Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 1.ª SECÇÃO | ||
Relator: | JORGE LEAL | ||
Descritores: | REVISÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA REVISÃO E CONFIRMAÇÃO DE SENTENÇA DIVÓRCIO POR MÚTUO CONSENTIMENTO ESCRITURA PÚBLICA CAUSA DE PEDIR DECISÃO LEI ESTRANGEIRA | ||
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Data do Acordão: | 09/20/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | CONCEDIDA A REVISTA, DETERMINANDO-SE O PROSSEGUIMENTO DOS AUTOS | ||
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Sumário : | A escritura pública de divórcio consensual outorgada no Brasil em cartório notarial é suscetível de revisão, constituindo a sua invocação válida causa de pedir, nos termos e para os efeitos da ação especial regulada pelos artigos 978.º e seguintes do CPC. | ||
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Decisão Texto Integral: |
Acordam os juízes no Supremo Tribunal de Justiça I. RELATÓRIO 1. AA, luso-brasileiro, portador do documento brasileiro de identidade n.º ...65, residente na Rua ..., na cidade de ..., Brasil, Código Postal ..., propôs contra BB, brasileira, portadora do documento de identificação brasileiro n.º ...3-4, residente na Rua ..., na cidade de ..., Brasil, Código Postal ..., ação especial de revisão de sentença estrangeira. O requerente alegou, em síntese, que por escritura lavrada em cartório notarial brasileiro, que identificou, foi decretado o seu divórcio com a requerida. Requereu que a referida escritura fosse revista e confirmada, para produzir os seus efeitos na ordem jurídica portuguesa. 2. Citada, a requerida nada disse. 3. Em alegações, o Ministério Público e o requerente pugnaram pelo deferimento do requerido. 4. O Exm.º relator proferiu decisão sumária, em que, após julgar a petição inicial inepta, por falta de causa de pedir, indeferiu a petição inicial, declarou nulo todo o processo e declarou extinta a instância. 5. O requerente reclamou para a conferência e, por acórdão proferido em 11.5.2023 (com um voto de vencido), a Relação confirmou a decisão sumária, indeferindo a petição inicial por falta de causa de pedir, julgando nulo o processo e extinta a instância. 6. O requerente interpôs recurso de revista desse acórdão, tendo apresentado alegação em que formulou as seguintes conclusões: 1.ª. O Recorrente apresentou Acção de Revisão para confirmação de Escritura Pública de Divórcio lavrada por Notário no Brasil; 2.ª O Exmo. Juiz Desembargador Relator, de forma sumária, julgou inepta a petição inicial por falta de causa de pedir, ao argumento que a Escritura Pública de Divórcio Consensual lavrada por Notário no Brasil não representa uma “decisão” para os fins previstos no art. 978º do CPC, e, por conseguinte, indeferiu a petição inicial, declarando nulo todo o processo e extinguindo a instância; 3.ª O Recorrente, irresignado, reclamou para a conferência, sem, contudo, obter êxito, eis que o Tribunal a quo manteve a decisão sumária do Relator reeditando os mesmos fundamentos; 4.ª Neste contexto, restou ao Recorrente manejar o presente recurso de revista a este Augusto Tribunal, sustentando que a Escritura Pública de Divórcio apresentada tem força semelhante a de decisões judiciais que decretam o divórcio, uma vez que foi proferida por entidade brasileira legalmente competente para o efeito, estando abarcada no sentido do termo “decisão” contido no art. 978º do CPC, carecendo de revisão para produzir efeitos em Portugal, notadamente para fins de comunicação aos serviços registais. 5.ª Sendo assim, o presente recurso tem por objetivo a reforma do acórdão em crise para que seja julgado procedente o pedido de revisão e confirmação da Escritura Pública de Divórcio do Recorrente e, dessa forma, tenha eficácia perante o ordenamento jurídico interno, o que permitirá ao Recorrente ter seu estado civil regularizado perante o estado português. 7. Não houve contra-alegações. 8. Foram colhidos os vistos legais. II. FUNDAMENTAÇÃO 1. O presente recurso tem por objeto a seguinte questão: a escritura notarial de dissolução de matrimónio trazida a juízo pelo requerente, é suscetível de revisão, constituindo a sua invocação válida causa de pedir, nos termos e para os efeitos da ação especial regulada pelos artigos 978.º e seguintes do CPC? 2.1. A Relação deu como provada a seguinte Matéria de facto 1. Os ora Requerentes contraíram entre si casamento civil, em ...de 1992, em ..., Estado do Rio de Janeiro, na República Federativa do Brasil. 2. Por Escritura de Divórcio Consensual outorgada por ambos os Requerentes, em ... de 2018, no Cartório do ....º Tabelião de Notas da cidade de ..., no Estado de São Paulo, na República Federativa do Brasil, nos termos do artigo 733º do Código de Processo Civil Brasileiro e da Lei n.º 11.411, de 4 de janeiro da República Federativa do Brasil, os Requerentes declararam, perante o Notário, que ficava dissolvido o vínculo conjugal entre eles e passavam a ter o estado civil de divorciados. 2.2. O Direito O tribunal a quo, após ter declarado, na parte introdutória do acórdão recorrido, que “[n]ão ocorrem nulidades, excepções ou questões prévias obstativas do conhecimento do mérito da causa de que cumpra conhecer oficiosamente”, e ter passado, expressamente, a apreciar o “mérito da causa”, concluiu que a petição inicial carecia de causa de pedir, pelo que era inepta, com a consequente nulidade de todo o processo e a extinção da instância. O tribunal a quo fundamentou tal deliberação pelo seguinte modo: “(…) no caso dos autos, o divórcio por mútuo consentimento que se pretende seja reconhecido por esta Relação, através de processo de revisão e confirmação regulado nos artigos 978° e segs. do actual CPC, não foi decretado por nenhum tribunal estrangeiro, nem sequer por qualquer autoridade administrativa ou religiosa a quem, porventura, a ordem jurídica brasileira tivesse conferido poderes de autoridade para decretar a dissolução, por divórcio, dos casamentos. Efectivamente, neste caso, a dissolução do casamento celebrado entre os Requerentes promana das declarações negociais de vontade emitidas pelos próprios cônjuges no contexto duma escritura pública celebrada num cartório notarial, segundo o ritualismo estabelecido pela Lei n° 11.441, de 4/1/2007, em que o notário se limita a certificar que os outorgantes declararam que, pela presente escritura, nos termos do artigo 733º do Código de Processo Civil e da Lei 11.441, de 4 de Janeiro de 2007, ficava dissolvido o vínculo conjugal entre eles [outorgantes], que passam a ter o estado civil de divorciados" (cfr. o documento junto à petição inicial como documento n° 3, a fls. 6-8). Neste quadro, irreleva que, segundo o direito Brasileiro, os Notários ou tabeliães sejam, a par dos registradores, considerados agentes públicos, ou seja, particulares que recebem, por delegação do Estado, a incumbência da execução de determinada atividade, obra ou serviço público e o realizam em nome próprio, por sua conta e risco, mas segundo as normas do Estado e sob a permanente fiscalização do delegante. De todo o modo, não é o Notário ou tabelião brasileiro (que lavra a escritura pública de divórcio consensual) quem declara a dissolução do casamento; são os cônjuges outorgantes que se auto-divorciam, dissolvendo, eles próprios, o vínculo conjugal entre eles existente. O Notário-tabelião brasileiro mais não faz do que certificar as declarações negociais de vontade emitidas pelos outorgantes, através das quais eles próprios dissolvem o seu casamento e decidem que passam a ter o estado civil de divorciados. Trata-se dum divórcio privado, operado pelos próprios cônjuges outorgantes da escritura pública de divórcio, na qual o papel do Notário/Tabelião é, tão só, o de dar fé pública àquelas declarações negociais de vontade. Assim sendo, inexiste, no caso em apreço, uma decisão, judicial, administrativa ou religiosa, passível de ser submetida ao processo especial de revisão e confirmação regulado nos artigos 978° e segs. do CPC de 2013. A ausência de gualquer decisão, seja de natureza judicial, seja doutra qualquer natureza (administrativa ou religiosa), passível de formar caso julgado e, portanto, susceptível de ser revista e confirmada por esta Relação, no quadro do processo especial cuja tramitação está prevista nos citt. arts. 978° e segs. do CPC de 2013, implica a inexistência de causa de pedir. Na verdade, «a acção de revisão de sentença estrangeira é uma acção de simples apreciação destinada a verificar se a sentença estrangeira está em condições de produzir efeitos como acto jurisdicional na ordem jurídica portuguesa». Por isso, se não existe qualquer decisão estrangeira, seja ela judicial, administrativa ou religiosa, em condições de produzir efeitos como acto jurisdicional na ordem jurídica portuguesa, falta, pura e simplesmente, a causa de pedir. Ora - como se sabe -, a falta de causa de pedir constitui causa de ineptidão da petição inicial, nos termos do art. 186°, n° 2, al. a), do CPC de 2013, acarretando a nulidade de todo o processo (n° 1 do mesmo art. 186°), a qual conduz à absolvição do réu da instância, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 278°, n° 1, al. b). 576°, n° 2, e 577°, al. b), todos do citado CPC de 2013. Vejamos. O art.º 978.º do CPC estipula o seguinte: “Necessidade da revisão 1 - Sem prejuízo do que se ache estabelecido em tratados, convenções, regulamentos da União Europeia e leis especiais, nenhuma decisão sobre direitos privados, proferida por tribunal estrangeiro, tem eficácia em Portugal, seja qual for a nacionalidade das partes, sem estar revista e confirmada. 2 - Não é necessária a revisão quando a decisão seja invocada em processo pendente nos tribunais portugueses, como simples meio de prova sujeito à apreciação de quem haja de julgar a causa”. A confirmação de sentença estrangeira reconhece-lhe, na ordem interna do Estado do foro, os efeitos que lhe cabem no Estado de origem, como ato jurisdicional, segundo a lei desse mesmo Estado. Esses efeitos são o caso julgado e o título executivo. O reconhecimento é essencial para a continuidade e estabilidade das situações jurídicas, em especial na área do estatuto pessoal. Nos termos do disposto no art.º 980.º do Código de Processo Civil, para que a sentença estrangeira seja confirmada é necessário que: a) Não haja dúvidas sobre a autenticidade do documento de que conste a sentença nem sobre a inteligência da decisão; b) A sentença tenha transitado em julgado segundo a lei do país em que foi proferida; c) A sentença provenha de tribunal estrangeiro cuja competência não tenha sido provocada em fraude à lei e não verse sobre matéria da exclusiva competência dos tribunais portugueses; d) Não possa invocar-se a exceção de litispendência ou de caso julgado com fundamento em causa afeta a tribunal português, exceto se foi o tribunal estrangeiro que preveniu a jurisdição; e) O réu tenha sido regularmente citado para a ação, nos termos da lei do país do tribunal de origem, e no processo hajam sido observados os princípios do contraditório e da igualdade das partes; f) A sentença revidenda não contenha decisão cujo reconhecimento conduza a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português. O art.º 984.º do Código de Processo Civil estipula que o tribunal deve verificar oficiosamente se concorrem as condições indicadas nas alíneas a) e f) supracitadas; quanto às restantes condições, o tribunal deve negar a confirmação quando, pelo exame do processo ou por conhecimento derivado do exercício das suas funções, apure que falta algum ou alguns desses requisitos. Cumpre averiguar, em primeiro lugar, se o documento cuja revisão e confirmação ora é requerida pode ser equiparado, para esse efeito, a uma sentença ou decisão jurisdicional. Atalhando razões, dir-se-á que se tem entendido, quanto ao reconhecimento de dissoluções de matrimónio pelo divórcio, que a circunstância de o ato revidendo não provir de um tribunal, mas de uma autoridade administrativa, nomeadamente de um serviço notarial, não obsta à revisão, uma vez que, como é sabido, existem países, entre os quais Portugal, em que a competência para a atuação na dissolução do casamento por divórcio é outorgada, em certas condições, a outras autoridades que não tribunais, devendo tais atuações ser revistas nos termos previstos no art.º 978.º e seguintes (cfr., neste sentido, v.g., acórdão do STJ, de 12.7.2005, processo n.º 05B1880 e acórdão do STJ, de 25.6.2013, processo n.º 623/12.5YRLSB.S1, ambos publicados, assim como os adiante citados, em www.dgsi.pt). É o que se passa no Brasil, onde o divórcio consensual pode ser formalizado por escritura pública, conforme atualmente está previsto no art.º 733.º do CPC brasileiro. A circunstância de a autoridade administrativa não emitir uma vontade de produção de efeitos jurídicos de regulação do interesse privado em questão não retirará ao ato em causa a natureza de decisão, para os efeitos da pretendida revisão. O que releva é que essa intervenção constitua requisito e fonte da produção dos desejados efeitos jurídicos no ordenamento jurídico estrangeiro, o que se pretende que ocorra também no ordenamento jurídico português. Dito de outro modo: basta, para a aplicação da presente ação especial, que se esteja perante intervenção de oficial público que produza efeitos jurídicos relevantes segundo o ordenamento jurídico do Estado de origem, como se fora um tribunal. Nesse sentido a intervenção do oficial público terá uma repercussão performativa na ordem jurídica onde está prevista e onde foi praticada, significando essa intervenção mais do que o mero reforço da força probatória de uma determinada situação. O plus dessa intervenção não poderá residir na mera força probatória acrescida atribuída às declarações presenciadas pelo oficial público. No acórdão de uniformização de jurisprudência proferido pelo STJ em 19.10.2022 (AUJ 10/2022, processo 151/21.8YRPRT.S1-A, publicado no DR, I, de 24.11.2022), assentou-se em que “[a] escritura pública declaratória de união estável celebrada no Brasil não constitui uma decisão revestida de força de caso julgado que recaia sobre direitos privados; daí que não seja susceptível de revisão e confirmação pelos tribunais portugueses, nos termos dos arts. 978.º e ss. do Código de Processo Civil”. Para chegar a essa conclusão o STJ salientou que a dita escritura não tinha a virtualidade de produzir efeitos jurídicos relevantes para o efeito da sua revisão, não constituindo uma decisão. A união de facto a que a escritura se referia, necessariamente pré-existia a esse ato; isto é, a escritura teria um mero efeito probatório dessa situação jurídica, mas não a constituía. Nesse acórdão o STJ distinguiu a escritura pública declaratória de união estável da escritura de dissolução consensual do matrimónio, na medida em que esta última efetivamente produz efeitos duradouros na ordem jurídica brasileira (extinção do vínculo conjugal). Assim, contrariamente às escrituras declarativas de união estável, nesse acórdão o STJ admitiu, na respetiva fundamentação, que a escritura pública de divórcio consensual outorgada no Brasil é equiparável a decisão, para o efeito da sua revisão ao abrigo do art.º 978.º e seguintes do CPC. Tal equiparação tem sido reiteradamente admitida pelo STJ, conforme emerge da leitura, v.g., dos acórdãos do STJ de 07.7.2022 (processo 2201/21.9YRLSB-A.S1), de 07.6.2022 (processo 1181/21.5YRLSB-A.S1) e de 09.3.2021 (processo 241/20.4YRPRT.S1). Nessa jurisprudência realça-se o teor do art.º 733.º do CPC brasileiro: “O divórcio consensual, a separação consensual e a extinção consensual de união estável, não havendo nascituros ou filhos incapazes e observados os requisitos legais, poderão ser realizados por escritura pública, da qual constarão as disposições de que trata o art. 731º. § 1º. A escritura não depende de homologação judicial e constitui título hábil para qualquer acto de registro, bem como para levantamento de importância depositada em instituições financeiras. § 2º. O tabelião somente lavrará a escritura se os interessados estiverem assistidos por advogado ou por defensor público, cuja qualificação e assinatura constarão do acto notarial.” Na escritura trazida pelo requerente aos autos para revisão consta que a mesma foi lavrada por Tabeliã, a qual declarou dar fé da comparência das pessoas aí mencionadas, certificou ter procedido às formalidades identificativas aí constantes e mais certificou que “Assim, em cumprimento ao pedido e vontade dos divorciandos, atendidos os requisitos legais, pela presente escritura, nos termos da Emenda Constitucional nº 66/2010 e do Artigo 733 do Código de Processo Civil, Lei nº 13.105 de 16 de março de 2015, fica dissolvido o vínculo conjugal entre eles, que passam a ter o estado civil de divorciados”. É patente que o ato em causa comporta a intervenção de oficial provido de poder público, cuja atuação produz efeitos jurídicos duradouros na esfera jurídica privada dos outorgantes, isto é, a dissolução do respetivo vínculo matrimonial. Constitui, pois, decisão, para o efeito da ação especial regulada pelos artigos 978.º e seguintes do CPC. Em suma, a escritura notarial de dissolução de matrimónio trazida a juízo pelo requerente, é suscetível de revisão, constituindo a sua invocação válida causa de pedir, nos termos e para os efeitos da ação especial regulada pelos artigos 978.º e seguintes do CPC. Isto é, contrariamente ao ajuizado no acórdão recorrido, a petição inicial não enferma de ineptidão por falta de causa de pedir, não padece do vício processual previsto no art.º 186.º, n.º 2 alínea a) do CPC. Isto exposto, constata-se que o tribunal a quo, julgando não se verificar o requisito essencial da ação, isto é, a existência de decisão a rever, não se pronunciou acerca dos restantes pressupostos da revisão, previstos no art.º 980.º do CPC. Ora, está vedado ao STJ substituir-se ao tribunal a quo, preenchendo essa omissão (cfr. artigos 679.º e 665.º n.º 2 do CPC). Pelo que os autos deverão baixar à Relação. Nestes termos, a revista é procedente. III. DECISÃO Pelo exposto, julga-se a revista procedente e, consequentemente, revoga-se o acórdão recorrido e determina-se a baixa do processo a fim de que a Relação se pronuncie acerca dos restantes pressupostos de revisão e confirmação previstos no art.º 980.º do CPC. Custas da revista pelo requerente, que dela tirou proveito, sem oposição da requerida (art.º 527.º n.º 1 do CPC). Lx, 20.9.2023 Jorge Leal (Relator) Pedro de Lima Gonçalves Manuel Aguiar Pereira |