunal (que aqui nos dispensamos de explicar).

Quanto à alegada violação do art.47º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, é manifesto, desde logo, que a pergunta formulada pelo recorrente não cabe no âmbito de aplicação desta Carta, nem a questão em análise nos presentes autos corresponderia a qualquer hipótese de aplicação daquela invocada norma.

Estabelece o art.47º da Carta:

(Direito à ação e a um tribunal imparcial)

- Toda a pessoa cujos direitos e liberdades garantidos pelo direito da União tenham sido violados tem direito a uma ação perante um tribunal.

-Toda a pessoa tem direito a que a sua causa seja julgada de forma equitativa, publicamente e num prazo razoável, por um tribunal independente e imparcial, previamente estabelecido por lei.

-Toda a pessoa tem a possibilidade de se fazer aconselhar, defender e representar em juízo. É concedida assistência judiciária a quem não disponha de recursos suficientes, na medida em que essa assistência seja necessária para garantir a efetividade do acesso à justiça»

Quanto ao âmbito de aplicação da Carta, estabelece o seu art.51º

(Âmbito de aplicação)

«- As disposições da presente Carta têm por destinatários as instituições e órgãos da União, na observância do princípio da subsidiariedade, bem como os Estados-Membros, apenas quando apliquem o direito da União. Assim sendo, devem respeitar os direitos, observar os princípios e promover a sua aplicação, de acordo com as respetivas competências.

- A presente Carta não cria quaisquer novas atribuições ou competências para a Comunidade ou para a União, nem modifica as atribuições e competências definidas nos Tratados.»

Se é certo que nem sempre é fácil delimitar o âmbito de aplicação da Carta, em termos concretos (como a jurisprudência e a doutrina têm afirmado), é manifesto que na questão sub judice nenhuma dúvida razoável se levanta quanto à total ausência dos pressupostos para a aplicação do art.47º da Carta e, consequentemente, de admissibilidade de reenvio prejudicial.

A concreta questão que o recorrente coloca não se inscreve num domínio típico de competência da União Europeia. Na essência, a pretensão do recorrente radica em entender que lhe deve ser facultada uma via processual, em vez de outra, para apreciação dos pressupostos da responsabilidade civil (e consequentes direitos de crédito) por violação de um contrato de intermediação financeira e, subsidiariamente, da nulidade desse contrato. Não se tratando, portanto, de uma matéria própria do direito da União Europeia, o Tribunal de Justiça não pode ser chamado a pronunciar-se, sendo irrelevante a invocação ou a interpretação que o recorrente faça das disposições da Carta.

No caso sub judice não existe ainda nenhuma decisão judicial que se pronuncie sobre direitos subjetivos do recorrente, nem que lhe negue o acesso a um tribunal.

Não está minimamente em causa a produção de uma decisão que pudesse lesar direitos e liberdades garantidos pelo direito da União, pelo que nunca se justificaria o reenvio prejudicial (com a inerente suspensão da instância) para que o TUJE pudesse dizer em que sentido o direito devia ser interpretado.

Nos termos do art. 267º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, o TUJE é competente para decidir a título prejudicial (para além da interpretação dos Tratados) sobre “a validade e a interpretação dos atos adotados pelas instituições, órgãos ou organismos da União”.  Colocando-se uma questão desta natureza perante um órgão jurisdicional, estabelece ainda essa norma que esse órgão tem a faculdade de convocar a pronúncia prejudicial do TUJE, se considerar que tal decisão (por envolver a aplicação de direito da União) é necessária ao julgamento da causa.

No caso concreto, o recorrente não coloca nenhuma questão nova cuja solução pudesse ter interesse para a harmonização da interpretação e aplicação do direito da União. Pelo contrário, trata-se de questão que respeita, essencialmente, à organização judiciária nacional, sem reflexo na ordenação definitiva dos direitos subjetivos, e sobre a qual existe já significativa jurisprudência (como se verá de seguida).

A este propósito, é pertinente citar o que se entendeu no Acórdão do STJ, de 18.12.2002, no processo n. 3956/02 (relator Moitinho de Almeida):

«(…) Não existe obrigação de reenvio quando se trate de questão de direito resolvida por jurisprudência constante do mesmo tribunal ou de questão de interpretação evidente para o juiz nacional, se este verificar que ela também o é para a jurisdição de outros Estados-membros e para o Tribunal de Justiça».

Nestes termos, não se demonstrando que a questão colocada respeite à interpretação ou validade de normas de direito da União, não se encontrando justificada a necessidade do seu prévio esclarecimento para a solução do litígio dos autos (e como melhor se compreenderá pela resposta que se dará à questão seguinte) indefere-se o pedido de reenvio prejudicial (com o inerente pedido de suspensão), por manifestamente infundado”.

Sendo total a concordância com esta apreciação, resta-nos indeferir o pedido de reenvio prejudicial.

b)            Da inutilidade superveniente da lide
               
O STJ já decidiu esta questão, sempre no mesmo sentido[3].
                Será, pois, inevitável que se repitam argumentos.

O Banco Central Europeu, no uso das suas prerrogativas legais, revogou a autorização para o exercício da actividade do “Banco Espírito Santo, S.A.” (BES) por deliberação de 13.07.2016.

Como bem se referiu no acórdão recorrido, por força do disposto no artigo 9º, n.º 1, do Regulamento (UE) n.° 1024/2013 do Conselho, de 15 de Outubro de 2013[4] “essa intervenção é equiparada à dos bancos centrais nacionais, ou seja, na situação sob análise, à do Banco de Portugal, pelo que a mesma tem a dimensão emergente do disposto no n.° 2 do art. 8.° do Decreto-Lei n.° 199/2006, de 25 de Outubro, produzindo «os efeitos da declaração de insolvência», aí mencionada”.

O DL 199/2006, de 25 de Outubro, veio regular a liquidação de instituições de crédito e sociedades financeiras com sede em Portugal e suas sucursais criadas noutro Estado membro, transpondo para a ordem jurídica interna a Directiva n.º 2001/24/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4 de Abril, relativa ao saneamento e à liquidação das instituições de crédito.

O artigo 8.º do DL n.199/2006[5], sob a epígrafe ‘liquidação judicial’, dispõe nos seus nºs 1 e 2:

1 - A liquidação judicial das instituições de crédito fundada na revogação de autorização pelo Banco de Portugal faz-se nos termos do presente diploma e, em tudo o que nele não estiver previsto, nos termos do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.

 2 - A decisão de revogação da autorização pelo Banco de Portugal produz os efeitos da declaração de insolvência.
                E o artigo 9º, regulando a tramitação subsequente, determina, no seu n.º 3:

3 - São aplicáveis, com as necessárias adaptações, as demais disposições do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas que se mostrem compatíveis com as especialidades constantes do presente decreto-lei, com exceção dos títulos IX e X.

Temos assim que a revogação da autorização para o exercício da actividade bancária de que foi alvo o BES, equivale à declaração de insolvência dessa instituição bancária.

O que isto, na prática, significa é que todos os credores da insolvência, qualquer que seja a natureza e os fundamentos dos seus créditos, devem reclamar os respectivos créditos no processo de insolvência, incluindo aqueles que se encontrem já reconhecidos por sentença definitiva, para aí poderem obter satisfação – cfr. artigos 47º, 90º e 128º do CIRE.
As acções declarativas em curso, dirigidas ao reconhecimento de créditos do devedor insolvente, perdem qualquer utilidade, como resulta do acórdão de uniformização de jurisprudência n.º 1/2014, de 08.05.2013 (publicado no DR 39, Série I, de 25.02.2104), em que se doutrinou:

«Transitada em julgado a sentença que declara a insolvência, fica impossibilitada de alcançar o seu efeito útil normal a acção declarativa proposta pelo credor contra o devedor, destinada a obter o reconhecimento do crédito peticionado, pelo que cumpre decretar a extinção da instância, por inutilidade superveniente da lide, nos termos da alínea e) do art. 287.º [actual art.277º] do C.P.C.».

É verdade que existe alguma jurisprudência das Relações em sentido oposto, conforme afirmado pelas recorrentes na conclusão 16ª. No entanto, essa orientação jurisprudencial encontra-se suplantada pela deste STJ, com expressão máxima no referido acórdão uniformizador 1/2014.

Entendem as recorrentes, por outro lado, que, em virtude de terem deduzido, ainda que por via subsidiária, o pedido de nulidade do contrato de intermediação financeira, devia a acção ter continuado contra o BES por não assumir natureza exclusivamente patrimonial – cfr. conclusões 6ª a 14ª.

Ora, facilmente se conclui que tal argumento não é decisivo, pois a declaração de nulidade de um contrato de natureza patrimonial (como é o contrato de intermediação financeira) produz também efeitos patrimoniais, traduzidos nas obrigações de restituir aquilo que cada uma das partes tenha recebido – cfr. artigo 289º do CC.

Para a mesma finalidade recursória, avançam ainda as recorrentes com o argumento de que não teria ainda sido declarado aberto o incidente de qualificação da insolvência.

Também este argumento se mostra destituído de qualquer utilidade para a discussão da matéria interessante. Nunca essa situação seria determinante do prosseguimento da acção.


Diga-se, finalmente, que a extinção da instância por inutilidade superveniente da lide não representa diminuição das garantias de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva, nos termos consagrados no artigo 20.º da Constituição, uma vez que as recorrentes têm ao seu dispor um meio processual idóneo (processo de insolvência), adequado às circunstâncias do caso, para obter o reconhecimento e, quanto possível, a satisfação dos seus créditos.

                                                                       *

III. DECISÃO

Face ao exposto, decide-se:

a) Indeferir o pedido de reenvio prejudicial
b) Negar a revista.

*

Custas pelas recorrentes.

                                                                       *


LISBOA, 7 de Setembro de 2020

Henrique Araújo (Relator)
Maria Olinda Garcia
Ricardo Costa

Sumário (art. 663º, nº 7, do CPC).

_______________________________________________________


[1] Relator:      Henrique Araújo
  Adjuntos:    Maria Olinda Garcia
                      Ricardo Costa

[2] Acórdão ainda não publicado na base de dados ECLI, proferido no âmbito do processo n.º n.º 19375/16.3T8LSB.L1.S1-A.

[3] Cfr., além do acórdão uniformizador 1/2014, de 08.05.2013 (publicado no DR 39, Série I, de 25.02.2014, os acórdãos de 27.09.2017, no processo n.º 3499/16.0T8VIS.S1, de 29.01.2019, no processo n.º 18366/16.9TBLSB,L2-A.S2, de 07.02.2019, no processo n.º 18930/16.6T8LSB.L2-A.S1.S1-A, de 22.11.2018 no processo n.º 4144/17.1T8LSB.L1.S2, todos estes consultáveis em www.dgsi.pt, e também o acórdão de 30.06.2020, ainda não publicado, relatado pela ora 1ª Conselheira Adjunta no processo n.º 19375/16.3T8LSB.L1.S1-A.
[4] Que confere ao BCE atribuições específicas no que diz respeito às políticas relativas à supervisão prudencial das instituições de crédito.
[5] Com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 31-A/2012, de 10 de Fevereiro, e pela Lei n.º 23-A/2015, de 26 de Março.