Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
4803/22.7T8VIS-A.C1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: ANA PAULA LOBO
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
TRIBUNAL ADMINISTRATIVO
TRIBUNAL COMUM
EMPREITADA
INDEMNIZAÇÃO
DANOS
VIOLAÇÃO DE REGRAS DE SEGURANÇA
OBRAS
EMPREITADA DE OBRAS PÚBLICAS
RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO
Data do Acordão: 06/18/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
I – Os Tribunais comuns são competentes, em razão da matéria, para conhecer uma acção de indemnização por danos sofridos com a ausência de sinalização por parte do empreiteiro, entidade privada, de piso rebaixado.

II - O facto de ter sido adjudicada à ré, empresa privada, a realização de uma obra pública não altera a sua qualificação jurídica de entidade de direito privado nem, mesmo que pontualmente durante a execução da obra, a converte em órgão, funcionário agente ou servidor público

Decisão Texto Integral:
Recorrente: Irmãos Almeida Cabral L. dª, ré

Recorrida: Zurich Insurance Europe AG – sucursal em Portugal, autora


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I – Relatório

I.1 – relatório

Irmãos Almeida Cabral L. dª intentou recurso de revista do acórdão proferido em 5 de Março de 2024 pelo Tribunal da Relação de Coimbra, que julgou totalmente improcedente o recurso, e confirmou a decisão recorrida.

A recorrente apresentou alegações que terminam com as seguintes conclusões:

1. Vem o presente recurso interposto do acórdão proferido nestes autos em 05/03/2024, que julgou improcedente o recurso de apelação interposto pela recorrente e, em consequência, manteve a decisão recorrida.

2. Com o devido respeito e por dever de patrocínio, a recorrente não partilha deste entendimento.

3. O tribunal a quo apreciou o recurso interposto pela aqui recorrente do despacho saneador proferido pela primeira instância, recurso este que versou sobre duas questões: se a competência em razão da matéria, para apreciação e decisão dos presentes autos, está atribuída aos tribunais comuns ou aos tribunais administrativos e se a recorrente é parte ilegítima.

4. A recorrente invocou, em sede de contestação, a incompetência material do tribunal de primeira instância, invocando, em síntese, que no local descrito nos autos a recorrente levava a cabo obras no âmbito de uma empreitada de obra pública que lhe foi adjudicada por concurso público, denominada “Alargamento da EN16 entre a ... junto à ... e o limite do ICNF – ...”, pelo Município de ..., visando obras de alargamento daquela via e sinalização na estrada em toda a sua largura e que, pretendendo os autores serem indemnizados por danos patrimoniais decorrentes do alegado sinistro que alegam na petição inicial, tal questão compete à jurisdição administrativa e não à jurisdição civil.

5. Assenta o presente recurso na premissa de que o tribunal a quo, certamente por lapso, procedeu a uma errónea qualificação jurídica da matéria alegada nos autos pela recorrente, no que concerne à excepção de incompetência material invocada.

6. Sendo certo, saliente-se, que foi junta nos autos documentação probatória, que comprova a matéria alegada pela recorrente e aqui em causa e de onde necessariamente se extrai a conclusão aventada pela recorrente, nomeadamente, os documentos juntos aos autos pela recorrente em 20/03/2023 (contratos de empreitada, adendas e anúncio de procedimento).

7. Ora, a competência material dos tribunais para as causas de natureza cível resulta de normas de atribuição direta ou indireta, sendo que, os casos de atribuição indireta resultam da afetação das causas que não estejam afetas a outros tribunais (conforme dispõe o artigo 211.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa).

8. Atendendo ao pedido formulado pelos autores nestes autos, dúvidas não restam que este assenta na responsabilidade civil extracontratual, na medida em que pedem a condenação da recorrente no pagamento de indemnização pelos danos decorrentes de um sinistro alegadamente resultante de obras realizadas ao abrigo de um contrato de empreitada de obra pública. Acresce que, igualmente não restam dúvidas de que a obra mencionada nos autos é uma empreitada de obra pública adjudicada à recorrente por concurso público – vejam-se os documentos juntos aos autos pela recorrente em 20/03/2023 (contratos de empreitada, adendas e anúncio de procedimento).

9. Por conseguinte e salvo o devido respeito, compete efetivamente aos Tribunais Administrativos a competência para dirimir este tipo litígios, como os que estão em causa nos autos, nomeadamente ao abrigo do disposto no artigo 4.º, nº 1, alínea h), e n.º 2, do ETAF (neste sentido, veja-se MÁRIO AROSO DE ALMEIDA E CARLOS ALBERTO FERNANDES CADILHA, in Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 2.ª Edição revista, 2007, Almedina, p. 214, ponto 8; o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 07-11-2017, proferido no âmbito do processo n.º 4055/16.8T8 VIS.C1; o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 21-10-2008, proferido no âmbito do processo n.º 163/05.9TBFCR.C1; o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 26-10-2021, proferido no âmbito do processo n.º 4798/20.1TBVIS.C1; o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 27-01-2015, proferido no âmbito do processo n.º 571/12.9TBMMV.C1; o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça datado de 21-05-2002, proferido no âmbito do processo n.º 02A1045, todos disponíveis para consulta em www.dgsi.pt).

10. Não é irrelevante que a recorrente executasse a obra para uma entidade pública, como já vimos, uma vez que esta relação define a competência material do tribunal que vai julgar o litígio.

11. Acresce que, ao contrário do entendido pelo tribunal a quo, é ao dono de obra, isto é, ao Município de ..., que incumbe o dever de fiscalizar e de proceder à sinalização temporária dos obstáculos existentes em via rodoviária sob seu domínio, mesmo nos casos em que está a ser realizada uma empreitada de obra pública e que se tenha acordado que o cumprimento dessa sinalização cabia à empreiteira (Neste sentido, veja-se o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, datado de 18-10-2019, proferido no âmbito do processo n.º 00506/07.0BECBR, disponível para consulta em www.dgsi.pt, do qual, por clareza de exposição, se transcreve o seguinte excerto: “A decisão recorrida afirmou a responsabilidade do recorrente Município por via da gestão (fiscalização) que lhe incumbe na rede rodoviária sob seu domínio, bem como, em segundo plano de perspectiva consumido pelo primeiro, pela sua qualidade dono de obra. Fundamentou de direito, ainda que o recorrente o rejeite. Basicamente, porque entende que: (i) - estando a via em construção e sem ter sido recepcionada, não é ainda do domínio municipal com dever de sinalização; acontece que esse dominio se evidencia por afectação que a própria empreitada lançada revela, que não se sustém na espera de completa conclusão física ou tramitação contratual da obra; (ii) - apesar de dono de obra, ainda não a tendo recebido e não existido autorização por sua banda para abertura ao público, não é responsável por acidentes que ocorrem em estaleiro; mas não é acidente em estaleiro que cuida o caso, antes em via rodoviária, que mesmo ainda em construção se incorpora em domínio municipal, com dever de vigilância que não cessa pela relação de empreitada. É de pacífica jurisprudência que o dever do Município de fiscalizar e de proceder à sinalização temporária dos obstáculos existentes em via rodoviária sob seu domínio não termina, ou não cessa, pelo facto de terceiro aí se encontrar a realizar empreitada, mesmo até que tenha acordado no cumprimento dessa sinalização pelo empreiteiro (cfr., Acs. do STA, de 17-11-2004, proc. n.º 0306/04; de 03-10-2006, proc. n.º 0760/05; de 03-02-2011, proc. n.º 01046/09; Acs. deste TCAN, de 26-05-2017, proc. n.º 01761/10.4BEPRT, de 21-12-2018, proc. n.º 01039/13.1BEBRG).”)

12. Ou seja, como indica o supra mencionado Acórdão, a jurisprudência é pacifica no sentido de, mesmo nos casos em que no local do alegado sinistro está a ser executada uma empreitada de obra pública por uma entidade privada – como é o caso dos autos; sendo o dono de obra uma entidade pública–como é o caso dos autos; é dever do Município fiscalizar e proceder à sinalização temporária dos obstáculos existentes na via.

13. Pelo que, também por este motivo, não pode proceder a argumentação aduzida pelo tribunal a quo, que certamente laborou em erro ao assim decidir.

14. Em face do exposto e salvo o devido respeito, o tribunal a quo andou mal ao considerar que os tribunais comuns são materialmente competentes para dirimir o conflito dos autos.

15. Nesta medida, deve julgar-se a excepção de incompetência material do tribunal de primeira instância procedente, declarando-se o Juízo Local Cível de ... materialmente incompetente para decidir a pretensão formulada pelos autores, absolvendo-se a recorrente da instância, tudo com as legais consequências.

16. Por outro lado, a recorrente invocou, em sede de contestação, que é parte ilegítima para ser demandada nos autos sub judice, nos termos do artigo 7.º da Lei n.º 67/2007, de 31/12, peticionando pela sua absolvição, sendo que o tribunal a quo julgou-a improcedente, julgando a aqui recorrente parte legitima.

17. Salvo o devido respeito, não pode também aqui a recorrente conformar-se com o entendimento do tribunal a quo no que concerne a esta excepção invocada.

18. Com efeito, como supra vimos, no local descrito nos autos a recorrente levava a cabo obras no âmbito de uma empreitada de obra pública, que lhe foi adjudicada por concurso público, cujo dono de obra é o Município de ... e sendo tal obra fiscalizada pelos próprios Serviços Municipalizados da Câmara Municipal de .... Nessa medida, o Municipio de ... é o dono de obra, cabendo-lhe a responsabilidade pela sinalização de obstáculos e obras em locais públicos e por aferir da segurança da circulação nas vias públicas sob a sua administração, assim como é o responsável por responder pelos danos provocados por alegados sinistros ocorridos em tal local, devendo a ação fundada em responsabilidade civil extracontratual decorrente de actos ilícitos de gestão pública recair sobre este e não sobre a empreiteira a quem foi adjudicada tal obra pública, tudo ao abrigo do disposto no dito artigo 7.º da Lei 67/2007, de 31/12 (neste sentido, veja-se o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, datado de 03-02-2011, proferido no âmbito do processo n.º 01046/09 e o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, datado de 13-11-2020, proferido no âmbito do processo n.º 00450/17.3BEVIS, ambos disponíveis para consulta em www.dgsi.pt).

19. Para além disso, como supra alegado, é ao dono de obra, isto é, ao Município de ..., que incumbe o dever de fiscalizar e de proceder à sinalização temporária dos obstáculos existentes em via rodoviária sob seu domínio, mesmo nos casos em que está a ser realizada uma empreitada de obra pública e que se tenha acordado que o cumprimento dessa sinalização cabia à empreiteira (neste sentido, veja-se o acima mencionado Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, datado de 18-10-2019, proferido no âmbito do processo n.º 00506/07.0BECBR, disponível para consulta em www.dgsi.pt).

20. Por conseguinte, a recorrente é parte ilegítima na presente ação, uma vez que o dono de obra é que deveria ter sido demandado nos autos – em sede de jurisdição administrativa, em face do que supra se alegou em face da incompetência material do tribunal a quo para dirimir o conflito dos autos.

21. No limite, a recorrente, enquanto empreiteira, pode ser chamada a intervir naqueles autos em sede de intervenção acessória.

22. Em face do exposto, deve julgar-se a excepção de ilegitimidade passiva da recorrente procedente, absolvendo-se a mesma, tudo com as legais consequências.

23. Por último, mais se diga que, salvo o devido respeito, ao decidir como decidiu, quanto às duas questões em causa nestes autos, o tribunal a quo fez uma errada interpretação e aplicação das normas aplicáveis ao caso concreto e decidiu contra o entendimento pacífico que a jurisprudência tem vindo a deter, no sentido de que, casos como os sub judice, são da competência material dos tribunais administrativos, pelo que os tribunais cíveis comuns são incompetentes materialmente para decidir a pretensão formulada pelos autores, e que a recorrente é parte ilegítima na presente ação, uma vez que o dono de obra, o Município, é que deveria ter sido demandado nos autos e em sede de jurisdição administrativa.

24. Ao decidir como decidiu o Tribunal a quo fez, salvo melhor opinião, errada interpretação e aplicação das disposições conjugadas, pelo menos, do artigo 211.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, do artigo 4.º, n.º 1, al. h) e n.º 2 do ETAF, do artigo 7.º da Lei n.º 67/2007, de 31/12, dos artigos 30.º, 96.º, al. a), 99.º, n.º 1, 576.º, n.º 2 e 577.º, al. a) e e), todos do CPC.

Termos em que, deve o presente recurso merecer provimento em toda a sua extensão e, em consequência, ser o acórdão recorrido revogado e alterado em conformidade com o exposto nas conclusões, julgando-se a excepção de incompetência material do tribunal a quo procedente, declarando-se o tribunal comum – Juízo Local Cível de ... – como materialmente incompetente para decidir a pretensão formulada pelos autores, absolvendo-se a recorrente da instância e, bem assim, julgando-se procedente a invocada excepção de ilegitimidade passiva da recorrente, tudo com as legais consequências.

Foram apresentadas contra-alegações pela recorrida que encerram com as seguintes conclusões:

1. Atendendo à causa de pedir, tal como foi carreada para os autos pela Autora, aqui Recorrida, em causa nos autos está o pedido de reembolso da quantia despendida pela Autora na reparação do veículo objeto do contrato de seguro, o qual foi acidentado única e exclusivamente pela existência de falta de sinalização da obra que a Ré/Recorrente se encontrava a efetuar na via pública.

2. Na sua alegação dos factos a Autora demonstrou estarem preenchidos os pressupostos de aplicação do art. 483.º do Código Civil, pelo que, estamos no âmbito da responsabilidade civil extracontratual que a Autora tem legitimidade de efetivar por via da sub-rogação legal.

a. Não está em causa nos autos a discussão sobre a relação contratual existente entre o Município de ... e a Recorrente, outrossim, discute-se tão só, e apenas, a imputabilidade da responsabilidade extracontratual decorrente do sinistro provocado pela falta de sinalização da obra efetuada na via pública pela Ré/Recorrente.

3. Estando em causa uma atuação de um ente privado, e, portanto, desprovido de ius imperii, uma correta aplicação do Direito ao caso concreto terá necessariamente de dar azo à subsunção da regra da competência material do tribunal a quo ao n.º 1 do art. 40.º da LOSJ, estando portanto excluída a competência da jurisdição administrativa no caso concreto.

a. Considerando a causa de pedir, não há no caso concreto lugar à aplicação do regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado previsto na Lei 67/2007, de 31 de dezembro, porque a Ré é um ente privado que apesar de ter celebrado um contrato com o Município de ..., esse facto per si não lhe confere nenhum equiparação a um ente Público, logo, os actos pela mesma praticados – por ação ou omissão – recaem na sua esfera jurídica privada, a qual está sujeita à lei civil, nomeadamente ao art. 483.º do Código Civil.

4. Aqui chegados a Recorrida não pode deixar de salientar que entende haver extravasamento por parte da Recorrente quanto ao objeto do recurso de revista, ou seja, incidindo este apenas sobre matéria de Direito, nas suas alegações a Recorrente lança mão de factos, referindo-se de forma extensa ao contrato de empreitada celebrado com o Município de ..., consistindo tal alegação numa violação ao disposto no art. 674.º do CPC.

5. A douta sentença proferida nos autos não padece de qualquer vício, razão pela qual, não se poderá retirar nenhuma conclusão diversa da aplicação do Direito ao caso em apreço.

Face a todo o exposto, requer-se a V. Exas, Venerandos Juízes Conselheiros do douto Supremo Tribunal de Justiça, a confirmação do Acórdão recorrido, atenta a corretíssima aplicação do Direito, nomeadamente da norma do n.º 1 do art. 40.º da LOSJ, ordenando-se assim a prossecução dos autos pela via da jurisdição comum,

Assim se fazendo a verdadeira e serena JUSTIÇA.


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I.2 – Questão prévia - admissibilidade do recurso

Tendo em conta que ambas as instâncias, suportadas em idênticos fundamentos, declararam a competência dos Tribunais comuns para conhecer da presente acção e consideraram ser a ré parte legítima, o presente recurso de revista apenas é admissível quanto à questão da competência em razão da matéria, ao abrigo do disposto no art.º 629.º, n.º 2, a) do Código de Processo Civil, sendo inadmissível relativamente à questão da ilegitimidade, nos termos do disposto no artº 671.º, n.º 3 do Código de Processo Civil.

A situação de dupla conforme não obsta à admissibilidade da revista, no que à questão da competência em razão da matéria diz respeito, dado o texto do n.º 2 do art.º 629 do Código de Processo Civil que define não haver restrições à admissibilidade do recurso – de apelação ou de revista – quando tenha por fundamento a violação das regras de competência em razão da matéria. A situação de dupla conforme só excluiu a admissibilidade do recurso de revista, em situações em que ele seria admissível, mas deixa de o ser por o legislador ter entendido desnecessária a tripla instância dado o acordo quanto à decisão da 1.ª e 2.ª instância. Nesta situação, a revista nunca seria admissível tendo em conta o valor da acção, pelo que nunca carecia de averiguação a existência de dupla conforme.

O art.º 629.º do Código de Processo Civil é uma norma geral sobre a admissibilidade do recurso em que o legislador atende sobretudo à natureza das questões objecto de recurso elegendo aquelas em que, por razões de ordem pública, no que à competência dos tribunais diz respeito, determina ser sempre o recurso admissível.

I.3 – O objecto do recurso

Tendo em consideração o teor das conclusões das alegações de recurso e o conteúdo da decisão recorrida, cumpre apreciar a seguinte questão:

1. Tribunal competente, em razão da matéria, para conhecer do presente litígio.

I.4 - Os factos

O acórdão recorrido considerou relevantes para a decisão do recurso os seguintes factos:

1. Zurich Insurance PLC – Sucursal Portugal, SA e AA, instauraram a acção declarativa de condenação, com processo comum, contra Irmãos Almeida Cabral, L.dª, pedindo a condenação desta a pagar-lhes, respectivamente, a quantia de 1.495,66 € e 246,00 €, acrescidas de juros vencidos desde 30 de Setembro de 2021 e vincendos desde a citação e até integral e efectivo pagamento.

2. Alegam para tal que a 1.ª autora contratou com o 2.º autor um seguro de responsabilidade civil decorrente da circulação do veículo automóvel, de matrícula ..-TG-.., o qual veio a ter intervenção num acidente de viação, no dia ... de ... de 2020, pelas 12h e 30m, ocorrido na Rua ..., em ... e que se deveu ao facto de a ré estar a proceder a obras, que não sinalizou, na dita rua, encontrando-se o piso rebaixado em 8 cm, o que fez com que o supra identificado veículo, ao sair do parque de estacionamento da Casa de Saúde de ... e ao entrar na dita rua, tenha embatido com a protecção inferior numa tampa de saneamento, que estava elevada 8 cm em relação ao solo, o que provocou danos no veículo, que descreve e cuja reparação ascende às quantias pedidas.

3. A ré estava a realizar obras na referida rua, sem as sinalizar ou colocar alguém a controlar a passagem de veículos e sem que tivesse colocado qualquer sinal de piso rebaixado, obstáculo na via ou perigo de obras, o que originou o descrito acidente.

4. Contestando, a ré, no que a este recurso interessa, veio deduzir defesa por excepção, invocando a incompetência do presente Tribunal, em razão da matéria e a sua ilegitimidade.

5. Alegou, para o efeito, e em suma, que nos termos do disposto no artigo 4.º, n.º 2, do ETAF, a mesma está atribuída aos tribunais administrativos, com o fundamento em que estava a executar obras no âmbito de uma empreitada de obras públicas que lhe foi adjudicada por concurso público, visando o alargamento daquela via e sinalização da estrada em toda a sua largura, sendo dono da obra o Município de ..., estando a obra ser fiscalizada pelos Serviços Municipalizados da Câmara Municipal de ....

6. O Tribunal de 1.ª instância, em despacho saneador proferido em 23 de Janeiro de 2024 decidiu:

(…) “2.1. Da competência material deste Tribunal

Considerando a causa de pedir e pedido desta ação, afigura-se manifesta a competência deste juízo cível.

Em causa não está o contrato celebrado entre a Ré e o Município, mas um sinistro em que interveio o 2º A. e cuja ilicitude e culpa vêm imputadas à primeira Ré, por falta de sinalização da obra. (art.º 483º do CC)

Estamos, por isso, perante uma ação de responsabilidade civil extracontratual entre dois privados, em que as regras aplicáveis são regras civilísticas, sendo irrelevante, para este efeito, se a Ré executava a obra para uma entidade pública ou privada, já que é a causa de pedir da ação que define a competência do tribunal.”

7. O Tribunal da Relação confirmou a decisão apelada.

II – Fundamentação

1. Tribunal competente para conhecer da presente acção

Como resulta da petição inicial, onde se mostra configurada a relação material controvertida, a empresa autora, que exerce a indústria de seguros em diversos ramos, invoca:

- ter celebrado com AA, um contrato de seguro do ramo automóvel, titulado pela Apólice n.º .......17, através do qual transferiu para si a responsabilidade civil decorrente da circulação do veículo de matrícula ..-TG-.. tendo contratado as coberturas facultativas, nomeadamente, as de “Choque, Colisão e Capotamento”.

- ter tal veículo sofrido um acidente de viação no dia ... de ... de 2020, pelas 12:30 horas, quando saia do parque de estacionamento da Casa de Saúde de ... para a Rua ..., em ..., que danificou o veículo.

- ter o acidente sido causado por embate com a protecção inferior numa tampa de saneamento, provocando danos na protecção inferior, pára-choques, conduta de ar;

- A Rua ... encontrava-se em obras, no entanto não existia no local qualquer sinalização de obras, de perigo, de circulação proibida ou de perigo de piso rebaixado.

-A circulação de veículo estava, como normalmente, permitida e sem constrangimentos, e sem

qualquer tipo de sinalização que alertasse os condutores do perigo do piso rebaixado e das tampas de saneamento salientes.

- Competir à ré no exercício da sua actividade sinalizar a realização das obras na Rua ...

- ter sido a conduta da Ré grosseiramente negligente, não dando cumprimento às regras de segurança a que estava obrigada,

- ter a recorrente, em cumprimento do contrato de seguro pago ao seu segurado o valor da reparação dos danos, com excepção do montante da franquia por este suportada, montante que vem exigir nesta acção, por a ré não o ter feito voluntariamente, quando para tal interpelada.

Considera a ré que, tratando-se da execução de uma obra pública cujo dono da obra é o Município de ..., entidade adjudicante e fiscalizadora da obra causadora do sinistro, a presente acção deve decorrer perante os Tribunais Administrativos e Fiscais.

Tal como entendido pelas instâncias estamos perante uma relação jurídica de direito privado que não assume qualquer veste de relação jurídico administrativa por não estar em causa qualquer relação ou responsabilização de um ente público.

Nesta acção não é demandada a entidade adjudicante e fiscalizadora da obra por omissão dos seus deveres funcionais de garantir que a obra se desenvolva sem criar perigo para os cidadãos. Tão pouco poderá a ré invocar que os danos causados são necessários à prossecução do interesse público ou que, por se tratar de uma obra do Município, não tinha que sinalizar a mesma, ou evitar a circulação dos veículos no local enquanto as tampas de saneamento estavam rebaixadas.

Nos termos do disposto no art.º 1 do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pela Lei n.º 13/2002 de 19 de Fevereiro, os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais.

Define tal lei, no seu art.º 4.º o âmbito da jurisdição indicando competir aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto:

h) Responsabilidade civil extracontratual dos titulares de órgãos, funcionários, agentes e demais servidores públicos;

O facto de ter sido adjudicada à ré a realização de uma obra pública não altera a sua qualificação jurídica de entidade de direito privado nem, mesmo ainda que pontualmente durante a execução da obra, a converte em órgão, funcionário agente ou servidor público.

O contrato administrativo celebrado entre a Administração Pública, neste caso o Município de ... (dono de obra) e a empresa privada ré (empreiteiro), através do qual esta, mediante o pagamento do respectivo preço ou remuneração, procede à execução de uma obra pública, neste caso a reparação da via pública, rege-se pelos art. 343º e segs. do Código dos Contratos Públicos – aprovado pelo Decreto-Lei n.º 18/2008 de 29 de Janeiro, é diverso do contrato de empreitada de obras particulares, este regido pelos art. 1207º e segs. do Código Civil, pelos poderes conferidos naquele à Administração Pública, enquanto contraente público/dono de obra, que não existem no contrato de empreitada de obras particulares.

O art.º 350.º do Código dos Contratos Públicos determina que, na falta de estipulação contratual, o empreiteiro tem obrigação de realizar todos os trabalhos que, por natureza, por exigência legal ou segundo o uso corrente, sejam considerados como preparatórios ou acessórios à execução da obra, designadamente (…)

b) Trabalhos necessários para garantir a segurança de todas as pessoas que trabalhem na obra ou que circulem no respectivo local, (…) para evitar danos nos prédios vizinhos e para satisfazer os regulamentos de segurança, higiene e saúde no trabalho e de polícia das vias públicas, sendo certo que a falta de condições de segurança, para pessoas e bens e determinar a suspensão da execução dos trabalhos pelo dono da obra – art.º 365.º do Código dos Contratos Públicos.

Assim, se da circunstância de ter a ré celebrado um contrato de empreitada de obras públicas, decorre necessariamente a sujeição desse contrato a regras de direito público podendo, neste caso o dono da obra, perante o evento em discussão nestes autos, a confirmar-se, aplicar sanções administrativas à ré, questões a dirimir nos tribunais administrativos e fiscais, nas relações da empresa ré, entidade de direito privado com os demais cidadãos que sejam afectados nos seus direitos e interesses por deficiente execução da obra, nem regras de direito público serão convocadas, nem a jurisdição dos Tribunais Administrativos e Fiscais será competente.

Diversamente ocorrerá se os cidadãos pretenderem responsabilizar o dono da obra pelos danos que a obra lhes cause, assente na sua deficiente concepção, execução ou fiscalização, que nesta acção não estão equacionadas.

Tal como definido nas instâncias, estando em causa uma acção de reembolso do custo da reparação do veículo alegadamente suportada pelos autores, originado por danos causados por deficiente sinalização da obra, são competentes para o seu conhecimento os tribunais comuns por tais acções não estarem legalmente atribuídos à jurisdição Administrativa e Fiscal, por força do disposto nos artigos 211.º, n.º1, da Constituição da República Portuguesa, 40.º, 1, da Lei da Organização do Sistema Judiciário, aprovada pela Lei n.º 62/2013 de 26 de Agosto, e 64.º do Código de Processo Civil.

Impõe-se, pois, nos termos legais, a confirmação do acórdão recorrido.


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III – Deliberação

Pelo exposto, acorda-se em negar a revista e confirmar a decisão recorrida.

Custas pelos recorrentes.


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Lisboa, 18 de Junho de 2024

Ana Paula Lobo (relator)

Afonso Henrique

Maria da Graça Trigo