Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
631/21.T9MTJ.L1.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: AGOSTINHO TORRES
Descritores: RECURSO DE ACÓRDÃO DA RELAÇÃO
ABSOLVIÇÃO EM 1.ª INSTÂNCIA E CONDENAÇÃO NA RELAÇÃO
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
NULIDADE DE ACÓRDÃO
HOMICÍDIO POR NEGLIGÊNCIA
VEÍCULO AUTOMÓVEL
VELOCÍPEDE
TRIBUNAL EUROPEU DOS DIREITOS HUMANOS
IMPROCEDÊNCIA
Data do Acordão: 02/13/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário :
I. O caso

a. O Tribunal da Relação de Lisboa julgou procedente o recurso interposto pelo Ministério Público da sentença do Juízo Local Criminal (…), que havia absolvido o arguido do crime de homicídio negligente, previsto e punido pelos artigos 137.º, n.º 1 e 69.º, n.º 1, alínea a), todos do Código Penal e em consequência, revertendo a decisão, condenou-o como autor material do referido crime na pena de 1 ano e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, na condição de proceder ao pagamento aos demandantes da quantia de € 5.000,00 (cinco mil euros), por conta da indemnização.

b. Interposto recurso da decisão do Tribunal da Relação para o STJ as questões a discutir cingiram-se à possibilidade ou não de impugnação da matéria de facto quando a Relação condene, em recurso interposto pelo MPº de decisão absolutória na 1ª instância, à nulidade da decisão do TRL, por Conferência, por violação do princípio do contraditório ao não ter oficiosamente convocado o arguido para uma audiência nesse Tribunal de recurso e à verificação de vício de erro notório - (dinâmica do acidente incompatível com as regras da experiência)bem como da violação do princípio in dubio pro reo.

II. A decisão do STJ

I. Nos termos do art.º 400º nº1 alínea e) do CPP o recurso de acórdão da Relação que condene, quando antes se absolveu em 1ª instância, é admissível para o STJ. Porém, visa exclusivamente matéria de direito, sem prejuízo do disposto nas alíneas a) e c) do nº1 do artº432º -(cfr artº 434º do CPP) as quais remetem para os fundamentos de recurso com base em alegação de vícios e nulidades ex vi do disposto no artº 410º nºs 2 e 3 do CPP). Daqui decorrerá que, numa interpretação literal, a impugnação da matéria de facto em via de recurso para o STJ não será admissível. Tal não cerceia o direito a um 2º grau de recurso, gerando-se aí uma interpretação inconstitucional porquanto o arguido teve conhecimento do sentido do recurso por parte do MP e dos argumentos defendidos por este, ao qual a Relação deu razão, foi notificado desse recurso, teve direito a resposta e a apresentar os seus contra-argumentos acerca da mesma matéria de facto que esteve em discussão no julgamento em 1ª instância, direccionada para a resolução da questão de saber como ocorreu o embate entre o seu veículo e o velocípede. Assim, a decisão não constituiu propriamente uma surpresa, uma vez que sabia que esse resultado seria uma possibilidade que poderia decorrer da força de argumentos que o Tribunal da Relação pudesse vir a acolher, como efectivamente acolheu. Nesta abordagem não competirá ao Supremo Tribunal verificar da correcção da avaliação da prova feita pelo tribunal recorrido, exceptuando os casos previstos no art.º. 11.º, n.ºs 3, als. a) e b), e 4, al. a), do CPP, pois conhece apenas de direito, conforme dispõe o art.º. 434.º, do CPP, ficando prejudicado o conhecimento do recurso na vertente da impugnação alargada da matéria de facto.

II. Assim tem sido reafirmado pela jurisprudência do STJ, sendo certo que “(…) o STJ não pode sindicar a valoração das provas que tenha sido feita nas instâncias (na 1ª e na Relação). Se reapreciasse as provas produzidas no julgamento, estaria a introduzir um terceiro grau de jurisdição em matéria de facto, em clara violação do art.º 434.º do CPP.”.

III. Assumindo o caso uma formulação impugnatória em sede de facto que, no essencial, se circunscreve sobretudo à caraterização da existência de um vício de erro notório decorrente da alega violação das regras da experiência, esse sim, indiscutivelmente é cabível nos poderes de conhecimento deste STJ tal como a invocação da violação do principio in dubio pro reo

IV. Inexiste nulidade da decisão do TRL por violação do princípio do contraditório ao não ter convocado oficiosamente o arguido para audiência – nem violação dos direitos fundamentais deste. Os casos invocados ou que mereceriam maior atenção, quer do TC quer do TEDH, não se opõem necessariamente a essa conclusão. Decorrendo da exposição e narrativa dos autos que o Tribunal da Relação considerou inconsistente e injustificada a dúvida da 1ª instância, com base essencialmente no apelo a uma diferente análise e interpretação das regras da experiência, ainda que sem perder nunca de vista o conteúdo das provas produzidas na 1ª instância, mas que indicou claramente e concatenou na sua fundamentação, concluindo por uma perspectiva diferente acerca da dinâmica do acidente e sem dúvida alguma, tal por si nunca constituiria violação do princípio in dubio pro reo.

V. Verificando-se da sentença com clareza que, quanto à alegada violação do princípio in dubio pro reo, o tribunal não se convenceu com dúvidas nem condenou com incertezas ou com base em regras de experiência inusitadas e incompreensíveis, ilógicas e inaceitáveis, nem tãopouco se confrontou com factos incertos perante os quais, em vez de favorecer o arguido, o tivesse desfavorecido, inexiste violação daquele princípio.

VI. Tendo o juízo interpretativo probatório por parte do Tribunal da Relação incidido sobre as mesmas provas que foram consideradas na 1ª instância- provas essas integralmente conhecidas pela defesa e perante elas sempre com a oportunidade de contraditório-, e da forma como o fez e explicou, não se alcançaria a necessidade de voltar a ouvir de novo o arguido, em eventual audiência de recurso, caso a mesma tivesse sido requerida ou mesmo oficiosamente determinada. Além do mais, na resposta ao recurso e ao parecer do MPº nunca se suscitou tal necessidade e dos termos em que o fez em recurso para o STJ o arguido mais não acrescentou do que já tinha avançado como sendo a sua versão. Mesmo considerando que estaria convencido da sua razão, face ao recurso interposto pelo MPº e apesar de não ter sido requerida renovação da prova em audiência, não poderia ignorar a possibilidade de o Tribunal poder vir a reverter a decisão da 1ª instância, como aliás aconteceu. Também nada impediria que pudesse, face a tal possibilidade, ter tido iniciativa de colocar a questão ao tribunal no sentido de ponderar a sua audição pessoal, tendo em conta o entendimento que retirava da já conhecida jurisprudência do TEDH acerca da eventual necessidade de audiência em caso de recurso e reavaliação de prova.

VII. Sendo certo que, de acordo com essa jurisprudência, a necessidade de audiência do arguido em recurso depende das circunstâncias de cada caso, não será o caso dos autos já que o arguido sempre dispôs da possibilidade de se pronunciar sobre as mesmas provas analisadas em 1ª instância, de ali participar na audiência inicial como fez e apresentar a sua versão e, em recurso, compreender e analisar os argumentos do Ministério Público perspectivando uma possibilidade de reversão da decisão.

VIII. Tendo o tribunal de recurso decidido com base numa interpretação diferente incidente sobre a mesma prova produzida, sem necessidade de renovação, assinalando sobretudo que as regras da experiência e as circunstâncias do caso, como explicou, apontavam sem dúvida no sentido contrário do decidido em 1ª instância e sendo certo que no recurso para este STJ o arguido nem sequer esclarece em que medida a sua audição seria determinante, além do que alegou em resposta ao recurso e ao parecer do MPº, para o eventual conseguimento de uma inflexão de uma provável decisão condenatória, uma anulação do acórdão recorrido para audição do arguido seria inútil ou desnecessária, tanto mais que o mesmo sempre teve oportunidade para manifestar a sua versão dos factos mesmo perante a discordância argumentativa do MºPº.

IX. Tal seria um acto de utilidade inexplicada, dadas as circunstâncias do caso, o tipo e conteúdo da fundamentação do Tribunal da Relação, que no essencial explorou as regras da experiência para avaliar a dinâmica do acidente e a inexistência por parte da defesa de uma justificação objectiva e convincente acerca da necessidade de tal audição no Tribunal da Relação.

Decisão Texto Integral:
Acordam em AUDIÊNCIA na 5ª Secção criminal do Supremo Tribunal de Justiça

I-RELATÓRIO

1.1- Por acórdão proferido em 09.04.2024, pela 5ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa, foi julgado procedente o recurso interposto pelo Ministério Público da sentença do Juízo Local Criminal do ... - Juiz ..., de 16 de Outubro de 2023, que havia absolvido o arguido AA, nascido em ...-...-1966, ora recorrente para o STJ, do crime de homicídio negligente, previsto e punido pelos artigos 137.º, n.º 1 e 69.º, n.º 1, alínea a), todos do Código Penal.

1.2- Em consequência, foi o arguido condenado como autor material de um crime de homicídio por negligência, p. e p. nos termos do art.º 137º, nº 1 do Código Penal na pena de 1 ano e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, na condição de proceder ao pagamento aos demandantes da quantia de € 5.000,00 (cinco mil euros), por conta da indemnização, a ser paga em 2 prestações iguais, com vencimento, a primeira, decorridos 9 meses contados sobre o trânsito em julgado da decisão e, a seguinte, decorridos 9 meses sobre a anterior e até à data limite da suspensão da execução da pena de prisão.

Mais foi condenado na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de oito meses, nos termos do art.º 69º, n.º 1, al. a) do Código Penal.

1.3- Interposto recurso da decisão do Tribunal da Relação para este STJ, alega o recorrente nas conclusões que formulou-(aliás, impressivamente prolixas e com graves dificuldades de formatação em edição de texto)-:

[ I. Nos casos previstos no artigo 400.º, n.º 1, al. e), o Supremo Tribunal de Justiça constitui, relativamente ao Tribunal da Relação, a primeira instância de recurso do Arguido.

II. É certo que o Arguido tem o direito de responder ao recurso interposto pelo Ministério Público ou pelo Assistente de sentença absolutória proferida em 1.ª instância, porém tal não configura o direito a um duplo grau de recurso, na medida em que o Arguido vê o seu direito de defesa comprimido porque restrito ao objecto do recurso delimitado pelas conclusões do Ministério Público ou do Assistente.

III. Ora, em tal caso, o Arguido é confrontado, pela primeira vez, com um Acórdão condenatório cuja decisão, de facto e de Direito, pode constituir manifesta surpresa, quer pela alteração quanto à matéria de facto e respectiva fundamentação, quer pela matéria de Direito quer, ainda, pela escolha e medida da pena.

IV. Não sendo lícito considerar que o recurso interposto pelo Arguido, nessas circunstâncias, se restringe à matéria de Direito ou, quanto à matéria de facto, apenas pode alicerçar-se nos fundamentos constantes das alíneas a) e c) do n.º 1 do artigo 432.º do CPP,

V. O ordenamento processual penal assenta num princípio geral de recorribilidade com fundamento constitucional na ampla e efectiva garantia de defesa assegurada ao Arguido (artigo 18.º, n.º 2 e 32.º, n.º 1 da CRP).

VI. No caso de um Acórdão condenatório proferido pelas Relações, em recurso, que reverte uma decisão absolutória proferida em 1ª instância, é evidente que ao Arguido tem de ser concedida garantia de defesa, materializada na recorribilidade dessa decisão quer quanto à matéria de Direito quer quanto à matéria de facto e, neste caso, em sentido amplo, de impugnação da matéria de facto julgada provada e não apenas restrito à contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão ou ao erro notório na apreciação da prova.

VII. O que significa dizer que, por força da alteração legislativa à norma da al. e) do n.º 1 do artigo 400.º do CPP, o Supremo Tribunal de Justiça tem, necessariamente, de assumir amplos poderes de cognição da matéria de facto, seja com fundamento em erro de julgamento seja em sede revista alargada.

VIII. Entendimento diverso conduz a uma injustificada desigualdade e desproporcionalidade dos direitos do Arguido na medida em que permitirá que, em 1.ª instância, o Arguido possa recorrer da generalidade das decisões proferidas ao longo do processo, nos termos do artigo 399.º do CPP e não possa sindicar, com a amplitude necessária ao exercício do seu direito de defesa, uma decisão condenatória, em reversão de anterior absolvição, por ser proferida em sede de recurso interposto para os Tribunais da Relação apenas porque, tendencialmente, o Supremo Tribunal de Justiça conhece, apenas, de Direito.

IX. Em consequência, o artigo 400.º, n.º 1, al. e) do CPP deve ser interpretado no sentido de o Arguido poder impugnar a matéria de facto julgada provada pelo Tribunal da Relação, cabendo ao STJ proceder ao reexame da prova produzida e decidir, em conformidade, sob pena de interpretação diversa, que restrinja o recurso do Arguido, neste caso, às hipóteses das alíneas a), b) e c) do n.º 2 do artigo 410.º do CPP ser inconstitucional por violação do disposto no artigo 18.º, n.º 2, 32.º, n.º 1 da CRP e violar o disposto nos artigos 11.º da DUDH e 6.º, n.º 2 e n.º 3 e 7.º da CEDH.

X. Sem prescindir, o presente recurso vem interposto, além do mais, com fundamento no erro notório na apreciação da prova.

Sem prescindir,

XI. Cabe invocar a nulidade do douto Acórdão recorrido por violação do direito do Arguido a ser ouvido e exercer o contraditório, sobre uma decisão que lhe é desfavorável, pessoalmente e em audiência, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 119.º, al. c) do CPP, artigos 18.º e 32.º da CRP e artigo 6.º da CEDH.

XII. Pela clarividência, qualidade técnica e expositiva, chamamos à colação a douta jurisprudência do Tribunal Constitucional vertida no Acórdão n.º 491/2021 e que damos por reproduzida.

XIII. Decorre da douta Jurisprudência do TC e do TEDH que o exercício do direito ao contraditório pelo Arguido exige a sua audição presencial, independentemente da fase processual em que os autos se encontrem sempre que o tribunal pretenda tomar uma decisão que lhe seja desfavorável, conferindo ao Arguido o estatuto de verdadeiro sujeito processual e assegurando o seu direito a defender-se, seja prestando os esclarecimentos que julgue necessários, seja contraditando as provas ou expondo os fundamentos de Direito que entender convenientes à sua defesa.

XIV.

XV. Em sede de recurso, o legislador, no artigo 411.º, n.º 5 do CPP, previu a realização de audiência a requerimento do recorrente.

XVI. Afigura-se-nos que o Arguido, não sendo recorrente porque a sentença absolutória não lhe é desfavorável, não tem legitimidade para requerer a realização de audiência, nos termos do artigo 411.º, n.º 5 do CPC.

XVII. Todavia, os Tribunais da Relação devem, oficiosamente, notificar o Arguido para comparecer em audiência que deverá, sempre, realizar-se quando se preveja que a decisão a proferir será desfavorável ao Arguido, nomeadamente implicando a sua condenação ex novo pela prática do crime de que havia sido absolvido em primeira instância, em conformidade com o entendimento da jurisprudência do nosso Tribunal Constitucional e do TEDH.

XVIII. A omissão de notificação do Arguido para estar presente em audiência, realizada oficiosamente, a fim de poder exercer, efectiva e pessoalmente, o direito ao contraditório nos termos que entender adequados, viola o núcleo essencial do direito de defesa do Arguido.

XIX. No caso vertente, incumbia ao Tribunal da Relação designar data para audiência e convocar o Arguido bem como o seu defensor para estarem presentes a fim de garantir o efectivo direito do Arguido ao contraditório perante uma possível e inovadora decisão condenatória.

XX. O que não sucedeu nos presentes autos, pelo que o douto Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 18.º e 32.º da CRP, 61.º, n.º 1, al. a) do CPP e 6.º CEDH, pelo que o douto Acórdão recorrido é nulo nos termos do disposto no artigo 119.º, al. c) do CPP.

XXI. O tribunal de 1ª instância, em face do libelo acusatório e ainda, mas não exclusivamente, da prova documental de fls. 4 a 6, 205 a 209 e 210 a 212, da qual se extrai que o veículo ligeiro conduzido pelo Recorrente no dia, hora e local dos alegados factos, não apresentava qualquer dano na parte direita do pára-choque frontal, julgou não provado que o arguido tivesse embatido com a frente do seu veículo na roda traseira do velocípede conduzido pela vítima.

XXII. Os danos no veículo conduzido pelo Recorrente situam-se, essencialmente, na parte lateral direita.

XXIII. Porque nenhuma outra dinâmica do acidente se provou, consentânea com os danos existentes no veículo ligeiro, no velocípede e com as lesões no corpo da vítima, o tribunal de 1ª instância absolveu o arguido.

XXIV. Ora, como os danos existentes – e de pequena dimensão – se situam apenas na parte lateral direita do veículo conduzido pelo Recorrente, o douto tribunal a quo vem a julgar provados os factos descritos a fls. 55 do douto Acórdão posto em crise sob os números 2. a 10.

XXV. Verificando-se existir erro notório na apreciação da prova quanto a tais factos na medida em que os mesmos não têm explicação lógica e racional nem são consentâneos com as regras de experiência e de normalidade porquanto é impossível um veículo ligeiro, que circula atrás de um velocidade, na mesma via e sentido de trânsito, embater com o lado direito na roda traseira do velocípede sem que, previamente, existisse um atravessamento do veículo

ligeiro na via de trânsito.

XXVI. Mais, o facto julgado provado sob 5., além de não encontrar acolhimento nas regras de experiência e normalidade e de suscitar mais dúvidas que certezas, é contrariado pelos danos verificados no veículo ligeiro, ficando por explicar como o corpo da vítima tombou sobre o lado direito do pára-brisas e o espelho retrovisor direito ficou intacto assim como todo o resto do veículo, que apresenta, apenas, uma pequena mossa na parte superior da embaladeira da roda dianteira direita.

XXVII. O douto tribunal a quo julga, ainda, provado o facto vertido em 3. Sem que se vislumbre de que meio de prova se socorreu o Tribunal a quo para julgar provada tal factualidade e a ausência de rasto de travagem poder significar, ao invés do defendido no Acórdão recorrido, circulação a velocidade reduzida e, consequentemente, diminuto atrito dos pneumáticos com o asfalto no momento da travagem, o que seria consentâneo com as declarações do Recorrente sobre a velocidade a que circulava.

XXVIII. O facto julgado provado em 2. do douto Acórdão Recorrido viola o princípio in dubio pro reo, o mesmo sucedendo com a conclusão de que a velocidade a que o Arguido conduzia o veículo era excessiva.

XXIX. Nenhum meio de prova permite julgar provado que o Recorrente circulava a velocidade superior a 40km/hora donde, e na ausência de prova em contrário, as declarações do Recorrente, nesta parte (e noutras), teriam de merecer credibilidade julgando-se provado que o Recorrente não circulava a velocidade superior a 40/50 km/hora.

XXX. Ou, fazendo uso do princípio da presunção de inocência, na vertente do in dubio pro reo, enquanto princípio de prova, sempre teria de se julgar provado que o Recorrente circulava a velocidade concretamente não apurada e julgar-se não provado que tal velocidade era excessiva.

XXXI. Mais de 40km/hora tanto podem ser 45km/hora como 150 km/hora e tal amplitude fáctica, no que concerne à velocidade que o Recorrente imprimia ao veículo ligeiro, viola o direito de defesa do Recorrente que desconhece a concreta velocidade de circulação que lhe é imputada e da qual não se pode defender.

XXXII. Para efeitos de concretização do que seja a “velocidade excessiva”, a concreta velocidade a que o Recorrente circulava, ainda que aproximada ou estimada, é relevante, designadamente para efeitos de aferição da violação de regras de conduta e imputação da culpa.

XXXIII. O douto tribunal a quo julgou provado que o acidente só ocorreu porque o Recorrente foi encandeado pela luz solar e não adequou a velocidade do veículo a tal circunstância, com fundamento no depoimento das testemunhas BB, CC, DD e EE (página 52 do douto Acórdão recorrido).

XXXIV. Os depoimentos referidos não são coincidentes quanto à existência de encandeamento no dia, hora e local dos factos e a testemunha DD apenas se deslocou ao local em Dezembro de 2022, um ano e meio após os factos e a hora não apurada.

XXXV. Tendo feito constar do relatório de fls. 213 a 237 (vide fls. 221, § 5.1.4) que o nascer do Sol, no dia do acidente, ocorreu às 6h23m quando o Observatório Astronómico de Lisboa, em https://oal.ul.pt/publicacoes/almanaques/dados-de-2021/ (O Sol –Nascimento e Ocaso do Sol – Lisboa) atesta hora diversa para o nascer do Sol no dias dos factos em apreço e resulta da fotografia 4 de fls. 206 que o Sol se apresenta à esquerda do veículo ligeiro conduzido pelo Recorrente, projectando a sombra do veículo para o lado direito deste, na direcção da berma, pelo que incidindo lateralmente sobre o veículo e sobre o Recorrente, as probabilidades de encandeamento diminuem consideravelmente.

XXXVI. O douto tribunal a quo refere, militando contra o arguido, que este fazia uso da pala para o sol; se o Recorrente fazia uso da referida pála diminuíam, consideravelmente, as probabilidades de o Recorrente se encandear e não o inverso, como conclui, erradamente, o douto tribunal a quo.

XXXVII. E desvalorizou, in totum, as declarações do Recorrente na parte em que afirmou, peremptoriamente, nunca ter estado encadeado pelo Sol e os motivos invocados para tal afirmação.

XXXVIII. Pelo que mal andou o douto tribunal a quo ao dar como provado o facto vertido em 7.

XXXIX. Sendo evidente o erro notório na apreciação da prova à luz das regras de normalidade e experiência.

XL. Assim como é evidente a violação do princípio in dubio pro reo na valoração da prova.

XLI. O douto tribunal a quo, ao invés de apreciar toda a prova produzida à luz do princípio da presunção de inocência, partiu da presunção de culpa do recorrente e lançou-se na tarefa de escrutinar a prova produzida para dela retirar os segmentos que aproveitavam a esse mesmo pré-juízo de culpa, com vista a fundamentar decisão sobre a matéria de facto diametralmente oposta à da primeira instância.

XLII. O objecto dos presentes autos não consiste em apurar como ocorreu o acidente causado pelo Recorrente mas, ao invés e em primeiro lugar, se o Recorrente causou o acidente.

XLIII. E perante essa indagação, o raciocínio lógico-dedutivo levado a cabo pelo douto tribunal a quo é infirmado, flagrantemente, pelos danos mínimos existentes no veículo ligeiro conduzido pelo Recorrente, que são manifestamente incompatíveis com um embate violento e com as lesões produzidas no corpo da vítima.

XLIV. O que se afigura suficiente para gerar dúvida, razoável e inultrapassável, sobre a culpa do Recorrente na produção do sinistro em apreço nos autos, no espírito de qualquer pessoa que tenha um conhecimento mediano em matéria de acidentes de viação.

XLV. A acção penal, visando prima facie a tutela de bens jurídicos fundamentais e a consequente condenação do arguido que os tenha violado, exige que se impute a este uma concreta acção ou omissão que seja subsumível na falta de cuidado, atenção ou prudência e se elenquem as concretas normas desrespeitadas ou a conduta que, de acordo, com as regras de circulação rodoviária, deveria ter sido adoptada ou omitida pelo arguido, no caso concreto.

XLVI. Do douto libelo acusatório não se alcança qual a concreta acção ou omissão do arguido que, nas circunstâncias do caso concreto, criou ou potenciou o risco de lesão da vida/integridade física do condutor do velocípede [cf.Acórdão do Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, de 03.08.2009 (disponível em www.dgsi.pt)].

XLVII. Da prova produzida em audiência de julgamento também não resultou provada – antes pelo contrário – qual a concreta acção ou omissão do arguido que criou ou potenciou o risco de lesão da vida/integridade física do condutor do velocípede, como veremos adiante.

XLVIII. Da análise crítica e global da prova produzida em audiência de julgamento bem como dos documentos juntos aos autos e considerados na decisão, não só a douta sentença de 1ª instância não merece censura como não é objectivamente possível a alteração da matéria de facto preconizada pelo douto tribunal a quo.

XLIX. Das declarações [serenas, espontâneas e coerentes em si mesmas] prestadas pelo arguido [depoimento gravado através do sistema integrado de gravação digital, a 11/09/2023, dos 2m aos 57m17s] e, no essencial, corroboradas pelo depoimento das testemunhas CC, cujo depoimento foi gravado no sistema integrado de gravação digital, no dia 11/09/2023 [dos 8m aos 9m], pela testemunha FF, cujo depoimento foi gravado no sistema integrado de gravação digital, no dia 13/09/2023 [dos 1m15s aos 5m30s e dos 6m30s aos 10m] e pela testemunha GG, cujo depoimento foi gravado no sistema integrado de gravação digital, no dia 13/09/2023 [dos 1m20s aos 6m e 6m30s aos 11m30s] assim como, em especial, dos documentos de fls. 10 a 13, 201 e 210 resulta provado que:

1. O Arguido em momento algum viu o velocípede a circular à sua frente;

2. O Arguido sentiu um embate no lado direito do seu veículo a cerca de 5 metros onde se encontrava o corpo de HH [o local desse embate foi identificado pelo Arguido junto à inscrição “20,50m” no croqui de fls. 6] e travou de imediato, imobilizando o veículo a cerca de 10 metros desse local, pelo que a distância de travagem não é superior a 15 metros e, por isso, consentânea com uma velocidade de 40km/h.

3. O Arguido nunca esteve encandeado pelo Sol;

4. O Arguido não circulava a mais de 40km/hora.

L. O apuramento da velocidade provável de um veículo faz-se, ao invés do sustentado pelo Ministério Público no seu recurso, através de fórmulas matemáticas devidamente testadas e de conhecimento público.

LI. E foi, precisamente, uma dessas fórmulas matemáticas que o douto tribunal de 1ª instância utilizou para apurar que o arguido, efectivamente, circulava a 40 km/hora no dia, hora e local do acidente, usando os locais de embate e paragem indicados pelo arguido nas suas declarações e cuja distância, entre si, não é superior a 20m.

LII. As lesões verificadas no corpo da vítima, pela sua gravidade e extensão, não são compatíveis com o embate de um veículo ligeiro num velocípede a 40 km/h, nem a 50km/h; antes são compatíveis com um embate a velocidade muito superior a 60km/h (sendo relevante o facto de o embate se ter dado, efectivamente, na roda traseira do velocípede conduzido pela vítima).

LIII. A restante prova testemunhal produzida é inócua, nomeadamente o depoimento das testemunhas DD, [depoimento gravado no dia 11/09/2023, dos 1m aos 59m30s], EE [depoimento gravado no dia 11/09/2023, dos 1m aos 25m22s] e BB, amigo e colega da vítima que esteve no local do acidente, pouco após este ter ocorrido, nada soube esclarecer quanto à dinâmica do acidente.

LIV. Da análise conjugada da prova testemunhal e documental é possível concluir que quer o veículo ligeiro quer o velocípede não foram, em momento algum, alvo de perícia.

LV. A fotografia 4 de fls. 11, captada no dia e local do acidente poucos momentos após a sua ocorrência, demonstra os concretos danos existente no veículo ligeiro, nomeadamente, ausência de danos na parte frontal direita e no capot, ausência de danos no espelho retrovisor do lado direito, pequeno vinco, na parte lateral direita, junto à embaladeira da roda da frente, pequena mossa por cima da porta da frente, do lado direito, junto ao tejadilho, pára-brisas

LVI. Com o devido respeito, a factualidade julgada provada pelo douto Tribunal a quo enferma de erro atenta a total ausência de prova nesse sentido bem como o facto de a dinâmica do acidente ser insusceptível de explicação pela ciência Física, pois não se compreende como pode um ligeiro, seguindo na mesma via e sentido trânsito do velocípede, embater violentamente com o lado direito na roda traseira deste.

LVII. Os danos existentes na parte lateral direita do veículo conduzido pelo Arguido não são compatíveis com os factos julgados provados.

LVIII. Não basta julgar provados os factos que consubstanciam a eventual prática do crime pelo qual o arguido vem acusado pois os factos provados devem permitir, de forma lógica e racional, contar o que efectivamente sucedeu e demonstrar a lógica dos acontecimentos e das suas consequências.

LIX. A condenação em processo-crime não pode ser obtida a qualquer custo e com recurso a factos impossíveis ou improváveis mas sim com recurso a prova cabalmente produzida, que permita ao julgador não ter qualquer dúvida sobre os factos que julga provados.

LX. Devendo revogar-se o douto Acórdão posto em crise, julgando não provados os factos sob 2. a 10 e, em consequência, absolver-se o Recorrente do crime que lhe vem imputado.

Termos em que requer a V. Exas. seja concedido provimento ao presente recurso, com as legais consequências, como é de Justiça!

Mais requer, nos termos do disposto no artigo 411.º, n.º 5, a realização de audiência para debate dos pontos XXIV a LX das conclusões.]

1.4- O MPº respondeu ao recurso - dizendo em síntese:

“O Arguido vem invocar a nulidade do douto Acórdão recorrido por violação do direito do Arguido a ser ouvido e exercer o contraditório, sobre uma decisão que lhe é desfavorável, pessoalmente e em audiência, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 119.º, al. c) do CPP, artigos 18.º e 32.º da CRP e artigo 6.º da CEDH.

Porém, a nosso ver, tendo o recurso sido julgado em conferência não tinha que haver lugar à realização de audiência que, aliás, nem foi requerida.

Por outro lado, foi garantido o exercício do contraditório, tanto assim que o arguido apresentou resposta ao recurso do Ministério Público junto da 1ª instância e respondeu ao parecer do Ministério Público junto do tribunal da Relação de Lisboa. A ser assim, e contrariamente ao sustentado pelo Arguido, a nosso ver, não se verifica a nulidade prevista no artigo 119.º, al. c) do Código de Processo Penal, sendo que a interpretação levada a efeito não se nos afigura que tivesse violado o disposto nos artigos 18.º e 32.º da CRP, 61.º, n.º 1, al. a) do Código de Processo Penal e 6.º CEDH. Os vícios previstos no art. 410.º, n.º 2, não podem ser confundidos com a divergência entre a convicção pessoal do recorrente sobre a prova produzida em audiência e a convicção que o tribunal firme sobre os factos, questão do âmbito da livre apreciação da prova.

Neste conspecto, o que releva, necessariamente, é essa convicção formada pelo Tribunal, sendo irrelevante, no âmbito da ponderação exigida pela função de controlo ínsita na identificação dos vícios do artigo 410.º, n.º 2, a convicção pessoalmente alcançada pelo recorrente sobre os factos.

Ora, olhando ao texto da decisão recorrida, não vemos que exista erro notório na apreciação da prova ou violação do princípio in dubio pro reo.

Parece-nos, antes, patente que o recorrente contesta a leitura que o Tribunal recorrido fez da prova.

No entanto, nesta sede, e atentando-se somente ao texto decisório como se impõe, não é possível descortinar o assinalado vício; a decisão apresenta-se fundamentada num raciocínio lógico, numa leitura conjugada de toda a prova produzida, e apresentando conclusões consentâneas com esse raciocínio, razoáveis e conformes com as regras da experiência, em observância da regra da livre apreciação da prova inscrita no art. 127º do Código de Processo Penal.

O facto de na análise da prova ter o Tribunal recorrido decidido em desfavor da tese ou versão trazida pela defesa do arguido não representa, como pretendido, qualquer violação do princípio in dubio pro reo.

À semelhança do que sucede com os vícios consagrados no n.º 2 do art. 410.º do Código de Processo Penal, em sede de recurso, a violação do princípio in dubio pro reo apenas ocorre quando tal vício resulte da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, pois o recurso não constitui um novo julgamento.

E a versão acolhida no Acórdão recorrido foi a única plausível para o Tribunal recorrido em face da prova produzida, analisada esta à luz das regras da experiência.

Por isso, nesta parte, o Tribunal recorrido não se socorreu do princípio in dubio pro reo (que apenas significa que perante factos incertos, a dúvida favorece o arguido) porque não teve quaisquer dúvidas da valoração da prova e ficou seguro do juízo quanto à autoria dos factos, isso mesmo exarando na decisão sob recurso.

Tal princípio só teria sido violado se da prova produzida e documentada resultasse que, ao condenar o arguido com base naquela, o julgador tivesse contrariado as regras da experiência comum ou atropelasse a lógica intrínseca dos fenómenos da vida, caso em que, ao contrário do decidido, deveria ter chegado a um estado de dúvida insanável e, por isso, deveria ter decidido a favor do arguido, o que não foi o caso.

No caso dos autos a livre apreciação da prova encetada pelo Tribunal recorrido não conduziu à subsistência de dúvidas sobre a existência dos factos dados por assentes e do seu autor, nem a mesma se impunha, não havendo, por isso, lugar a invocar aqui o princípio in dubio pro reo. o Arguido AA limita-se a divergir subjectiva e genericamente na avaliação da prova produzida com recurso a uma argumentação de valoração apoiada em apelos de vida pessoal e não apoiada em elementos de prova concretamente impositiva de sentido contrário à decidida pelo tribunal recorrido.

Por outro lado, na impugnação sobre a matéria de facto não atende à globalidade dos depoimentos das diversas testemunhas e da prova documental, antes faz ancorar a sua versão probatória nas suas próprias declarações e no depoimento da companheira e filho que nem sequer presenciarem o acidente.

Ora, o Tribunal que julga, goza de ampla liberdade de movimentos ao eleger, dentro da globalidade da prova produzida, os meios de que se serve para fixar os factos provados.

A questão fundamental é que o Tribunal recorrido adquiriu a convicção firme sobre o facto e fundamentou o juízo crítico sobre a prova em que suportou tal convicção de acordo com as regras da lógica e da experiência comum.

A ser assim, no exame crítico levado a efeito o Tribunal recorrido seguiu um processo lógico e racional na apreciação da prova, tendo esta sido apreciada segundo as regras da experiência e da livre apreciação, nos termos do disposto no art. 127.º do Código de Processo penal.

Assim, entende-se que não deve haver lugar à alteração da decisão sobre a matéria de facto e, consequentemente, deve improceder a impugnação sobre a matéria de facto. Nestes termos, ao negarem provimento ao recurso e manterem o douto Acórdão sob recurso.”

1.5- A Decisão recorrida

A) Matéria de facto consignada na 1ª instância

No Juízo Local Criminal do ... - Juiz ... ficou provado e não provado (transcreve-se a matéria relevante para a compreensão do acidente, da sua dinâmica e consequências respectivas):

[ A.1) FACTOS PROVADOS

Com interesse, para a decisão da causa, consideram-se provados os seguintes factos:

Da acusação pública:

1. No dia 13-07-2021, pelas 07h15, o arguido AA conduzia o veículo ligeiro de mercadorias, de matrícula ..-..-QQ, na Circular ..., União de freguesias de ..., concelho do ..., no sentido oeste-este, na via da direita.

2. À sua frente, e no mesmo sentido, circulava no velocípede sem motor de marca Decathlon, conduzido por HH.

3. Nestas circunstâncias de tempo, e após circular cerca de 420 metros após rotunda convergida com a Rua ..., o veículo conduzido pelo arguido embateu com a sua frente, do lado direito, na traseira do velocípede sem motor. ( 1)

4. HH sofreu graves lesões traumáticas, cranianas, vertebro medulares, torácicas, abdominais e do membro inferior esquerdo.

5. As quais foram causa direta, adequada e necessária da sua morte.

6. Aquele local, é uma recta composta por duas faixas de rodagem, uma em cada sentido, com 6 metros de largura, de boa visibilidade, dotadas de duas vias de trânsito com 3 metros de largura.

7. Os sentidos de trânsito estão separados por um separador em blocos de cimento, com a largura de 2 metros.

8. No sentido em que circulavam os veículos, existe uma inclinação ascendente de 1,9%, tendo a berma cerca de 0,85 metros.

9. O pavimento é de aglomerado asfáltico, em mau estado de conservação e manutenção. 10. No local havia sinalização adequada, e inexistiam quaisquer obstáculos que obstruíssem ou impedissem a normal circulação.

11. O local onde ocorreu o acidente tem boa visibilidade em toda a largura e extensão;

12. A velocidade máxima de circulação permitida naquela via era de 60 km/hora.

13. O arguido conhece bem o local, fazendo aquele trajeto todos os dias.

14. O arguido é motorista de pesados há mais de 30 anos.

(…)

Mais se provou quanto ao pedido de indemnização civil deduzido pelos Demandantes (não comuns à acusação pública):

32. Com o violento acidente de que foi vítima, sofreu de forma quase imediata, pela extensão e gravidade dos ferimentos, uma morte dolorosa e abrupta.

(…)

Mais se provou quanto ao pedido de indemnização civil deduzido por Crédito Agrícola Seguros:

(…

44. No exercício da sua actividade comercial de seguros, na qualidade de Seguradora, celebrou com P..., Lda., na qualidade de tomadora de seguro, um contrato de seguro de acidentes de trabalho designado “CA Acidentes De Trabalho – Trabalhadores Por Conta de Outrem” que recebeu o número de apólice ...06 e que teve início no dia 01.01.2021.

45. Contrato esse com o prémio variável que garantia os riscos profissionais decorrentes da acitividade a segurar, designadamente produção e comércio de produtos hortícolas e pecuários, como cereais e outros, e que tinha como pessoas seguras os empregados da Tomadora do Seguro.

46. HH exercia a profissão de embalador sob as ordens, direcção e fiscalização da P..., Lda., estando transferida a responsabilidade respeitante ao valor anual de € 13.930,78 (salário base € 791,28+€ 6,83x242+parte do prémio de € 1.200,00) para a Demandante.

47. O sinistrado falecido trabalhava para a Tomadora do Seguro desde 14.08.2014 e o se horário de trabalho iniciava-se às 8 horas e terminava às 17 horas.

48. No dia 13 de Julho de 2021, o sinistrado iniciou o percurso habitual para o local de trabalho, desde a sua habitação na Quinta do ... até às instalações da sua empregadora quando

49. Às 7 horas e 15 minutos do referido dia, na via Circular ..., sentido Oeste-Este, União das Freguesias do ..., concelho do ... (coordenadas ...64, ...67) ocorreu um acidente de viação que envolveu o veículo ligeiro de mercadorias, de marca Citroen, modelo Berlingo, matrícula ..-..-QQ e o velocípede sem motor, de marca e modelo Decathlon.

50. Nas circunstâncias de tempo e lugar referidos, o sinistrado deslocava-se no mencionado velocípede, no limite exterior da via de circulação, sentido Oeste-Este.

51. No âmbito da sua actividade profissional, a Generali, SA, havia celebrado com o Tomador de Seguro AA, aqui arguido, um contrato de seguro do ramo automóvel, titulado pela apólice n.º ...53, respeitante ao veículo com a matrícula ..-..-QQ, em que este transferiu apara aquela a responsabilidade emergente da circulação rodoviária do referido veículo.

(…)

Mais se provou quanto à contestação do arguido:

57. O arguido é titular de licença de condução da categoria B desde 20 de Junho de 1990 e da categoria C/C1 desde 25 de Novembro de 1994 a que acresce o Certificado de Aptidão de Motorista, destinado a habilitar o arguido a conduzir veículos pesados e mercadorias.

58. O arguido exerce a actividade de motorista de veículos pesados de mercadorias para a empresa T..., com sede na Estrada ... (entre a freguesia da ... e a localidade de ...).

59. O arguido não tem contraordenações rodoviárias averbadas no registo individual do condutor assim como não tem antecedentes criminais, em especial relativos ao exercício da condução.

60. O demandado tinha, como é obrigatório, a responsabilidade civil emergente da circulação do veículo ..-..-QQ transferida para a Seguradora Generali Seguros através da apólice ...95, válida de 18/04/2021 a 17/10/2021.

(…)

Mais se provou quanto à contestação da Generali Seguros SA:

63. Arguido e Co-Demandado Cível, no dia 13.07.2021, pelas 07h15m, conduzia o veículo de matrícula ..-..-QQ (adiante, abreviadamente QQ), de marca e modelo Citroën Berlingo, na Circular ..., na freguesia União de Freguesias de ..., no sentido Oeste para Este, tendo colidido com o velocípede sem motor conduzido, na mesma via, por HH, in itenere.

(…)

65. O sinistrado, para além de não estar munido de nenhum equipamento de segurança também não possuía nenhum dispositivo de iluminação ou de aviso de presença. existe ao lado dessa mesma estrada uma ciclovia.

66. O sinistrado conduzia o seu velocípede com uma taxa de álcool no sangue de 0,62 g/L.

A.2) FACTOS NÃO PROVADOS

Não se provaram os seguintes factos:

Da acusação pública:

I. O arguido embateu em HH.

II. Como consequência do embate, HH e o velocípede, foram elevados, tombando sobre o capô do veículo automóvel e, de seguida, sido projetados para a frente;

III. A bicicleta ficou posicionada na via, a cerca de 2 / 3 metros da frente do veículo automóvel, e o seu condutor posicionado do lado direito, fora da faixa de rodagem;

O arguido conduzia a uma velocidade não concretamente apurada, mas certamente excessiva face às condições que se apresentavam;

V. No momento em que ocorreu a colisão, o arguido reunia todas as condições para efetuar uma manobra de ultrapassagem, sem colidir e arrastar o velocípede sem motor e o seu condutor;

VI. O acidente só ocorreu por distração ou desatenção do condutor do veículo ligeiro, que de forma inexplicável embateu na traseira do velocípede que circulava na mesma via e sentido, a uma velocidade mais reduzida;

VII. O arguido atuou de forma livre e voluntária, com total falta de cuidado, atenção e prudência, em desrespeito pelas mais elementares regras estradais, que o mesmo podia e devia ter acautelado, designadamente a obrigação de adequar a velocidade às condições meteorológicas ou ambientais, à intensidade de trânsito e outras circunstâncias específicas de modo a circular em segurança, sem colocar em perigo outros utilizadores da mesma via, que o mesmo podia e devia ter acautelado;

VIII. Porque não o fez, não obstante saber que a sua conduta era proibida e punida por lei, causou o acidente supra descrito, bem como as trágicas consequências que daí advieram para o ocupante do velocípede;

IX. O arguido bem sabia da proibição e da punibilidade por lei penal de tais condutas.

Do pedido de indemnização deduzido por Crédito Agrícola Seguros, SA:

XVI. HH circulava na via da direita e cumpriu as regras de condução previstas no Código da Estrada.

XVII. O veículo com a matrícula ..-..-QQ não as cumpriu.

XVIII. O embate na traseira do velocípede foi causa directa e adequada a produzir o acidente e os danos dai resultantes.

XIX. O acidente e infortuna morte do sinistrado deveu-se exclusivamente à condução perigosa do condutor do veículo com a matrícula ..-..-QQ, seguro na Generali, SA, que seguia sem os mais elementares deveres de cuidado.

Da Contestação do arguido:

XX. O arguido é um condutor prudente e diligente, pratica uma condução defensiva e está habituado a conduzir a baixa velocidade atento a sua actividade profissional – os veículos pesados têm limites máximos de velocidade mais baixos que os veículos ligeiros e pelas dimensões e peso da carga que transportam exigem, muitas vezes, uma condução a velocidade mais reduzida.

Da contestação da Generali Seguros, SA:

XXI. A dita ciclovia o local onde o condutor do velocípede deveria estar a circular.

XXII. O sinistrado circulava no centro da faixa à direita – contrariando o previsto na referida norma.

(…)”

B) Matéria de facto alterada e fixada no Tribunal da Relação

Na sequência do recurso interposto pelo MPº o Tribunal da Relação alterou a matéria de facto nos seguintes termos:

“(…)

Por conseguinte, impõe-se considerar como provados os seguintes factos

(eliminando-os dos factos não provados):

2. À sua frente e na mesma via, junto ao limite direito da faixa de rodagem, circulava o velocípede sem motor de marca Decathlon, conduzido por HH;

3. O arguido circulava a velocidade não concretamente apurada mas nunca inferior a 40 Km/h;

4. Atento o seu sentido de marcha, e depois de percorrer cerca de 420 metros após a rotunda convergida com a Rua ..., o arguido embateu com a parte direita do seu veículo automóvel na roda traseira do velocípede conduzido por HH, que seguia junto ao limite direito da faixa de rodagem;

5. Em consequência do embate, o corpo de HH foi elevado, tombando sobre a parte direita do vidro para-brisas do veículo conduzido pelo arguido, que de imediato estilhaçou, tendo sido posteriormente projetado a cerca de 20,5 metros do local do embate, para fora da faixa de rodagem, ficando caído na zona ajardinada paralela à via de circulação, tendo o velocípede sido arrastado pelo pavimento;

6. No momento em que ocorreu a colisão, o arguido reunia todas as condições para efetuar uma manobra de ultrapassagem, sem colidir, arrastar o velocípede sem motor e projetar o seu condutor;

7. O acidente só ocorreu por o condutor do veículo ligeiro, em virtude de ter sido encandeado pela luz solar e não ter adequado a velocidade a tal circunstância, ter embatido na traseira do velocípede que circulava na mesma via e sentido, a uma velocidade mais reduzida;

8. O arguido atuou de forma livre e voluntária, com total falta de cuidado, atenção e prudência, em desrespeito pelas mais elementares regras estradais, que o mesmo podia e devia ter acautelado, designadamente a obrigação de adequar a velocidade às condições meteorológicas ou ambientais, de modo a circular em segurança, sem colocar em perigo outros utilizadores da mesma via, que o mesmo podia e devia ter acautelado;

9. Porque não o fez, não obstante saber que a sua conduta era proibida e punida por lei, causou o acidente supra descrito, bem como as trágicas consequências que daí advieram para o ocupante do velocípede;

10. O arguido bem sabia da proibição e da punibilidade por lei penal de tais condutas.

*

Consigna-se que a alteração introduzida em 7. relativa ao encandeamento pela luz solar obedece ao disposto no art. 358º, nº 2 do C.P.Penal na medida em que resulta do que foi alegado pelo arguido na sua contestação.(…)]

*

Esta alteração foi justificada pelo Tribunal da Relação pela seguinte forma:

“(…)

O recorrente (MPº) entende que são os seguintes os factos incorretamente dados como não provados:

“2. À sua frente, e no mesmo sentido, circulava no velocípede sem motor de marca Decathlon, conduzido por HH;

3. Nestas circunstâncias de tempo, e após circular cerca de 420 metros após rotunda convergida com a Rua ..., o veículo conduzido pelo arguido embateu com a sua frente, do ladodireito, na traseira do velocípede sem motor;

I. O arguido embateu em HH; II. Como consequência do embate, HH e o velocípede, foram elevados, tombando sobre o capô do veículo automóvel e, de seguida, sido projetados para a frente; III A bicicleta ficou posicionada na via, a cerca de 2 / 3 metros da frente do veículo automóvel, e o seu condutor posicionado do lado direito, fora da faixa de rodagem; IV. O arguido conduzia a uma velocidade não concretamente apurada, mas certamente excessiva face às condições que se apresentavam; V. No momento em que ocorreu a colisão, o arguido reunia todas as condições para efetuar uma manobra de ultrapassagem, sem colidir e arrastar o velocípede sem motor e o seu condutor; VI O acidente só ocorreu por distração ou desatenção do condutor do veículo ligeiro, que de forma inexplicável embateu na traseira do velocípede que circulava na mesma via e sentido, a uma velocidade mais reduzida; VII O arguido atuou de forma livre e voluntária, com total falta de cuidado, atenção e prudência, em desrespeito pelas mais elementares regras estradais, que o mesmo podia e devia ter acautelado, designadamente a obrigação de adequar a velocidade às condições meteorológicas ou ambientais, à intensidade de trânsito e outras circunstâncias específicas de modo a circular em segurança, sem colocar em perigo outros utilizadores da mesma via, que o mesmo podia e devia ter acautelado; VIII Porque não o fez, não obstante saber que a sua conduta era proibida e punida por lei, causou o acidente supra descrito, bem como as trágicas consequências que daí advieram para o ocupante do velocípede; IX. O arguido bem sabia da proibição e da punibilidade por lei penal de tais condutas.

Alega, no essencial, a análise que faz da prova produzida - com recurso às declarações do arguido (gravação áudio do minuto 01:15 ao minuto 02:47; do minuto 04:35 ao minuto 07:19 e do minuto 08:49 ao minuto 09:15), ao depoimento da testemunha DD (gravação áudio do minuto 07:16 ao minuto 10:05, do minuto 13:10 ao minuto 14:16 e do minuto 28:32 ao minuto 30:17), ao relatório técnico de acidente de viação de fls. 213 a 237, subscrito pela testemunha (conclusão III), à participação de acidente de viação, anexo e croqui de fls. 4 a 6, 205 a 209 (conclusões III e X), à reportagem fotográfica de fls. 210 a 212 (conclusões III e XI) e ao relatório de autópsia de fls. 112, 113 e127 (conclusões III e XII) - que, no seu entender, impõe decisão diversa da recorrida.

Também questiona a livre apreciação da prova que foi feita pelo Tribunal a quo que invocou a criação no seu espírito de uma dúvida razoável e intransponível que, no entender do recorrente, não se verificou face à prova por si elencada (conclusão XIV).

Desta forma, o recorrente menciona provas que considera imporem decisão diversa da recorrida quanto aos mencionados pontos de facto que considera terem sido incorretamente julgados e indica as provas e os segmentos das gravações áudio que suportam o seu entendimento divergente, do que se conclui que cumpriu as exigências legalmente impostas no art. 412.º do C.P.Penal para a impugnação ampla da matéria de facto relativa aos mencionados pontos da matéria de facto dada como não provada, pelo que se conhecerá da mesma, nos termos infra expostos.

No entanto, “não basta estar demonstrada a possibilidade de existir uma solução em termos de matéria de facto alternativa à fixada pelo tribunal a quo. Na verdade, é raro o julgamento onde não estão em confronto duas, ou mais, versões dos factos (arguido/assistente ou arguido/Ministério Público ou mesmo arguido/arguido), qualquer delas sustentada, em abstracto, em prova produzida, seja com base em declarações dos arguidos, seja com fundamento em prova testemunhal, seja alicerçada em outros elementos probatórios. Por isso, haver prova produzida em sentido contrário, ou diverso, ao acolhido e considerado relevante pelo Tribunal a quo, não só é vulgar, como é insuficiente para, só por si, alterar a decisão em sede de matéria de facto. O que aqui se mostra necessário é que o recorrente demonstre que a prova produzida no julgamento só poderia ter conduzido, em sede de elenco de matéria de facto provada e não provada, à solução por si (recorrente) defendida, e não àquela consignada pelo Tribunal”- (Acórdão do TRP de 10.01.2024,Proc. nº 16/20.0T9STS.P1).

No que concerne aos meios de prova testemunhal elencados pelo recorrente importa, desde logo, sublinhar que os mesmos têm que ser apreciados concatenadamente, devendo ser conjugados e estabelecidas correlações internas entre todos os meios de prova produzidos, confrontando-os de forma que, ainda que de sinal contrário, daí resulte uma decisão linear, fazendo-se inferências ou deduções de factos conhecidos, desde que tal se justifique, e tendo sempre presentes as regras da lógica e as máximas da experiência.

(…)

No caso em apreço, o recorrente entende que o Tribunal a quo não poderia socorrer-se do princípio in dubio pro reo para fundamentar a decisão sobre a matéria de facto pois, de acordo com as declarações do arguido, com o depoimento da testemunha DD e com a prova documental que menciona, o acidente ocorreu em conformidade com a factualidade que consta da acusação, o que implicaria que a factualidade por si mencionada fosse considerada provada.

Desta forma, o recorrente não se limita a invocar a prevalência do seu juízo pessoal sobre a livre apreciação que serviu de base à factualidade não provada e ao resultante juízo de absolvição, antes pretende demonstrar que a prova por si indicada só poderia ter conduzido, no domínio factual, a uma decisão diversa da que foi proferida e ao consequente juízo condenatório do arguido.

Vejamos se lhe assiste razão.

A sentença recorrida dá a conhecer como o tribunal formou a sua convicção quanto à factualidade provada constante dos pontos 1, 6 a 12 e 65, quando refere terem existido “alguns elementos pacificamente referidos pelo arguido e pelas testemunhas, designadamente que, no dia 13-07-2021, pelas 07h15, o arguido AA conduzia o veículo ligeiro de mercadorias, de matrícula ..-..-QQ, na Circular ..., União de freguesias de ..., concelho do ..., no sentido oeste-este, na via da direita e dirigia-se ao seu local trabalho, a T..., sita no ....

No mesmo sentido, circulava o velocípede sem motor de marca Decathlon, conduzido por HH.

Aquele local, é uma recta composta por duas faixas de rodagem, uma em cada sentido, com 6 metros de largura, de boa visibilidade, dotadas de duas vias de trânsito com 3 metros de largura.

Os sentidos de trânsito estão separados por um separador em blocos de cimento, com a largura de 2 metros.

No sentido em que circulavam os veículos, existe uma inclinação ascendente de 1,9%, tendo a berma cerca de 0,85 metros.

O pavimento é de aglomerado asfáltico, em mau estado de conservação e manutenção.

No local havia sinalização adequada, e inexistiam quaisquer obstáculos que obstruíssem ou impedissem a normal circulação.

O local onde ocorreu o acidente tem boa visibilidade em toda a largura e extensão.

A velocidade máxima de circulação permitida naquela via era de 60 km/hora.

O sinistrado, para além de não estar munido de nenhum equipamento de segurança também não possuía nenhum dispositivo de iluminação ou de aviso de presença. existe ao lado dessa mesma estrada uma ciclovia

Quanto ao apuramento dos factos supra referidos e consignação dos mesmos como provados, o tribunal ainda valorou a participação de acidente de viação e croqui de fls. 4 a 6 e 205 a 209, o relatório técnico de acidente de viação de fls. 213 a 237 (veículos intervenientes e descrição do lugar do acidente) e a reportagem fotográfica de fls. 210 a 212”

No que respeita à dinâmica do acidente, o Tribunal a quo começa, desde logo, por afirmar que “a prova não converge” e consta da motivação de facto, a este propósito, que:

“o arguido declarou que, as circunstâncias de tempo descritas na acusação pública, circulava na Circular ..., sentido oeste-este, em direção ao seu local de trabalho (T..., no ...), a uma velocidade de 30 a 40Km/h (quando a velocidade máxima permitida no local é de 60km/h), quando ouviu um embate no guarda lamas frontal direito, tendo imobilizado de imediato o veículo automóvel (...) confirmou os danos ocorridos na sua viatura e os ocorridos no velocípede sem motor (cfr. fls. 11, fotografia n.ºs 4 e 5, fls. 342 e 342v). Confrontado com o croqui de fls. 6, o arguido confirmou o local do embate (i.e. onde consta escrito a medição 20,50m), o local onde estava o corpo de HH (i.e. onde está escrito alínea a) e fls. 209 a 213) e afirmou que não estava encadeado pelo sol, pois este incidia na lateral do veículo e não de frente (cfr. documento de fls. 339v a 341). O arguido afirmou peremptoriamente que não circulava qualquer veículo à sua frente, que não estava encandeado pelo sol, nem distraído e que o acidente só pode ter ocorrido porque a vítima invadiu a faixa de rodagem proveniente da ciclovia.

Ninguém presenciou o acidente.

BB, vizinho do arguido e colega de trabalho da vítima, circulou na Via Circular ... no dia dos factos, mas quando os Bombeiros já se encontravam no local (...) fazia aquele trajecto diariamente para o seu local de trabalho, confirmou que a vítima também fazia diariamente aquele percurso, tripulando o velocípede sem motor sempre à direita da via de trânsito, pois receava atropelar as pessoas na ciclovia, e sem capacete. A testemunha afirmou que, à hora que efectua aquele trajecto, existe encadeamento do sol, facto que o obriga a baixar a pala de protecção solar e a reduzir a velocidade.

(...)

CC, circulava na via de trânsito onde ocorreu o acidente quanto foi abordado pelo arguido, o qual lhe pediu ajuda, pois estava muito nervoso. A testemunha telefonou para o 112 e, quando ouviu as sirenes, abandonou o local (...) confirmou o posicionamento da vítima (i.e., a cerca de cinco metros à frente do veículo do arguido, sem capacete), da bicicleta (i.e., na valeta de escoamento de água, a cerca de cinco a seis metros do veículo do arguido) e do veículo conduzido pelo arguido (cfr. fls. 11 fotografia n.º 4), bemcomo os danos verificados nos veículos intervenientes no acidente e a posição do sol (i.e., “baixinho, e a dificultar a visibilidade” (sic)).

DD, agente da Polícia de Segurança Pública, em exercício de funções na Secção de Trânsito de ... (…) utilizou, na investigação realizada, os elementos de prova recolhidos pela testemunha EE, o qual esteve no local no dia do acidente. A testemunha confirmou que o sol estava baixo e passível de encadear porque tinha posição inferior a 45º e estaria de frente para o veículo automóvel conduzido pelo arguido. Quanto à velocidade imprimida pelo arguido ao veículo por si conduzido, a testemunha afirmou não ser determinável porque inexistem vestígios no local para o seu apuramento. Porém, perguntado sobre a causa do acidente, a testemunha afirmou que foi a velocidade excessiva do veículo conduzido pelo arguido face ao encadeamento pelo sol. Quanto à versão do acidente narrada pelo arguido, a testemunha afirmou não ser verosímil pois, a ter ocorrido o acidente como o arguido descreveu, a vítima e a bicicleta estariam caídos na faixa de rodagem e não na berma.

EE, agente da Polícia de Segurança Pública em exercício de funções na secção de trânsito da Esquadra do ..., confirmou o dia e local dos factos, a sua chegada ao local do acidente pelas 8 horas (…) Quanto ao posicionamento dos veículos intervenientes no acidente, a testemunha afirmou que os mesmos já não se encontravam no local onde ocorreu a colisão, nem no local onde ficaram imobilizados após essa colisão.

Confrontado com o croqui de fls. 6, a testemunha confirmou o local provável do embate (indicado pelo arguido- fls. 10), as marcas no pavimento de arrastamento da bicicleta (i.e., de ferro no alcatrão - fls. 11 fotografia n.º 3) e o objecto não identificado de fls. 12 (fotografia 6), o qual desconhece se estava relacionado com o acidente.

Confirmou igualmente os danos nos veículos, a ausência de capacete e roupa reflectora na vítima, a possibilidade do nascer do sol à hora do acidente e o desconhecimento da velocidade dos veículos intervenientes.

(…)

No caso concreto, o tribunal não tem razão para duvidar da idoneidade das testemunhas inquiridas, tal como não tem razão para descredibilizar o arguido, o qual se presume inocente. Da prova produzida podemos extrair algumas conclusões:

1. A velocidade a que circulava o arguido é desconhecida;

2. O arguido não estava encandeado pelo sol (não obstante as testemunhas BB e CC afirmarem o encandeamento pelo sol, da análise do documento de fls. 339v a 341, conjugada com as declarações do arguido, conclui-se que tal encandeamento não se verificava);

3. As localizações dos veículos e da vítima (tal como indicadas pelo arguido, pois não foram feitas outras diligências para esse apuramento) não são compatíveis com uma velocidade excessiva, mas sim com a velocidade de 40km/h afirmada pelo arguido (considerando que o arguido afirmou circular a uma velocidade máxima de 40km/h e imobilizou a viatura a cerca de dez metros do corpo da vítima);

Distância de travagem = Velocidade2

2(coeficiente de fricção) (aceleração gravitacional)

4. A velocidade a que o arguido conduzia - 40km/h - não é compatível com um embate que tenha como consequência as lesões apresentadas pela vítima (cfr. autopsia médico legal de fls. 111 a 113 e 127);

5. Os danos apresentados no veículo conduzido pelo arguido não são compatíveis como a circulação do velocípede na frente do arguido, pois, a ser assim, o embate dar-se-ia com o para-choques frontal do veículo automóvel e não na lateral direita, por cima da embaladeira da roda;

6. A descrição do acidente constante do libelo acusatório não é compatível com os danos apurados no veículo conduzido pelo arguido;

7. A vítima circulava com uma taxa de álcool no sangue de 0,62g/l (cfr. fls. 118);

8. A vítima não usava capacete, nem roupa reflectora.

A acusação pública assenta na violação pelo arguido da obrigação de adequar a velocidade às condições meteorológicas ou ambientais, à intensidade de trânsito e outras circunstâncias específicas de modo a circular em segurançaPorém, não se logrou apurar, com a certeza que exige uma condenação, quais as condições

meteorológicas ou ambientais que o arguido deveria acautelar, nem tao pouco se fez qualquer referência à intensidade do trânsito.

Portanto, não se logrou apurar qual a regra do Código da Estrada que o arguido violou e, por conseguinte, qual o dever de cuidado que descurou e que lhe era exigível que não descurasse.

Em suma, não se logrou apurar a dinâmica do acidente.

Em conclusão, não se logrou apurar que o acidente, e o consequente decesso de HH, só se deveram à condução temerária, desatenta e imprudente do arguido, que desprezou os deveres de precaução e respeito pelas normas da segurança estradal, que o arguido tenha actuado com manifesta desatenção e contrariamente às mais elementares regras de cuidado, com inobservância dos deveres básicos exigidos no exercício da condução, atentas as circunstâncias referidas.

Da prova produzida suscita-se a dúvida razoável se o arguido praticou os factos que lhe são imputados.

(...)

Assim, decorre do in dubio pro reo que todos os factos relevantes para a decisão (quer respeitem ao facto criminoso, quer à pena), que apesar de toda a prova recolhida, não possam ser subtraídos à dúvida razoável do tribunal, também não possam considerar-se como provados.

O princípio in dubio pro reo tem aplicação no domínio probatório e significa que, em caso de falta de prova sobre um facto, a dúvida se resolve a favor do arguido; é justamente por isso que é no princípio da presunção da inocência, incluído pela Constituição da República Portuguesa entre as garantias do arguido em processo criminal, que se encontra a base constitucional para a sua proteção.

Face ao exposto, impõe-se considerar não provados os factos, nesta parte, tal como ficaram consignados.

Face ao exposto, da concatenação da prova produzida nos termos sobreditos, o tribunal considerou provados e não provados os factos tal como consignados”.

Desta forma, o Tribunal a quo assume ter extraído as supra referidas conclusões da prova produzida enquanto que o recorrente considera tais conclusões incompatíveis com a mesma por não estarem assentes em justificações lógicas e admissíveis face às regras da experiência comum.

No caso vertente, uma vez que ninguém presenciou o acidente, a prova produzida relativa à dinâmica do acidente terá de resultar da conjugação das declarações do arguido com os demais elementos testemunhais e documentais do processo, em obediência às regras da ciência, da lógica e da experiência.

Sendo certo que as declarações do arguido (atento o seu interesse no desfecho do processo) deverão ser valoradas desde que não se mostrem contrariadas por outros meios de prova credíveis e pelos dados objetivos consistentes, nomeadamente, nas partes dos veículos danificadas, em consequência do embate.

Neste particular, há que atender à distância de projeção do corpo da vítima (20,5 m), às graves lesões, descritas no relatório de autópsia (que foram causa direta e necessária da sua morte) e à ausência de rastos de travagem, os quais são demonstrativos da dinâmica e violência do embate, incompatíveis com a condução cuidada e a velocidade adequada, bem como, com o surgimento inesperado da vítima na via de trânsito, nas circunstâncias descritas pelo arguido, conforme infra se explicitará.

Ainda no que respeita às declarações do arguido, há que sublinhar que este limitou-se afirmar que sentiu um embate no carro, não viu a vítima a circular à sua frente nem a bicicleta (gravação áudio 1:50 a 2:10), a qual só podia ter vindo da ciclovia (gravação áudio 6:33), referiu que circulava à velocidade de 30/40 Km/h (gravação áudio 7:09) e negou ter sido encandeado pelo sol (gravação áudio 27:13). No entanto, resulta do teor dos documentos juntos aos autos os seguintes dados objetivos que foram pacificamente aceites pelo arguido e pelas testemunhas:

a. O arguido conhece bem o local pois, naquela altura, fazia aquele trajeto todos os dias, à mesma hora (gravação áudio 1:35);

b. O embate ocorreu junto ao limite direito da faixa de rodagem, em conformidade com o croquis de fls. 209 e em consequência dos vestígios aí existentes (o arguido e a testemunha EE confirmaram que o embate ocorreu no local que consta do croquis);

c. O local do embate configura uma reta com boa visibilidade, em toda a largura e extensão, a faixa de rodagem (atento o sentido de oeste para este) apresenta uma berma de 0,85m e paralelamente à faixa de rodagem, do lado direito, existe uma ciclovia com a largura de 3,00m, separada da faixa de rodagem por uma zona ajardinada que culmina num lancil, existindo ainda paralelamente à via um abaloamento para passagem de águas (cfr. fotografias de fls. 210 a 212);

d. Era possível o arguido ver o velocípede a uma distância de, pelo menos, 100 m (cfr. fotografias de fls. 210 a 212, fls. 231 e depoimento da testemunha DD -gravação áudio 10:02);

e. O embate ocorreu depois de o arguido ter percorrido cerca de 420 metros desde o início da reta (cfr. fls. 221 e depoimento da testemunha DD - gravação áudio 13:40);

O veículo conduzido pelo arguido não deixou rastos de travagem (cfr. foto 6 de fls. 207, croquis de fls. 209 e depoimento da testemunha DD - gravação áudio 57:20) e ficaram marcas de riscos do velocípede no pavimento demonstrativas de ter sido arrastado (cfr. foto 3 de fls. 206 e depoimento da testemunha EE - gravação áudio 11:13);

g) Aquando do embate, o arguido conduzia fazendo uso da “pala” para o sol (cfr. fotografia 4 de fls. 206 e fls. 231);

h) Em consequência do embate, o veículo sofreu danos no lado direito do para-brisas que ficou estilhaçado e na parte lateral direita e o velocípede sofreu danos na roda traseira (cfr. fotografia 4 de fls. 206 e fotografia 5 de fls. 207);

i) Após a colisão, o corpo da vítima ficou fora da faixa de rodagem e a 20,5 m do local do embate (cfr. croquis de fls. 209, tendo a testemunha EE explicado que nesse local existia uma “poça de sangue” - gravação áudio 5:59);

j) Em consequência do embate, a vítima sofreu fratura de crânio, de coluna e de costelas, com laceração da espinal medula de órgãos torácicos e abdominais, o que causou o seu óbito, no local do embate, às 7h54m (cfr. relatório de autópsia de fls. 11 - 113).

Da verificação destes factos conhecidos (precisos, concordantes e incontroversos) -retirando deles ilações baseadas num juízo de normalidade (de probabilidade) alicerçado na lógica e em regras da experiência comum que permitam chegar a um resultado verdadeiro (próximo da certeza ou para além de toda a dúvida razoável) - é possível reconstruir a dinâmica do acidente.

Porém, com fundamento nestes elementos, o Tribunal a quo retirou conclusões que, no nosso modesto entender, não se mostram suportadas nas regras da lógica e da experiência.

A afirmação do arguido de que a vítima entrou inesperadamente na sua faixa de rodagem vinda da ciclovia mostra-se contrariada pelas características da via (atentos os obstáculos existentes entre a ciclovia e a faixa de rodagem) conjugadas com a visibilidade da reta onde ocorreu o embate.

Por outro lado, atentas as explicações avançadas pela testemunha EE, com

base na sua experiência, de que caso o velocípede entrasse na via, vindo da ciclovia, “o corpo enrolava-se sobre o carro … que é normalmente o que acontece nos cruzamentos com as trotinetes” (gravação áudio 22:54) e não teria sido projetado a 20,5 m para fora da faixa de rodagem, após ter sido elevado e caído sobre a parte direita do vidro para-brisas do veículo conduzido pelo arguido, provocando o seu estilhaçamento (considerando que o velocípede foi arrastado, o estilhaçamento do vidro para-brisas só pode ter sido provocado pela projeção do corpo da vítima).

A testemunha DD concretizou, de forma credível e sustentada, que, antes do embate, o velocípede “circulava à frente do veículo automóvel” (gravação áudio 5:50) pois, caso o velocípede entrasse na faixa de rodagem vindo da ciclovia ou da zona ajardinada da ciclovia, invadindo a faixa de rodagem inesperadamente, ele não seria projetado para aquela posição (gravação áudio 29:00), o velocípede “estaria na faixa de rodagem bem como o seu condutor” (gravação áudio 30:14).

Por conseguinte, conjugando estes depoimentos com o teor do relatório técnico de avaliação de acidente de viação de fls. 213 a 237, bem como com os dados objetivos supra referidos, tudo conjugado com as regras da ciência, da lógica, da experiência e normalidade do acontecer, podemos concluir, para além de qualquer dúvida razoável, que o arguido e a vítima circulavam no mesmo sentido e na mesma via de trânsito, seguindo o velocípede, conduzido pela vítima, à frente do veículo conduzido pelo arguido, junto ao limite direito da faixa de rodagem. Tanto mais que o veículo conduzido pelo arguido embateu na roda traseira do velocípede conduzido pela vítima, após ter percorrido cerca de 420 m após a rotunda convergida com a Rua ....

Por outro lado, apesar de o Tribunal a quo ter concluído que “o arguido não estava encandeado pelo sol (não obstante as testemunhas BB e CC afirmarem o encandeamento pelo sol, da análise do documento de fls. 339v a 341 conjugada com as declarações do arguido, conclui-se que tal encandeamento não se verificava)”, não justifica o motivo pelo qual, quanto a este concreto aspeto, valoriza as declarações do arguido em detrimento dos depoimentos destas testemunhas e opta por valorar, também sem qualquer justificação, o teor do documento de fls. 339v a 341 (junto pelo arguido com a contestação - cfr. art. 24º) destinado a “designers e consumidores de energia solar” e relativo à posição solar no dia, hora e local do sinistro, do qual nada resulta quanto ao possível encandeamento pela luz solar, reportado ao local do embate, por referência ao sentido de circulação do veículo conduzido pelo arguido e a este indivíduo em concreto.

Nessa medida, a existência, ou não, do encandeamento terá de resultar da conjugação de outros elementos de prova que, conforme infra se demonstrará, contrariam a versão do arguido, a este respeito.

Neste campo, assume especial relevância a circunstância de o arguido não ter visto a vítima nem o velocípede antes do embate (apesar de se tratar de um local com boa visibilidade, em toda a largura e extensão, e ser-lhe possível ver o velocípede a uma distância de, pelo menos, 100 m) conjugada com o facto de, aquando do embate, o arguido conduzir fazendo uso da “pala” para o sol, o que encontra justificação na posição baixa do sol e no possível encandeamento mencionados pelas testemunhas BB2, CC3, DD4 e EE5.

Ora, não tendo sido avançada qualquer outra circunstância justificativa de o arguido não ter visto a vítima6, os mencionados depoimentos combinados com os dados objetivos (o arguido não viu a vítima nem o velocípede, apesar da boa visibilidade do local, e conduzia fazendo uso da “pala” para o sol), tudo conjugado com as regras da lógica, da experiência e com a normalidade do acontecer leva-nos a concluir (contrariamente à convicção do Tribunal a quo) que o arguido não viu a vítima nem o velocípede por ter ficado encandeado pelo sol. No que respeita à velocidade a que circulava o arguido, este afirmou que circulava à velocidade de 30/40 Km/h e o Tribunal a quo extraiu da prova produzida as conclusões de que “a velocidade a que circulava o arguido é desconhecida (…) As localizações dos veículos e da vítima (tal como indicadas pelo arguido, pois não foram feitas outras diligências para esse apuramento) não são compatíveis com uma velocidade excessiva, mas sim com a velocidade de 40km/h afirmada pelo arguido (considerando que o arguido afirmou circular a uma velocidade máxima de 40km/h e imobilizou a viatura a cerca de dez metros do corpo da vítima); (…) A velocidade a que o arguido conduzia – 40km/h – não é compatível com um embate que tenha como consequência as lesões apresentadas pela vítima (cfr. autopsia médico legal de fls. 111 a 113 e 127)

_____________________

.2 Consta da motivação da matéria de facto que “a testemunha afirmou que, à hora que efectua aquele trajecto, existe encadeamento do sol,facto que o obriga a baixar a pala de protecção solar e a reduzir a velocidade.

3 Consta da motivação da matéria de facto que “a testemunha confirmou … a posição do sol (i.e. “baixinho, e a dificultar a visibilidade” sic”.

4 Consta da motivação da matéria de facto que “a testemunha confirmou que o sol estava baixo e passível de encadear porque tinha posição inferior a 45º e estaria de frente para o veículo automóvel conduzido pelo arguido”.

5 Consta da motivação da matéria de facto que a testemunha “confirmou … a possibilidade do nascer do sol à hora do acidente”.

6 Para além da avançada pelo arguido (entrada inesperada da vítima na sua faixa de trânsito vinda da ciclovia) que, atentos os fundamentos expostos, não é verosímil.

No entanto, apesar de não ter sido apurado onde ficaram o veículo e o velocípede após o embate7 (não constam do croquis por terem sido movimentados após o embate8), resultou da prova produzida que o arguido não viu a vítima nem o velocípede antes do embate (o que, como vimos, decorre da inexistência de rastos de travagem), que o corpo da vítima foi projetado a cerca de 20,5m do local do embate e que esta sofreu graves lesões, descritas no relatório de autópsia, que foram causa direta e necessária da sua morte, no local do embate.

Efetuando a devida ponderação destes dados objetivos, com base nas regras da lógica e da experiência, somos forçados a concluir que o arguido conduzia a uma velocidade não concretamente apurada, mas certamente excessiva face às condições que se apresentavam por ser inadequada às condições meteorológicas ou ambientais, nomeadamente perante o referido encandeamento solar.

Por fim, cumpre acrescentar que não resultou da prova produzida que o acidente tenha sido causado por qualquer falha por parte do condutor do velocípede (que conduzia com uma taxa de álcool no sangue de 0,62g/L, sem estar munido de nenhum equipamento de segurança, dispositivo de iluminação ou de aviso de presença).

Como bem se diz no Relatório Técnico de Acidente de viação (cfr. fls. 231) “não obstante o facto de o condutor do velocípede conduzir sob efeito de álcool, constituindo uma infração rodoviária grave, tendo-se apurado uma taxa de álcool no sangue de 0,62 +/-0,08 g/L, atendendo ao modo como ocorreu o sinistro, é entendimento que não terá tido influência as causas do sinistro. A apreciação foi reforçada com os danos resultantes no veículo automóvel, visíveis na parte direita daquele, indiciando que o velocípede circulava pelo lado direito da via de circulação quando ocorreu a colisão ”.

7 O que é, desde logo, impeditivo do uso da fórmula matemática pelo Tribunal a quo que, para o efeito, usou, para além do local do embate, o local de paragem do veículo automóvel indicado pelo arguido nas suas declarações, o que não encontra sustentação em nenhum outro meio de prova nem o Tribunal a quo explica a valoração de tais declarações quanto a este aspeto em concreto,

8 Cfr. Participação de Acidente de fls. 4 e 5, croquis de fls. 6 e depoimento da testemunha EE (gravação áudio - 3:20) que afirmou que os mesmos já não se encontravam no local onde ocorreu a colisão nem no local onde ficaram imobilizados após essa colisão..

Face ao exposto, a decisão proferida em função do princípio in dubio pro reo não merece acolhimento.

(…)

Com efeito, este princípio (do in dubio pro reo) resume-se a uma regra de decisão: produzida a prova e efetuada a sua valoração, subsistindo no espírito do Julgador uma dúvida insanável sobre a verificação ou não de determinado facto, deve o Julgador decidir sempre a favor do arguido, dando como não provado o facto que lhe é desfavorável.

Posto isto, perante versões contraditórias sobre os factos, considera-se legítima a dúvida sobre a verdade do ocorrido.

No caso em apreço e nos termos expostos, a prova produzida é demonstrativa da dinâmica do acidente, inexistindo a possibilidade razoável de uma solução alternativa ou de uma explicação racional e plausível diferente da que mereceu o nosso acolhimento, pelo que, inexistindo uma encruzilhada dubitativa, não há necessidade de fazer apelo ao princípio in dubio pro reo.

Também resulta da prova produzida, em conformidade com o exposto, que o acidente e o consequente decesso de HH deveram-se ao exercício, por parte do arguido, de uma condução descuidada, desatenta e imprudente, o qual desprezou os deveres de precaução e de respeito pelas normas estradais, atentas as circunstâncias referidas. Por conseguinte, impõe-se considerar como provados os seguintes factos (eliminando-os dos factos não provados): (vide-factos já antes transcritos em B). (…)]

*

1.6 – Remetido a este STJ, o MP emitiu parecer sublinhando a limitação de competência deste apenas quanto à matéria de direito e à análise de vícios de decisão e, no demais, sufragando integralmente a argumentação do Senhor Procurador Geral Adjunto na Relação de Lisboa, que deu por reproduzida, no sentido de que o recurso deve ser julgado improcedente, mantendo-se a decisão recorrida.

1.7- Efectuado exame preliminar e vistos legais foram remetidos os autos à Audiência, cumprindo agora explicitar a deliberação tomada.

Assinala-se que, em audiência, quer a defesa do recorrente quer o MPº, em alegações, mantiveram as posições já assumidas nos autos.

II- Delimitação das questões a conhecer no âmbito do presente recurso

2.1- Tal como tem sido, aliás, posição pacífica da jurisprudência, o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões, devidamente congruentes, que o(s) recorrente(s) extrai(am) da respectiva motivação, sem prejuízo da ponderação das questões que sejam de conhecimento oficioso. (2)

2.2- Assim, atentas as conclusões formuladas pelo recorrente, as questões a decidir no presente recurso, sem prejuízo das que possam existir de conhecimento oficioso, por ordem de precedência lógica, são:

I-. O âmbito do recurso para o STJ e a possibilidade ou não de impugnação da matéria de facto quando a Relação condene, em recurso interposto pelo MPº de decisão absolutória na 1ª instância.

II - A nulidade da decisão do TRL por violação do princípio do contraditório ao não ter oficiosamente convocado o arguido para uma audiência nesse Tribunal de recurso e ter decidido apenas em Conferência.

III- A verificação de vício de erro notório - (dinâmica do acidente incompatível com as regras da experiência) e da violação do princípio in dubio pro reo

2.3 - O Direito

2.3.1. O âmbito do recurso para STJ e a possibilidade ou não de impugnação da matéria de facto quando a Relação condene em recurso de decisão absolutória da 1ª instância.

Vejamos.

Como se viu já, o presente recurso foi interposto para o STJ pelo arguido, na sequência de uma decisão do Tribunal da Relação que, após recurso do MPº, reverteu a decisão absolutória da 1ª instância para condenação na pena de 1 ano e 6 meses de prisão suspensa na sua execução por igual período, na condição de proceder ao pagamento aos demandantes da quantia de € 5.000,00 (cinco mil euros), por conta da indemnização(…) e na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de oito meses, nos termos do art. 69º, n.º 1, al. a) do Código Penal.

Nos termos do art.º 400º nº1 alínea e) do CPP o recurso de acórdão da Relação que condene, quando antes se absolveu em 1ª instância, é admissível para o STJ.

Porém, o recurso para o STJ visa exclusivamente matéria de direito, sem prejuízo do disposto nas alíneas a) e c) do nº1 do artº432º -(cfr artº 434º do CPP)

Por sua vez, estas alíneas remetem para os fundamentos de recurso com base em alegação de vícios e nulidades ex vi do disposto no artº 410º nºs 2 e 3 do CPP)

Daqui decorrerá que, numa interpretação literal, a impugnação da matéria de facto em via de recurso para o STJ não será admissível.

Não obstante, entende o arguido que tal lhe cerceia o direito a um 2º grau de recurso, gerando-se aí uma interpretação inconstitucional.

O arguido teve conhecimento do sentido do recurso por parte do MP e dos argumentos defendidos por este, ao qual a Relação deu razão. Foi notificado desse recurso e teve direito a resposta e a apresentar os seus contra-argumentos acerca da mesma matéria de facto que esteve em discussão no julgamento em 1ª instância, direccionada para a resolução da questão de saber como ocorreu o embate.

Não se compreende pois, que possa vir dizer que a decisão foi propriamente uma surpresa, uma vez que sabia que esse resultado seria uma possibilidade que poderia decorrer da força de argumentos que o Tribunal da Relação pudesse vir a acolher, como efectivamente acolheu. Se assim não fosse, seria caso até para dizer que, se a decisão da Relação tivesse sido no sentido da improcedência do recurso, do mesmo modo poderia também constituir alguma surpresa para o MPº caso este se mantivesse no inconformismo e entendesse que a procedência da sua posição seria elevadamente expectável.

Dito de outro modo, nesta abordagem não competirá a este Supremo Tribunal verificar da correcção da avaliação da prova feita pelo tribunal recorrido, exceptuando os casos previstos no art.º. 11.º, n.ºs 3, als. a) e b), e 4, al. a), do CPP, pois conhece apenas de direito, conforme dispõe o art.º. 434.º, do CPP. Ficará pois prejudicado o conhecimento do recurso na vertente da impugnação alargada da matéria de facto.

Assim tem sido reafirmado pela jurisprudência do STJ, sendo certo que “(…) o STJ não pode sindicar a valoração das provas que tenha sido feita nas instâncias (na 1ª e na Relação). Se reapreciasse as provas produzidas no julgamento, estaria a introduzir um terceiro grau de jurisdição em matéria de facto, em clara violação do art.º 434.º do CPP.” – Ac. do STJ de 16/05/2019, Proc. n.º 476/15.1PELSB.L1.S1, também em anotação ao art.º 434.º, do Código de Processo Penal, Comentado, António Henriques Gaspar e outros, 3.ª edição, Almedina 2021.

Não obstante, sabemos que esta limitação de recurso para o STJ com restrição da impugnação ampliada da matéria de facto tem sido criticada e até considerada como inconstitucional. Por todos, e por economia de esforço, remetemos para o desenvolvimento e considerações sobre o tema em Helena Morão, in “ A revista penal em revista”, pags 144 e ss, in Revista do STJ, nº2 Julho a Dez 2022, Edº STJ].

Por sua vez, sobre esta controvérsia também o MPº no seu parecer neste STJ teve oportunidade de salientar algumas notas que são de manifesto interesse e aqui se transcrevem, em síntese:

“(…)

“O regime de recursos para o Supremo Tribunal de Justiça, tem-se sublinhado em jurisprudência reiterada, efectiva, de forma adequada, a garantia do duplo grau de jurisdição, traduzida no direito de reapreciação da questão por um tribunal superior, quer quanto a matéria de facto, quer quanto a matéria de direito, consagrada no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição enquanto componente do direito de defesa em processo penal, reconhecida em instrumentos internacionais que vigoram na ordem interna e vinculam o Estado Português ao sistema internacional de protecção dos direitos humanos (artigos 14.º, n.º 5, do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e 2.º do Protocolo n.º 7 à Convenção Para a Protecção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais). «O direito de defesa pressupõe a existência de um duplo grau de jurisdição, na medida em que o direito ao recurso integra o núcleo essencial das garantias de defesa processualmente asseguradas» (Gomes Canotilho / Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 4ª edição revista, 2007, Vol. I, p. 516).

Como tem sido repetido pelo Tribunal Constitucional, em jurisprudência firme, o artigo 32.º, n.º 1, da Constituição «não consagra a garantia de um triplo grau de jurisdição» ou de «um duplo grau de recurso», «em relação a quaisquer decisões condenatórias» (por todos, os acórdãos 64/2006, 659/2011 e 290/2014) - assim, os acórdãos de 14.03.2018, ECLI:PT:STJ:2018:22.08.3 JALRA.E1.S1.48 e de 12.12.2018, Proc. 211/13.9GBASL.E1.S1, www.stj.pt/wpcontent/uploads/2019/06/ criminal sumarios 2018.pdf bem como o acórdão de fixação de jurisprudência n.º 14/2013 (infra), 14. Tratando-se de «conceitos autónomos e não confundíveis», diz o Tribunal Constitucional em jurisprudência recente, importa estabelecer distinção entre a garantia do direito ao recurso, como «faculdade conferida à parte vencida de suscitar o reexame de uma decisão que lhe foi desfavorável e da qual discorda com o intuito de corrigir erros e de ver proferida uma decisão que vá ao encontro das suas expectativas», e garantia de um duplo grau de jurisdição, entendida como «a possibilidade de reexame efectuado por um órgão jurisdicional distinto e hierarquicamente superior ao que apreciou a causa pela primeira vez, com prevalência sobre este» (acórdão do Tribunal Constitucional n.º 429/2016, n.º 16), com as consequências daí decorrentes no que diz respeito à admissível restrição do direito de defesa”-cfr Ac. STJ de 30.10.2019, relator Lopes da Mota, texto integral em: https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/b6d54695bc7a58e1802584a3005d70c3?Open Document

Sobre a extensão do duplo grau de jurisdição, pronunciou-se este Supremo Tribunal, em acórdão de 2021, esclarecendo que “(...) o regime do duplo grau de jurisdição da matéria de facto, [traduz-se] num reexame pontual e parcial da prova, porque restrito aos precisos pontos de facto que o recorrente entende incorrectamente julgados e às concretas razões de discordância e prejudica e pode mesmo inviabilizar o exercício legítimo do princípio do contraditório pelos demais sujeitos processuais com interesse juridicamente relevante no desfecho do recurso”-(cfr 2 Ac. STJ de 06.10.2021, relatora Cristina Almeida e Sousa, texto integral disponível em:

http://www.gde.mj.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/6def3a5fa8bd03b28025877600455d31?OpenDocument

Como tem vindo a decidir o Tribunal Constitucional, “O direito fundamental ao recurso não é um direito absoluto, não sendo, portanto, imune a restrições legais. Tal como acontece com os restantes direitos, liberdades e garantias inscritos na Constituição, às restrições a este direito aplica-se o regime decorrente do artigo 18.º da Constituição. Isto significa, nomeadamente, que a restrição é possível em caso de colisão com outros bens constitucionais, devendo, nesse caso, proceder-se a uma ponderação entre os sacrifícios impostos ao arguido e os ganhos de racionalidade, celeridade, eficácia e eficiência do sistema de administração da justiça, globalmente considerado.- Acórdão do TC n.º 524/2021. texto integral em:
https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20210524.html

A redação atual do artigo 400º, nº 1, al e), do CPP, introduzida pala Lei nº 94/2021, de 21 de dezembro, ao permitir o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça de decisões do Tribunal da Relação que condenem arguido absolvido em primeira instância, veio dar resposta à recomendação do Comité dos Direitos Humanos no sentido de compatibilizar a nossa lei processual penal com o artigo 14.º, n.º 5, do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos.- “5 - Qualquer pessoa declarada culpada de crime terá o direito de fazer examinar por uma jurisdição superior a declaração de culpabilidade e a sentença, em conformidade com a lei”.

(Vide texto integral em: https://gddc.ministeriopublico.pt/sites/default/files/documentos/pdf/pidcp-comentariogeral32-novo.pdf )

Todavia, o exercício do direito fundamental ao recurso fica, nestas circunstâncias, limitado aos poderes de cognição do STJ, por força das disposições conjugadas dos artigos 400º, nº 1, al. e), 432.º, n.º 1, al. b), e 434º, todos do CPP.

Como melhor explica o Senhor Juiz Conselheiro Lopes da Mota, “Em conclusão, pode, pois, afirmar-se que a alteração à al. e) do n.º 1 do artigo 400.º do CPP, levada a efeito pelo artigo 11.º da Lei n.º 94/2021, 21 de dezembro, tomando em consideração a jurisprudência do TC, em particular no que respeita à admissibilidade de recurso para o STJ de decisões de condenação em penas de prisão inferiores a 5 anos (Acórdão n.º 595/2018) e em penas de multa (Acórdão n.º 31/2020) proferidas pelo tribunal da Relação em recurso de decisões de absolvição em 1.ª instância, satisfaz a obrigação de cumprimento de obrigação internacional do Estado Português enquanto Estado-Parte do PIDCP, espoletada pelo acórdão do STJ de 30.10.2019, proferido no processo n.º 455/13.GBCNTC2.S1, no respeito pelo direito internacional sobre direitos humanos enquanto princípio constitucional implícito (art.º 7.º da Constituição).

Esta alteração da al. e) não comporta, porém, qualquer efeito nos poderes de cognição do STJ, limitados ao reexame da matéria de direito (artigo 434.º do CPP)”(cfr: in A Alteração ao Artigo 400.º, N.º 1, al. e), do CPP pela Lei N.º 94/2021, de 21 de dezembro: recurso para o STJ de decisão de condenação pela relação, em recurso, em caso de absolvição em 1.ª instância. Colóquios do STJ. Pp. 34 e 35. Texto integral disponível em:

https://www.stj.pt/wp-content/uploads/2024/02/livro-digital-coloquio-processo-penal-2022.pdf

(...)”]

Esta enunciada controvérsia pode evidenciar-se também no texto «Recorribilidade para o supremo tribunal de justiça - A impugnação da condenação em segunda instância, de José António Barreiros- na publicação digital COLÓQUIOS no STJ, Publicação das Intervenções Maio de 2022»]

Acrescentaremos ainda, pelo relevo que dela se retira, a linha de pensamento seguida pelo Ac do Tribunal Constitucional nº 492/2024 (in Diário da República n.º 219/2024, Série II de 2024-11-12), quando ali se refere que:

“(…)

a jurisprudência constitucional em matéria de direito ao recurso, entendido enquanto pilar das garantias de defesa do arguido em processo penal, nos termos do artigo 32.º da CRP, tem sofrido algumas oscilações, ao longo do tempo. No entanto, é possível dela extrair alguns corolários perenes, comuns até a decisões de sentido oposto, e plenamente aplicáveis no caso em apreço.

Assim, e como ponto de partida, é pacífica a distinção entre direito ao recurso e duplo grau de jurisdição. O primeiro visa assegurar o reexame de uma decisão desfavorável à parte vencida e o segundo garantir a possibilidade de o reexame de uma decisão jurisdicional ser levado a efeito por um órgão jurisdicional distinto e hierarquicamente superior ao do juízo originário. Contudo, ainda que se reconheça uma estreita interconexão entre ambos, e que, em muitas circunstâncias, a garantia de duplo grau de jurisdição concretize o direito ao recurso, da existência daquele não pode deduzir-se, automaticamente, a garantia deste último, que tem um valor próprio e destacado ao abrigo do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição.

Em segundo lugar, a jurisprudência é constante e reiterada no sentido de reconhecer que “a restrição do recurso de segundo grau perante o Supremo Tribunal de Justiça adotada pelo legislador encontra, portanto, justificação em interesses de celeridade e eficiência da administração da justiça penal, dignos de proteção à luz do texto constitucional. Apesar disso, indispensável será, ainda, que a compressão do direito fundamental em causa na solução da limitação do recurso, para além de adequada e mesmo necessária, tendo em vista, designadamente, resguardar a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça aos casos de maior merecimento penal, não se apresente como excessiva para assegurar os fins prosseguidos, designadamente tendo em vista os efeitos que produz na garantia de defesa do arguido.” (cfr. Acórdão n.º 595/2018). Nestes termos, reconhece-se ao legislador um razoável espaço de liberdade de conformação, nesta matéria, tendo como limites a garantia da existência do duplo grau de jurisdição (que constitui uma condição necessária, mas não suficiente, daquele direito) e o respeito pelos princípios constitucionais, maxima, do princípio da proporcionalidade.

Em terceiro lugar, cabe notar que as divergências jurisprudenciais já assinaladas se situam no âmbito da delimitação das imposições constitucionais em matéria de direito ao recurso de decisões “condenatórias”.

A posição que prevaleceu no Acórdão n.º 523/2021 funda-se numa distinção entre “as exigências de tutela, no estrito plano do direito ao recurso, perante decisões condenatórias em pena de prisão efetiva (independentemente da respetiva quantificação) das decisões condenatórias em outras penas”, tendo-se entendido que só no caso da condenação em pena de prisão efetiva a Constituição exigiria a garantia de acesso ao STJ como concretização do direito ao recurso.

Todavia, mesmo no Acórdão n.º 31/2020, ficou claro que apenas no que se atém a decisões condenatórias pode entender-se estar em causa o conteúdo essencial das garantias de defesa, nos termos do artigo 32.º da CRP: “Isto porque somente após a prolação da decisão condenatória poderá o arguido dela recorrer. Antes disso, é-lhe impossível recorrer de uma condenação que ainda não existe. Daí decorre, na expressão do Acórdão n.º 429/2016, que se trata de uma “situação em que as garantias de defesa exigem o acesso a uma nova instância” (ponto 20). Caso contrário, estaríamos perante a supressão dos direitos constitucionais de defesa, especificamente, do direito ao recurso, o que conduziria a que os critérios que presidiram à escolha da pena e à determinação da sua medida concreta adquirissem definitividade, sem fiscalização jurisdicional que os reapreciasse.”

Independentemente da posição que se tome acerca dessa limitação, mas deixando aqui sublinhado que não vemos ainda razões de peso que determinem uma discordância da posição dominante, a qual aliás seguimos com a argumentação antes enunciada, concedendo no entanto que é matéria que continuará a suscitar aprofundamento jurisprudencial, temos em todo o caso nos presentes autos uma formulação impugnatória em sede de facto que, no essencial, se circunscreve sobretudo à caraterização da existência de um vício de erro notório decorrente da violação das regras da experiência, esse sim, indiscutivelmente cabível nos poderes de conhecimento deste STJ e a invocação da violação do principio in dubio pro reo.

Será pois a partir daí que delimitaremos, mais adiante, a nossa intervenção.

2.3.2- A nulidade da decisão do TRL por violação do princípio do contraditório ao não ter convocado o arguido para audiência.

2.3.2.1. Lemos da narrativa processual que, na sequência da absolvição do arguido na 1ª instância, o MPº recorreu para o Tribunal da Relação, pedindo a reversão da decisão, no sentido da condenação, não tendo, porém, requerido julgamento do recurso em audiência.

No parecer do MP na Relação foi também considerado que o recurso deveria ser julgado em conferência. Na resposta ao parecer, e tendo já conhecimento de toda a posição assumida pelo recorrente MPº, bem como dos fundamentos com que suscitou a reavaliação da decisão de absolvição, a defesa do arguido nada referiu no sentido de, caso houvesse tal reversão decisória, dever ser ouvido previamente em audiência, ainda que não tenha sido recorrente e a lei processual apenas admita essa possibilidade a quem tem essa posição processual.

Contudo, apenas no recurso interposto para este STJ, apoiando-se no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 491/2021, o arguido veio suscitar a nulidade do acórdão recorrido por não ter sido oficiosamente designada audiência para ser ouvido.

Em síntese, indica que só tal convocação respeitaria a linha jurisprudencial do TEDH, sob pena de violação do seu direito a ser ouvido e a exercer o contraditório sobre uma decisão que lhe é desfavorável, pessoalmente e em audiência, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 119.º, al. c) do CPP, artigos 18.º e 32.º da CRP e artigo 6.º da CEDH.

Retrocedendo um pouco à narrativa da tramitação do recurso do MPº para o Tribunal da Relação, este concluiu ali a motivação pela seguinte forma:

“I. Nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 412.º nºs 3 e 4 do Código de Processo Penal, impugna-se a decisão proferida sobre a matéria de facto, por se entender que o tribunal a quo apreciou erradamente a prova, resultando tal erro da análise da prova produzida em audiência de discussão e julgamento, interpretada às luz das regras da lógica, da experiência e da normalidade.

II Foram incorretamente julgados todos os pontos constantes dos “Factos Não Provados” da sentença recorrida os quais deveriam ter sido, pelo Tribunal a quo, julgados provados (…)

As provas que impõem decisão diversa da recorrida quanto à matéria de facto impugnada consistem nas declarações prestadas em sede de audiência de discussão e julgamento pelo próprio arguido e pela testemunha DD, na participação de acidente de viação, anexo e croqui de fls. 4 a 6, 205 a 209, da reportagem fotográfica de fls. 210 a 212, do relatório de autópsia de fls. 112, 113 e 127 e do relatório técnico de acidente de viação de fls. 213 a 237

III. Face às declarações do arguido, prestadas em audiência de julgamento no dia 11-09-2023, gravadas através do sistema de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal, cujo início ocorreu pelas 10 horas e 04 minutos e o seu termo pelas 11 horas e 01 minutos, impunha-se decisão diversa quanto à factualidade não provada, devendo ter sido considerada provada a acusação, ainda que com algumas nuances, relativamente ao respetivo teor.

V Impõem decisão diversa da recorrida as seguintes passagens das declarações do arguido:

Gravação digital, do minuto 01:15 ao minuto 02:47;

Gravação digital do minuto 04:35 ao minuto 07:19;

Gravação digital, minuto 08:49 ao minuto 09:15.

VI. De tais passagens das declarações prestadas pelo arguido, impõe-se concluir que o i) o arguido embateu na bicicleta onde seguia HH, com a parte direita do veículo automóvel conduzido por si, tendo visualizado tal velocípede e o corpo de HH atrás do seu veículo, isto é, uns metros mais atrás do local onde parou o seu veículo automóvel após o embate; ii) que o embate provocou a projeção de algo sobre a parte direita do vidro para-brisas do veículo conduzido pelo arguido, pois que, na versão do arguido, o mesmo estilhaçou imediatamente após o embate, tendo o arguido deixado de conseguir ver; iii) que, após o embate, o arguido parou o seu veículo automóvel a cerca de 10 metros do corpo da vítima.

VII. Por outro lado, haverá ainda que conciliar as declarações do arguido com o depoimento da testemunha DD, Investigador da Polícia de Segurança Pública, prestada na audiência de julgamento do dia 11/09/2023, o que foi gravado através do sistema de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal, cujo início ocorreu pelas 11 horas e 02 minutos e o seu termo pelas
12 horas e 02 minutos e, bem assim, com o teor do relatório técnico de fls. 213 a 237.

VIII Com efeito, impõe decisão diversa quanto aos factos não provados o depoimento da testemunha DD, nas seguintes passagens:

Gravação digital, minuto 07:16 ao minuto 10:05

Gravação digital, minuto 13:10 ao minuto 14:16

Gravação digital, minuto 28:32 ao minuto 30:17

Gravação digital, do minuto 45:18 ao minuto 46:14.

IX. Ora, do depoimento da referida testemunha, conjugado com as fotografias juntas aos autos a fls. 210 a 212, e bem assim com o teor do relatório técnico de fls. 231 a 237, extrai-se, desde logo, que: i) o arguido percorreu cerca de 420, na reta onde ocorreu o embate, até ao ponto de colisão com o velocípede de HH, sendo que a visibilidade era boa e era possível verificar a existência do velocípede na via a 100 metros de distância; ii) que o surgimento do velocípede na via de forma inesperada e proveniente da ciclovia não era possível, atenta desde logo a posição final da vítima após o embate, a qual ficou na zona ajardinada

adjacente à faixa de rodagem e à ciclovia, conforme resulta da participação e croqui anexo de fls. 4 a 6;

iii) que o velocípede não entrou inesperadamente na faixa de rodagem sem que o arguido o pudesse ver.

X. Consta do croqui anexo à participação de acidente de fls. 4 a 6, que os veículos circulavam no sentido oeste/este, que o ponto de colisão ocorreu junto ao limite direito da faixa de rodagem e que o corpo da vítima após a colisão ficou posicionado a 20,50 metros do ponto de colisão.

XI Resulta das fotografias juntas aos autos, a fls. 12, que na faixa de rodagem onde ocorreu o acidente havia marcas de arrastamento do velocípede e que tal veículo sofreu danos na roda traseira, o que faz concluir que o que foi projetado sobre a parte direita do vidro para-brisas do veículo conduzido pelo arguido, provocando o estilhaçamento do mesmo, só pode ter sido o corpo de HH e que o velocípede sofreu embate na roda traseira.

XII. Do relatório da autópsia médico-legal junto aos autos a fls. 111 a 113 e 127 resulta que o ofendido HH sofreu graves lesões traumáticas, cranianas, vertebro medulares, torácicas, abdominais e do membro inferior esquerdo, compatíveis com acidente de viação, e causa adequada da sua morte.

XIII Face à extensão das lesões verificadas em HH, as mesmas não são compatíveis com uma velocidade de 40 km/hora (velocidade a que o arguido declarou seguir, tal como consta da sentença recorrida), mas com velocidade superior a essa.

XIV. Não poderia o Tribunal a quo invocar o princípio in dubio pro reo para fundamentar a decisão sobre a matéria de facto, pois que, para tanto, é necessário que se crie no espírito do julgador uma dúvida razoável e intransponível, o que, salvo o devido respeito, não sucedeu nos presentes autos, atenta a prova elencada.

XV. Perante a prova supra referida, o Tribunal a quo podia e devia ter afastado a credibilidade da versão apresentada pelo arguido quanto à velocidade a que circulava, bem como quanto à entrada inesperada do velocípede na faixa de rodagem em que seguia e onde se deu o embate, alcançando a convicção de que, face ao conteúdo das declarações do próprio arguido e do depoimento das testemunhas DD, e o teor da prova documental supra referida, o acidente ocorreu conforme descrito na acusação, ainda que com certas nuances, o que, no limite, levaria a uma comunicação da alteração não substancial dos factos, nos termos do artigo 358. º, n. º 1, do Código de Processo Penal e não à absolvição do arguido.

XVI Convicção essa que impunha, necessariamente, a conclusão de que o arguido seguia desatento ao que se passava à sua frente, distraído, razão pela qual não se apercebeu da presença do velocípede a circular na faixa de rodagem, e não reduziu a velocidade, nem se afastou do mesmo de forma a lograr efetuar ultrapassagem sem embater no velocípede.

XVII. Motivos pelos quais teriam de ser julgados parcialmente provados os pontos I a IV dos “Factos Não Provados ”, e integralmente provados os pontos V a XI dos “Factos Não Provados ” (numeração esta que deverá atender à correção dos lapsos de escrita contidos na sentença, o que foi determinado no despacho proferido a 02-11-2023).

XVIII Factos com os quais o Tribunal a quo não poderia deixar de proferir decisão de condenação do arguido pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de homicídio negligente, p. e p. pelo artigo 137. º, n.º 1 e 69. º, n. º 1, al. a), ambos do Código Penal, de que foi acusado ”. (…)”.

Na resposta ao recurso para a Relação, a defesa do arguido, tendo pedido acesso prévio às gravações efectuadas em audiência, pedido esse que foi concedido a 21-12-2023, considerou em síntese:

III. Do douto libelo acusatório não se alcança qual a concreta acção ou omissão do arguido que, nascircunstâncias do caso concreto, criou ou potenciou o risco de lesão da vida/integridade física do condutor do velocípede [cf Acórdão do Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, de 03.08.2009 (disponível emwww.dgsi.pt)].

IV. Da prova produzida em audiência de julgamento também não resultou provada - antes pelo contrário - qual a concreta acção ou omissão do arguido que criou ou potenciou o risco de lesão da vida/integridade física do condutor do velocípede, como veremos adiante.

V Em face do teor do douto despacho de acusação - que define o objecto do processo e demarca o thema probandum, bem como o thema decidendum - o julgador deve analisar a prova produzida a fim de julgar provados ou não provados os factos constantes do libelo acusatório bem como outros que, não constituindo alteração substancial dos factos constantes do despacho de acusação, sejam relevantes para a
descoberta da verdade e boa decisão da causa.

VI Da análise crítica e global da prova produzida em audiência de julgamento bem como dos documentos juntos aos autos e considerados na decisão, não só a douta sentença proferida não merece censura como não é objectivamente possível a alteração da matéria de facto defendida pelo Ministério Público, nas suas doutas alegações.

VII Das declarações [serenas, espontâneas e coerentes em si mesmas] prestadas pelo arguido [depoimento gravado através do sistema integrado de gravação digital, a 11/09/2023, dos 2m aos 57m17s] e, no essencial, corroboradas pelo depoimento das testemunhas CC, cujo depoimento
foi gravado no sistema integrado de gravação digital, no dia 11/09/2023 [dos 8m aos 9m], pela testemunha FF, cujo depoimento foi gravado no sistema integrado de gravação digital, no dia 13/09/2023 [dos 1m15s aos 5m30s e dos 6m30s aos 10m] e pela testemunha GG, cujo depoimento foi gravado no sistema integrado de gravação digital, no dia 13/09/2023 [dos 1m20s aos 6m e 6m30s aos 11m30s] assim como, em especial, dos documentos de fls. 10 a 13, 201 e 210 resulta provado que:

1. O Arguido em momento algum viu o velocípede a circular à sua frente;

2. O Arguido sentiu um embate no lado direito do seu veículo a cerca de 5 metros onde se encontrava o corpo de HH [o local desse embate foi identificado pelo Arguido junto à inscrição “20,50m” no croqui de fls. 6] e travou de imediato, imobilizando o veículo a cerca de 10 metros desse local, pelo que a distância de travagem não é superior a 15 metros e, por isso, consentânea com uma velocidade de 40km/h.

3. O Arguido nunca esteve encandeado pelo Sol;

4. O Arguido não circulava a mais de 40km/hora.

VIII. O apuramento da velocidade provável de um veículo faz-se, ao invés do sustentado pelo Ministério Público no seu recurso, através de fórmulas matemáticas devidamente testadas e de conhecimento público.

IX. E foi, precisamente, uma dessas fórmulas matemáticas que o douto tribunal a quo utilizou para apurar que o arguido, efectivamente, circulava a 40 km/hora no dia, hora e local do acidente, usando os locais de embate e paragem indicados pelo arguido nas suas declarações e cuja distância, entre si, não é superior a 20m.

X. Determinada a velocidade provável a que o veículo ligeiro circulava, é o momento de apurar se o embate de um veículo ligeiro, a 40km/hora, na roda traseira de um velocípede, é causa adequada das lesões identificadas no corpo do condutor do velocípede.

XI Para tal, há que atentar na extensão e gravidade das lesões verificadas no corpo do sinistrado HH e constantes do relatório da autópsia de fls. 111 a 113, que, sucintamente, permitem concluir por lesões graves na cabeça e em todo o tronco (incluindo lesões graves na generalidade dos órgãos internos).

XII Estas lesões, pela sua gravidade e extensão, não são compatíveis com o embate de um veículo ligeiro num velocípede a 40 km/h, nem a 50km/h; antes são compatíveis com um embate a velocidade muito superior a 60km/h (sendo relevante o facto de o embate se ter dado na roda traseira do velocípede conduzido
pela vítima).

XIII. A restante prova testemunhal produzida é inócua, nomeadamente o depoimento das testemunhas DD, [depoimento gravado no dia 11/09/2023, dos 1m aos 59m30s], EE [depoimento gravado no dia 11/09/2023, dos 1m aos 25m22s] e BB, amigo e colega da vítima que esteve no local do acidente, pouco após este ter ocorrido, nada soube esclarecer quanto à dinâmica do acidente.

XIV Da análise conjugada da prova testemunhal e documental é possível concluir que quer o veículo ligeiro quer o velocípede não foram, em momento algum, alvo de perícia.

XV. A fotografia 4 de fls. 11, captada no dia e local do acidente poucos momentos após a sua ocorrência, demonstra os concretos danos existente no veículo ligeiro, nomeadamente, ausência de danos na parte frontal direita e no capot, ausência de danos no espelho retrovisor do lado direito, pequeno vinco, na parte lateral direita, junto à embaladeira da roda da frente, pequena mossa por cima da porta da frente, do lado direito, junto ao tejadilho, pára-brisas parcialmente estilhaçado, do lado direito.

XVI Vem, então, o Ministério Público invocar dever ser julgado provado, grosso modo, que, seguindo o velocípede e o veículo do Arguido na mesma via de trânsito (e, portanto, no mesmo sentido de trânsito), o Arguido embateu com o lado direito do seu veículo na roda traseira do velocípede conduzido por HH e, nessa sequência, este tombou sobre a parte direita do vidro para brisas do veículo conduzido pelo arguido, que imediatamente estilhaçou, tendo sido posteriormente projectado a cerca de 20,50m do local do embate

XVII Com o devido respeito, esta factualidade não pode ser julgada provada atenta a total ausência de prova neste sentido bem como o facto de esta dinâmica ser insusceptível de explicação pela ciência Física,pois não se compreende como pode um ligeiro, seguindo na mesma via e sentido trânsito do velocípede,embater violentamente com o lado direito na roda traseira deste.

XVIII Os danos existentes na parte lateral direita do veículo conduzido pelo Arguido também não são compatíveis com a versão agora proposta pelo Ministério Público.

XIX. Ficando por explicar como é que o corpo de HH era projectado cerca de 20 metros para a frente em vez de para o lado, no caso de um embate com a lateral direita do veículo.

XX. Assim como não é verosímil que o corpo inerte de um homem, após um embate, ao cair sobre o pára-brisas cause apenas um estilhaçamento parcial ao invés da destruição total do pára-brisas e deixa intacto o capot e, sobretudo, o espelho retrovisor direito.

XXI. Não se alcança, igualmente, da versão dos factos que o Ministério Público pretende ver provados, a gravidade e extensão das lesões verificadas no corpo de HH nem a concreta velocidade que o veículo do Arguido teria de atingir para, na sequência de um embate lateral na roda traseira do velocípede [como se disse, inexplicável pela Física], provocar as aludidas lesões.

XXII. Não basta julgar provados os factos que consubstanciam a eventual prática do crime pelo qual o arguido vem acusado pois os factos provados devem permitir, de forma lógica e racional, contar o que efectivamente sucedeu e demonstrar a lógica dos acontecimentos e das suas consequências.

XXIII. Da análise crítica e conjugada de toda a prova produzida não se logrou provar a versão dos factos constante da douta acusação assim como não permite dar como provada a versão dos factos que o Ministério Público, agora, pretende.

XXIV. A condenação em processo-crime não pode ser obtida a qualquer custo e com recurso a factos impossíveis ou improváveis mas sim com recurso a prova cabalmente produzida, que permita ao julgador não ter qualquer dúvida sobre os factos que julga provados.

XXV. Devendo manter-se a douta decisão recorrida por correcta e acertada”.

*

2.3.2.2. Remetido o recurso ao Tribunal da Relação o MPº emitiu parecer nos seguintes termos:

“(…) Com efeito, consideramos que a Digna Magistrada do Ministério Público junto da 1.ª Instância, identificou corretamente o objeto do recurso, argumentou com clareza e correção jurídica, o que merece o nosso acolhimento.

“(…)

No essencial no recurso interposto pelo Ministério Público sustenta-se que a douta sentença de 16/10/2023 do Juíz ... do Juízo Local Criminal do ... que absolveu o Arguido AA da prática, como autor material, de um crime de homicídio negligente, previsto e punido pelos artigos 137.º, n.º 1 e 69.º, n.º 1, alínea a), todos do Código Penal deve ser revogada e substituída por outra que condene o arguido pela prática do mencionado crime.

Analisados os fundamentos do recurso, acompanhamos o recurso apresentado pela Digna Magistrada do Ministério Público junto da 1.ª instância, aderindo-se à argumentação oferecida, que se subscreve e aqui se dá por transcrita.

Pelo exposto, somos do parecer de que o Recurso interposto pelo Ministério Público junto da 1ª Instância deve ser julgado procedente e, consequentemente, a sentença recorrida deve ser revogada e substituída por outra que julgue provada a matéria factual indicada e, em consequência, condene o Arguido AA pela prática, em autoria material e na forma consumada, do crime de homicídio negligente, p. e p. pelo artigos 137.º, n.º 1 e 69.º, n.º 1, al. a), do Código Penal, de que foi acusado.”

Em resposta (3) a este parecer a defesa do arguido contrapôs:

“1. Não se concorda com o Douto Parecer do Digníssimo Senhor Procurador Geral Adjunto porquanto a douta sentença recorrida não merece qualquer censura, tendo feito correcta apreciação da prova produzida nos autos, quer documental quer testemunhal.

2. Ademais, analisado o douto recurso interposto pela Digna Magistrada do Ministério Público junto da 1.ª instância, verifica-se que a pretendida alteração da matéria de facto não é sustentada pela prova produzida em julgamento, seja a prova documental seja a prova testemunhal.

3. Mal se compreendendo que seja claro que um veículo ligeiro a circular na mesma via e sentido de trânsito de um velocípede consiga embater com o seu lado direito na roda traseira deste.

4. Assim como não se alcança que seja claro que o embate de um corpo inerte num veículo automóvel, após a sua projecção, provoque apenas duas pequenas mossas na parte lateral direita do veículo e um estilhaçamento parcial do pára-brisas.

5. E não provoque, simultaneamente, danos, por exemplo, no espelho retrovisor direito do veículo ligeiro que se mostra intacto.

Pelo exposto, e atento o demais invocado nas conclusões da resposta ao recurso, que aqui damos por reproduzidas, afigura-se-nos que a douta sentença recorrida deve ser mantida.”

Nesta sequência foi então marcada conferência no Tribunal da Relação e decidido o recurso nos termos já mencionados.

2.3.2.3. Por sua vez, o Tribunal da Relação abordou a impugnação de facto nos seguintes termos:

[“Apreciação do recurso

Impugnação da decisão sobre a matéria de facto quanto aos pontos I a IX da matéria de facto dada como não provada, bem como dos factos considerados não provados na sequência do despacho proferido em 02.11.2023, nos termos do art. 412º, nº 3 e 4 do C.P.Penal, e violação do princípio in dubio pro reo

O recorrente defende que existe erro de julgamento quanto aos mencionados factos da matéria de facto dada como não provada (conclusões II, XVII e XVIII).

O erro de julgamento (previsto no art. 412º, nº 3 do C.P.Penal) ocorre quando o Tribunal recorrido considere provado um determinado facto, sem que dele tivesse sido feita prova pelo que deveria ter sido considerado não provado, ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado.

Nesta situação de erro de julgamento, o recurso quer reapreciar a prova gravada em primeira instância e a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente, no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos nº 3 e 4 do art. 412º do C.P.Penal.

Quando se pretenda a impugnação ampla da decisão de facto, o recorrente tem de cumprir o aludido ónus de tríplice especificação, impondo-se que o recorrente, nos termos do disposto no art. 412º, nº 3 do C.P.Penal, especifique:

“a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b. As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;

c. As provas que devem ser renovadas”.

A especificação dos “concretos pontos de facto” traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam da sentença recorrida e que se consideram incorretamente julgados, a especificação das “concretas provas” só se satisfaz com a indicação do conteúdo especifico do meio de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas “provas” impõem decisão diversa da recorrida e a especificação das “provas que devem ser renovadas” implica a indicação dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento em 1ª instância cuja renovação se pretenda, o que pressupõe a existência de um dos vícios previstos no artigo 410º, nº 2, do C.P.Penal (no atual quadro legal a renovação, na Relação, da prova que foi produzida em1ª instância só é admitida se se verificarem os víciosreferidos nas alíneas do nº 2 do artº 410º e houver razões para crer que aquela permitirá evitar o reenvio do processo - artº 430º do C.P.Penal).

“Relativamente às duas últimas especificações recai ainda sobre o recorrente uma outra exigência: havendo gravação das provas, essas especificações devem ser feitas com referência ao consignado na acta, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens (das gravações) em que se funda a impugnação (não basta a simples remissão para a totalidade de um ou vários depoimentos), pois são essas que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo tribunal, sem prejuízo de outras relevantes (n.º 4 e 6 do artigo 412. º do C.P.P.), salientando-se que o S.T.J, no seu acórdão n.º 3/2012, publicado no Diário da República, 1.ª série, N.º 77, de 18 de abril de 2012, fixou jurisprudência no seguinte sentido: «Visando o recurso a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, com reapreciação da prova gravada, basta, para efeitos do disposto no artigo 412.º, n.º 3, alínea b), do CPP, a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas, na ausência de consignação na acta do início e termo das declarações». Em síntese: para dar cumprimento às exigências legais da impugnação ampla tem o recorrente nas suas conclusões de especificar quais os pontos de facto que considera terem sido incorrectamente julgados, quais as provas (específicas) que impõem decisão diversa da recorrida, bem como referir as concretas passagens/excertos das declarações/depoimentos que, no seu entender, obrigam à alteração da matéria de facto, transcrevendo-as (se na acta da audiência de julgamento não se faz referência ao início e termo de cada declaração ou depoimento gravados) ou mediante a indicação do segmento ou segmentos da gravação áudio que suportam o seu entendimento divergente, com indicação do início e termo desses segmentos (quando na acta da audiência de julgamento se faz essa referência - o que não obsta a que, também nesta eventualidade, o recorrente, querendo, proceda à transcrição dessas passagens)” - cfr. Acórdão deste TRL de 02.12.2020, Proc. nº 3606/15.0T9SNT.L1-5. Se o recorrente assim proceder pode o tribunal de recurso reapreciar a prova produzida concretamente indicada e vir a modificar a decisão quanto à matéria de facto, nos termos do artº 431º, al. b) do C.P.Penal. (…)

Por conseguinte, o recurso amplo da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento nem a reapreciação total dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes uma reapreciação sobre a matéria impugnada, com base na audição ou análise das provas concretamente indicadas, sem prejuízo de o tribunal de recurso poder ouvir e visualizar outras passagens que não as indicadas (nº 6 do artº 412º do C.P.Penal), procurando indagar sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos concretos pontos de facto impugnados que o recorrente especifique como incorretamente julgados.

Nessa medida, na reapreciação da prova há que articular os poderes de conhecimento do tribunal de recurso com os princípios relativos à produção e à valoração da prova no tribunal de 1.ª instância, especialmente com o princípio da livre apreciação da prova, consagrado no artigo 127º do C.P.Penal (nos termos do qual, salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente), e com princípio do in dubio pro reo (postulado do princípio da presunção de inocência - consagrado no art. 32º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa - que impõe a absolvição sempre que a prova não permite resolver a dúvida acerca da culpabilidade ou dos concretos contornos da atuação do acusado e constitui um verdadeiro limite normativo ao princípio da livre apreciação da prova, regulando o procedimento do Tribunal quando tenha dúvidas sobre a matéria de facto), princípios que valem também para o tribunal de recurso. No entanto, nesse poder de fiscalização ou reapreciação o tribunal de recurso está condicionado pela ausência de imediação e de oralidade que acontece na grande maioria dos recursos em que tal questão é suscitada (pelo facto de não haver a produção direta da prova) e se realizam plenamente em 1ª instancia onde o tribunal “viu e ouviu o arguido, as testemunhas e os peritos, apreciou o seu comportamento não verbal, formulou as perguntas que considerou pertinentes da forma que entendeu ser mais conveniente e confrontou essas pessoas com a prova pré-constituída indicada pelos sujeitos processuais, tudo faculdades que o tribunal da Relação, pelo menos quando não é requerida a renovação da prova, não pode não beneficiar. Por isso, e não por força do princípio da livre apreciação da prova, o tribunal da 2ª instância não tem, quanto ao recurso da matéria de facto, os mesmos poderes que tinha a 1ª instância, só podendo alterar o aí decidido se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida - alínea b) do n.º3 do artigo 412.º do C.P.P.n (Acórdão deste TRL de 10.10.2007,Proc. nº 8428/2007-3).

Como bem refere o Acórdão deste TRL de 02.12.2020, supra referido, cumpre “não

olvidar, como é jurisprudência corrente dos nossos Tribunais Superiores, que o tribunal de recurso só poderá censurar a decisão do julgador, fundamentada na sua livre convicção e assente na imediação e na oralidade, se se evidenciar que a solução por que optou, de entre as várias possíveis, é ilógica e inadmissível face às regras da experiência comum. Se a decisão sobre a matéria de facto do julgador, devidamente fundamentada, for uma das soluções plausíveis segundo as regras da experiência, ela será inatacável, já que foi proferida em obediência à lei que impõe que ele julgue de acordo com a sua livre convicção ”.

Face ao exposto e tendo presente estes princípios vejamos a impugnação de facto do recorrente. O recorrente entende que são os seguintes os factos incorretamente dados como não provados: (…)

Alega, no essencial, a análise que faz da prova produzida - com recurso às declarações do arguido (gravação áudio do minuto 01:15 ao minuto 02:47; do minuto 04:35 ao minuto 07:19 e do minuto 08:49 ao minuto 09:15), ao depoimento da testemunha DD (gravação áudio do minuto 07:16 ao minuto 10:05, do minuto 13:10 ao minuto 14:16 e do minuto 28:32 ao minuto 30:17), ao relatório técnico de acidente de viação de fls. 213 a 237, subscrito pela testemunha (conclusão III), à participação de acidente de viação, anexo e croqui de fls. 4 a 6, 205 a 209 (conclusões III e X), à reportagem fotográfica de fls. 210 a 212 (conclusões III e XI) e ao relatório de autópsia de fls. 112, 113 e127 (conclusões III e XII) - que, no seu entender, impõe decisão diversa da recorrida.

Também questiona a livre apreciação da prova que foi feita pelo Tribunal a quo que invocou a criação no seu espírito de uma dúvida razoável e intransponível que, no entender do recorrente, não se verificou face à prova por si elencada (conclusão XIV).

Desta forma, o recorrente menciona provas que considera imporem decisão diversa da recorrida quanto aos mencionados pontos de facto que considera terem sido incorretamente julgados e indica as provas e os segmentos das gravações áudio que suportam o seu entendimento divergente, do que se conclui que cumpriu as exigências legalmente impostas no art. 412º do C.P.Penal para a impugnação ampla da matéria de facto relativa aos mencionados pontos da matéria de facto dada como não provada, pelo que se conhecerá da mesma, nos termos infra expostos.

(…)

No que concerne aos meios de prova testemunhal elencados pelo recorrente importa, desde logo, sublinhar que os mesmos têm que ser apreciados concatenadamente, devendo serconjugados e estabelecidas correlações internas entre todos os meios de prova produzidos, confrontando-os de forma que, ainda que de sinal contrário, daí resulte uma decisão linear, fazendo-se inferências ou deduções de factos conhecidos, desde que tal se justifique, e tendo sempre presentes as regras da lógica e as máximas da experiência.

(…)

No caso em apreço, o recorrente entende que o Tribunal a quo não poderia socorrer-se do princípio in dubio pro reo para fundamentar a decisão sobre a matéria de facto pois, de acordo com as declarações do arguido, com o depoimento da testemunha DD e com a prova documental que menciona, o acidente ocorreu em conformidade com a factualidade que consta da acusação, o que implicaria que a factualidade por si mencionada fosse considerada provada.

Desta forma, o recorrente não se limita a invocar a prevalência do seu juízo pessoal sobre a livre apreciação que serviu de base à factualidade não provada e ao resultante juízo de absolvição, antes pretende demonstrar que a prova por si indicada só poderia ter conduzido, no domínio factual, a uma decisão diversa da que foi proferida e ao consequente juízo condenatório do arguido.

Vejamos se lhe assiste razão.

A sentença recorrida dá a conhecer como o tribunal formou a sua convicção quanto à factualidade provada constante dos pontos 1, 6 a 12 e 65, quando refere terem existido “alguns elementos pacificamente referidos pelo arguido e pelas testemunhas, designadamente que, no dia 13-07-2021, pelas 07h15, o arguido AA conduzia o veículo ligeiro de mercadorias, de matrícula ..-..-QQ, na Circular ..., União de freguesias de ..., concelho do ..., no sentido oeste-este, na via da direita e dirigia-se ao seu local trabalho, a T..., sita no ....

No mesmo sentido, circulava o velocípede sem motor de marca Decathlon, conduzido por HH.

Aquele local, é uma recta composta por duas faixas de rodagem, uma em cada sentido, com 6 metros de largura, de boa visibilidade, dotadas de duas vias de trânsito com 3 metros de largura.

Os sentidos de trânsito estão separados por um separador em blocos de cimento, com a largura de 2 metros.

No sentido em que circulavam os veículos, existe uma inclinação ascendente de 1,9%, tendo a berma cerca de 0,85 metros.

O pavimento é de aglomerado asfáltico, em mau estado de conservação e manutenção.

No local havia sinalização adequada, e inexistiam quaisquer obstáculos que obstruíssem ou impedissem a normal circulação.

O local onde ocorreu o acidente tem boa visibilidade em toda a largura e extensão.

A velocidade máxima de circulação permitida naquela via era de 60 km/hora.

O sinistrado, para além de não estar munido de nenhum equipamento de segurança também não possuía nenhum dispositivo de iluminação ou de aviso de presença. existe ao lado dessa mesma estrada uma ciclovia.

Quanto ao apuramento dos factos supra referidos e consignação dos mesmos como provados, o tribunal ainda valorou a participação de acidente de viação e croqui de fls. 4 a 6 e 205 a 209, o relatório técnico de acidente de viação de fls. 213 a 237 (veículos intervenientes e descrição do lugar do acidente) e a reportagem fotográfica de fls. 210 a 212”.

No que respeita à dinâmica do acidente, o Tribunal a quo começa, desde logo, por afirmar que “a prova não converge” e consta da motivação de facto, a este propósito, que “o arguido declarou que, as circunstâncias de tempo descritas na acusação pública, circulava na Circular ..., sentido oeste-este, em direção ao seu local de trabalho (T..., no ...), a uma velocidade de 30 a 40Km/h (quando a velocidade máxima permitida no local é de 60km/h), quando ouviu um embate no guarda lamas frontal direito, tendo imobilizado de imediato o veículo automóvel (...) confirmou os danos ocorridos na sua viatura e os ocorridos no velocípede sem motor (cfr. fls. 11, fotografia n.ºs 4 e 5, fls. 342 e 342v). Confrontado com o croqui de fls. 6, o arguido confirmou o local do embate (i.e. onde consta escrito a medição 20,50m), o local onde estava o corpo de HH (i.e. onde está escrito alínea a) e fls. 209 a 213) e afirmou que não estava encadeado pelo sol, pois este incidia na lateral do veículo e não de frente (cfr. documento de fls. 339v a 341). O arguido afirmou peremptoriamente que não circulava qualquer veículo à sua frente, que não estava encandeado pelo sol, nem distraído e que o acidente só pode ter ocorrido porque a vítima invadiu a faixa de rodagem proveniente da ciclovia.

Ninguém presenciou o acidente.

BB, vizinho do arguido e colega de trabalho da vítima, circulou na Via Circular ... no dia dos factos, mas quando os Bombeiros já se encontravam no local (...) fazia aquele trajecto diariamente para o seu local de trabalho, confirmou que a vítima também fazia diariamente aquele percurso, tripulando o velocípede sem motor sempre à direita da via de trânsito, pois receava atropelar as pessoas na ciclovia, e sem capacete. A testemunha afirmou que, à hora que efectua aquele trajecto, existe encadeamento do sol, facto que o obriga a baixar a pala de protecção solar e a reduzir a velocidade.

(...)

CC, circulava na via de trânsito onde ocorreu o acidente quanto foi abordado pelo arguido, o qual lhe pediu ajuda, pois estava muito nervoso. A testemunha telefonou para o 112 e, quando ouviu as sirenes, abandonou o local (...) confirmou o posicionamento da vítima (i.e., a cerca de cinco metros à frente do veículo do arguido, sem capacete), da bicicleta (i.e., na valeta de escoamento de água, a cerca de cinco a seis metros do veículo do arguido) e do veículo conduzido pelo arguido (cfr. fls. 11 fotografia n.º 4), bemcomo os danos verificados nos veículos intervenientes no acidente e a posição do sol (i.e., “baixinho, e a dificultar a visibilidade” (sic)).

DD, agente da Polícia de Segurança Pública, em exercício de funções na Secção de Trânsito de ... (…) utilizou, na investigação realizada, os elementos de prova recolhidos pela testemunha EE, o qual esteve no local no dia do acidente. A testemunha confirmou que o sol estava baixo e passível de encadear porque tinha posição inferior a 45º e estaria de frente para o veículo automóvel conduzido pelo arguido. Quanto à velocidade imprimida pelo arguido ao veículo por si conduzido, a testemunha afirmou não ser determinável porque inexistem vestígios no local para o seu apuramento. Porém, perguntado sobre a causa do acidente, a testemunha afirmou que foi a velocidade excessiva do veículo conduzido pelo arguido face ao encadeamento pelo sol. Quanto à versão do acidente narrada pelo arguido, a testemunha afirmou não ser verosímil pois, a ter ocorrido o acidente como o arguido descreveu, a vítima e a bicicleta estariam caídos na faixa de rodagem e não na berma.

EE, agente da Polícia de Segurança Pública em exercício de funções na secção de trânsito da Esquadra do ..., confirmou o dia e local dos factos, a sua chegada ao local do acidente pelas 8 horas (…) Quanto ao posicionamento dos veículos intervenientes no acidente, a testemunha afirmou que os mesmos já não se encontravam no local onde ocorreu a colisão, nem no local onde ficaram imobilizados após essa colisão.

Confrontado com o croqui de fls. 6, a testemunha confirmou o local provável do embate (indicado pelo arguido- fls. 10), as marcas no pavimento de arrastamento da bicicleta (i.e., de ferro no alcatrão - fls. 11 fotografia n.º 3) e o objecto não identificado de fls. 12 (fotografia 6), o qual desconhece se estava relacionado com o acidente.

Confirmou igualmente os danos nos veículos, a ausência de capacete e roupa reflectora na vítima, a possibilidade do nascer do sol à hora do acidente e o desconhecimento da velocidade dos veículos intervenientes.

(…)

No caso concreto, o tribunal não tem razão para duvidar da idoneidade das testemunhas inquiridas, tal como não tem razão para descredibilizar o arguido, o qual se presume inocente.

Da prova produzida podemos extrair algumas conclusões:

1. A velocidade a que circulava o arguido é desconhecida;

2. O arguido não estava encandeado pelo sol (não obstante as testemunhas BB e CC afirmarem o encandeamento pelo sol, da análise do documento de fls. 339v a 341, conjugada com as declarações do arguido, conclui-se que tal encandeamento não se verificava);

3. As localizações dos veículos e da vítima (tal como indicadas pelo arguido, pois não foram feitas outras diligências para esse apuramento) não são compatíveis com uma velocidade excessiva, mas sim com a velocidade de 40km/h afirmada pelo arguido (considerando que o arguido afirmou circular a uma velocidade máxima de 40km/h e imobilizou a viatura a cerca de dez metros do corpo da vítima);

4. Distância de travagem = Velocidade2

5. 2(coeficiente de fricção) (aceleração gravitacional.

6. A velocidade a que o arguido conduzia - 40km/h - não é compatível com um embate que tenha como consequência as lesões apresentadas pela vítima (cfr. autopsia médico legal de fls. 111 a 113 e 127);

7. Os danos apresentados no veículo conduzido pelo arguido não são compatíveis como a circulação do velocípede na frente do arguido, pois, a ser assim, o embate dar-se-ia com o para-choques frontal do veículo automóvel e não na lateral direita, por cima da embaladeira da roda;

8. A descrição do acidente constante do libelo acusatório não é compatível com os danos apurados no veículo conduzido pelo arguido;

9. A vítima circulava com uma taxa de álcool no sangue de 0,62g/l (cfr. fls. 118);

10. A vítima não usava capacete, nem roupa reflectora.

A acusação pública assenta na violação pelo arguido da obrigação de adequar a velocidade às condições meteorológicas ou ambientais, à intensidade de trânsito e outras circunstâncias específicas de modo a circular em segurança.

Porém, não se logrou apurar, com a certeza que exige uma condenação, quais as condições

meteorológicas ou ambientais que o arguido deveria acautelar, nem tao pouco se fez qualquer referência à intensidade do trânsito.

Portanto, não se logrou apurar qual a regra do Código da Estrada que o arguido violou e, por conseguinte, qual o dever de cuidado que descurou e que lhe era exigível que não descurasse.

Em suma, não se logrou apurar a dinâmica do acidente.

Em conclusão, não se logrou apurar que o acidente, e o consequente decesso de HH, só se deveram à condução temerária, desatenta e imprudente do arguido, que desprezou os deveres de precaução e respeito pelas normas da segurança estradal, que o arguido tenha actuado com manifesta desatenção e contrariamente às mais elementares regras de cuidado, com inobservância dos deveres básicos exigidos no exercício da condução, atentas as circunstâncias referidas.

Da prova produzida suscita-se a dúvida razoável se o arguido praticou os factos que lhe são imputados.

(...)

Assim, decorre do in dubio pro reo que todos os factos relevantes para a decisão (quer respeitem ao facto criminoso, quer à pena), que apesar de toda a prova recolhida, não possam ser subtraídos à dúvida razoável do tribunal, também não possam considerar-se como provados.

O princípio in dubio pro reo tem aplicação no domínio probatório e significa que, em caso de falta de prova sobre um facto, a dúvida se resolve a favor do arguido; é justamente por isso que é no princípio da presunção da inocência, incluído pela Constituição da República Portuguesa entre as garantias do arguido em processo criminal, que se encontra a base constitucional para a sua proteção.

Face ao exposto, impõe-se considerar não provados os factos, nesta parte, tal como ficaram consignados.

Face ao exposto, da concatenação da prova produzida nos termos sobreditos, o tribunal considerou provados e não provados os factos tal como consignados”.

Desta forma, o Tribunal a quo assume ter extraído as supra referidas conclusões da prova produzida enquanto que o recorrente considera tais conclusões incompatíveis com a mesma por não estarem assentes em justificações lógicas e admissíveis face às regras da experiência comum.

No caso vertente, uma vez que ninguém presenciou o acidente, a prova produzida relativa à dinâmica do acidente terá de resultar da conjugação das declarações do arguido com os demais elementos testemunhais e documentais do processo, em obediência às regras da ciência, da lógica e da experiência.

Sendo certo que as declarações do arguido (atento o seu interesse no desfecho do processo) deverão ser valoradas desde que não se mostrem contrariadas por outros meios de prova credíveis e pelos dados objetivos consistentes, nomeadamente, nas partes dos veículos danificadas, em consequência do embate. Neste particular, há que atender à distância de projeção do corpo da vítima (20,5 m), às graves lesões, descritas no relatório de autópsia (que foram causa direta e necessária da sua morte) e à ausência de rastos de travagem, os quais são demonstrativos da dinâmica e violência do embate, incompatíveis com a condução cuidada e a velocidade adequada, bem como, com o surgimento inesperado da vítima na via de trânsito, nas circunstâncias descritas pelo arguido, conforme infra se explicitará.

Ainda no que respeita às declarações do arguido, há que sublinhar que este limitou-se afirmar que sentiu um embate no carro, não viu a vítima a circular à sua frente nem a bicicleta (gravação áudio 1:50 a 2:10), a qual só podia ter vindo da ciclovia (gravação áudio 6:33), referiu que circulava à velocidade de 30/40 Km/h (gravação áudio 7:09) e negou ter sido encandeado pelo sol (gravação áudio 27:13). No entanto, resulta do teor dos documentos juntos aos autos os seguintes dados objetivos que foram pacificamente aceites pelo arguido e pelas testemunhas:

a. O arguido conhece bem o local pois, naquela altura, fazia aquele trajeto todos os dias, à mesma hora (gravação áudio 1:35);

b. O embate ocorreu junto ao limite direito da faixa de rodagem, em conformidade com o croquis de fls. 209 e em consequência dos vestígios aí existentes (o arguido e a testemunha EE confirmaram que o embate ocorreu no local que consta do croquis);

c. O local do embate configura uma reta com boa visibilidade, em toda a largura e extensão, a faixa de rodagem (atento o sentido de oeste para este) apresenta uma berma de 0,85m e paralelamente à faixa de rodagem, do lado direito, existe uma ciclovia com a largura de 3,00m, separada da faixa de rodagem por uma zona ajardinada que culmina num lancil, existindo ainda paralelamente à via um abaloamento para passagem de águas (cfr. fotografias de fls. 210 a 212);

d. Era possível o arguido ver o velocípede a uma distância de, pelo menos, 100 m (cfr. fotografias de fls. 210 a 212, fls. 231 e depoimento da testemunha DD -gravação áudio 10:02);

e. O embate ocorreu depois de o arguido ter percorrido cerca de 420 metros desde o início da reta (cfr. fls. 221 e depoimento da testemunha DD - gravação áudio 13:40);

O veículo conduzido pelo arguido não deixou rastos de travagem (cfr. foto 6 de fls. 207, croquis de fls. 209 e depoimento da testemunha DD - gravação áudio 57:20) e ficaram marcas de riscos do velocípede no pavimento demonstrativas de ter sido arrastado (cfr. foto 3 de fls. 206 e depoimento da testemunha EE - gravação áudio 11:13);

g) Aquando do embate, o arguido conduzia fazendo uso da “pala” para o sol (cfr. fotografia 4 de fls. 206 e fls. 231);

h) Em consequência do embate, o veículo sofreu danos no lado direito do para-brisas que ficou estilhaçado e na parte lateral direita e o velocípede sofreu danos na roda traseira (cfr. fotografia 4 de fls. 206 e fotografia 5 de fls. 207);

i) Após a colisão, o corpo da vítima ficou fora da faixa de rodagem e a 20,5 m do local do embate (cfr. croquis de fls. 209, tendo a testemunha EE explicado que nesse local existia uma “poça de sangue” - gravação áudio 5:59);

j) Em consequência do embate, a vítima sofreu fratura de crânio, de coluna e de costelas, com laceração da espinal medula de órgãos torácicos e abdominais, o que causou o seu óbito, no local do embate, às 7h54m (cfr. relatório de autópsia de fls. 11 - 113).

Da verificação destes factos conhecidos (precisos, concordantes e incontroversos) -retirando deles ilações baseadas num juízo de normalidade (de probabilidade) alicerçado na lógica e em regras da experiência comum que permitam chegar a um resultado verdadeiro (próximo da certeza ou para além de toda a dúvida razoável) - é possível reconstruir a dinâmica do acidente.

Porém, com fundamento nestes elementos, o Tribunal a quo retirou conclusões que, no nosso modesto entender, não se mostram suportadas nas regras da lógica e da experiência.

A afirmação do arguido de que a vítima entrou inesperadamente na sua faixa de rodagem vinda da ciclovia mostra-se contrariada pelas características da via (atentos osobstáculos existentes entre a ciclovia e a faixa de rodagem) conjugadas com a visibilidade da reta onde ocorreu o embate.

Por outro lado, atentas as explicações avançadas pela testemunha EE, com base na sua experiência, de que caso o velocípede entrasse na via, vindo da ciclovia, “o corpo enrolava-se sobre o carro … que é normalmente o que acontece nos cruzamentos com as trotinetes” (gravação áudio 22:54) e não teria sido projetado a 20,5 m para fora da faixa de rodagem, após ter sido elevado e caído sobre a parte direita do vidro para-brisas do veículo conduzido pelo arguido, provocando o seu estilhaçamento (considerando que o velocípede foi arrastado, o estilhaçamento do vidro para-brisas só pode ter sido provocado pela projeção do corpo da vítima).

A testemunha DD concretizou, de forma credível e sustentada, que, antes do embate, o velocípede “circulava à frente do veículo automóvel” (gravação áudio 5:50) pois, caso o velocípede entrasse na faixa de rodagem vindo da ciclovia ou da zona ajardinada da ciclovia, invadindo a faixa de rodagem inesperadamente, ele não seria projetado para aquela posição (gravação áudio 29:00), o velocípede “estaria na faixa de rodagem bem como o seu condutor” (gravação áudio 30:14).

Por conseguinte, conjugando estes depoimentos com o teor do relatório técnico de avaliação de acidente de viação de fls. 213 a 237, bem como com os dados objetivos supra referidos, tudo conjugado com as regras da ciência, da lógica, da experiência e normalidade do acontecer, podemos concluir, para além de qualquer dúvida razoável, que o arguido e a vítima circulavam no mesmo sentido e na mesma via de trânsito, seguindo o velocípede, conduzido pela vítima, à frente do veículo conduzido pelo arguido, junto ao limite direito da faixa de rodagem. Tanto mais que o veículo conduzido pelo arguido embateu na roda traseira do velocípede conduzido pela vítima, após ter percorrido cerca de 420 m após a rotunda convergida com a Rua ....

Por outro lado, apesar de o Tribunal a quo ter concluído que “o arguido não estava

encandeado pelo sol (não obstante as testemunhas BB e CC afirmarem o encandeamento pelo sol, da análise do documento de fls. 339v a 341 conjugada com as declarações do arguido, conclui-se que tal

encandeamento não se verificava)”, não justifica o motivo pelo qual, quanto a este concreto aspeto, valoriza as declarações do arguido em detrimento dos depoimentos destas testemunhas e opta por valorar, também sem qualquer justificação, o teor do documento de fls. 339v a 341 (junto pelo arguido com a contestação - cfr. art. 24º) destinado a “designers e consumidores de energia solar” e relativo à posição solar no dia, hora e local do sinistro, do qual nada resulta quanto ao possível encandeamento pela luz solar, reportado ao local do embate, por referência ao sentido de circulação do veículo conduzido pelo arguido e a este indivíduo em concreto.

Nessa medida, a existência, ou não, do encandeamento terá de resultar da conjugação de outros elementos de prova que, conforme infra se demonstrará, contrariam a versão do arguido, a este respeito.

Neste campo, assume especial relevância a circunstância de o arguido não ter visto a vítima nem o velocípede antes do embate (apesar de se tratar de um local com boa visibilidade, em toda a largura e extensão, e ser-lhe possível ver o velocípede a uma distância de, pelo menos, 100 m) conjugada com o facto de, aquando do embate, o arguido conduzir fazendo uso da “pala” para o sol, o que encontra justificação na posição baixa do sol e no possível encandeamento mencionados pelas testemunhas BB2, CC3, DD4 e EE5.

Ora, não tendo sido avançada qualquer outra circunstância justificativa de o arguido não ter visto a vítima6, os mencionados depoimentos combinados com os dados objetivos (o arguido não viu a vítima nem o velocípede, apesar da boa visibilidade do local, e conduzia fazendo uso da “pala” para o sol), tudo conjugado com as regras da lógica, da experiência e com a normalidade do acontecer leva-nos a concluir (contrariamente à convicção do Tribunal a quo) que o arguido não viu a vítima nem o velocípede por ter ficado encandeado pelo sol.

No que respeita à velocidade a que circulava o arguido, este afirmou que circulava à velocidade de 30/40 Km/h e o Tribunal a quo extraiu da prova produzida as conclusões de que “a velocidade a que circulava o arguido é desconhecida (…) As localizações dos veículos e da vítima (tal como indicadas pelo arguido, pois não foram feitas outras diligências para esse apuramento) não são compatíveis com uma velocidade excessiva, mas sim com a velocidade de 40km/h afirmada pelo arguido (considerando que o arguido afirmou circular a uma velocidade máxima de 40km/h e imobilizou a viatura a cerca de dez metros do corpo da vítima); (…) A velocidade a que o arguido conduzia – 40km/h – não é compatível com um embate que tenha como consequência as lesões apresentadas pela vítima (cfr. autopsia médico legal de fls. 111 a 113 e 127.

No entanto, apesar de não ter sido apurado onde ficaram o veículo e o velocípede após o embate7 (não constam do croquis por terem sido movimentados após o embate8), resultou da prova produzida que o arguido não viu a vítima nem o velocípede antes do embate (o que, como vimos, decorre da inexistência de rastos de travagem), que o corpo da vítima foi projetado a cerca de 20,5m do local do embate e que esta sofreu graves lesões, descritas no relatório de autópsia, que foram causa direta e necessária da sua morte, no local do embate.

Efetuando a devida ponderação destes dados objetivos, com base nas regras da lógica e da experiência, somos forçados a concluir que o arguido conduzia a uma velocidade não concretamente apurada, mas certamente excessiva face às condições que se apresentavam por ser inadequada às condições meteorológicas ou ambientais, nomeadamente perante o referido encandeamento solar.

Por fim, cumpre acrescentar que não resultou da prova produzida que o acidente tenha sido causado por qualquer falha por parte do condutor do velocípede (que conduzia com uma taxa de álcool no sangue de 0,62g/L, sem estar munido de nenhum equipamento de segurança, dispositivo de iluminação ou de aviso de presença).

Como bem se diz no Relatório Técnico de Acidente de viação (cfr. fls. 231) “não obstante o facto de o condutor do velocípede conduzir sob efeito de álcool, constituindo uma infração rodoviária grave, tendo-se apurado uma taxa de álcool no sangue de 0,62 +/-0,08 g/L, atendendo ao modo como ocorreu o sinistro, é entendimento que não terá tido influência as causas do sinistro. A apreciação foi reforçada com os danos resultantes no veículo automóvel, visíveis na parte direita daquele, indiciando que o velocípede circulava pelo lado direito da via de circulação quando ocorreu a colisão ”.

_________________

7O que é, desde logo, impeditivo do uso da fórmula matemática pelo Tribunal a quo que, para o efeito, usou, para além do local do embate,o local de paragem do veículo automóvel indicado pelo arguido nas suas declarações, o que não encontra sustentação em nenhum outro meio de prova nem o Tribunal a quo explica a valoração de tais declarações quanto a este aspeto em concreto, 8 Cfr. Participação de Acidente de fls. 4 e 5, croquis de fls. 6 e depoimento da testemunha EE (gravação áudio - 3:20) que afirmou
que os mesmos já não se encontravam no local onde ocorreu a colisão nem no local onde ficaram imobilizados após essa colisão.

Face ao exposto, a decisão proferida em função do princípio in dubio pro reo não merece acolhimento.

(…)

No caso em apreço e nos termos expostos, a prova produzida é demonstrativa da dinâmica do acidente, inexistindo a possibilidade razoável de uma solução alternativa ou de uma explicação racional e plausível diferente da que mereceu o nosso acolhimento, pelo que, inexistindo uma encruzilhada dubitativa, não há necessidade de fazer apelo ao princípio in dubio pro reo.

Também resulta da prova produzida, em conformidade com o exposto, que o acidente e o consequente decesso de HH deveram-se ao exercício, por parte do arguido, de uma condução descuidada, desatenta e imprudente, o qual desprezou os deveres de precaução e de respeito pelas normas estradais, atentas as circunstâncias referidas.

Por conseguinte, impõe-se considerar como provados os seguintes factos (eliminando-os dos factos não provados):

2. À sua frente e na mesma via, junto ao limite direito da faixa de rodagem, circulava o velocípede sem motor de marca Decathlon, conduzido por HH;

3. O arguido circulava a velocidade não concretamente apurada mas nunca inferior a 40 Km/h;

4. Atento o seu sentido de marcha, e depois de percorrer cerca de 420 metros após a rotunda convergida com a Rua ..., o arguido embateu com a parte direita do seu veículo automóvel na roda traseira do velocípede conduzido por HH, que seguia junto ao limite direito da faixa de rodagem;

5. Em consequência do embate, o corpo de HH foi elevado, tombando sobre a parte direita do vidro para-brisas do veículo conduzido pelo arguido, que de imediato estilhaçou, tendo sido posteriormente projetado a cerca de 20,5 metros do local do embate, para fora da faixa de rodagem, ficando caído na zona ajardinada paralela à via de circulação, tendo o velocípede sido arrastado pelo pavimento;

6. No momento em que ocorreu a colisão, o arguido reunia todas as condições para efetuar uma manobra de ultrapassagem, sem colidir, arrastar o velocípede sem motor e projetar o seu condutor;

O acidente só ocorreu por o condutor do veículo ligeiro, em virtude de ter sido encandeado pela luz solar e não ter adequado a velocidade a tal circunstância, ter embatido na traseira do velocípede que circulava na mesma via e sentido, a uma velocidade mais reduzida; 8. O arguido atuou de forma livre e voluntária, com total falta de cuidado, atenção e

prudência, em desrespeito pelas mais elementares regras estradais, que o mesmo podia e devia ter acautelado, designadamente a obrigação de adequar a velocidade às condições meteorológicas ou ambientais, de modo a circular em segurança, sem colocar em perigo outros utilizadores da mesma via, que o mesmo podia e devia ter acautelado;

9. Porque não o fez, não obstante saber que a sua conduta era proibida e punida por
lei, causou o acidente supra descrito, bem como as trágicas consequências que daí advieram
para o ocupante do velocípede;

10. O arguido bem sabia da proibição e da punibilidade por lei penal de tais condutas.

*

Consigna-se que a alteração introduzida em 7. relativa ao encandeamento pela luz solar obedece ao disposto no art. 358º, nº 2 do C.P.Penal na medida em que resulta do que foi alegado pelo arguido na sua contestação.

Pelo exposto, julga-se procedente o recurso interposto.

(…)”]

2.3.2.4- Ora bem.

O recorrente faz apelo, em apoio de razão, a posições assumidas no Tribunal Constitucional de onde retira também perspectivas do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (doravante, TEDH.

A propósito do citado (pelo recorrente) ACÓRDÃO do TC Nº 491/2021- Processo n.º 224/2020 de 8de julho de 2021 (4) cumpre porém assinalar que se tratou ali de uma abordagem sobre a (in) constitucionalidade da não audição pessoal do arguido (in casu na 1ª instância) em caso de revogação da suspensão de uma pena antes de ser proferida uma decisão, matéria esta bem diferente do caso que nos ocupa.

Ainda assim, é verdade que, ali, a propósito do respeito pelo princípio do contraditório, foi sublinhado:

[“16. A obrigação de que o processo criminal da República Portuguesa deva ser um processo justo resulta igualmente da sua vinculação à Convenção Europeia dos Direitos Humanos. O seu artigo 6.º, n.º 1, estabelece essa regra, que se aplica a casos criminais e civis, de onde decorre que cada parte tenha uma oportunidade razoável de apresentar o seu caso em condições que não o coloquem em desvantagem em relação ao seu oponente (Acórdão do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos [TEDH] Öcalan v. Turquia, em Tribunal Pleno, Petição n.º 46221/99, § 140; Foucher v. França, Petição n.º 22209/93, § 34; Bulut v. Áustria, Petição n.º 17358/90, § 47; Faig Mammadov v. Azerbaijão, Petição n.º 60802/09, § 19).

Trata-se de uma lógica de igualdade de armas que está intimamente relacionada com o direito ao exercício do contraditório e, em alguns casos, o TEDH analisa a existência de uma violação do artigo 6.º, n.º 1, analisando os dois conceitos em conjunto.

O artigo 6.º da CEDH, lido como um todo, garante o direito do arguido a participar efetivamente no processo criminal (Acórdão do TEDH Murtazaliyeva v. Rússia, em Tribunal Pleno, Petição n.º 36658/05, § 91). Em geral, isto inclui, inter alia, não só o seu direito de estar presente, mas também o de ouvir e acompanhar o processo. Tais direitos estão implícitos na própria noção de procedimento contraditório e podem também derivar das garantias contidas nas alíneas c), d) e e) do n.º 3 do artigo 6.º (Acórdão do TEDH Stanford v. Reino Unido, Petição n.º 16757/90, § 26). Nos processos penais o artigo 6.º, n.º 1, da CEDH sobrepõe-se às garantias específicas do seu n.º 3, embora não se limite aos direitos aí estabelecidos. De facto, as garantias contidas no artigo 6.º, n.º 3, são elementos constitutivos, entre outros, do conceito de um processo justo estabelecido no n.º 1 (Acórdão do TEDH Ibrahim e Outros v. Reino Unido, em Tribunal Pleno, Petições n.º 50541/08, 50571/08, 50573/08 e 40351/09, § 251). O Tribunal tratou das questões da igualdade de armas e do principio do contraditório em diversas situações, muitas vezes sobrepondo-se aos direitos de defesa previstos no artigo 6.º, n.º 3, da Convenção.

O direito ao contraditório significa, em princípio, a oportunidade de as partes terem conhecimento e comentarem todas as provas aduzidas ou observações apresentadas com vista a influenciar a decisão do tribunal (Acórdão do TEDH Brandstetter v. Áustria, Petições n.º 11170/84, 12876/87 e 13468/87, § 67). Qualquer pessoa sujeita a uma acusação criminal deve ser protegida pelo direito de defesa estabelecido no artigo 6.º, n.º 1, alínea c), em todas as fases do processo (Acórdão do TEDH Imbrioscia v. Suíça, Petição n.º 13972/88, § 37).

Como sublinhado por António Henriques Gaspar (“Princípios do processo penal português e a Convenção” in Comentário da Convenção Europeia dos Direitos Humanos e dos Protocolos Adicionais, vol. II, ponto 5):

«O princípio do contraditório enquadra, no conteúdo fundamental, o direito de audiência (audiatur et altera pars), no sentido de ouvir tanto a acusação como a defesa os sujeitos processuais devem ser ouvidos antes de ser tomada qualquer decisão que pessoalmente os afete, e têm o direito de interrogar e contra-interrogar as testemunhas e de contestar um meio de prova apresentado.

O contraditório constitui um elemento essencial (ou um subprincípio) do princípio do processo equitativo; o contraditório é, por isso, diretamente assumido na CEDH como garantia central do processo penal.

Na jurisprudência do TEDH, a noção de contraditório significa que as partes devem poder conhecer – e ter conhecimento – de todas as posições processuais ou observações (requerimentos; petições; pareceres; alegações) apresentadas por outros sujeitos processuais e terem a possibilidade de as discutir antes da decisão do juiz aplicando-se qualquer que seja a natureza do processo e em todas as fases do processo.

(…) O respeito pelo contraditório e pela igualdade de armas (a distinção entre contraditório e igualdade de armas nem sempre é clara), bem como da integridade da defesa, pressupõe um justo equilíbrio entre os interesses contraditórios da investigação e da defesa, nomeadamente o acesso aos elementos do processo necessários à defesa do direito à liberdade.»

Decorre, pois, da CEDH, uma ligação intrínseca entre as obrigações de um processo justo com a garantia de o arguido ter oportunidade efetiva de se defender e de exercer o contraditório, no âmbito do processo criminal. (…)”]

Da leitura de decisões com maior relevo do TEDH podemos retirar o seguinte:

-Ac. de 25 fev 2020-PAIXÃO MOREIRA SÁ FERNANDES c. PORTUGAL- (petição nº 78108/14)

“(…)”

58.O Tribunal recorda que as modalidades de aplicação do artigo 6.º da Convenção em matéria de recurso dependem das particularidades do procedimento em causa: é necessário ter em conta todo o julgamento realizado no ordenamento jurídico interno e o papel desempenhado pelo tribunal de recurso (Kashlev v. Estónia , n.º 22574/08, § 38, 26 de abril de 2016 e Marcello Viola Itália, n. 45106/04, § 54, CEDH 2006 XI (extratos)).

Quando se realiza uma audiência pública em primeira instância, a ausência de debate público em o recurso pode ser justificada pelas particularidades do procedimento em causa, tendo em conta a natureza do sistema interno de recurso, a extensão das competências do tribunal de recurso, à maneira como os interesses do requerente foram efectivamente apresentados e protegidos perante ele e, em particular, à natureza das questões que teve de decidir (Botten c. Noruega, 19 de Fevereiro de 1996, § 39, Coletânea de acórdãos e decisões 1996-I).

Um pedido em recurso ou um processo que envolva apenas questões de direito e não de facto pode satisfazer os requisitos da secção 6, mesmo que não tenha sido oferecida ao recorrente a oportunidade de comparecer pessoalmente perante o tribunal de recurso ou o Tribunal de Cassação (Meftah e outros c. França [GC], n. ºs 32911/96 e 2 outros, § 41, CEDH 2002 VII e Júlíus Þór Sigurþórsson c. Islândia, n.º 38797/17, § 32, 16 de julho de 2019).

59. Por outro lado, num certo número de casos, o Tribunal considerou que, quando um órgão de recurso é chamado a conhecer de uma questão de facto e de direito e a estudar a questão da culpa no seu todo ou da inocência, não pode , por razões de justiça processual, decidir sobre estas questões sem apreciação direta do depoimento apresentado pessoalmente ou pelo arguido que sustenta não ter cometido o facto considerado como ilícito penal (ver, entre outros exemplos, Ekbatani c. Suécia, 26 de maio de 1988, § 32, Série A n.º 134, Constantinescu c. Roménia, n.º 28871/95, § 55, CEDH 2000-VIII, Dondarini c. Igual Coll v. Espanha, n. 37496/04, § 27, 10 de março de 2009, e Zahirović v. Croácia, no 58590/11, § 63, 25 de abril de 2013) ou, se anular por condenação um veredicto de absolvição pronunciado por um tribunal de primeira instância , pelas testemunhas que prestaram depoimento durante o processo (Găitănaru c. Roménia, n. 26082/05, § 35, 26 de junho de 2012 e Hogea v. Roménia, n.º 31912/04, § 54, 29 de Outubro de 2013).

60. O direito do arguido a uma audiência pública não representa apenas mais uma garantia de que serão feitos esforços para estabelecer a verdade: também ajuda a convencer o arguido de que o seu caso foi ouvido por um tribunal no qual ele poderia controlar a independência e imparcialidade. A publicidade dos processos dos órgãos judiciais protege os litigantes contra a justiça secreta que escapa ao controlo público; constitui também um dos meios de preservar a confiança nos tribunais e nos tribunais. Através da transparência que confere à administração da justiça, ajuda a alcançar o objectivo do artigo 6.º, n.º 1, da Convenção: um julgamento justo, cuja garantia é um dos princípios de qualquer sociedade democrática na acepção da Convenção (Dondarini, acima citado, § 25).

(em tradução livre do texto em francês).

- No caso Moreira Ferreira c. Portugal, n.º 19808/08, 5 Julho 2011 (traduzido pelo GDDC) HUDOC | ECLI:CE:ECHR:2011:0705JUD001980808 [versão portuguesa] | Document URL: http://hudoc.echr.coe.int/eng?i=001-105520 (5):

Aqui, o TEDH lembrou que, no caso dos recursos, o direito dos arguidos a serem ouvidos não obriga automaticamente a que o sejam pessoalmente em audiência de julgamento do recurso, uma vez que esse direito já pode ter sido cumprido satisfatoriamente no Tribunal de 1.ª instância.

Mas, neste caso, o TEDH considerou, dado que Moreira Ferreira tinha levantado a questão de a sua responsabilidade penal poder estar atenuada devido aos problemas psiquiátricos que tinha, que «o tribunal de recurso não podia decidir em consciência essa questão sem se confrontar com o depoimento pessoal da queixosa, até porque o tribunal de 1.ª instância tinha ignorado as conclusões da perícia psiquiátrica sem apresentar qualquer motivo.»(sublinhado nosso)

E, por isso mesmo, condenou o Estado Português a indemnizar Moreira Ferreira por violação do seu direito a um julgamento equitativo, numa indemnização por danos morais no montante de 2400 euros e no pagamento de despesas no montante de 2000 euros.

Nesta decisão do TEDH foi, ainda, assinalado:

[“(…) 29. O Tribunal recorda que as modalidades de aplicação do artigo 6º da Convenção aos recursos dependem das características do próprio processo e que importa ter em conta o conjunto dos procedimentos internos e o papel atribuído às instâncias de recurso no ordenamento jurídico nacional. Quando tenha tido lugar uma audiência pública na primeira instância, a ausência de debates públicos em sede de recurso pode justificar-se pelas especificidades do processo em causa, quanto à natureza do sistema de recurso interno, aos poderes do tribunal de recurso, à forma como os interesses do requerente foram efectivamente apresentados e protegidos perante essa instância de recurso e, nomeadamente, quanto à natureza das questões a decidir (Botten c. Noruega, 19 de Fevereiro de 1996, nº 39, Recueil des arrêts et decisions 1996-I). Assim, perante um tribunal de recurso com plena jurisdição, o artigo 6º não garante necessariamente o direito à audiência pública nem, caso essa audiência tenha lugar, o direito a intervir pessoalmente nos debates (ver, mutatis mutandis, Golubev c. Russie (déc.), no 26260/02, de 9 de Novembro de 2006, e Fejde c. Suède, 29 de Outubro de 1991, n 33, série A no 212-C). 30. Deste modo, o Tribunal recorda ter já afirmado que sempre que uma instância de recurso seja chamada a intervir num caso, em matéria de facto e de direito e a analisar conjuntamente a questão da culpa ou da inocência, não pode, por razões de equidade do processo, decidir estas questões sem apreciar directamente os meios de prova apresentados pessoalmente pelo arguido que alegue não ter cometido um acto qualificado como infracção criminal (Dondarini c. Saint-Marin, no 50545/99, nº 27, 6 de Julho de 2004, Ekbatani c. Suécia, nº 32, 26 de Maio de 1988, série A no 134, et Constantinescu c. Roménia, n o 28871/95, n 55, CEDH 2000-VIII).

31. Portanto e a fim de determinar se existe ou não algum tipo de violação do artigo 6º da Convenção, o Tribunal deverá examinar o papel do Tribunal da Relação e a natureza das questões que teve de apreciar.

32. O Tribunal constata que, no direito português, o Tribunal da Relação tem competência para analisar tanto os factos como o direito. Nos termos do artigo 430º do Código de Processo Penal, o Tribunal da Relação só deverá proceder a um novo exame das provas (incluindo, se for o caso, a audição da arguida) se considerar: a) que a decisão recorrida enferma de algum dos vícios previstos pelo artigo 410º, nº 2 do mesmo código, seja pela insuficiência dos factos que serviram de fundamento à condenação, seja por contradição insanável entre os fundamentos da decisão e a própria decisão, seja, por fim, algum erro flagrante na apreciação dos meios de prova; e b) que esses vícios processuais podem ser corrigidos sem devolver o caso ao tribunal de primeira instância(nº 20 acima).

33. O Tribunal nota que, neste caso, o Tribunal da Relação foi chamado a pronunciar-se sobre várias questões relativas aos factos e à pessoa da requerente. Esta última levantava, nomeadamente e tal como havia já feito perante o tribunal de primeira instância, a questão de saber se a sua responsabilidade penal deveria ser considerada como diminuída, o que poderia ter tido influência importante na determinação da pena.

34. Para este Tribunal, trata-se de uma questão que o Tribunal da Relação não poderia decidir sem apreciar directamente o testemunho pessoal da requerente, tanto mais que a sentença do Tribunal de Matosinhos divergia da perícia psiquiátrica, sem contudo enunciar os motivos dessa divergência tal como exige o direito interno (nºs 7, 9 e 23 anteriores). A reapreciação desta matéria pelo Tribunal da Relação deveria, pois, ter incluído nova e integral audição da requerente (Ekbatani, pré-citado, ibidem).

35. Estes elementos são suficientes para que o Tribunal conclua que, neste caso, teria sido necessária a audiência pública no tribunal de recurso. Portanto, houve violação do artigo 6 , nº 1 da Convenção.”

2.3.2.5 - Descendo de novo ao caso que nos ocupa em concreto, não vemos porém que possa extrair-se, sem mais, ao contrário do que o arguido afirma, ter havido violação dos direitos fundamentais deste e, nomeadamente, por não ter sido oficiosamente ouvido numa audiência de julgamento no Tribunal da Relação.

Os casos invocados ou que mereceriam maior atenção, quer do TC quer do TEDH, não se opõem necessariamente à interpretação que acolhemos no presente recurso no sentido de inexistir a nulidade invocada.

Decorre da exposição e narrativa que antecedem que o Tribunal da Relação considerou inconsistente e injustificada a dúvida da 1ª instância, com base essencialmente no apelo a uma diferente análise e interpretação das regras da experiência, ainda que sem perder nunca de vista o conteúdo das provas produzidas na 1ª instância, mas que indicou claramente e concatenou na sua fundamentação, concluindo por uma perspectiva diferente acerca da dinâmica do acidente e sem dúvida alguma, o que por si nunca constituiria violação do princípio in dubio pro reo.

Efectivamente, lida a sentença, verifica-se com clareza que, quanto à alegada violação do princípio in dubio pro reo, o tribunal respeitou-o integralmente. Não se lê da decisão que o tribunal se tenha convencido com dúvidas ou condenado com incertezas ou com base em regras de experiência inusitadas e incompreensíveis, ilógicas e inaceitáveis. Não se confrontou com factos incertos perante os quais, em vez de favorecer o arguido, o tivesse desfavorecido. Por isso, é inaceitável o argumento da violação de tal princípio.

O princípio in dubio pro reo foi enunciado, com clareza, por Stübel6, no século XIX, constituindo um princípio probatório que procura solucionar o problema da dúvida na apreciação judicial dos casos criminais. Esta dúvida não é interpretativa, não se refere à aferição do sentido de uma norma, é antes uma dúvida em relação à matéria de facto7.

Este princípio parte, portanto, da premissa de que o juiz não pode terminar o julgamento com um non liquet, isto é, não pode abster-se de optar pela condenação ou pela absolvição porque existe uma obrigação de tomar uma decisão. Não pode, por isso, a dúvida do julgador impedir que ele decida atempadamente uma questão que vai a julgamento8.

Este princípio traduz, no entender de Figueiredo Dias9 o correspectivo do princípio da culpa em Direito Penal, pretendendo garantir a não aplicação de qualquer pena sem prova suficiente dos elementos do facto típico e ilícito que a suporta, assim como do dolo ou da negligência do seu autor10.

O referido autor11 defende também que o princípio em questão é um corolário lógico de um outro princípio mais vasto e constitucionalmente consagrado (art.32º nº2 da Constituição da República Portuguesa), que é o da presunção de inocência do arguido, entendendo que ambos os princípios têm reflexos exclusivamente ao nível da apreciação da matéria de facto e constituem um critério de decisão em caso de, nessa apreciação, surgir uma dúvida sobre a verificação dos factos12.

A Doutrina portuguesa parece ser quase unânime no entendimento de que o princípio in dubio pro reo não tem quaisquer reflexos ao nível da interpretação das normas penais, esclarecendo que em caso de dúvida sobre o conteúdo e o alcance das normas penais, o problema deve ser solucionado com recurso às regras de interpretação, entre as quais o princípio in dubio pro reo não se inclui, uma vez que este tem reflexos exclusivamente ao nível da apreciação da matéria de facto.

Assim:

Escreve Cristina Líbano Monteiro que o princípio in dubio pro reo se destina “a dar solução a um problema muito preciso - o da falta de convicção suficiente do julgador relativamente à matéria de facto, objecto da prova - o princípio não deve porventura aplicar-se à resolução de outro tipo de questões, como a dúvida na interpretação das normas”13.

Deste modo, a Doutrina restringe a incidência da aplicação do supracitado princípio a questões relacionadas com a prova da matéria de facto em processo penal, não se aplicando já em relação a qualquer dúvida dentro da questão de direito cuja única solução é o entendimento juridicamente mais exacto e adequado14.

Eduardo Correia advoga que, em caso de dúvida sobre o significado das normas, o intérprete deva “socorrer-se de todos os elementos que permitam a averiguação da verdadeira vontade do legislador”15.

Este autor admite, assim, a aplicação do princípio in dubio pro reo nos casos em que “a situação de facto sugere a aplicação de vários preceitos sem que a prova mostre claramente se se verificam os elementos de um ou de outro”.16 No entanto, isto só deverá acontecer residualmente, quando estejam em causa a limitação da liberdade do indivíduo ou valores de justiça, tal como a entendem as concepções dominantes, e não como regra. Sendo de referir que não se trata aqui de uma questão de interpretação de normas penais mas antes de uma dúvida em relação à verificação dos factos17.

Neste contexto escreve, ainda, Cristina Líbano Monteiro: “em matéria de interpretação, repetimos, ao juiz não se pede uma certeza - apenas que procure uma solução juridicamente correcta para o problema: a que se lhe afigurar mais concorde com o preceito que analisa, inserido no todo sistemático e, sobretudo, conforme à Constituição (…). Se a incerteza interpretativa se resolvesse de modo semelhante à probatória, teríamos, em última análise, o factual a sobrepor-se ao normativo e a unidade de sentido da regra jurídica comprometida”18.

Afastada a incidência de uma função interpretativa da norma penal, a Doutrina portuguesa adopta a posição de que o princípio in dubio pro reo deverá ser aplicado quando persiste uma dúvida insanável acerca de um facto sujeito a produção de prova, devendo ele actuar em sentido favorável ao arguido. Deste modo, dever-se-á dar como não provado o facto sobre o qual recai a dúvida se este for desfavorável ao arguido, ou seja, o non liquet na questão da prova tem de ser sempre valorado a favor do arguido19.

No caso dos presentes autos, não se encontra qualquer evidência de non liquet prejudicial ao arguido.

Consequentemente, reafirma-se que não houve violação daquele sobredito princípio constitucional.

O tribunal a quo decidiu pela consolidação da factualidade que deu por provada com assegurada e fundamentada convicção e não por via de quaisquer dúvidas que tivesse tido.

Dito isto, consideramos ainda que as próprias declarações do arguido foram tidas em conta sem necessidade de intervenção de quaisquer elementos complementares das mesmas que por ele devessem ser aduzidos presencialmente.

O juízo interpretativo probatório por parte do Tribunal da Relação incidiu sobre as mesmas provas que foram consideradas na 1ª instância- provas essas integralmente conhecidas pela defesa e perante elas sempre com a oportunidade de contraditório-, e da forma como o fez e explicou, não se alcança que necessidade haveria para voltar a ouvir de novo o arguido, em eventual audiência de recurso, caso a mesma tivesse sido requerida ou mesmo oficiosamente determinada.

Na resposta ao recurso e ao parecer do MPº nunca suscitou tal necessidade e dos termos em que o fez mais não acrescentou do que já tinha avançado como sendo a sua versão.

Além do mais, mesmo considerando que estaria convencido da sua razão, face ao recurso interposto pelo MPº e apesar de não ter sido requerida renovação da prova em audiência, não poderia ignorar a possibilidade de o Tribunal poder vir a reverter a decisão da 1ª instância, como aliás aconteceu. Também nada impediria que pudesse, face a tal possibilidade, ter tido iniciativa de colocar a questão ao tribunal no sentido de ponderar a sua audição pessoal, tendo em conta o entendimento que retirava da já conhecida jurisprudência do TEDH 20 acerca da eventual necessidade de audiência em caso de recurso e reavaliação de prova.

Sendo certo que a necessidade de audiência do arguido em recurso depende das circunstâncias de cada caso, não alcançamos que deva ter sido esse o dos presentes autos, já que o arguido sempre dispôs da possibilidade de se pronunciar sobre as mesmas provas analisadas em 1ª instância, de ali participar na audiência inicial como fez e apresentar a sua versão e, em recurso, compreender e analisar os argumentos do Ministério Público perspectivando uma possibilidade de reversão da decisão.

Tendo o tribunal de recurso decidido com base numa interpretação diferente incidente sobre a mesma prova produzida, sem necessidade de renovação, assinalando sobretudo que as regras da experiência e as circunstâncias do caso, como explicou, apontavam sem dúvida no sentido contrário do decidido em 1ª instância e sendo certo que no recurso para este STJ o arguido nem sequer esclarece em que medida a sua audição seria determinante, (aqui se afastando a nosso ver, de alguma possível maior identidade com o caso GÓMEZ OLMEDA c. ESPAÑA (petição nº 61112/12) de 29 de Março de 2016- cfr neste com maior interesse, os § 32 a 37) além do que alegou em resposta ao recurso e ao parecer do MPº, para o eventual conseguimento de uma inflexão de uma provável decisão condenatória, não se compreende em que medida uma anulação do acórdão recorrido para audição do arguido seria útil ou necessária, tanto mais que o mesmo sempre teve oportunidade para manifestar a sua versão dos factos mesmo perante a discordância argumentativa do MºPº.

A nosso ver, tal seria um acto de utilidade inexplicada, senão mesmo inútil, dadas as circunstâncias do caso, o tipo e conteúdo da fundamentação do Tribunal da Relação, que no essencial explorou as regras da experiência para avaliar a dinâmica do acidente e a inexistência por parte da defesa de uma justificação objectiva e convincente acerca da necessidade de tal audição no Tribunal da Relação.

Não vislumbramos pois que se tenha violado o principio de um julgamento equitativo e justo e, nomeadamente, o princípio do contraditório, nos termos assinalados pela defesa do recorrente.

Em suma:

O arguido teve efectivas possibilidades ao longo do processo para suscitar a pretendia audiência presencial e de, efetivamente garantir a plenitude da sua defesa.

Apesar de alguma limitação da sua posição pelo objeto do recurso interposto pelo MP, a circunstância de este visar precisamente o resultado afirmado pelo TRL configurou-lhe a possibilidade de argumentar em sentido contrário e, por cautela, eventualmente, pedir a sua audição presencial.

Como já se aludiu, teve ainda a possibilidade de responder ao parecer do MP no TRL, de novo com aquelas possibilidades, para além das que o próprio tribunal lhe proporcionou nos termos do artigo 417º, n.º 2, do CPP.

Por conseguinte, no caso revelam-se terem sido assegurados os direitos de audiência e defesa reclamados por um processo penal justo e equitativo, não podendo dizer-se que a condenação decretada pelo TRL tenha sido uma verdadeira decisão surpresa para o recorrente.

2.3.3. A verificação de vício de erro notório - (dinâmica do acidente incompatível com as regras da experiência)

A defesa do arguido invoca o erro notório na apreciação da prova. Ora, o erro notório na apreciação da prova não é o mesmo que insuficiência da prova para a decisão de facto proferida, nem se pode concluir pela existência de um erro notório na apreciação da prova apenas a partir de uma divergência entre a convicção pessoal do recorrente sobre a prova produzida e a convicção do tribunal.

Estando este Tribunal restringido quanto aos poderes de cognição não pode sindicar a má ou boa valoração da prova, nem discutir a valoração da prova produzida, pois isso constitui um conhecimento da matéria de facto que está vedado a este tribunal e não se integra no âmbito alargado dos poderes de cognição, a partir do estipulado no art. 410.º, n.º 2, do CPP.

Para dar cumprimento ao disposto no art. 410.º, n.º 2, do CPP, este tribunal não pode proceder a um exame crítico das provas produzidas ou sindicar eventuais erros de julgamento quanto à apreciação e valoração da prova, não pode analisar o processo cognoscitivo/valorativo realizado pelos magistrados dos tribunais a quo, mas apenas sindicar o próprio texto verificando se a partir do relatado existe algum erro tendo em conta o que foi dado como provado e a fundamentação da decisão que determinou uma certa condenação do arguido

O Tribunal da Relação na sua fundamentação apresenta uma versão totalmente justificada sobre a divergência que incidiu sobre a mantida pela 1ª instância.

Foi claro e convincente, na leitura que uma pessoa média fará do texto, quando afirmou, e bem, que resultou da prova produzida que:

“(…) o arguido não viu a vítima nem o velocípede antes do embate (o que, como vimos, decorre da inexistência de rastos de travagem), que o corpo da vítima foi projetado a cerca de 20,5m do local do embate e que esta sofreu graves lesões, descritas no relatório de autópsia, que foram causa direta e necessária da sua morte, no local do embate.

Efetuando a devida ponderação destes dados objetivos, com base nas regras da lógica e da experiência, somos forçados a concluir que o arguido conduzia a uma velocidade não concretamente apurada, mas certamente excessiva face às condições que se apresentavam por ser inadequada às condições meteorológicas ou ambientais, nomeadamente perante o referido encandeamento solar.

(…) assume especial relevância a circunstância de o arguido não ter visto a vítima nem o velocípede antes do embate (apesar de se tratar de um local com boa visibilidade, em toda a largura e extensão, e ser-lhe possível ver o velocípede a uma distância de, pelo menos, 100 m) conjugada com o facto de, aquando do embate, o arguido conduzir fazendo uso da “pala” para o sol, o que encontra justificação na posição baixa do sol e no possível encandeamento mencionados pelas testemunhas BB2, CC3, DD4 e EE5.

Ora, não tendo sido avançada qualquer outra circunstância justificativa de o arguido não ter visto a vítima6, os mencionados depoimentos combinados com os dados objetivos (o arguido não viu a vítima nem o velocípede, apesar da boa visibilidade do local, e conduzia fazendo uso da “pala” para o sol), tudo conjugado com as regras da lógica, da experiência e com a normalidade do acontecer leva-nos a concluir (contrariamente à convicção do Tribunal a quo) que o arguido não viu a vítima nem o velocípede por ter ficado encandeado pelo sol. (…)”

Além desta explicação, torna-se incompreensível que a defesa afirme, apesar de provado ficar que o arguido não viu a vítima e apenas sentiu um embate, havendo boa visibilidade e, depois, dê a entender que foi o velocípede que bateu no seu carro. Isso, se fosse assim como diz, e apesar do texto da decisão, contraria claramente a provada tese da boa visibilidade e que, na dinâmica do acidente, se tenha projectado o corpo para fora e não para dentro da estrada. Ia, além disso, com a pala colocada, no sentido oeste-este, ou seja, contra o sol, mostrando-se muito verosímil que estivesse encandeado ou com possibilidades de o ser.

Como aceitar aquela versão, na hipótese de, como alega, não ir desatento, com visibilidade diurna, na extensão que a estrada tinha no local e ainda assim não ver um velocípede que, indo à sua frente, se tivesse projectado contra si e o corpo da vítima ser projectado num sentido oposto ao da alegada projecção contra o veículo conduzido pelo arguido?

Obviamente a sua versão é claramente contraditória e viola regras da dinâmica dos acidentes. O facto de bater na roda traseira do velocípede mesmo lateralmente com a zona da roda dianteira direita, não é incompatível com a dinâmica de um embate, numa possível ultrapassagem mal calculada ou mesmo de uma repentina tentativa de mudança de direcção, ainda que frustrada.

Pois bem, a fundamentação do tribunal da Relação ,é a nosso ver indubitavelmente a mais consentânea com as regras da experiência face às circunstâncias do caso e à inconsistência e inverosimilhança da versão sempre apresentada pelo arguido.

Não retiramos, assim, do texto da decisão, evidência alguma do vício assinalado.

Improcede pois o recurso em toda a sua extensão.

III- DECISÃO

3.1 - Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente

3.2 - Taxa de justiça criminal a cargo do arguido e que se fixa em 6 UC.- (art.º 513º do CPP e tabela III do RCP)

STJ, 13 de Fevereiro de 2025

(certifica-se que o acórdão foi processado em computador pelo relator e integralmente revisto e assinado eletronicamente pelos seus signatários, nos termos do artigo 94.º, n.ºs 2 e 3 do CPP)

Agostinho Torres (relator)

Vasques Osório (1.º adjunto)

João Rato (2.º adjunto)

Helena Moniz (Presidente)

_____________________________________________

1. Em 02.11.2023, o Tribunal a quo proferiu o seguinte despacho:

“Ref.a...89 do PE:

Compulsada a sentença proferida considera-se existir um lapso de escrita nos factos considerados provados em 2) e 3). Efectivamente, resulta da motivação da decisão de facto que não se logrou provar, sem margem de dúvida, a dinâmica do acidente objecto dos autos, razão pela qual, o arguido foi absolvido do crime imputado. Assim, os factos considerados provados em 2) e 3) devem ter-se como não provados. Nos termos do artigo 380.º, n.º 1, alínea b) do Código de Processo Penal, determino a correcção da sentença nos termos sobreditos”.

2. Neste sentido, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª edição, Editorial Verbo, pág. 335; Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª edição, Edições Rei dos Livros, pág. 103, Ac. do STJ de 28/04/1999, CJ/STJ, 1999, Tomo 2, pág. 196 e Ac. do Pleno do STJ nº 7/95, de 19/10/1995, DR I Série A, de 28/12/1995.

3. Não obstante a resposta ao Parecer, por razões que se desconhecem mas que atribuímos a lapso do tribunal da Relação, foi mencionado no acórdão ali proferido que “(…) cumprido o estabelecido no artigo 417º, n.º 2 do C.P.Penal, não foi apresentada resposta.”

4. (in https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20210491.html )

5. Moreira Ferreira viu-se acusada pelo Ministério Público de Matosinhos pelo crime de ameaças. Os ofendidos também a acusaram e apresentaram um pedido de indemnização. Moreira Ferreira requereu a abertura de instrução, para que um juiz analisasse o caso e decidisse se o processo devia seguir para julgamento ou se devia ser arquivado, como entendia. Durante a instrução, foi realizada uma perícia psiquiátrica a Moreira Ferreira em que o perito concluiu que a mesma era responsável penalmente mas referiu também que as suas reduzidas capacidades intelectuais e cognitivas podiam justificar uma responsabilidade penal diminuída.

Moreira Ferreira foi julgada em 15 de Março de 2007 e o tribunal condenou-a pela prática de dois crimes de ameaças e dois crimes de injúrias numa multa de 640 euros e, ainda, a indemnizar cada um dos vizinhos em 450 euros. Não concordou com a sua condenação e recorreu para o Tribunal da Relação do Porto. Pretendia ser ouvida por este tribunal, já que, segundo alegava, não tinha tido consciência de estar a praticar quaisquer actos ilícitos e devia ver a sua responsabilidade penal diminuída em virtude de sofrer de problemas psiquiátricos. Ora o Tribunal da Relação, tendo em conta as disposições legais em vigor, entendeu não ouvir presencialmente Moreira Ferreira na audiência de julgamento do recurso, bastando-se com as suas alegações escritas, tendo decidido manter as condenações, baixando um pouco a multa. E a queixosa dirigiu-se ao TEDH invocando o seu direito a ser ouvida, que teria sido violado pelos nossos tribunais. Por sentença de 23 de Março de 2007, o tribunal considerou a requerente culpada de dois crimes de ameaças, previstas no artigo 153º, nº 2, do Código Penal e de dois crimes de injúrias, condenando-a a 320 dias de multa, correspondente a um total de 640 euros. O juiz considerou nomeadamente que não havia factos que sustentassem a tese da diminuição da responsabilidade penal da interessada. O tribunal condenou-a, aliás, a pagar uma indemnização de 450 euros a cada um dos queixosos. 10. A 13 de Abril de 2007, a requerente recorreu para o Tribunal da Relação do Porto. Nas suas alegações argumentava, nomeadamente, não ter tido consciência do carácter ilícito dos seus actos e dever beneficiar de responsabilidade penal diminuída porque sofria de problemas do foro psiquiátrico. A este respeito, requeria ser ouvida pelo Tribunal da Relação e, consequentemente, pedia a reapreciação dos factos mediante uma nova audiência pública em sede de recurso. 11. A 16 de Novembro de 2007, o defensor oficioso da requerente foi informado que a audiência em sede de recurso estava marcada para 12 de Dezembro de 2007. 12. A 19 de Novembro de 2007, a requerente, verificando que não lhe tinha sido dado conhecimento da transcrição do registo áudio da audiência de 15 de Março de 2007, efectuado pelo tribunal, requereu a anulação de todos os actos processuais posteriores àquela transcrição. O juiz relator do Tribunal da Relação do Porto indeferiu o pedido e a requerente requereu que um colectivo de três juízes (conferência) se pronunciasse sobre a questão. 13. A audiência no Tribunal da Relação ocorreu em 12 de Dezembro de 2007 na presença do representante do Ministério Público e do advogado da requerente. 14. Por Acórdão de 19 de Dezembro de 2007, o Tribunal da Relação confirmou a decisão do juiz relator sobre a solicitação da interessada, sublinhando que nenhuma disposição legal impunha a notificação da transcrição da gravação de audiências. Acrescentava que a requerente tinha tido acesso à transcrição em causa, antes da interposição do recurso, a qual estava à sua disposição na secretaria do tribunal. 15. No mesmo dia, o Tribunal da Relação proferiu acórdão quanto ao mérito do recurso interposto pela requerente. Considerou, aliás, não haver necessidade de reapreciação dos factos porquanto a requerente não tinha conseguido pôr em causa a validade da apreciação feita pelo tribunal de primeira instância.

6. Cfr. “Das criminalverfahren in den deustschen Gerichten”, referência colhida em Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, Vol.I, reimpressão (primeira edição 1974), Coimbra Editora, Coimbra, 1981, p.213.

7. Para maior desenvolvimento, cfr. Cristina Líbano Monteiro, Perigosidade de inimputáveis e “in dubio pro reo”, Coimbra Editora, Coimbra, 1997, p.9.

8. violação da legalidade democrática e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados”.

9. Cfr. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, Vol. I, reimpressão (primeira edição 1974), Coimbra Editora, Coimbra, 1981, pp.211 a 213.

10. Neste sentido também Miguel Machado, “O Princípio in dubio pro reo e o novo Código de Processo Penal”, in ROA, ANO 49, 1989, p.596 citando Gomes Canotilho e Vital Moreira. Rui Patrício, O princípio da presunção de inocência do arguido na fase do julgamento no actual processo penal português, AAFDL, Lisboa, 2000, p.32.

11. Cfr. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, Vol..I, reimpressão (primeira edição 1974), Coimbra Editora, Coimbra, 1981, p.217.

12. No mesmo sentido, Cavaleiro de Ferreira, Curso de Processo Penal, Vol.I, Ed. Danúbio, Lisboa, 1986, p.212; Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol.I, Verbo, Lisboa, 4ª ed., 2000, p.83; Teresa Beleza, Apontamentos de Direito Processual Penal, Vol.II, AAFDL, Lisboa, 1993, p.149 e Rui Patrício, O princípio da presunção de inocência do arguido na fase do julgamento no actual processo penal português, AAFDL, Lisboa, 2000, p.31.

13. Cfr. Cristina Líbano Monteiro, Perigosidade de inimputáveis e “in dubio pro reo”, Coimbra Editora, Coimbra, 1997, p.65.

14. Cfr. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, Vol. I, reimpressão (primeira edição 1974), Coimbra Editora, Coimbra, 1981, p.215; Eduardo Correia, “ Les preuves en droit pénal portugais”, in RDES, Ano XIV, FDL, 1967, pp.16 e ss; Cavaleiro de Ferreira, Curso de Processo Penal, Vol. I, Ed. Danúbio, Lisboa, 1986, pp.312 e ss; Castanheira Neves, Sumários de Processo Criminal, Coimbra, 1968, pp.59 e 60.

15. Cfr. Eduardo Correia, Direito Criminal, Vol.I, Almedina, Coimbra, 1963, p.150.

16. Cfr. Eduardo Correia, Direito Criminal, Vol.I, Almedina, Coimbra, 1963, p.151.

17. Cfr. Helena Bolina, “Razão de ser, significado e consequências do Princípio de presunção de inocência (art.32º nº2 CRP)”, in BFDUC,1994, p.440.

18. Cfr. Cristina Líbano Monteiro, Perigosidade de inimputáveis e “in dubio pro reo”, Coimbra Editora, Coimbra, 1997, pp.66 e 67.

19. Neste sentido se pronunciaram Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, Vol.I, reimpressão (primeira edição 1974), Coimbra Editora, Coimbra, 1981, p.213; Cavaleiro de Ferreira, Curso de Processo Penal, Vol.I, Ed. Danúbio, Lisboa, 1986, p.216; Castanheira Neves, Sumários de Processo Criminal, Coimbra, 1968, pp.59 e 60; Eduardo Correia, “Les preuves en droit pénal portugais”, in RDES, Ano XIV, FDL, 1967, pp.1 a 52; Cristina Líbano Monteiro, Perigosidade de inimputáveis e “in dubio pro reo”, Coimbra Editora, Coimbra, 1997, p.49 e pp.70 e ss. e Frederico de Lacerda da Costa Pinto, “Crime de homicídio privilegiado: tipo de culpa e in dubio pro reo”, in RPCC, 1998, pp.292 e 293.

20. Sobre a aplicação da jurisprudência do TEDH, recordamos aqui, em síntese, algumas linhas gerais que seguimos de perto, já enunciadas no AC STJ de 02-12-2021 ( procº 1718/02.9JDLSB-ZZ.S1):

” (…) Dispõe o art. 8º, n.º 1 da Constituição da República que “as normas e os princípios de direito internacional geral ou comum fazem parte integrante do direito português”

E, o n.º 2 que “as normas constantes de convenções internacionais regularmente ratificadas ou aprovadas vigoram na ordem interna após a sua publicação oficial e enquanto vincularem internacionalmente o Estado Português”.

Por sua vez, no art.º 16º, n.º 1 estatui que “os direitos fundamentais consagrados na Constituição não excluem quaisquer outros constantes das leis e regras aplicáveis de direito internacional”.

E, no n.º 2, que “os preceitos constitucionais e legais relativos aos direitos fundamentias devem ser interpretados e integrados de harmonia com a Declaração Universal dos Direitos Humanos

A Convenção Europeia dos Direitos Humanos e Liberdades Fundamentais (doravante CHDH/ou simplesmente Convenção), adotada pelo Conselho da Europa, em 4 de novembro de 1950, em Roma, com início de vigência na ordem internacional em 3 de setembro de 1953, foi assinada por Portugal em 22 de setembro de 1976, passando a vigorar no direito interno a partir de novembro de 1978 – Lei n.º 65/78 de 13 de outubro.

Pelo que, desde então, os tribunais nacionais estão obrigados a aplicá-la diretamente, fazendo respeitar os direitos nela consagrados. Entre os quais se inclui o processo justo, consagrado no art. 6º da Convenção.

Como refere Henriques Gaspar, “os juízes nacionais estão, assim, vinculados à CEDH e em diálogo e cooperação com o TEDH. Vinculados porque, sobretudo em sistema monista, como é o português (artigo 8.° da Constituição), a CEDH, ratificada e publicada, constitui direito interno que deve, como tal, ser interpretada e aplicada, primando, nos termos constitucionais, sobre a lei interna. E vinculados também porque, ao interpretarem e aplicarem a CEDH como primeiros juízes convencionais (ou juízes convencionais de primeira linha), devem considerar as referências metodológicas e interpretativas e a jurisprudência do TEDH, enquanto instância própria de regulação convencional. ( cfr A Influência do CEDH no diálogo interjurisdicional, Revista JULGAR nº7, pag 49.”

Para garantir o respeito, pelos Estados parte, dos compromissos resultantes da Convenção e seus protocolos, instituiu-se o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos/TEDH –art. 19º -, com competência para apreciar e decidir todas as questões relativas à interpretação e à aplicação da Convenção e respetivos protocolos que lhe sejam submetidas, tanto de tipo estatal – art. 33º - como, sobretudo, de demandas de ordem individual – art. 34º. Em qualquer caso, os Estados partes não podem opor reservas e decidir si aceitam ou não a jurisdição do Tribunal.

O TEDH, aceitando queixas dos particulares, quando não se se resolvam por composição amigável, julgando-as fundadas, declara que o Estado requerido violou um ou mais direitos consagrados na Convenção e respetivos protocolos.

O Tribunal, se concluir que o direito interno do Estado parte não permitir senão imperfeitamente obviar às consequências da violação declarada, pode, se necessário, atribuir à/ao queixoso uma reparação razoável.

Em algumas situações o TEDH, tem entendido que a constatação da violação da Convenção, do ato jurídico ou judicial do Estado parte requerido, constitui satisfação equitativa suficiente para o requerente.

As sentenças definitivas do TEDH que declaram uma violação da Convenção, vinculam o Estado parte nos litígios em que é demandado, ainda que sem efeito anulatório automático no regime jurídico do direito interno desse Estado, nem possibilidade de execução direta pelos respetivos tribunais estaduais. O Estado parte declarado em violação de algum direito consagrado na Convenção está obrigado a cumprir essa sentença definitiva do TEDH – art. 46º n.º 1. Obrigação de execução decorrente do compromisso internacional assumido com a assinatura da Convenção.

O Estado declarado em violação da Convenção pode escolher os meios do seu ordenamento jurídico interno para dar execução, plena, efetiva e rápida das sentenças vinculativas do TEDH ou, de outra perspetiva, reparar internamente a vulneração de direitos constatada pelo Tribunal.
A execução de uma sentença definitiva do TEDH pode exigir medidas gerais, nomeadamente alterações legislativas destinadas essencialmente a prevenir que a violação declarada se repita no ordenamento jurídico interno. E, sempre que necessário e possível, medidas individuais para garantir o respeito pelo direito do requerente que o Tribunal considerou ter sido violado. Entre as quais se pode incluir uma alteração legislativa. Mas também a reabertura do processo interno onde foi decretada a condenação do queixoso.”