Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
20/17.6YFLSB
Nº Convencional: SECÇÃO DE CONTENCIOSO
Relator: ROQUE NOGUEIRA
Descritores: INSPECÇÃO JUDICIAL
INSPECTOR JUDICIAL
RECLAMAÇÃO PARA O PLENÁRIO
CLASSIFICAÇÃO DE SERVIÇO
IMPEDIMENTO
PRINCÍPIO DA INDEPENDÊNCIA
PRINCÍPIO DA IMPARCIALIDADE
INAMOVIBILIDADE DOS MAGISTRADOS JUDICIAIS
PRINCÍPIO DA CONFIANÇA
JUIZ
RECURSO CONTENCIOSO
DELIBERAÇÃO DO PLENÁRIO
CONSELHO SUPERIOR DA MAGISTRATURA
Data do Acordão: 01/23/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO DE CONTENCIOSO
Decisão: IMPROCEDENTE
Área Temática:
DIREITO ADMINISTRATIVO – DIREITO À INFORMAÇÃO.
ORGANIZAÇÃO JUDICIÁRIA – IMPEDIMENTOS.
Doutrina:
-Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume III, 4.º Edição revista, Coimbra Editora, p. 513 a 516, 586 a 590, 802, 803 e 804;
-Guedes Valente, Processo Penal, Tomo I, 2.ª Edição, Almedina, p. 90, 91 e 103;
-Henriques Gaspar, A Independência Judicial: Um Valor Supraconstitucional, ASJP, Boletim Informação e Debate, VI Série, N.º 3, Março 2010, p. 28;
-Jorge de Figueiredo Dias e Maria João Antunes [7] In ob. cit, pág. 94.
-Jorge de Sousa, Os poderes de cognição dos tribunais administrativos relativamente a actos praticados no exercício da função pública, Revista Julgar n.º 3/2007, p. 136 e 137;
-Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo III, Coimbra Editora, 2007, p. 565, 575 a 577;
-Lebre de Freitas, Introdução ao Processo Civil. Conceito e princípios gerais à luz do Código Revisto, Coimbra, 1996, p. 64 e 65;
-Luis Cabral de Moncada, Novo Código do Procedimento Administrativo, Anotado, Novembro de 2015, Coimbra Editora, p. 99;
-M. Esteves de Oliveira, Código do Procedimento Administrativo Comentado, 2.ª Edição, 2006, Almedina, p. 107;
-Manuel Carneiro da Frada, Teoria da Confiança, p. 431 e ss., 873, 893 e 903;
-Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, I, p. 411 a 413.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO NOS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS (CPTA): - ARTIGO 3.º, N.º 1.
CÓDIGO DO PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO (CPA): - ARTIGOS 9.º E 69.º E SS..
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGOS 2.º E 266.º, N.º 2.
RENDIMENTO SOCIAL DE INSERÇÃO (RSI): - ARTIGO 11.º.
ESTATUTO DOS MAGISTRADOS JUDICIAIS (EMJ): - ARTIGO 7.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 01-07-2003, IN CJSTJ, TOMO II, 2003, P. 9;
- DE 25-06-2008, PROCESSO N.º 87/08, SUMÁRIO IN WWW.STJ.PT/JURISPRUDÊNCIA/SUMÁRIOS/SUMÁRIOS;
- DE 05-07-2012, PROCESSO N.º 147/11.8YFLSB, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 19-09-2012, PROCESSO N.º 14/12.8YFLSB, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 19-02-2013, PROCESSO N.º 98/12.9YFLS, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 19-02-2013, PROCESSO N.º 120/12.9YFLSB, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 27-04-2016, PROCESSO N.º 3/15.0YFLSB.S1, IN WWW.DGSI.PT.


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ACÓRDÃO DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL:


- ACÓRDÃO N.º 556/03.
Sumário :
I - É válida a deliberação do CSM - que se deve considerar fundada no exercício dos poderes próprios de conveniência e de oportunidade a que alude o art. 3.º, n.º 1, do CPTA – segundo a qual" um inspetor pode realizar inspeção judicial ao mesmo juiz mais do que uma vez, salvo quando este tenha anteriormente reclamado da notação proposta por aquele inspetor ou o CSM tenha alterado a respetiva proposta" pois tal deliberação não constitui violação dos princípios da independência dos juízes, da sua inamovibilidade, da imparcialidade ou da proteção da confiança.

II - O princípio da imparcialidade encontra-se previsto no art. 266.º, n.º 2, da CRP e encontra-se plasmado no art. 9.º do CPA e no art. 7.º do EMJ (que consagra as «garantias de imparcialidade»); apenas são merecedores de tutela, por beliscarem o princípio da imparcialidade que deve pautar a actividade inspectiva - comportamentos que possam, ainda que em abstracto, gerar a suspeita de afectar/atingir a imparcialidade e objectividade de um inspector.

III - As divergências significativas e ostensivas relativamente ao teor do relatório, reflectir-se-ão, certamente, em divergências na notação proposta, pelo que a discordância dos fundamentos tem que ser despicienda para que exista consenso quanto à classificação. E sendo uma discordância despicienda não se vê em que medida um inspector, magistrado judicial experiente, se possa sentir afectado/atingido por forma a que na sua interacção futura com o mesmo inspeccionado, paute a sua conduta pela falta de transparência e objectividade.

IV - Estando o mecanismo legal de impedimento (afastamento) de um inspector ao dispor do juiz inspeccionado e do inspector (art. 11.º RSI e art. 69.º e sgs., do CPA), é crível que sempre que o juiz inspeccionado se sinta inibido ou limitado nos seus direitos por ser inspeccionado por um inspector que já antes o inspeccionara ou que o inspector sinta constrangimento em inspeccionar um juiz que previamente inspeccionara, venham a ser utilizados, sem desconfortos de qualquer espécie, os meios legais aos seu dispor para o respectivo afastamento.

V - Os juízes de direito, a partir da deliberação impugnada (Janeiro de 2017), passaram a ter conhecimento e consciência que a ausência de reclamação implica poderem a vir a ser inspeccionados pelo mesmo inspector, pelo que actuarão em conformidade com esse conhecimento, inexistindo, por isso, qualquer infracção ao princípio da protecção da confiança está ínsito no princípio geral do «Estado de direito democrático», consagrado no art. 2.º da CRP.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I. Relatório

AA, inconformada com a deliberação do Plenário do Conselho Superior da Magistratura (doravante designado por CSM) de 24 de Janeiro de 2017 que decidiu “(...) concordar com a proposta de deliberação apresentada, no sentido de que um Inspector pode realizar inspecção judicial ao mesmo juiz mais do que uma vez, salvo quando este tenha anteriormente reclamado da notação proposta por aquele Inspector ou o Conselho tenha alterado a respectiva proposta”, veio interpor recurso para o Supremo Tribunal de Justiça (doravante designado por STJ), nos termos dos arts. 168.º e seguintes do Estatuto dos Magistrados Judiciais (doravante designado por EMJ), peticionando que seja anulada aquela deliberação.

Alega, para tanto, e em suma:
1. “(…) a avaliação inspetiva é algo de estrutural da carreira do juiz, de que depende a sua progressão na carreira e pode até implicar o afastamento funcional de alguns magistrados,
2. Por consequência, o regime de inspeções é suscetível de contender com as garantias centrais da função, especialmente a independência e a inamovibilidade (arts. 4.º e 6.º do EMJ).
3. Isso implica que a sua regulamentação deva ser acompanhada de todas as garantias de exercício objetivo, imparcial e isento da função de inspetor.
4. Tal não se encontra suficientemente acautelado na deliberação em causa, pondo-a em claro confronto com as normas estatutárias referidas (arts. 4.º e 6.º EMJ). Senão veja-se;
5. Nos termos do art. 37.º do EMJ as classificações consideram os resultados das inspeções anteriores, os processos disciplinares e quaisquer elementos complementares que constem do respetivo processo individual.
6. Neste sentido, pareceria poder concluir-se que as ressalvas incluídas na deliberação, ao não permitir a repetição de inspeção pelo mesmo inspetor no caso de reclamação de nota pelo inspecionando, ou alteração de nota proposta pelo próprio CSM, pareceriam suficientes.
7. Quer dizer, se a avaliação posterior atendesse apenas ao resultado da inspeção anterior, seria suficiente consagrar um "impedimento" de repetição no caso em que o resultado anterior proposto pelo inspetor tenha sido posto em causa pelo inspecionando, ou pelo próprio CSM.
8. (…) o processo inspetivo não se reduz ao seu resultado, inclui todo o contraditório inicial e subsequente à proposta e a própria fundamentação do relatório.
9. Tal é suscetível de originar diferenças substantivas entre o inspetor e o inspecionando, eventualmente até formação de pré-juízos ou preconceitos pessoais recíprocos que, pela dinâmica daquela concreta inspeção, acabaram por não ter tradução ao nível da notação.
10. A conformação do inspecionando com o resultado da inspeção, ou simplesmente com considerações e juízos do inspetor (que podem vir a ser posteriormente consideradas), radicará em muitos casos precisamente no conhecimento do facto de a inspeção seguinte ser necessariamente realizada por outra pessoa, nos termos do quadro regulatório anteriormente vigente.
11. A alteração introduzida pela douta deliberação impugnada, do modo que o foi e com o reduzido leque de ressalvas previstas, é suscetível de pôr em causa o princípio da confiança dos juízes, seja na atividade inspetiva do CSM seja, por inerência, na estruturação da sua própria carreira.
12. Essa violação da confiança na ausência de consequências de uma não reclamação, ao ser agora posta em causa, também contende com a independência dos juízes.
13. O mesmo se dirá na situação inversa, isto é em que o juiz reagiu de forma forte e ostensiva ao teor do relatório inspetivo, ou de algumas considerações ou conclusões aí feitas, ou até, simplesmente, teve alguma divergência ou discussão com o inspetor no decurso do processo inspetivo mas entendeu não pôr em causa a notação proposta.
14. Também aí o juiz atuou ao abrigo de um princípio de confiança de não poder voltar a ser inspecionado por aquele inspetor, que é agora posto em causa.
15. Saberá a generalidade dos inspectores separar as apreciações feitas anteriormente ao seu trabalho pelos inspecionandos da nova tarefa inspetiva de uma segunda inspeção.
16. Mas isso não afasta a circunstância concreta de estarem a ser criadas condições objetivas para que um ou mais inspetores, num ou mais casos, se sintam atingidos pela pronúncia anterior de juízes inspecionados, sem reflexo no resultado, e, numa segunda inspeção, percam objetividade avaliativa.
17. Esse risco, pela suprarreferida função da atividade inspetiva, é suscetível de pôr em causa a independência e a inamovibilidade dos juízes.
18. Dir-se-á que o regime dos impedimentos poderia tutelar alguma situação de animosidade pessoal não refletida no resultado inspetivo, mas tal não sucede necessariamente.
19.  Por um lado, as dúvidas legítimas do juiz podem assentar num conjunto de pequenos indícios que, descontextualizados subjetivamente, podem não atingir um limiar que permita o afastamento formal de um inspetor.
20. Por outro, a referida confiança dos juízes na não repetição de inspeções pelo mesmo inspetor poderá ter resultado numa omissão voluntária de reclamação que, perante esta alteração superveniente, fica posta em causa.
21. Por último, importa referir que o mecanismo legal de afastamento de um inspetor pelo inspecionando é, em si mesmo, um procedimento que implica a alegação de um conjunto de factos e circunstâncias que geram um contexto de litígio, latente ou patente, entre inspecionando e inspetor.
22. E é suscetível de criar um contexto consequente de litígio e desconfiança entre o juiz e o corpo de inspetores do CSM.
23. Contexto que, com uma regra de rotatividade necessária de inspetores, se afastaria liminarmente na generalidade dos casos, permitindo criar condições objetivas de isenção nas inspeções.
24. Esse contexto é suscetível de inibir e limitar a pronúncia do inspecionando e até o recurso às faculdades gerais de afastamento, mais uma vez em detrimento da criação de condições gerais, abstraídas e não dependentes de qualquer manifestação de vontade do exercício isento da atividade inspetiva.
25. Essa compressão de condições de exercício objetivo da atividade inspetiva pela revogação da regra de rotatividade necessária de inspetores é, em si mesma, violadora das regras de independência e inamovibilidade dos juízes, pondo em causa de modo relevante regras de independência interna adquiridas no nosso ordenamento (arts. 4.º e 6.º do EMJ).
26. Essa compressão, subjetivamente considerada, é claramente violadora do princípio da confiança dos juízes, permitindo que legítimas expetativas de alteração de inspetor em nova inspeção, acompanhadas de omissão de pronúncia no decurso do processo inspetivo, ou pronúncia em termos fortes, sejam postas em causa.
27. E, nos casos em que tal não atinja o limiar da desconfiança aberta e assumida, permite ou facilita a realização de inspeções em situação de objetividade e isenção reduzidas.
28. Os referidos princípios têm inclusive assento constitucional, a saber: o princípio da independência dos juízes no art. 203.º, o princípio da inamovibilidade no art. 216.º, o princípio da confiança no art. 2.º e o princípio da imparcialidade no art. 266.º, n.º 2.”

            Termina, alegando que a violação de tais normas e princípios acarreta a invalidade (anulação) da deliberação impugnada, nos termos do art. 163.°, n.º 1, do CPA.

           O CSM, nos termos do n.º 1 do art. 174.° do EMJ, apresentou resposta, sustentando a improcedência do recurso, em suma, pelas seguintes razões:

            “1. (…) afigura-se que os exemplos utilizados pela recorrente para ilustrar o meramente hipotético beliscar da independência, confiança e inamovibilidade, por via da aplicação da deliberação impugnada, tanto são aplicáveis em situações de sucessão de inspeções de juiz por um mesmo inspetor, como em situações de realização de inspeção de juiz por diferentes inspetores.

            2. A deliberação que precedeu a deliberação ora impugnada, tomada na sessão plenária do CSM, de 6 de dezembro de 2005, determinou a impossibilidade de realização de sucessivas inspeções a um mesmo juiz por um mesmo inspetor.

            3. Assim, a deliberação ora impugnada veio revogar aquela anterior deliberação, motivada por razões de mérito, conveniência e oportunidade, nos termos legalmente previstos no CPA para a revogação de actos válidos.

            4. O que parece estar em causa é uma mera discordância da recorrente com o conteúdo e o sentido da deliberação que vem impugnar.

            5. Todavia, pode a recorrente discordar de tal conteúdo e sentido da deliberação, mas a mera discordância não equivale, por si só, à invalidade da deliberação em questão.

            6. Compulsado o teor da deliberação sub judice, resulta evidente que não está em causa a criação de uma regra imperativa que imponha que a inspeção de um juiz seja realizada pelo mesmo inspetor que o havia inspecionado em momento anterior.

            7. Na verdade, o que se está a prever é, outrossim, a singela faculdade de tal repetição de inspetor poder acontecer.

            8. Nestes termos, pese embora o esforço inglório, não se descortina em que medida a deliberação impugnada é suscetível de contender com o princípio da independência dos juízes pelo facto de se criar a possibilidade de um inspetor inspecionar o mesmo juiz mais do que uma vez.

            9. Por outro lado, considerar que os juízes poderiam ficar de alguma forma condicionados na manifestação das suas convicções e deixariam de exercer os seus direitos de reclamação afigura-se inteiramente desajustado ao perfil da magistratura portuguesa.

            10. Não se admite por isso, sequer como raciocínio abstrato, que os juízes, profissionais altamente qualificados, de elevada capacidade intelectual e técnico-jurídica e que primam pela idoneidade, isenção, sentido de justiça, bom senso e ponderação no exercício das suas funções, poderiam ficar limitados na manifestação da sua liberdade e independência pela mera circunstância de poderem vir a ser inspecionados pelo mesmo inspetor que os inspecionou no passado.

            11. Também no plano das garantias de imparcialidade não se vislumbra qualquer indício de que a deliberação ora impugnada possa ver violadora de tal princípio. Se não vejamos.

            12. No âmbito do processo inspetivo o inspetor actua numa posição semelhante à de um perito, procedendo à recolha de elementos e elaborando um relatório de inspeção que habilitam a tomada de decisão acerca da classificação do juiz.

            13. Tal decisão, como se sabe, não compete ao inspetor, mas sim ao CSM (art. 149.º do EMJ).

            14. O relatório de inspeção tem natureza jurídica e valor de acto preparatório, servindo para alicerçar a ulterior concreta decisão de classificação que se consubstancia na homologação, pelo plenário do CSM, da proposta de classificação (vide acórdão do STJ proferido no Proc n.º 119/14.0YFLSB).

            15. Ao nível do processo inspetivo, as garantias de impacialidade encontram-se indiscutivelmente salvaguardadas por aplicação do artigo 11.º do novo Regulamento dos Serviços de Inspecção do Conselho Superior da Magistratura (RIJ), publicado em Diário da República através da Deliberação n.º 1777/2016, de 17 de novembro.

            16. No que respeita à invocada violação do princípio da imparcialidade, atentando na ressalva constante na parte final da deliberação impugnada, nela se prevê que “…salvo quando este tenha anteriormente reclamado de notação proposta por aquele inspector ou o Conselho tenha alterado tal notação”.

            17. Seguindo a linha de raciocínio e de argumentação ensaiada pela recorrente, conjugada com a ressalva acima transcrita, o resultado será a verificação de uma situação exatamente inversa àquela que é alvitrada.

            18. Com efeito, no limite, em aplicação da ressalva constante na deliberação impugnada, os juízes apresentarão sempre reclamação da notação proposta pelo inspetor, de forma a que não possam vir a ser inspecionados por esse mesmo inspetor.

            19. Reitera-se uma vez mais que não se vislumbra nenhuma relação, mesmo que ténue, entre o teor da deliberação impugnada e as garantias de imparcialidade que deverão nortear a atividade dos inspectores.

            20. Ainda que, como sugere a recorrente, no decurso de um processo inspetivo pudessem verificar-se circunstâncias suscetíveis de “originar diferenças substantivas entre o inspetor e o inspecionando, eventualmente até formação de pré-juízos ou preconceitos pessoais recíprocos que, pela dinâmica daquela concreta inspeção, acabaram por não ter tradução ao nível da notação”, o certo é que também nesses casos existem mecanismos legais para reagir e obstar à diminuição da objetividade e isenção do processo inspetivo.

            21. Com efeito, havendo indícios de não estar suficientemente garantida a imparcialidade do inspetor, sempre poderá o juiz inspecionando suscitar o impedimento do inspetor ou deduzir suspeição, regulados nos artigos 69.º e seguintes do novo CPA (anteriores art. 44.º e segs.), cfr resulta assente do acórdão do STJ proferido no proc n.º 25/15.1YFLSB.

            22. Em face de tudo quanto antecede, dúvidas não existem de que o teor da deliberação impugnada não colide com nenhuma norma nem princípio legal, afastando-se por conseguinte a alegada violação dos princípios da independência, da inamovibilidade, da confiança e da imparcialidade e reservando-se para sede e tempo próprios a eventual apreciação e pronúncia do recorrido, a respeito da eventual invocação proprio sensu de inconstitucionalidade.”

            Termina concluindo que a deliberação impugnada não colide com nenhuma norma nem princípio legal e/ou constitucional, pelo que o recurso deve ser julgado improcedente.

            Cumprido o disposto no art. 176.º do EMJ, a recorrente apresentou alegações, em que pugnando pela anulação da deliberação recorrida começa por (I) invocar uma questão prévia, (II) elenca os factos que entende deverem ser considerados provados, (III) dá por reproduzido o que na p.i. escreveu sobre a invalidade da deliberação e (IV) termina com as conclusões:

            I - Questão prévia
1. Os AA. foram notificados para alegações e com essa notificação foi junta cópia da, aliás douta, resposta do CSM.
Nessa resposta não se refere a junção do processo administrativo ou a inexistência do mesmo.
2. Estabelece o nº 1 do art. 84º do CPTA que [c]om a contestação, ou dentro do respetivo prazo, a entidade demandada é obrigada a proceder, preferencialmente por via eletrónica, ao envio do processo administrativo, quando exista, assim como todos os demais documentos respeitantes à matéria do processo de que seja detentora, (…).
A douta deliberação não explica porque razão altera a deliberação do Conselho Plenário do CSM de 06.12.2005 que refere. O normal será que haja elementos documentais (estudos, estatísticas ou outros) que estejam na base de tal alteração.
Tais elementos são importantes para perceber a justificação da deliberação impugnada.
A sua não junção ou a não indicação de que os mesmos não existem constitui ilegalidade que produz nulidade já que pode influir no exame ou na decisão da causa - art. 195º, nº 1, do CPC - o que aqui expressamente se argui.
(…)

            IV - Conclusões
a) Nos termos do art. 161º do EMJ, além do mais, os serviços de inspeção destinam-se a colher informações sobre o serviço e o mérito dos magistrados (n.º 2);
b) A avaliação inspetiva é, assim, algo de estrutural da carreira do juiz, de que depende a sua progressão na carreira e pode até implicar o afastamento funcional de alguns magistrados;
c) Por consequência, o regime de inspeções é suscetível de contender com as garantias centrais da função, especialmente a independência e a inamovibilidade (arts. 4º e 6º do EMJ);
d) Nos termos do art. 37º do EMJ as classificações consideram os resultados das inspeções anteriores, os processos disciplinares e quaisquer elementos complementares que constem do respetivo processo individual;
e) A conformação do inspecionando com o resultado da inspeção, ou simplesmente com considerações e juízos do inspetor (que podem vir a ser posteriormente consideradas), radicará em muitos casos precisamente no conhecimento do facto de a inspeção seguinte ser necessariamente realizada por outra pessoa, nos termos do quadro regulatório anteriormente vigente;
f) A alteração introduzida pela douta deliberação impugnada, do modo que o foi e com o reduzido leque de ressalvas previstas, é suscetível de pôr em causa o princípio da confiança dos juízes, seja na atividade inspetiva do CSM seja, por inerência, na estruturação da sua própria carreira;
g) Essa violação da confiança na ausência de consequências de uma não reclamação, ao ser agora posta em causa, também contende com a independência dos juízes;
h) Os referidos princípios têm inclusive assento constitucional, a saber: o princípio da independência dos juízes no art. 203º, o princípio da inamovibilidade no art. 216º, o princípio da confiança no art. 2º e o princípio da imparcialidade no art. 266º, nº 2.
i) A violação de tais normas e princípios acarreta a invalidade da douta deliberação impugnada, nos termos do art. 163º, nº 1, do CPA.”

                 O CSM, em cumprimento do disposto no art. 176.º do EMJ, pugna pela improcedência do recurso apresentado, respondendo à questão prévia e formulando as seguintes conclusões:

            “II) A questão prévia - Nulidade processual

            3 - A recorrente começa por, a título de questão prévia, suscitar uma pretensa nulidade processual por omissão da junção do processo administrativo.

            4 - A invocação de tal nulidade processual apenas poderá pretender desviar a atenção e secundarizar a apreciação do mérito do presente recurso – validade da deliberação do CSM sub judice -, já que a referida nulidade não tem qualquer sustentação legal.

            5 - A pretensão da recorrente circunscreve-se a questões exclusivamente de direito, sem relevo factual controvertido.

            6 - De resto, nas suas alegações a recorrente considera provados apenas dois factos – o que diz bem da quantidade e complexidade da matéria de facto em causa nos presentes autos -, os quais se encontram comprovados através do doc. 1 junto com a p.i., circunstância que o ora recorrido não contesta.

            7 - A recorrente juntou todos os documentos processuais relevantes, de forma cronologicamente organizada e abrangendo toda a matéria em questão no presente recurso, pelo que na sua Resposta o recorrido não viu necessidade de juntar qualquer outro elemento do processo administrativo.

            8 - No presente recurso contencioso, por razões de economia processual, não se juntou cópia do procedimento administrativo aberto e tramitado relativo à deliberação sub judice, sob o n.º 2017/GAVPM/344, tanto mais que o referido procedimento não acrescenta nada, antes repete, a documentação junta pela recorrente com a apresentação da sua petição inicial.

            9 - Como se referiu no Ac. do TCAN, de 28/4/2014 (Maria Fernanda Brandão), disponível na base de dados www.dgsi.pt: Assim, conforme aventado, com a junção aos autos de todos os documentos em que se traduziram os actos e formalidades que integraram o procedimento (…), foi atingida a finalidade da norma que visa facultar ao Tribunal todos os elementos probatórios necessários à formação da sua convicção perante os factos alegados pelas partes, consagrada no nº 3 do citado artº 8º. Tal equivale a dizer que foi cumprido o dever que se impunha à Administração, não existindo qualquer violação do dever de cooperação com o Tribunal.

            10 - Por outro lado, relativamente à putativa consequência jurídica da não junção do processo administrativo – nulidade processual-, como foi exaustivamente tratado no Ac. do Tribunal Central Administrativo Sul, de 19/01/2012 (BENJAMIM BARBOSA), disponível na mesma base de dados, « (…) As nulidades processuais podem ser “principais (típicas ou nominadas), que são especificadamente previstas na lei, e as nulidades secundárias, que são as genericamente referidas na fórmula geral do artigo 201.º, 1” (1).

            São principais, entre outras, as previstas nos artigos 193.º e seguintes do CPC e secundárias aquelas que, redundando na prática de um ato que a lei não admita, bem como a omissão de um ato ou de uma formalidade que a lei prescreva, são como tal declaradas por lei ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa (art.º 201.º, n.º 1, do CPC).

            No caso em concreto estar-se-ia perante esta última hipótese.

            Sucede, porém, que não existe qualquer nulidade nessa perspetiva, quer porque a omissão da junção do processo instrutor constitui mera irregularidade, quer porque se entende que a sua falta apenas tem consequências a nível probatório (tese que o recorrido perfilha), quer ainda porque a falta do processo instrutor não influiu no exame ou na decisão da causa.

            (…) Contudo, a falta de processo instrutor não obsta ao prosseguimento da causa, o que demonstra que a omissão desse dever a cargo da entidade demandada não consubstancia uma nulidade processual. (…)» - negritos nossos.

            11 - Improcede, em conclusão, a invocada nulidade processual.

            12 - De qualquer forma e para que dúvidas não existam, junta-se agora a cópia integral do procedimento tramitado no Gabinete de Apoio ao Vice-Presidente e Membros, sob o n.º 2017/GAVPM/344, resultando prejudicada a apreciação sobre a invocada nulidade.

            III) A validade da deliberação impugnada

            13 - Retomando o fundo do mérito do presente recurso, nas suas alegações a recorrente limita-se a dar por reproduzido o teor da p.i. a respeito da pretensa invalidade da deliberação impugnada.

            14 - Ou seja, no entender da recorrente, perante a Resposta do recorrido, nada há a acrescentar, clarificar ou densificar face ao que havia exposto na sua petição inicial (p.i.).

             15 - Importa, pois, retomar o conteúdo da aludida p.i. e, definitivamente, afastar quaisquer dúvidas que pudessem subsistir a respeito da inteira legalidade e validade da deliberação impugnada.

            16 - A deliberação ora impugnada revogou a anterior deliberação tomada na sessão plenária do CSM, de 6 de dezembro de 2005, que genericamente determinava que um juiz não seria inspecionado por um Inspector mais do que uma vez.

            17 - Tal revogação fundamentou-se em razões de mérito, conveniência e oportunidade, tendo sido cumpridas todas as regras legalmente previstas no Código do Procedimento Administrativo (CPA) para a revogação de actos válidos.

            18 - De resto, dúvidas não existem de que assim é, tanto mais que na p.i. não são invocados quaisquer vícios a esse respeito, tendo sido cumpridos todos os requisitos atinentes à iniciativa, competência, forma e formalidades aplicáveis à revogação de actos administrativos.

            19 - Relativamente à pretensa violação de normas e princípios, concretamente os princípios da independência, da inamovibilidade, da confiança e da imparcialidade, a recorrente não demonstrou que os efeitos da deliberação impugnada afrontem tais normas e princípios, limitando-se a conjeturar meras hipóteses totalmente desprovidas de suporte fáctico ou normativo.

            20 - Nestes termos, o que está em causa é, outrossim, uma discordância da recorrente com o conteúdo e o sentido da deliberação que vem impugnar, pretendendo suscitar a reapreciação da conveniência de tal deliberação, através do presente recurso contencioso.

            21 - Sucede que, em conformidade com o estabelecido no artigo 3.º, n.º 1 do CPTA entende-se que “O regime definido pelo Estatuto dos Magistrados Judiciais para o recurso das deliberações do Conselho Superior da Magistratura para o Supremo Tribunal de Justiça tem que ser conjugado com o modelo de impugnação definido pelo Código de Processo nos Tribunais Administrativos, do qual continua a resultar a opção legislativa por uma delimitação dos poderes dos “tribunais administrativos” que exclui da sua competência a apreciação “da conveniência ou oportunidade da (…) actuação da Administração” e apenas lhes permite julgar “do cumprimento (…) das normas e princípios jurídicos que a vinculam” (nº 1 do artigo 3º do Código). - Acórdão do STJ de 12.11.2012 (relator Maria dos Prazeres Pizarro Beleza).

            22 - Nos termos do mesmo Acórdão do STJ, “Igualmente está excluída a possibilidade de substituição à Administração na prática do acto impugnado.”

            23 - Mais em detalhe, o recorrido acompanha a recorrente quando alega que as classificações consideram o tempo de serviço, os resultados das inspeções anteriores, os processos disciplinares, quaisquer elementos complementares que constem do respetivo processo individual.

            24 - Tal consideração não suscita reparos e decorre expressamente do disposto no artigo 37.º, n.º1 do Estatuto dos Magistrados Judiciais (EMJ), ao prever no art. 47.º os “Elementos a considerar nas classificações”.

            25 - Diferentemente, o recorrido não aceita que a deliberação impugnada seja suscetível de contender com o princípio da independência, da inamovibilidade, da confiança e da imparcialidade, pelo facto de se criar a possibilidade de um inspetor inspecionar o mesmo juiz mais do que uma vez.

            26 - Não se admite, sequer como raciocínio abstrato, que os juízes, profissionais altamente qualificados, de elevada capacidade intelectual e técnico jurídica e que primam pela idoneidade, isenção, sentido de justiça, bom senso e ponderação no exercício das suas funções, poderiam ficar limitados na manifestação da sua liberdade e independência pela mera circunstância de poderem vir a ser inspecionados pelo mesmo inspetor que os inspecionou no passado.

            27 - Considerar que os juízes poderiam ficar de alguma forma condicionados na manifestação das suas convicções, conformado-se com o resultado das inspeções e deixando de exercer os seus direitos de reclamação, alicerçados “precisamente no conhecimento do facto de a inspecção seguinte ser necessariamente realizada por outra pessoa“ afigura-se inteiramente desajustado ao perfil da magistratura portuguesa.

            28 - Na verdade, a alegada violação do princípio da independência não encontra qualquer respaldo factual e a recorrente apenas vem suscitar considerações genéricas, abstratas e críticas da atividade inspetiva em si mesma, sendo manifesto que a deliberação impugnada não contende com tal princípio.

            29 - Do mesmo modo, não se vislumbra qualquer sustentação plausível, nem resulta demonstrado que a deliberação impugnada afronte o princípio da inamovibilidade (art. 6.º do EMJ).

            31 - Do mesmo modo a Constituição da República Portuguesa, prevê no seu artigo 216.º (Garantias e incompatibilidades).

            32 - Em acréscimo, pese embora o esforço inglório, não se descortinam quaisquer circustâncias que permitam inferir que a deliberação impugnada viola os princípios da confiança e da imparcialidade.

            33 - No que respeita à invocada violação do princípio da imparcialidade, a ressalva constante na parte final da deliberação impugnada, ao prever que “…salvo quando este tenha anteriormente reclamado de notação proposta por aquele inspetor ou o Conselho tenha alterado tal notação”, permite salvaguardar tal princípio.

            34 - Seguindo o alegado pela recorrente, em conjugação com a aplicação da ressalva acima transcrita, o resultado será a verificação de uma situação exatamente inversa àquela que é alvitrada, isto é, os juízes apresentarão sempre reclamação da notação proposta pelo inspetor, de forma a que não possam vir a ser inspecionados por esse mesmo inspetor.

            35 - Como é sobejamente sabido, no âmbito do processo inspetivo o inspetor actua numa posição semelhante à de um perito, procedendo à recolha de elementos e elaborando um relatório de inspeção que habilitam a tomada de decisão acerca da classificação do juiz, mas tal decisão não compete ao inspetor.

            36 - O relatório de inspeção tem natureza jurídica e valor de acto preparatório, servindo para alicerçar a ulterior concreta decisão de classificação que se consubstancia na homologação, pelo plenário do CSM, da proposta de classificação.

            37 - Ao nível do processo inspetivo, as garantias de imparcialidade encontram-se salvaguardadas por aplicação do artigo 11.º do novo Regulamento dos Serviços de Inspecção do Conselho Superior da Magistratura (RIJ), publicado em Diário da República através da Deliberação n.º 1777/2016, de 17 de novembro.

            38 - Ademais, existem mecanismos legais para reagir e obstar à eventual diminuição da objetividade e isenção do processo inspetivo e, havendo indícios de não estar suficientemente garantida a imparcialidade do inspetor, sempre poderá o juiz inspecionando suscitar o impedimento do inspetor ou deduzir suspeição, regulados nos artigos 69.º e seguintes do novo CPA (anteriores artigos 44.º e seguintes).

            39 - Em suma, atento o enquadramento legal do processo inspetivo, bem como todos os mecanismos legais de reação à hipotética diminuição de objetividade e isenção, dúvidas não subsistem de que a deliberação impugnada não contende com o princípio da imparcialidade nem, consequentemente, com o princípio da tutela da confiança.

            40 - Em consequência, por não resultar demonstrada a ofensa de qualquer norma legal ou de algum dos princípios jurídico-administrativos que ordenam e regem a atividade do Conselho Superior da Magistratura, deverá improceder tudo o alegado pelo recorrente e o recurso em apreço deverá soçobrar, porquanto a deliberação impugnada é inexoravelmente válida.”

A Exm.ª Sra. Procuradora Geral Adjunta, nos termos do art. 176.º do EMJ, emitiu parecer, no qual conclui pela improcedência do recurso, alegando, em suma, que:

Quanto à questão prévia:

Improcede a nosso ver a referida questão prévia. Constatando-se que a deliberação recorrida consta de uma votação de concordância com uma proposta de deliberação apresentada pelo Exmo Vice-Presidente do CSM, votação essa tirada por unanimidade é evidente que o "processo instrutor", no caso, nada mais tem do que isso mesmo e, portanto, não se verificou qualquer nulidade por falta de apresentação do processo instrutor, sem prejuízo de também nós entendermos que, a ter-se verificado a imputada falta de apresentação de processo instrutor, tal constituiria tão só uma irregularidade que, entretanto, se teria colmatado.

Quanto à questão da ilegalidade por violação dos princípios constitucionais da independência, da inamovibilidade, da confiança e da imparcialidade:

A recorrente invoca os princípios constitucionais da independência, da confiança na administração da justiça e da imparcialidade e da inamobilidade como sendo violados em razão do conteúdo da deliberação recorrida.

A invocação que faz é genérica, não sustentada em situações concretas apenas alicerçada no argumento segundo o qual os magistrados judiciais podem vir a ser limitados no exercício das suas funções pelo facto de poderem vir a ser inspecionados pelo mesmo inspetor.

Para que se determine a violação de todos e cada um dos princípios que a recorrente invoca, na tentativa de fundamentar a invocada ilegalidade da deliberação que pretende ver anulada, é preciso que se aponte qualquer tipo de concretização que motive e densifique que ocorreu a violação de qualquer desses princípios.

Não é isso que a recorrente faz, nem podia fazer, uma vez se limita a enunciar, genericamente, sem concretização, sem objetivação, a violação desses princípios, invocação essa que, assim, é absolutamente improcedente.

A deliberação em causa, não põe em causa a legalidade do processo inspetivo e o mesmo satisfaz os preceitos a que tem que obedecer, ainda que com a aplicação das novas regras resultantes da deliberação impugnada.”

            Por despacho proferido em 5 de Setembro de 2017 foi julgada improcedente a questão prévia suscitada pela recorrente e notificou-se à mesma o processo administrativo junto pelo recorrido, nada tendo sido requerido.

Após os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO

São os seguintes os factos relevantes para apreciação da causa que se têm por demonstrados com base na documentação junta aos autos, tendo em conta o alegado pela recorrente e pelo recorrido[1]:

1. O Vice-presidente do CSM, no dia 17 de janeiro de 2017, elaborou a seguinte Proposta de Deliberação para apresentar em sessão plenária de 24 de janeiro de 2017:

“Assunto: Realização de inspeção judicial pelo mesmo inspector

Por deliberação em sessão plenária de 6 de dezembro de 2005 o Conselho Superior da Magistratura implementou uma cláusula que classificou como de impedimento a realização de múltiplas inspeções ao mesmo juiz pelo mesmo inspetor judicial determinando que um juiz não será inspecionado por um inspetor mais do que uma vez.

A cláusula não constava do anterior regulamento de Inspeções (publicado no Diário da República, 2.ª série, n.º 235, de 5 de dezembro de 2012) e não consta do atual regulamento dos serviços de inspeção (publicado no Diário da República. 2.ª série, n.º 221 de 17 de novembro de 2016).

As clausulas de impedimento ou os elementos de suspeição visam obstar a que alguém que tenha como função decidir ou preparar decisão sobre factos ou pessoas o faça relativamente a factos ou pessoas com os quais tenha uma relação que afete objetiva ou subjetivamente a imparcialidade e a independência.

A realização de uma inspeção anterior ao mesmo juiz não constitui, por si só, na ausência de outros elementos, circunstância objetiva que exclua aquelas imparcialidade e independência. Não assim, quando a anterior inspeção evidencia uma discordância objetiva do inspetor, do inspecionado ou do Conselho Superior da Magistratura face à apreciação concreta do serviço realizado.

Por esse motivo, importa restringir a cláusula de impedimento às situações que objetivamente o configurem, alterando a deliberação no sentido de o impedimento apenas se verificar quando houve anterior reclamação do inspecionado à notação proposta pelo inspetor ou esta proposta tenha sido alterada pelo Conselho Superior da Magistratura.

Propõe-se seja deliberado que, sem prejuízo do disposto no artigo 11.° do RSI, um inspetor Judicial pode inspecionar o mesmo Juiz mais de uma vez, salvo quando este tenha anteriormente reclamado de notação proposta por aquele inspetor ou o Conselho tenha alterado tal notação.

2.         Em 24 de janeiro de 2017 o Conselho Plenário do CSM deliberou por unanimidade concordar com a proposta de deliberação apresentada, no sentido de que um Inspector pode realizar inspecção judicial ao mesmo juiz mais do que uma vez, salvo quando este tenha anteriormente reclamado da notação proposta por aquele Inspetor ou o Conselho tenha alterado a respectiva proposta.
*
Apreciando.
A matéria de recursos das decisões do CSM está regulada nos artºs. 168.º e segs. do EMJ.
De acordo com o art. 178.º do EMJ aplicam-se supletivamente as normas que regem os trâmites processuais dos recursos de contencioso administrativo interpostos para o STA – art. 150.º e 151.º do CPTA e por força do art. 192.º do mesmo Código aplicam-se as regras inseridas nos arts. 3.º, n.º 1 e art. 50.º, n.º 1 do CPTA.
Decorrentemente e na esteira da jurisprudência firme e pacífica da Secção de Contencioso deste Tribunal[2], há que considerar que são as alegações do recorrente que delimitam o objecto do recurso (n.º 2 do art. 144.º e n.º 4 do art. 146.º, ambos do CPTA e n.º 3 do art. 635.º e n.ºs 1 e 4 do art. 639.º, ambos do CPC).
Assim e apreciando as alegações produzidas pela recorrente nos presentes autos, temos que a questão a decidir se resume a determinar se a deliberação do Plenário do Conselho Superior da Magistratura de 24-01-2017 “no sentido de que um inspector pode realizar inspecção judicial ao mesmo juiz mais do que uma vez, salvo quando este tenha anteriormente reclamado da notação proposta por aquele inspector ou o Conselho tenha alterado a respectiva proposta”, deve ser invalidada (anulada) por violação do:
I - princípio da independência dos juízes (art. 4.º do EMJ e art. 203.º da CRP);

II - princípio da inamovibilidade (art. 6.º do EMJ e art. 216.º da CRP);

III - princípio da imparcialidade (artigo 266.º, n.º 2 da CRP);

IV - princípio da protecção da confiança (art. 2.º da CRP);
Antes de nos debruçarmos sobre a eventual violação dos princípios constitucionais invocados, vejamos os poderes de cognição do STJ no âmbito do recurso de contencioso das deliberações do CSM.
Como já se referiu, aos recursos referentes às deliberações do CSM aplicam-se supletivamente as regras do CPTA.
 De acordo com o disposto no art. 3.º n.º 1 do CPTA “No respeito pelo princípio da separação e interdependência dos poderes, os tribunais administrativos julgam do cumprimento pela Administração das normas e princípios jurídicos que a vinculam e não da conveniência ou oportunidade da sua actuação”.
Por sua vez, dispõe o art. 50.º n.º 1 do CPTA “A impugnação de um acto administrativo tem por objecto a anulação ou a declaração de nulidade ou inexistência desse acto”.
Assim podemos concluir do cotejo do estatuído no art. 178.° do EMJ, n.º 1 do art 3.°, art 50.°, ambos do CPTA - aplicáveis por força do disposto no artigo 192.°, do CPTA - que o recurso contencioso referente às deliberações do CSM há-de considerar-se como de mera anulação, ou seja, é um recurso de mera legalidade, razão pela qual o pedido terá de ser sempre a anulação ou a declaração de nulidade ou de inexistência do acto recorrido, não cabendo ao STJ sindicar o juízo valorativo formulado pelo CSM, a menos que o mesmo enferme de erro manifesto, crasso ou grosseiro, ou ofenda princípios jurídicos que regem a actividade administrativa - como nomeadamente os princípios de igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa fé - dado que o CSM goza, nesse domínio, de discricionariedade técnica.
Existe com efeito uma “reserva de Administração”, uma zona da actuação administrativa que está fora do controlo judicial. Conforme defende, entre outros, Jorge de Sousa[3](…) o transcrito n.º 1 do art. 3.º do CPTA claramente revela a existência de uma reserva de Administração, uma zona da actividade administrativa, não regulada por normas ou princípios jurídicos, que está fora dos poderes de sindicabilidade dos tribunais administrativos. À face daquele art. 3.º, os poderes de cognição dos tribunais administrativos abrangem apenas as vinculações da Administração por normas e princípios jurídicos e não a conveniência ou oportunidade da sua actuação, designadamente a conformidade ou não da sua actuação com regras ou princípios de ordem técnica ou a adequação ou não das escolhas que fizer sobre a forma de atingir os fins de interesse público que visa satisfazer com a sua actuação, pelo menos quando não se detectar concomitantemente a ofensa de princípios jurídicos, designadamente os da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa fé, enunciados no n.º 2 do art. 266.º da CRP. (…) Assim, o controle judicial da actuação administrativa nesta margem de reserva da Administração terá de limitar-se à verificação da ofensa ou não aos princípios jurídicos que a condicionam e será, em princípio, um controle pela negativa (um contencioso de anulação e não de plena Jurisdição), não podendo o tribunal, em regra, substituir-se à Administração na ponderação das valorações que se integram nessa margem”.

           Deste modo, a discricionariedade técnica - a formulação, baseada na livre apreciação, de juízos exclusivamente baseados em experiência e nos conhecimentos científicos e/ou técnicos do membros do CSM - de que o recorrido goza, tem de ser coadunada com os princípios estruturantes do Estado de Direito, o que conduz à controlabilidade dos seus actos, seja na eventualidade de ocorrência de erro manifesto de apreciação ou da adopção de critérios ostensivamente desajustados, violadores dos mencionados princípios.[4]

           No art. 266.º, n.° 2, da CRP, definem-se os princípios orientadores a que os órgãos e agentes da Administração Pública, no exercício das suas funções, devem obedecer, em que, numa perspectiva ampla, abrange a administração judiciária, onde se inclui o próprio CSM.      Desta feita, dúvidas inexistem que o CSM, em todo a sua actividade de gestão e disciplina dos juízes, nomeadamente no procedimento de apreciação/avaliação do mérito profissional dos juízes, está subordinado aos princípios constitucionais gerais que regem a actividade administrativa como o princípio da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da transparência, da imparcialidade, da boa-fé e aos princípios constitucionais estruturantes de um estado de direito democrático – inerentes à função de Juiz - como os princípios da independência dos juízes, previsto no art. 203.º, da CRP, o princípio da inamovibilidade dos juízes, previsto no art. 216.º da CRP (e o inerente princípio da protecção da confiança ínsito no art. 2.º da CRP).

           Defende a recorrente que a deliberação impugnada viola o princípio da independência dos juízes previsto no art. 203.º da CRP e art. 4.º do EMJ, o princípio da inamovibilidade previsto no art. 216.º da CRP e art. 6.º do EMJ , o princípio da confiança previsto no art. 2.º da CRP e o princípio da imparcialidade previsto no art. 266.º, n.º 2, da CRP.

            Na resposta ao recurso apresentado, o recorrido CSM defende que a deliberação recorrida não enferma de qualquer violação dos preceitos constitucionais, não só porque a deliberação recorrida contém limitações que visam garantir os requisitos de imparcialidade, como é matriz de um procedimento inspetivo, mas também porque as garantias de imparcialidade encontram-se indiscutivelmente salvaguardadas por aplicação do art. 11.º do RIJ e pelo art. 69.º e segs. do CPA (podendo-se suscitar incidente de impedimento ou de suspeição do inspector).

            Comecemos, antes do mais, pela análise dos aludidos princípios invocados pela recorrente.
I - Princípio da independência dos juízes previsto no art. 4.º do EMJ e art. 203.º da CRP)
Prevê o art. 203.º da CRP, sob a epígrafe “independência” que “Os tribunais são independentes e apenas estão sujeitos à lei”.
Em concretização desde princípio constitucional dispõe o art. 4.º do EMJ sob a epígrafe “Independência” que “1 - Os magistrados judiciais julgam apenas segundo a Constituição e a lei e não estão sujeitos a ordens ou instruções, salvo o dever de acatamento pelos tribunais inferiores das decisões proferidas, em via de recurso, pelos tribunais superiores. 2 - O dever de obediência à lei compreende o de respeitar os juízos de valor legais, mesmo quando se trate de resolver hipóteses não especialmente previstas. “

           Conforme referem Gomes Canotilho e Vital Moreira, em anotação ao art. 203.º da CRP[5]I. A independência dos tribunais (e dos respectivos juízes) é um elemento essencial da sua própria definição, uma das regras clássicas do Estado constitucional e uma das garantias essenciais do Estado de direito democrático (art.2.º). Esta independência pressupõe uma dimensão material e uma dimensão jurídico-organizatória.

            O princípio da independência visa defender os tribunais dos demais poderes do Estado (nomeadamente do Governo e da administração), pondo-os a coberto das suas ingerências ou pressões e garantindo, assim, a defesa dos direitos e interesses legítimos dos cidadãos perante o Estado (independência subjectiva).

           A independência perante os demais poderes do Estado concretiza-se, desde logo, na independência perante o poder executivo (governo e administração). Deriva da constituição a inadmissibilidade de instruções concretas, de preceitos administrativos ou de quaisquer outras formas de pressão ou de influência sobre a actividade dos tribunais. Neste sentido subjectivo, a independência é também uma refracção do princípio da separação de poderes que se traduz, desde logo, na inadmissibilidade de condicionamentos, pressões e instruções por parte dos titulares de órgãos de outros poderes.

            (…)

            III. Garantia essencial da independência dos tribunais é a independência dos juízes, que por isso está necessariamente abrangida pela protecção constitucional daquela (independência objectiva). O princípio da independência dos juízes exige não apenas a sua inamovibilidade e irresponsabilidade (art. 216°), mas também a sua liberdade perante quaisquer ordens ou instruções das demais autoridades, além de um regime adequado de designação, com garantias de isenção e imparcialidade que evitem o preenchimento dos quadros da magistratura de acordo com os interesses dos demais poderes do Estado, sobretudo do Governo e da Administração (cr. arts. 215.º e 218°). O direito do juiz à independência convoca várias dimensões densificadora da liberdade à independência no julgar: (i) liberdade contra injunções ou intruções de quaisquer autoridades; (ii) liberdade de decisão perante coações ou pressões destinadas a influenciar a actividade de jurisdictio; (iii) liberdade de acção perante condicionamento incidente sob a actuação processual; (iiii) liberdade de responsabilidade, pois só ao juíz cabe extrinsecar o direito e obter a solução justa do feito submetido à sua apreciação.

            (…)

            V. A independência dos tribunais compreende a autonomia na interpretação do direito - sem prejuízo da interpretação autêntica das normas efectuada pelos órgãos seus autores -, o que afasta, em princípio, a vinculação por interpretações heterónomas, pelo menos quando dotadas de força geral e abstracta, como sucedia no caso dos assentos (que, de resto, não caberiam no conceito de «lei», por mais extenso que este fosse), e que também por essa razão se deviam considerar inconstitucionais. Problemas levanta também a vinculação concreta do tribunal da causa pela interpretação que o TC tenha dado em recurso de constitucionalidade à norma aplicável (dr. LTC, art. 80°-3) e o reenvio prejudicial para o Tribunal das Comunidades das questões de interpretação de normas de direito comunitário (TFUE, arts. 267° e ss.).

            (…)

            VII. A garantia da independência dos tribunais não aponta apenas para um direito subjectivo do magistrado judicial à independência. Pode e deve recortar-se também o direito do cidadão a reinvindicar uma «pretensão» a um esquema de organização, funcionamento e processo, possibilitador de actos judiciais independentes. Esta «pretensão» transporta uma dimensão defensiva porque limita a liberdade de conformação legislativa quanto à instituição e organização dos tribunais e restringe a discricionaridade vinculada do juiz (desde logo em incidente de suspeição e impedimento).”
Também sobre a temática da independência dos Juízes, defende Guedes Valente[6] que “A função jurisdicional, ao funcionar como freio dos poderes públicos, sujeitando-os à Constituição e a todo o ordenamento jurídico, é, por excelência, o melhor meio de tutela dos direitos fundamentais, é uma garantia da efectivação dos direitos fundamentais e das liberdades públicas. Este meio tutelar ou garantia só se alcança quando cometidos a órgãos independentes que detenham "um reconhecimento constitucional que lhes permita executar e aplicar imparcialmente as normas que expressam a vontade popular, submeter todos os poderes públicos ao cumprimento da lei, controlar a legalidade da actuação administrativa e oferecer a todas as pessoas a tutela efectiva no exercício dos seus direitos e interesses legítimos" Os Tribunais são órgãos de soberania independentes, cuja função jurisdicional é sua tarefa, que será levada a cabo pelos magistrados que também devem ser independentes. Como sabemos, o próprio poder judicial não está isento de controlo, além das decisões poderem ser contestadas para um grau superior de jurisdição, também existem órgãos com a função de "gestão e disciplina da magistratura dos tribunais judiciais", o Conselho Superior de Magistratura", órgão constitucional autónoma. A independência dos magistrados depende, fundamental e crucialmente, da independência do órgão a que pertencem.” E ainda a pág.94[7] “Concordamos inteiramente com Jorge de Figueiredo Dias e Maria João Antunes ao defenderem que os juízes devem receber e obedecer às ordens e instruções emanadas pelos superiores hierárquicos em termos “de organização e de fiscalização dos serviços judiciários”. Mas não cremos que alguma vez se consolide a independência dos tribunais se os superiores hierárquicos pressionarem e dirigirem o exercício da função jurisdicional, se aqueles se ingerirem no caso em apreciação”.
Também o STJ já se pronunciou, por diversas vezes, sobre o princípio da independência, conforme entre outros, acórdão do STJ de 19-09-2012, Proc. n.º 14/12.8YFLSB[8]I - A independência dos tribunais consagrada no art. 208.º da CRP traduz-se em não pesarem sobre o decidente outros factores que não os juridicamente adequados a conduzir à legalidade e à justiça da decisão. Uma das vertentes deste princípio é a independência dos juízes perante a própria classe, no sentido de que eles não podem ser sujeitos a pressões do seu órgão superior de gestão e disciplina, que é o CSM”.
II - Princípio da inamovibilidade dos juízes previsto no art. 6.º do EMJ e art. 216.º da CRP
Dispõe o art. 216.º, n.º 1 da CRP sob a epígrafe «Garantias e incompatibilidade» no seu n.º 1 que “Os juízes são inamovíveis, não podendo ser transferidos, suspensos, aposentados ou demitidos senão nos casos previstos na lei”.
Este preceito constitucional encontra-se consagrado no art. 6.º do EMJ sob a epígrafe «Inamovibilidade» e dispõe que “Os magistrados judiciais são nomeados vitaliciamente, não podendo ser transferidos, suspensos, promovidos, aposentados, demitidos ou por qualquer forma mudados de situação senão nos casos previstos neste Estatuto.”

               Em anotação ao art. 216 da CRP, defendem Gomes Canotilho e Vital Moreira[9] que “Nos termos do n.º 1 «os juízes são inamovíveis» e nos termos do n.º 2 «os juízes não podem ser responsabilizados pelas suas decisões». Os princípios clássicos da inamovibilidade e da irresponsabilidade de todos os juízes, bem como a regra da dedicação exclusiva dos juízes profissionais, constituem componentes necessários do princípio da independência dos tribunais (art. 203°), o qual pressupõe necessariamente a independência dos juízes. Trata-se de pôr os juízes a coberto não apenas de ordens ou instruções de outras autoridades, mas também da instabilidade e da dependência causadas pelo receio da atentados à sua segurança profissional ou pessoal. Note-se que a independência está explicitamente mencionada no art. 222.º-5, como garantia dos juízes do TC, mas implicitamente considerada como garantia dos juízes dos restantes tribunais. O mesmo se diga para a garantia da imparcialidade, aí igualmente mencionada como garantia de todos os juízes.

            (…)

           v. O princípio da inamovibilidade não requer e é independente do carácter vitalício da magistratura, que, aliás, a Constituição não garante (ao contrário das Constituições de 1911 e de 1933). Todavia, a nomeação vitalícia é uma das características legais dos juízes da maior parte das categorias de tribunais, incluindo os juízes dos tribunais judiciais e dos tribunais administrativos e fiscais. Trata-se de um traço singular entre os estatutos dos titulares de órgãos de soberania e demais titulares de cargos públicos (cfr. art. 118°).

          Quando a nomeação não seja vitalícia, o princípio da independência dos juízes exige que eles sejam nomeados por períodos de tempo certo e determinado, e, em princípio, insusceptíveis de renovação, a fim de evitar a insegurança inevitavelmente ligada à incerteza sobre a renovação da nomeação (cfr. art. 222º-3).

           O princípio da inamovibilidade está constitucionalmente associado ao princípio do juiz natural (cfr. nota ao n.º 9 do art. 32.°) pois este não só implica a proibição absoluta de escolha do juiz por parte de qualquer cidadão («juiz a pedido»), mas também a imposição de um «sistema tabelar» definidor de critérios objectivos e predeterminados para a individualização do juiz da causa («juiz natural»), O princípio da inamovibilidade convoca estas duas dimensões, pois, por um lado, garante o juiz no cargo contra esquemas apócrifos de violação da estabilidade pessoal, e, por outro, levanta barreiras ao próprio esvaziamento da objectividade e predeterminabilidade da fixação do juiz natural. A inamovibilidade não é incompatível com a transferência de juízes para tribunais onde eles são mais necessários, mas esta transferência deve estar predeterminada na lei.”

            (…)

           XI. No n° 5 a constituição autoriza o legislador a estabelecer outras incompatibilidades com o exercício da função de juiz. A lei pode, assim, densificar outras incompatibilidades para além das que estão previstas neste preceito. Algumas dessas incompatibilidades relacionam-se com a salvaguarda do princípio da imparcialidade. Estão neste caso as chamadas «incompatibilidades endoprocessuais», destinadas a evitar que convicções pré-adquiridas em fases anteriores do mesmo processo e da mesmo res judicandi (sobretudo em processo penal) tenham influência marcante nos momentos decisórios («imparcialidade como ausência de preconceitos ou de parti pris»). É neste contexto que as incompatibilidades abrangem as figuras de impedimento e de recusa, de forma a garantir a chamada «incompatibilidade de prevenção», asseguradora da imagem de imparcialidade e de ausência de condicionamentos (alguns autores aludem aqui à «salvaguarda da substância e imagem da independência e da terciariedade do juiz»).”
Conforme GilbertMangin[10] afirmava “O princípio da inamovibilidade é uma das maiores garantias da independência e da imparcialidade da magistratura e é um bem que se aprecia particularmente quando se perdeu”, cujo escopo é “impedir que a actuação de um juiz lhe possa acarretar qualquer consequência penalizadora para o cargo que detém, assim como evitar que quem tenha o poder de o remover do seu cargo ou de lhe retirar um determinado processo o possa substituir um juiz cuja actuação não lhe agrade, substituindo-o por outro mais maleável aos seus intentos”. Sendo uma garantia da independência do juiz, é acima de tudo, uma garantia de uma boa justiça, porque não estamos a ver um juiz a decidir com serenidade e conscientemente sob a pressão do receio de ser transferido, suspenso ou demitido, ou seja, é um princípio que trava qualquer provável livre arbítrio do poder executivo”.
Também, por diversas vezes, o STJ foi chamado a pronunciar-se sobre este principio geral defendendo que “O princípio da inamovibilidade do juiz não é absoluto, porém a "discricionariedade legislativa na definição dessa excepção está materialmente limitada, desde logo pelo princípio da independência dos tribunais (...), devendo todas as excepções ser justificadas pela sua necessidade para salvaguardar outros valores constitucionais iguais ou superiores, cabendo aqui invocar as regras constitucionais que regem as restrições aos direitos, liberdades e garantias (…)[11].
III. Princípio da imparcialidade previsto no art. 266.º, n.º 2, da CRP
O princípio da imparcialidade encontra-se previsto na segunda parte do n.º 2 do art. 266.º, nº 2 da CRP e também está plasmado no art. 9.º do CPA.
Dispõe o art. 266.º, n.º 2 da CRP que “Os órgãos e agentes administrativos estão subordinados à Constituição e à lei e devem actuar, no exercício das suas funções, com respeito pelos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa-fé.”

De acordo com a consagração constitucional dispõe o art. 9.º do CPA, com a epígrafe «Princípio da imparcialidade» que “A Administração Pública deve tratar de forma imparcial aqueles que com ela entrem em relação, designadamente, considerando com objetividade todos e apenas os interesses relevantes no contexto decisório e adotando as soluções organizatórias e procedimentais indispensáveis à preservação da isenção administrativa e à confiança nessa isenção.
Também o art. 7.º do EMJ, consagra “Garantias de imparcialidade” estabelecendo que “É vedado aos magistrados judiciais: a) Exercer funções em juízo em que sirvam juízes de direito, magistrados do Ministério Público ou funcionários de justiça, a que estejam ligados por casamento ou união de facto, parentesco ou afinidade em qualquer grau da linha recta ou até ao 2.º grau da linha colateral; b) Servir em tribunal pertencente a comarca em que, nos últimos cinco anos, tenham desempenhado funções de Ministério Público ou que pertençam à comarca em que, em igual período, tenham tido escritório de advogado”.

               De acordo com Gomes Canotilho e Vital Moreira[12], “O princípio da imparcialidade respeita essencialmente às relações entre a Administração pública e os particulares, podendo circunscrever-se a dois aspectos fundamentais: (a) o primeiro, relacionado com os princípios constitucionais consagrados no n° 1, consiste em que, no conflito entre o interesse público e os interesses particulares, a Administração deve proceder com isenção na determinação da prevalência do interesse público, de modo a não sacrificar desnecessária e desproporcionadamente os interesses particulares (imparcialidade na aplicação do princípio da proporcionalidade); (b) O segundo refere-se à actuação da Administração em face dos vários cidadãos, exigindo-se igualdade de tratamento dos interesses dos cidadãos através de um critério uniforme de prossecução do interesse público. O princípio da imparcialidade, que se relaciona, embora não se confunda, com o princípio da igualdade, deve, por outro lado, distinguir-se do princípio da neutralidade, pois a Administração não pode conceber-se como neutral em relação à prossecução do interesse público.

           A garantia da imparcialidade da Administração implica, entre outras coisas, o estabelecimento de impedimentos dos titulares de órgãos e agentes administrativos para intervirem em assuntos em que tenham interesse pessoal, directo ou indirecto (cfr. CPA, arts. 3.° e ss.). As dimensões assinaladas revelam que o princípio da imparcialidade, enquanto princípio material vinculativo da administração, cumpre basicamente três funções: (1) o cidadão pode confiar em que os seus assuntos submetidos à apreciação da administração merecerão uma decisão imparcial; (2) o titular de órgão ou o funcionário deve precaver-se que perante a hipótese de conflito de interesses a sua decisão seja considerada como violadora dos seus deveres pessoais e funcionais; (3) a administração deve, enquanto organização, acautelar-se de, no caso de conflito de interesses, que as suas decisões corram o risco de não serem cumpridas ou aceites. A imparcialidade não se reconduz à imparcialidade pessoal e individual (acentuando esta dimensão cfr, Cod. Proc. Adm., arts. 44° e ss.). Exige-se também: (1) imparcialidade organizatório-funcional, impedindo decisões em «causas próprias», e (2) uma imparcialidade procedimental conseguida através de um procedimento que, pela sua transparência, informação e igualdade de oportunidades, possibilite um tratamento e obtenção de informação e uma apreciação de provas, típico de um procedimento equitativo ao «mais alto nível».

           A dimensão de «medida-princípio» da imparcialidade vincula também o governo nas tarefas de direcção da administração pública. Ele não pode legitimar a violação do princípio constitucional da imparcialidade da acção administrativa em qualquer das vertentes acima assinaladas (imparcialidade na decisão, imparcialidade na organização individual e funcional e imparcialidade no procedimento).”
Também os constitucionalistas Jorge Miranda e Rui Medeiros[13] nos apresentam contributos relevantes para o enquadramento do princípio da imparcialidade, assumindo que “A imparcialidade não é condição suficiente, mas é condição necessária de uma actuação conforme à lei e ao Direito, por parte da Administração Pública. O princípio da imparcialidade é um princípio procedimental. Constitui, em conjunto com o princípio da audiência dos interessados e o princípio da fundamentação das decisões jurisdicionais, a base nuclear da ideia de justo procedimento (processo equitativo). O princípio postula que a Administração trate todas as partes envolvidas no procedimento de forma equitativa. São critérios objectivamente válidos - através do dever de fundamentação expressa da decisão. Assim, o princípio da imparcialidade impõe, de um lado, à Administração Pública, na prossecução dos específicos interesses públicos legalmente definidos, um tratamento equitativo de todas as partes envolvidas, impedindo os seus órgãos ou agentes de favorecer amigos e/ou prejudicar inimigos, bem como proibindo-os de intervir em procedimentos onde se pode suspeitar que tenham comportamentos de favorecimento ou de prejuízo, concretamente procedimentos onde possam ter interesses pessoais ou familiares (garantias de imparcialidade do procedimento); de outro, o princípio impõe à Administração Pública que pondere todos os interesses envolvidos na decisão, não deixando interesses por analisar, impondo ainda, nessa ponderação, a utilização de critérios objectivamente válidos, de tudo dando completo esclarecimento através da fundamentação expressa da decisão. O uso de critérios objectivamente válidos na decisão faz coincidir, nesta parte, o princípio da imparcialidade com o princípio da igualdade.”
Este princípio tem uma índole procedimental, dele decorrendo, para a administração, a imposição de um tratamento isento e equidistante relativamente todos os particulares que consigo interagem no âmbito do procedimento, impedindo-a de os favorecer ou de os desfavorecer por razões estranhas à sua função.
Conforme refere Luis Cabral de Moncada[14], em anotação ao art. 9.º do CPA[15]O princípio geral da imparcialidade tem honras de consagração constitucional no n.º 2 do art. 266.º Por aqui se mede a sua importância como princípio constitucionalmente conformador da actividade administrativa. O texto do código vai muito além do que correspondia no anterior código - art. 6.º ao princípio da imparcialidade que era, aliás, tratado não autonomamente mas em conjunto com o da justiça. Mas não é esta a diferença principal. É que agora a formulação do princípio da imparcialidade é muito mais completa e complexa. A imparcialidade é um dos princípios gerais cimeiros de toda a actividade administrativa sendo em boa parte por atenção a ele que existe um código do procedimento administrativo. Exprime uma ideia de isenção na ponderação dos interesses que determinam a decisão final e de completude na respectiva identificação. Para tanto abre-se o procedimento à ampla intervenção constitutiva dos interessados. O direito não é gerado unilateralmente pela Administração mas através do diálogo constitutivo com a Sociedade Civil sua destinatária. Fica assim claro que a homenagem ao princípio geral da imparcialidade não visa excluir interesses da visão da Administração. Não é de exclusão de interesses alegadamente parciais que se trata. Pelo contrário, do que se trata é de ponderar devidamente todos os interesses relevantes. Para tanto é fundamental abrir o procedimento à participação dos interessados. Quanto mais ampla esta for mais rigoroso será o critério da imparcialidade.”

Ou conforme refere ainda M. Esteves de Oliveira[16]A dimensão da imparcialidade, ligada essencialmente a uma postura da Administração, é um meio para a realização de uma exigência de objectividade final da actividade administrativa.

O dever de imparcialidade significa para a Administração – parte interessada nos resultados da aplicação da norma – que ela: a) Deve ponderar, nas suas opções, todos os interesses juridicamente protegidos envolvidos no caso concreto, mantendo-se equidistante em relação aos interesses particulares; b) E deve abster-se de os considerar em função de valores estranhos à sua função ou múnus, v.g., de conveniência política, partidária, religiosa, etc.

(…) por isso, a imparcialidade tem uma projecção essencial na fase e actividade administrativa instrutória, na recolha e valoração dos factos respeitantes às posições dos diversos interessados, exigindo-se que a Administração adopte uma postura isenta na busca e ponderação de todas elas, quantas vezes contrapostas.

(…) De tudo, resulta evidente que o princípio da imparcialidade é um antecedente, um prius, em relação ao princípio da proporcionalidade: com este sancionam-se as condutas que sacrificam (ou beneficiam) desproporcionadamente certos dos interesses envolvidos face a outros; com aquele, as condutas tomadas sem (ou com) ponderação de interesses que (não) o deviam ser.
            Também a Júrisprudência se tem pronunciado sobre o princípio da imparcialidade. Veja-se, entre outros, Acórdão do STJ, secção de contencioso, de 27-04-2016, Proc. n.º 3/15.0YFLSB.S1[17]“V - O princípio da imparcialidade postula que a Administração dispense um tratamento equitativo a todos que com ela lidam, desdobrando-se nas garantias de imparcialidade no procedimento e na própria decisão, campo em que se lhe impõe o dever de ponderar todos os interesses públicos secundários e interesses privados legítimos. VII - A dimensão negativa do princípio referido em V comporta os casos de impedimento (taxativamente previstos no art. 44.º, nº 1, do CPA em que a lei impõe a substituição do órgão ou agente competente por outro) e as situações de suspeição (art. 48º, nº 1, do mesmo diploma), que são exemplificativas da cláusula geral referida no corpo do artigo – quando ocorra circunstância pela qual se possa razoavelmente suspeitar da isenção ou da rectidão da conduta do titular do órgão ou agente –, em que a substituição do órgão ou agente não é automática, podendo, todavia, ocorrer se o mesmo pedir escusa (dispensa) de participar no procedimento ou o particular opuser uma suspeição desse agente, pedindo a sua substituição por outro. IX - No impedimento, a mera verificação de um dos pressupostos previstos legalmente implica a invalidade do acto que porventura tenha sido praticado pelo impedido; nas situações de suspeição, a lei não proíbe a intervenção do titular do órgão ou agente, sendo a questão decidida por outro órgão da administração, que conheça do carácter daquele que vai agir pela administração e os interesses em causa no procedimento. Não tendo sido reconhecida administrativamente a sua falta de isenção ou rectidão, a invalidação judicial só deverá ocorrer se o acto praticado ou o procedimento em que ele se formou evidenciarem (mormente, ao nível da imparcialidade e da proporcionalidade) que a decisão foi tomada por esses motivos. XI - A vertente negativa do princípio da imparcialidade não impõe que todos os impedimentos à intervenção no procedimento sejam absolutos, sendo admissível que se estabeleçam regimes gradativamente diferentes, nos quais, nos casos menos graves, cabe ponderar se, com razoabilidade, se pode duvidar seriamente da imparcialidade do órgão ou agente (a fim de salvaguardar adequadamente a isenção e rectidão da actuação do órgão e prevenir o uso abusivo desse expediente), sendo que o resultado dessa ponderação, em todo o caso, não afasta a possibilidade de se vir a concluir pela invalidade dos actos, se se verificar que foram praticados em função da razão que determinaria a escusa ou suspeição.”
            Concluímos assim que o princípio da imparcialidade faz impender sobre a Administração um específico dever de ponderação dos interesses em causa, mantendo a devida equidistância em relação ao confronto com os interesses dos particulares e, de outra banda, sobre si impende a obrigação de se abster de efectuar considerações sobre os aludidos interesses em função de valores estranhos à sua actividade, adoptando os procedimentos que preservem a isenção administrativa seja na sua vertente de serem efectivamente isentos como de transmitirem a imagem de isenção.

IV – Princípio da protecção da confiança ínsito no art. 2.º da CRP
Conforme é entendimento unânime da doutrina, o princípio da confiança ou princípio da protecção da confiança está ínsito no princípio geral do «Estado de direito democrático», consagrado no art. 2.º da CRP.
Dispõe este preceito queA República Portuguesa é um Estado de direito democrático, baseado na soberania popular, no pluralismo de expressão e organização política democráticas, no respeito e na garantia de efectivação dos direitos e liberdades fundamentais e na separação e interdependência de poderes, visando a realização da democracia económica, social e cultural e o aprofundamento da democracia participativa.

Defende Gomes Canotilho e Vital Moreira[18] em anotação ao art. 266.º, n.º 2 da CRP sobre o princípio da boa-fé que “Também não é líquido se o princípio da boa fé é aqui recortado como princípio autónomo em relação ao princípio da protecção da confiança, há muito considerado pela doutrina e jurisprudência como uma dimensão material do princípio do Estado de direito (ex. proibição de normas retroactivas, restrições à anulação de actos administrativos garantias relativamente a planos de ordenamento do território, exigência de disposições transitórias para acautelar interesses juridicamente protegidos). Quer através do princípio da boa fé, quer através do princípio da protecção da confiança pretende-se erguer uma medida de «fiabilidade», de «confiança», de «esperança», vinculativa da actuação administrativa. De qualquer forma, a tendencial «subjectivação» detectada nestes princípios não neutraliza a obrigatoriedade de verificação dos pressupostos da protecção da confiança (existência de uma situação de confiança, dignidade da protecção da confiança, ponderação dos interesses em presença)”.



Também sobre a temática do princípio da tutela da confiança se pronunciam Jorge Miranda e Rui Medeiros[19]IX - A Constituição veio, na revisão de 1997, acrescentar o princípio da boa-fé, recebido no Direito Administrativo através do Direito Civil, em especial pela jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo. Este princípio adquiriu força constitucional por referência à tutela da confiança, em si decorrente do princípio do Estado de Direito, expressamente consagrado no artigo 2.° da Constituição. É o que se pode ler no Acórdão n.º 556/03 do Tribunal Constitucional: "Segundo a jurisprudência abundante do Tribunal Constitucional, no princípio do Estado de Direito democrático contido no artigo 2.º da CR, está entre o mais, postulada a ideia de protecção da confiança dos cidadãos e da comunidade na ordem jurídica e na actuação do Estado, o que implica um mínimo de certeza e de segurança no direito das pessoas e nas expectativas que a elas são juridicamente criadas. Por isso, a normação que, por sua natureza, obvie de forma intolerável, arbitrária ou demasiado opressiva aqueles mínimos de certeza e segurança que as pessoas, a comunidade e o direito têm de respeitar, como dimensões essenciais do Estado de Direito democrático, terá de ser entendida como não consentida pela lei básica. Vale no quadro da actividade administrativa o princípio fundamental de responsabilidade pela confiança, mesmo para além daquilo que decorreria das regras de conduta segundo a boa fé (Manuel Carneiro da Frada, Teoria da Confiança, págs. 431 e segs. e 903). Deve reconhecer-se à protecção da confiança uma intensidade ético-jurídico plena pois também no Direito Administrativo se poderá dizer que "a protecção da confiança corresponde a um principio ético-jurídico que, por estar firmemente radicado na ideia de Direito, não pode deixar de transpor o umbral da juridicidade" (referindo-se ao Direito na sua globalidade, ainda que com especial incidência no Direito Civil, Manuel Carneiro da Frada, Teoria da Confiança, pág. 893). No âmbito da actividade administrativa, os pressupostos da tutela da confiança são os geralmente invocados no Direito Civil: um comportamento gerador de confiança, a existência de uma situação de confiança legítima, a frustração da confiança por parte de quem a gerou, a efectivação de um investimento de confiança (ver, por todos, Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, I, págs. 411 e segs., e Freitas do Amaral, Curso ... , VoI. II, págs. 137 e segs., com as indicações bibliográficas aí referidas). Estes pressupostos articulam-se entre si segundo a lógica do "sistema móvel", ou seja, "a falta de algum deles pode ser compensada pela intensidade especial que assumam alguns - ou algum - dos restantes" (Menezes Cordeiro, Tratado ... , pág. 413). A maior dificuldade na aplicação destes pressupostos está naturalmente em saber quando é que a confiança se pode considerar "legítima". Somos então reconduzidos à "justiça" como ideia justificadora da tutela da confiança (Manuel Carneiro da Frada, Teoria da Confiança ... , págs. 873 e segs.) e, deste modo, a todos os princípios que a determinam, incluindo a proporcionalidade, o equilíbrio contratual, a proibição do enriquecimento sem causa.”
O STJ definiu o princípio da confiança ou da protecção da confiança no acórdão 19-02-2013, secção de contencioso, proferido no Proc. n.º 98/12.9YFLSB[20] como “VII - Reconhecendo-se que o mérito que a função de julgar materialmente supõe é o mérito científico e evidenciando-se uma intenção legislativa continuada no sentido de exigir aos magistrados uma elevada formação científica, não só não surpreende, como até se compreende, o acolhimento de um modelo de acesso aos tribunais superiores em que se pondere, no concurso para os tribunais superiores, uma avaliação curricular que revele o nível científico do candidato, motivo por que não é de considerar que as mencionadas alterações tenham implicado a violação do princípio da confiança ínsito no art. 2.º da CRP.
Bem como no acórdão do STJ, secção de contencioso, de 19-02-2013, Proc. n.º 120/12.9YFLSB[21], assumindo que “Agir consoante as regras de boa fé – art. 266.º, n.º 2, da CRP –, traduz-se no dever de actuar segundo um padrão de lealdade e correcção, visando a realização dos interesses legítimos que as partes pretendem obter com o acto. O princípio da boa fé, na vertente da tutela da confiança, pretende consagrar a ideia de previsibilidade e, bem assim, a ideia de não contraditoriedade, no domínio da actividade administrativa. “

Feita uma apreciação doutrinária dos princípios constitucionais chamados à colação pela recorrente, vejamos então se a deliberação impugnada viola os princípios acabados de mencionar.

A deliberação impugnada revogou uma deliberação do CSM de 06-12-2005 na qual se determinava que «um juiz não será inspeccionado por um inspector mais que uma vez».
Na deliberação impugnada determinou-se que «um inspector pode realizar inspecção judicial ao mesmo juiz mais do que uma vez, salvo quando este tenha anteriormente reclamado da notação proposta por aquele inspector ou o CSM tenha alterado a respectiva proposta».

Os juízes de direito são avaliados de acordo com o seu mérito profissional, de entre as classificações de Muito Bom, Bom com distinção, Bom, Suficiente e Medíocre (art. 33.º, do EMJ). Nessa avaliação, atende-se ao modo como os juízes desempenham a função, ao volume, dificuldade e gestão do serviço a seu cargo, à capacidade de simplificação dos actos processuais, às condições de trabalho prestado, à sua preparação técnica, categoria intelectual, exercício de funções enquanto formador dos auditores de justiça, trabalhos jurídicos publicados e idoneidade (cfr art. 34.º, nº1, do EMJ).
A periodicidade da classificação é, por regra, efectuada de quatro anos (art. 36.º, nº1, do EMJ) e nas classificações são sempre considerados o tempo de serviço, os resultados das inspeções anteriores, os processos disciplinares e quaisquer elementos complementares que constem do respectivo processo individual (art. 37.º, nº1, do EMJ).
As inspecções são levadas a cabo por um corpo de inspectores judiciais, nomeados em comissão de serviço, de entre juízes da Relação ou excepcionalmente, de entre juízes de direito com mais de 15 anos de efectivo serviço na magistratura e cuja última classificação tenha sido de Muito Bom, que possuam reconhecidas qualidades para o exercício do cargo, nomeadamente, isenção, bom senso, formação intelectual, preparação técnica e capacidades de relacionamento humano, motivação, inovação e orientação para resultados (art. 25.º, nº1, do RSI[22]).
A designação dos inspectores judiciais pertence ao plenário do CSM por escrutínio secreto e mediante o voto favorável de mais de metade dos membros presente na reunião (art.25º, nº2, do RSI).
Vemos assim que os juízes de direito ao longo da sua carreira profissional, mormente na 1.ª instância, são sujeitos a avaliações que se traduzem em classificações, cabendo a apreciação desse trabalho aos inspectores judiciais nomeados pelo CSM.
O processo inspectivo inicia-se com uma entrevista do inspector com o inspeccionado e, por regra, no prazo máximo de 45 dias após a primeira entrevista, realiza-se uma entrevista final, durante a qual o inspector, sempre que possível, informa o inspeccionado da notação a propor.
No prazo máximo de 30 dias após a entrevista final o inspector notifica o inspeccionado do relatório final, composto pelos fundamentos e com a notação proposta. (art. 17.º, n.ºs 1, 2 e 5, do RSI)
Uma vez notificado do relatório inspectivo, o inspeccionado tem o direito de resposta ao mesmo, de juntar elementos e requerer diligências necessárias.
Findas eventuais diligências a realizar, é elaborada uma informação final pelo inspector, notificada ao inspeccionado e remetido o processo inspectivo para o CSM (art. 17.º, n.º 8 a 10, do RSI).
A atribuição da classificação aos juízes da 1.ª instância[23] cabe ao Conselho Permanente do CSM – cfr art. 152.º e 149.º, al. a) e art. 151., todos do EMJ, o qual pode concordar ou não com a proposta de classificação do inspector.
Por sua vez, da decisão do Conselho Permanente cabe reclamação para o Plenário do CSM – cfr art. 165.º do EMJ.
Vejamos então.
Defende a recorrente que a deliberação recorrida ao permitir que o mesmo inspector possa inspeccionar novamente o mesmo juiz de direito - salvo quando o juiz tenha reclamado da notação proposta ou o CSM tenha alterado a respectiva proposta - não salvaguarda os princípios da imparcialidade, independência, inamovibilidade e protecção da confiança dos juízes.
É certo que uma inspecção não se traduz apenas no seu resultado, inclui todo o contraditório (nomeadamente com entrevistas inicial e final), subsequente proposta de notação elaborada pelo inspector e respectiva fundamentação da notação proposta e subsequente direito de resposta do inspecionado.
É igualmente certo que o inspeccionando pode não se rever em todos os fundamentos/considerações efectuadas no relatório inspectivo.
Todavia, não vemos em que medida as considerações ou juízos de valor feitas num relatório inspectivo e que mereçam (ou não) direito de resposta pelo inspecionado, quando o inspecionado concorda ou se conforma com a classificação proposta, seja motivo de “impedimento” para nova inspeção com o mesmo inspector.
Os inspectores são juízes de direito, pessoas habituadas a decidir com imparcialidade e isenção, e com larga experiência na arte de julgar, pelo que não vemos em que medida uma eventual entrevista final com diálogo e com opiniões ou juízos de valor diferentes ou mesmo um direito de resposta de um inspeccionado com algumas discordâncias, quando concorde com a classificação atribuída, limita ou impede aquele inspector de efectuar uma nova inspecção àquele juiz.
Admite-se que possa haver algumas diferenças/discordâncias entre inspecionado e inspeccionando quanto às considerações e juízos constantes num relatório inspectivo, porém, entende-se que as mesmas não serão de molde a originar diferenças substantivas entre a posição do inspecionado e inspecionando, porquanto, a verificarem-se, em princípio, tal implicará uma discordância na classificação atribuída.
Na verdade, ao contrário do sustentado pela recorrente, não se vê que seja crível e viável que o inspecionado reaja de forma forte e ostensiva (direito de resposta) às considerações ou conclusões feitas num relatório inspectivo e ainda assim se conforme com a classificação proposta.
Segundo cremos, divergências significativas e ostensivas relativamente ao teor do relatório, reflectir-se-ão, certamente, em divergências na notação proposta.
Assim, consideramos que a discordância dos fundamentos tem que ser despicienda para haver consenso quanto à classificação. E sendo uma discordância despicienda não se vê em que medida um inspector, magistrado judicial experiente, se possa sentir afectado/atingido por forma a que na sua actuação futura com aquele inspeccionado se paute com falta de transparência e objectividade.

            Apenas são merecedores de tutela - por beliscar o princípio da imparcialidade que deve pautar a actividade inspectiva - comportamentos que possam, ainda que em abstracto, gerar a suspeita de efectar/atingir a imparcialidade e objectividade de um inspector.

            Não se vislumbra em que medida, um diálogo franco e aberto numa conversa ou entrevista final com o inspector ou de um direito de resposta fundamentado e claro de um Juiz, discordante de alguma(s) consideração(ões) efectuados pelo inspector, quando o juiz concorda com a classificação atribuída, seja de tal forma divergente e acintoso que possa toldar a imparcialidade e isenção do inspector numa inspecção futura.

           Deste modo, não consideramos que o princípio da imparcialidade e o princípio da independência dos juízes fiquem beliscados ao ressalvarem-se apenas as situações de reclamação do inspecionado quanto à notação proposta pelo inspector[24], porque entendemos que apenas estas são capazes de implicar uma divergência de fundo susceptível de beliscar a imparcialidade e isenção que se exige de um inspector, numa inspecção futura, ou pelo menos que, em abstracto, pode transmitir a imagem de desconfiança/suspeição quanto à imparcialidade e isenção que se exige de um inspector.

           De todo o modo, nas situações certamente excepcionais em que ocorram divergências e discrepâncias de tal forma acentuadas entre inspector e inspecionado, que sejam passíveis de afastar a imparcialidade e isenção do inspector, não obstante haver consenso na classificação atribuída, sempre se poderá lançar mão do regime de impedimentos especialmente previsto nos arts.11º[25], do RSI e 69º[26] e segs., do CPA.

           Dir-se-á, até, que a deliberação impugnada vai para além das garantias de imparcialidade criadas pela nossa lei processual penal para os arguidos[27], embora as situações não sejam inteiramente coincidentes. Senão vejamos.                         

           Um Juiz não está impedido de julgar, por diversas vezes, o mesmo arguido ou réu, desde que em processos distintos. O julgamento de cada processo vale de per si.

            Assim o entendeu  o legislador (constitucional e ordinário) por considerar que não é por o arguido ou réu ter sido condenado num processo, que noutro processo o Juiz fica influenciado para o condenar outra vez ou vice-versa. Depende sempre dos factos e da prova realizada.

            Inclusivamente, existem recursos de sentenças condenatórias de teor acintoso e, não é por isso que o Juiz fica impedido de julgar aquele arguido/recorrente noutros processos. Tanto o arguido como o Juiz apenas se podem socorrer dos mecanismos legais de «impedimentos».

            Refere Lebre de Freitas[28] que, "[quanto] à imparcialidade dos juízes, a lei processual enuncia os casos em que, por poder perigar, o juiz que normalmente seria concretamente investido da função jurisdicional fica impedido de a exercer (arts. 122.º e 124.º do CPC) ou pode ser afastado por suspeição(arts. 126.º e 131.º do CPC); e, no domínio da aplicação da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, tem sido entendido que também a parcialidade subjectiva, expressa em actos anteriores à decisão, é inadmissível.".

            Também um inspector tem que apreciar um novo período de inspecção e uma nova realidade inspectiva do inspeccionado (por diversas vezes com mudança de jurisdição, de tribunal, etc.), e existindo consenso/conformação quanto à notação atribuída, não se vislumbra em que medida possa haver falta de objectividade e isenção na recolha e apreciação dos “novos factos”.

            Defende a recorrente que a utilização de um mecanismo legal – impedimentos - é susceptível de criar um contexto consequente de lítigio e desconfiança entre o juiz e o corpo de inspectores do CSM, inibindo dessa forma os juízes de lançarem mãos de tal mecanismo.

            Não partilhamos de tal entendimento. O mecanismo legal de impedimento (afastamento) de um inspector pelo inspeccionado está ao dispor do juiz inspeccionado, como estará de qualquer cidadão que vai ser julgado por um juiz.

   Fazendo o paralelo, significaria que todos os arguidos/assistentes/autores e réus sempre que requeressem a recusa de um juiz criariam um contexto consequente de litígio e desconfiança entre o requerente e o corpo de juízes.

            Tal não sucede. Os juízes estão bem cientes das garantias de imparcialidade que a lei prevê e que as mesmas podem e devem ser utilizadas.

     Os juízes, por força das funções que desempenham, estão habituados a que, pelo menos, uma das partes não concorde com a sua posição e entre em confronto com a mesma, e são e estão preparados para manter distanciamento, serenidade e objectividade nas apreciações. Os senhores inspectores são juízes experientes, pelo que, inequivocamente, é expectável que tenham esses atributos.

    Acresce que estamos em crer que sempre que o juiz (inspeccionado) se sinta inibido ou limitado nos seus direitos por ser inspeccionado por um inspector, ou o inspector sinta constrangimento em inspeccionar aquele juiz, utilizarão, sem desconfortos de qualquer espécie, os meios legais aos seu dispor para o respectivo afastamento.

            É certo que a deliberação de 2005 tornava imaculado o regime de inspecções ao não permitir que um inspector inspeccionasse mais que uma vez um juiz.

            Todavia, não consideramos que a deliberação impugnada nos moldes em que está prevista (com as ressalvas que contemplou), atinja a essencialidade de quaisquer princípios que regem a actividade administrativa/actividade inspectiva dos juízes.
Defende a recorrente que a conformação do inspeccionado com o resultado da inspecção, ou simplesmente com considerações e juízos do inspector radicará em muitos casos precisamente no conhecimento do facto de a inspecção seguinte ser realizada necessariamente por outra pessoa.
Contudo, consideramos que, por um lado, sempre que o inspecionado se conforma com a notação proposta, é porque, na sua essencialidade, o teor do relatório vai de encontro às sua posições ou juízos.
E, por outro lado, não se afigura razoável que os juízes, que se pautam pelo rigor e justiça, se inibam de apontar eventuais discordâncias (de pormenor) que possam ter relativamente às considerações do inspector.

            Defende a recorrente que a deliberação impugnada viola o princípio da confiança. Isto é, que os Juízes “confiavam” que não seriam inspeccionados mais que uma vez por aquele inspector e que agora veem-se confrontados com uma mudança.

            Não se vê em que medida o princípio da confiança dos Juízes na actividade inspectiva do CSM, possa ser posta em causa com o teor da deliberação impugnada.

            Sem dúvida que existia uma deliberação do CSM, aprovada em 2005, que impedia a realização de inspeção mais que uma vez pelo mesmo inspector.

     Todavia, os juízes de direito, a partir da deliberação ora impugnada (Janeiro de 2017) passaram a ter conhecimento e consciência que a ausência de reclamação implica poderem a vir a ser inspecionados pelo mesmo inspector.

            Assim não existe violação do princípio da confiança, porque a partir da deliberação impugnada estão conscientes de tal situação e actuarão em conformidade com esse conhecimento.

            Ao contrário do alegado pela recorrente, inexiste violação da confiança na ausência de consequências de uma não reclamação, porquanto, a partir do momento em que os inspecionados têm conhecimento de que, se não reclamarem da notação atribuída, podem vir a ser inspecionados por aquele inspector, não podem sustentar que desconheciam aquele procedimento (inexiste qualquer quebra da confiança de um procedimento).

     Poderá questionar-se a eventual violação do princípio da protecção da confiança (dos juízes), se a deliberação impugnada se aplicasse para situações passadas (em que ocorreu ausência de reclamação). Isto é, poderá questionar-se a existência de eventual violação do princípio da confiança, se os juízes de direito forem inspeccionados na próxima inspecção pelos mesmos inspectores que os inspeccionaram antes de 24-01-2017, porque aquando da anterior inspecção tinham conhecimento e expectativa do procedimento existente de que não seriam novamente inspeccionados por aquele inspector, independentemente de reclamação.

            Mas esta abordagem transcende o âmbito de interpretação da deliberação ora em causa, devendo ser feita aquando da execução da deliberação ora impugnada.

            Ou seja, a execução que se faça da mesma por banda do CSM, é que poderá eventualmente colidir com a violação do princípio da protecção da confiança dos Juízes.

    Assim, poderá ocorrer eventual violação do princípio da protecção da confiança, na medida em que o Juiz, nas inspecções anteriores a 24-01-2017, confiou que a actuação do CSM seria expectável de uma determinada forma e agiu de acordo com as regras que conhecia (independentemente de reclamação o mesmo inspector não voltaria a inspecionar), sendo que, caso soubesse que as regras seriam as constantes da deliberação ora impugnada, poderia ter agido de outra forma.

    Todavia, nada colidirá com o princípio da protecção da confiança, se o CSM aplicar a deliberação, a partir das inspecções que se iniciam a partir de 24 de Janeiro de 2017. Isto é, os inspectores que inspeccionam os Juízes a partir de 24 Janeiro de 2017 ou cuja inspecção ainda esteja em curso nessa data (antes da elaboração do relatório) poderem vir a inspeccionar outra vez aquele Juiz, caso o mesmo não reclame ou o CSM não tenha alterado a respectiva proposta.

            Não cabe ao STJ decidir em função de hipóteses de execução da deliberação ora impugnada, apenas lhe cabendo pronunciar-se sobre a violação ou não do princípio constitucional da confiança (tutela da confiança) quanto ao teor da deliberação, e esta, em si, não encerra qualquer violação daquele princípio ínsito no princípio do Estado de direito democrático consagrado no art. 2.º da CRP.

  Não se vê em que medida pode ser colocada em causa a confiança dos juízes na actividade inspectiva por ser o mesmo inspector, mais que uma vez, a inspecionar o mesmo inspecionado, quando o inspector, inspecionado e o CSM concordaram com a notação atribuída.

            Para além do que já se referiu, não se pode olvidar que esta deliberação apenas prevê a faculdade do mesmo inspector inspeccionar mais que uma vez o mesmo inspecionado, não impondo tal regra. 

            Também se poderia questionar o invés, isto é, os próprios juízes colocarem em causa a confiança da actividade inspectiva porque, em abstracto, poderá existir um favorecimento do inspector em relação àquele inspeccionado (que já inspeccionou e v.g. lhe propôs e foi atribuída pelo CSM a notação superior - Muito Bom).

     No entanto, o teor do relatório inspectivo e as informações recolhidas são sindicados pelo CSM, que, não raras vezes, discorda das classificações atribuídas e notifica os inspeccionados para se pronunciarem quanto a uma eventual descida de classificação em relação à proposta pelo inspector.

    É certo que o CSM “lê” o que o inspector “transmite” no relatório, mas também é certo que o CSM deve actuar de forma diligente na sua actividade de gestão e disciplina dos Juizes e estará atento a toda a actividade inspectiva, nomeadamente às situações em que se trata do mesmo inspector a inspeccionar, outra vez, certo Juiz, sendo que, na aprovação de uma notação por banda do CSM é ponderado todo o circunstancialismo que a rodeia.

            «A avaliação do desempenho dos juízes e a acção disciplinar constituem as mais complexas das atribuições do CSM, mas que são essenciais como factor de confiança, que constitui em democracia a fonte básica e material (matricial) da legitimidade da função judicial. A avaliação não pode ser efectuada por modo e segundo critérios que em nome da independência sacrifiquem as garantias de qualidade e qualificação profissional, nem o valor da independência pode ser afectado por alguma espécie ou verificação de controlo sobre o sentido das decisões.»[29]

            Na verdade, a tarefa do CSM, sempre que se trata de atribuição de uma classificação a um Juiz, é de grande responsabilidade, e a apreciação da subtileza de cada situação é muito exigente.

            Entendemos, pois, que a deliberação impugnada não colide com qualquer princípio jurídico-constitucional, nomeadamente com os princípios da independência e da inamovibilidade dos juízes ou com o princípio da imparcialidade ou com o princípio da protecção da confiança.

               III. Decisão.

               Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso.

               Sem custas, por delas estar isento a recorrente (art.4º, nº1, al.f), do RCP).

Roque Nogueira (relator)

Abrantes Geraldes

Pires da Graça

Ribeiro Cardoso

Júlio Gomes

Fernanda Isabel Pereira

Salazar Casanova (Presidente)




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[1] Cumpre referir que não se leva à factualidade dada como provada, o facto da recorrente ter tido conhecimento do teor da deliberação impugnada por comunicação do CSM de 6 de março de 2017, por entendermos que tal facto apenas é relevante para apreciação da tempestividade do recurso interposto, elemento já assumido face à não rejeição do recurso.
[2] V., entre outros, o Acórdão da Secção de Contencioso do Supremo Tribunal de Justiça de 1 de Julho de 2003, C.J.S.T.J., tomo II/2003, pág. 9.
[3] In «Os poderes de cognição dos tribunais administrativos relativamente a actos praticados no exercício da função pública», em Revista Julgar n.º 3/2007, págs. 136 e 137.
[4] Neste sentido, Acórdão STJ de 05-07-2012, Proc. n.º 147/11.8YFLSB, acessível em www.dgsi.pt.
[5] In Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. III, 4.º edição revista, Coimbra Editora, pág. 513 a 516.
[6] In “Processo Penal”, Tomo I, 2.ª edição, Almedina, págs. 90 e 91.
[7] In ob. cit, pág. 94.
[8] Acessível em www.dgsi.pt.
[9] Ob. cit., pág. 586 a 590.
[10] Apud C. Fraga, in Manuel Guedes Valente, in ob cit, pág. 103.
[11] Sic acórdão do STJ, secção de contencioso, de 25-06-2008, proferido no Proc. n.º 87/08, sumário acessível em www.stj.pt/jurisprudência/sumários/Sumários do Contencioso - Anos 1980 a 2011
[12] In ob. cit., págs. 802 e 803.
[13] In Constituição Portuguesa Anotada, Tomo III, Coimbra Editora, 2007, pág. 565.

[14] In “Novo Código do Procedimento Administrativo”, Anotado, Novembro de 2015, Coimbra Editora, pág. 99.
[15] Aprovado pelo Decreto-Lei n.º 4/2015, de 07-01.
[16] Et al. in «Código do Procedimento Administrativo Comentado», 2.ª Edição (2006), Almedina, pág. 107.
[17] Acessível em www.dgsi.pt.
[18] In ob. cit., págs. 803/804.
[19] In ob. cit., pág. 575 a 577.
[20] Acessível em www.dgsi.pt.
[21] Acessível em www.dgsi.pt.
[22] Regulamento dos Serviços de Inspecção do CSM, aprovado em reunião plenária do CSM de 25-10-2016, publicado em DR, 2.ª serie, n.º 221, de 17-11-2016.
[23] Com excepção da classificação de medíocre que cabe ao Plenário do CSM – cfr art. 151.º, al. d) do EMJ.
[24] E quando o CSM altera a notação proposta.

[25] Art. 11.º do RIJ «Garantias de imparcialidade» “1 — Sempre que, na decorrência de uma inspeção classificativa, haja lugar à instauração de um processo de inquérito ou disciplinar, a respetiva realização é atribuída a inspetor judicial diverso daquele que procedeu à inspeção classificativa. 2 — O inspetor judicial que tenha realizado processo de sindicância, inquérito ou disciplinar não pode realizar inspeção classificativa ao serviço de juiz que tenha sido abrangido de qualquer daqueles procedimentos. 3 — A recusa ou escusa de inspetor judicial é suscitada em requerimento fundamentado e dirigido ao vice -presidente do Conselho Superior da Magistratura, que decide, ouvidos os interessados e efetuadas as diligências tidas por convenientes.”

[26] Art. 69.º do CPA «Casos de impedimento» “1 - Salvo o disposto no n.º 2, os titulares de órgãos da Administração Pública e os respetivos agentes, bem como quaisquer outras entidades que, independentemente da sua natureza, se encontrem no exercício de poderes públicos, não podem intervir em procedimento administrativo ou em ato ou contrato de direito público ou privado da Administração Pública, nos seguintes casos: a) Quando nele tenham interesse, por si, como representantes ou como gestores de negócios de outra pessoa; b) Quando, por si ou como representantes ou gestores de negócios de outra pessoa, nele tenham interesse o seu cônjuge ou pessoa com quem viva em condições análogas às dos cônjuges, algum parente ou afim em linha reta ou até ao segundo grau da linha colateral, bem como qualquer pessoa com quem vivam em economia comum ou com a qual tenham uma relação de adoção, tutela ou apadrinhamento civil; c) Quando, por si ou como representantes ou gestores de negócios de outra pessoa, tenham interesse em questão semelhante à que deva ser decidida, ou quando tal situação se verifique em relação a pessoa abrangida pela alínea anterior; d) Quanto tenham intervindo no procedimento como perito ou mandatário ou hajam dado parecer sobre questão a resolver; e) Quando tenha intervindo no procedimento como perito ou mandatário o seu cônjuge ou pessoa com quem viva em condições análogas às dos cônjuges, parente ou afim em linha reta ou até ao segundo grau da linha colateral, bem como qualquer pessoa com quem vivam em economia comum ou com a qual tenham uma relação de adoção, tutela ou apadrinhamento civil; f) Quando se trate de recurso de decisão proferida por si, ou com a sua intervenção, ou proferida por qualquer das pessoas referidas na alínea b) ou com intervenção destas. 2 - Excluem-se do disposto no número anterior: a) As intervenções que se traduzam em atos de mero expediente, designadamente atos certificativos; b) A emissão de parecer, na qualidade de membro do órgão colegial competente para a decisão final, quando tal formalidade seja requerida pelas normas aplicáveis; c) A pronúncia do autor do ato recorrido, nos termos do n.º 2 do artigo 195.º. 3 - Sob pena das sanções cominadas pelos n.ºs 1 e 3 do artigo 76.º, não pode haver lugar, no âmbito do procedimento administrativo, à prestação de serviços de consultoria, ou outros, a favor do responsável pela respetiva direção ou de quaisquer sujeitos públicos da relação jurídica procedimental, por parte de entidades relativamente às quais se verifique qualquer das situações previstas no n.º 1, ou que hajam prestado serviços, há menos de três anos, a qualquer dos sujeitos privados participantes na relação jurídica procedimental. 4 - As entidades prestadoras de serviços no âmbito de um procedimento devem juntar uma declaração de que se não encontram abrangidas pela previsão do número anterior. 5 - Sempre que a situação de incompatibilidade prevista no n.º 3 ocorrer já após o início do procedimento, deve a entidade prestadora de serviços comunicar desde logo o facto ao responsável pela direção do procedimento e cessar toda a sua atividade relacionada com o mesmo.”
E art. 73.º do CPA «Fundamentos da escusa e suspeição» “1 - Os titulares de órgãos da Administração Pública e respetivos agentes, bem como quaisquer outras entidades que, independentemente da sua natureza, se encontrem no exercício de poderes públicos devem pedir dispensa de intervir no procedimento ou em ato ou contrato de direito público ou privado da Administração Pública quando ocorra circunstância pela qual se possa com razoabilidade duvidar seriamente da imparcialidade da sua conduta ou decisão e, designadamente: a) Quando, por si ou como representante ou gestor de negócios de outra pessoa, nele tenha interesse parente ou afim em linha reta ou até ao terceiro grau da linha colateral, ou tutelado ou curatelado dele, do seu cônjuge ou de pessoa com quem viva em condições análogas às dos cônjuges; b) Quando o titular do órgão ou agente, o seu cônjuge ou pessoa com quem viva em condições análogas às dos cônjuges, ou algum parente ou afim na linha reta, for credor ou devedor de pessoa singular ou coletiva com interesse direto no procedimento, ato ou contrato; c) Quando tenha havido lugar ao recebimento de dádivas, antes ou depois de instaurado o procedimento, pelo titular do órgão ou agente, seu cônjuge ou pessoa com quem viva em condições análogas às dos cônjuges, parente ou afim na linha reta; d) Se houver inimizade grave ou grande intimidade entre o titular do órgão ou agente, ou o seu cônjuge ou pessoa com quem viva em condições análogas às dos cônjuges, e a pessoa com interesse direto no procedimento, ato ou contrato; e) Quando penda em juízo ação em que sejam parte o titular do órgão ou agente, o seu cônjuge ou pessoa com quem viva em condições análogas às dos cônjuges, parente em linha reta ou pessoa com quem viva em economia comum, de um lado, e, do outro, o interessado, o seu cônjuge ou pessoa com quem viva em condições análogas às dos cônjuges, parente em linha reta ou pessoa com quem viva em economia comum. 2 - Com fundamento semelhante, pode qualquer interessado na relação jurídica procedimental deduzir suspeição quanto a titulares de órgãos da Administração Pública, respetivos agentes ou outras entidades no exercício de poderes públicos que intervenham no procedimento, ato ou contrato.”
[27] Onde também estão em causa direitos fundamentais de um estado de direito democrático.
[28] In «Introdução ao Processo Civil. Conceito e princípios gerais à luz do Código Revisto», Coimbra, 1996, págs. 64-65 e nota 16.

[29] Sic Henriques Gaspar in «A Independência Judicial: Um Valor Supraconstitucional», ASJP, Boletim Informação e Debate, VI Série, N.º 3, Março 2010, pág. 28.