Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
41/21.4PDSXL-D.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: ORLANDO GONÇALVES
Descritores: HABEAS CORPUS
PRAZO DA PRISÃO PREVENTIVA
ROUBO
CRIMINALIDADE VIOLENTA
ACUSAÇÃO
DESPACHO QUE DESIGNA DIA PARA A AUDIÊNCIA
INDEFERIMENTO
Data do Acordão: 06/09/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: HABEAS CORPUS
Decisão: IMPROCEDÊNCIA / NÃO DECRETAMENTO.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO.
Sumário :
I - O bem jurídico nos dois crimes de roubo, p. e p. pelo art. 210.º do CP, imputados ao ora peticionante, em coautoria, antes da acusação - um indiciariamente praticado com elevada violência física contra o corpo de (…) e outro por meio de ameaça contra (…), fazendo-a recear pela sua vida e integridade física -, integra o conceito de “criminalidade violenta” previsto no art.1.º, al. j) do Código de Processo Penal.
II - Atento o disposto no art. 215.º, n.os 1, al. a) e n.º 2, do CPP, o prazo de duração máxima da prisão preventiva a que o arguido estava assim sujeito, até à dedução da acusação, era de 6 meses – e não apenas de 4 meses.
III - Também o recebimento da acusação, mesmo que decorridos 6 meses desde a determinação da prisão preventiva, é irrelevante para o regime dos prazos de duração máxima de prisão preventiva enumerados no art. 215.º, n.º 1, do CPP, pois que os atos processuais relevantes para este efeito reportam-se à prolação da acusação, da decisão instrutória, da condenação ou do trânsito em julgado.
Decisão Texto Integral:


Proc. nº 41/21.4PDSXL-D.S1

Habeas Corpus

*

Acordam, em Conferência, na 5.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça

I - Relatório

1. AA, em prisão preventiva, no âmbito do proc. nº 41/21.4PDSXL, que corre os seus termos no Juízo Central Criminal de Almada – Juiz 1 do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, veio requerer ao Ex.mo Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, através de Advogada Oficiosa, a providência de habeas corpus, nos termos dos artigos 222º e 223º do Código de Processo Penal, e com os fundamentos que se transcrevem:

«1º Em sede de Primeiro Interrogatório Judicial, no pretérito dia 11/09/2021, foi determinada, ao Arguido a aplicação da medida de coação de prisão preventiva, prevista no artigo 202° do C.P.P, por se considerar existirem fortes indícios do mesmo ter praticado crimes de roubo, previsto e punido pelo art. 210º, nº 1 do Código Penal.

2º Sucede que a Acusação foi apresentada, mas só foi recebida através de Despacho proferido no dia 21/04/2022, situação que acabou por violar o disposto no artigo 215° do CPP, que prevê o prazo máximo de 04 (quatro) meses de prisão preventiva, prorrogável por 06 (seis) meses de prisão em caso de estar configurada criminalidade violenta.

3º Entretanto, foi a mãe do Arguido, ora Recorrente, que alertou esta Advogada de que o seu filho já estaria preso há muitos meses e que a prisão preventiva teria, portanto, extrapolado os limites legais, pelo que requereu a apresentação da presente medida de Habeas Corpus.

4º Ora bem, o artigo 215º do CPP determina que:

“1 - A prisão preventiva extingue-se quando, desde o seu início, tiverem decorrido:

a) Quatro meses sem que tenha sido deduzida acusação;

b) Oito meses sem que, havendo lugar a instrução, tenha sido proferida decisão

instrutória;

c) Um ano e dois meses sem que tenha havido condenação em 1ª instância;

d) Um ano e seis meses sem que tenha havido condenação com trânsito em julgado."

2 - Os prazos referidos no número anterior são elevados, respectivamente, para seis meses, dez meses, um ano e seis meses e dois anos, em casos de terrorismo, criminalidade violenta ou altamente organizada, ou quando proceder por crime punível com pena de prisão de máximo superior a 8 anos...”

5ºAssim, nos parece que o prazo da prisão preventiva acabou por atingir o seu prazo máximo de duração, pois extrapolou o limite de 04 (quatro) meses e também porque o recebimento da acusação só ocorreu passados 06 (seis) meses desde que a sua determinação.

6º- Logo, o prazo máximo da prisão preventiva, nos presentes autos, acabou por ser ultrapassado, situação que deverá a conclusão de que a medida tornou-se ilegal,

7º Mesmo que o recebimento da acusação já tenha sido realizado, o facto é que foi extemporâneo, situação que determina, na mesma, a ilegalidade da prisão preventiva.

8º Nesse sentido, deve incidir o disposto no artigo 222º do CPP[1], que determina que:

“1 - A qualquer pessoa que se encontrar ilegalmente presa o Supremo Tribunal de Justiça concede, sob petição, a providência de habeas corpus.

2 - A petição é formulada pelo preso ou por qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos, é dirigida/ em duplicado, ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, apresentada à autoridade à ordem da qual aquele se mantenha preso e deve fundar-se em ilegalidade da prisão proveniente de:

a) Ter sido efetuada ou ordenada por entidade incompetente;

b) Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou

c) Manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial”

9º Considerando que o prazo máximo da prisão preventiva restou ultrapassado, concluímos que a detenção do Arguido no Estabelecimento Prisional ... representa um atentado ilegítimo à sua liberdade individual e é ilegal, na forma do Artigo 222° n° 2 alínea c) do CPP[2]:

10° Para além disso, invocamos os dispositivos constitucionais pertinentes à matéria, designadamente os artigos 2º, 20º nº 4, 27° nº 2, 28° nº 4, 32º, 202º e 204º, todos da Constituição da República Portuguesa, tudo para dizer que o Arguido não pode ser privado da sua liberdade quando tenham esgotado os prazos estabelecidos por lei, sendo certo que vigora a presunção de inocência.

CONCLUSÃO:

Diante do exposto, resta configurada a ilegalidade da manutenção da prisão preventiva do Arguido, razão pela qual requer à Vossas Excelências, o deferimento do pedido de Habeas Corpus, e em consequência, deverá ser ordenada a imediata libertação do Arguido AA.».

2. Pela Exma. Juíza, no Juízo Central Criminal de Almada – Juiz 1, foi prestada a seguinte informação, nos termos do art. 223º, nº 1 do Código de Processo Penal:

Nos presentes autos, o arguido AA foi detido em 10/09/2021 (cfr. fls 6 a 11).

Em sede de primeiro interrogatório judicial realizado em 11/09/2021, ao arguido foi aplicada a medida de coação de prisão preventiva, por se verificarem fortes indícios da prática pelo mesmo, em coautoria, de dois crimes de roubo, previstos e punidos pelo artigo 210º, nº 1 do Código Penal (cfr. fls. 12 a 23 e 24).

Por despachos do Juiz de Instrução Criminal datados de 02/12/2021 (cfr. fls. 26 a 28) e de 28/02/2022 (cfr. fls. 30 a 31) foi reapreciada e mantida essa medida de coação aplicada ao arguido.

Em 07/03/2022 foi deduzida acusação contra o arguido, tendo-lhe sido imputada a prática, em coautoria material, de 1 (um) crime de furto qualificado (previsto e punido pelos artigos 203º, nº 1, e 204º, nº 1, alínea a), por referência ao artigo 202º, alínea a), do Código Penal); 1 (um) crime de roubo (previsto e punido pelo artigo 210º, nº 1 e nº 2, alínea b), por referência aos artigos 204º, nº 1, alínea a), e nº 2, alínea f), e 202º, alínea a), do Código Penal, e ao artigo 4º do D.L. nº 48/95, de 15/3); 1 (um) crime de detenção de arma proibida (previsto e punido pelo artigo 86º, nº 1, alínea c), da Lei nº 5/2006, de 23/2), 1 (um) crime de roubo (previsto e punido pelo artigo 210º, nº 1 e nº 2, alínea b), por referência aos artigos 204º, nº 1, alínea a), e 202º, alínea a), do Código Penal); 1 (um) crime de roubo (previsto e punido pelo artigo 210º, nº 1, do Código Penal) e 1 (um) crime de detenção de arma proibida (previsto e punido pelos artigos 2º, nº 1, alínea m), 3º, nº 1 e nº 2, alínea ab), e 86º, nº 1, alínea d), da Lei nº 5/2006, de 23/2) - cfr. fls. 32 a 47.

Por despacho do Juiz de Instrução Criminal datado de 08/03/2022 foi reexaminada a medida de coação de prisão preventiva aplicada ao arguido AA, nos termos do artigo 213º, nº 1, alínea b) do Código de Processo Penal e a mesma mantida (cfr. fls. 48 a 52).

Por despacho proferido em 21/04/2022 pelo Juiz 1 do Juízo Central Criminal de Almada, foi recebida a acusação deduzida pelo Ministério Público e foi reexaminado o estatuto processual do arguido, mantendo-se a medida de coação de prisão preventiva, por se verificarem os respetivos pressupostos de facto e de direito e face a não se mostrar ultrapassado o respetivo prazo máximo dessa medida de coação de prisão preventiva, o qual é de 1 (um) ano e 6 (seis) meses, atento o disposto no artigo 215º, nº 1, alínea c) e nº 2 do Código de Processo Penal (cfr. fls. 53 a 56).

Destarte, encontra-se fortemente indiciada nos autos, desde o momento em que lhe foi aplicada a medida de coação de prisão preventiva, a prática pelo arguido AA de crimes que integram o conceito de criminalidade violenta (cfr. artigo 1º, alínea j) do Código de Processo Penal) e, desde a dedução da acusação, ainda a prática de crimes que integram o conceito de criminalidade especialmente violenta (cfr. artigo 1º, alíneas j) e l) do Código de Processo Penal), pelo que os prazos máximos de duração da prisão preventiva aplicáveis são os previstos no artigo 215º, nº 1 e 2 do Código de Processo Penal, os quais não foram ultrapassados até ao momento em que foi deduzida a acusação ou até à decisão a proferir em 1ª instância.

Termos em que se informa, em obediência ao preceituado no artigo 223º, nº 1 do Código do Processo Penal, que, pelos motivos expostos, se mantém a medida de coação de prisão preventiva aplicada ao arguido AA.

3. Convocada a Secção Criminal, notificado o Ministério Público e a Ex.ma Defensora do requerente, procedeu-se à audiência, de harmonia com as formalidades legais, após o que o Tribunal reuniu e deliberou como segue (artigo 223º, nº 3, 2.ª parte, do CPP):

II - Fundamentação

4. Das peças processuais juntas aos autos e do teor da informação prestada nos termos do art.223º do Código de Processo Penal, emergem apurados os seguintes factos relevantes para a decisão da providência requerida:

(i) - O arguido AA foi detido em 10/09/2021;

(ii) - No dia 11 de setembro de 2021, o arguido AA foi submetido a 1º interrogatório judicial e, no seu final, por despacho proferido na mesma data, a Juíza de Instrução Criminal, considerando que existem forte indícios da prática, em coautoria, de dois crimes de roubo, p. e p. pelo art.210º, nº 1 do Código Penal, e se verificarem os perigos de perturbação grave da ordem e tranquilidade públicas e de continuação da atividade criminosa a que alude o art.204º, alínea c) do Código de Processo Penal, determinou que o arguido aguardasse os ulteriores termos  processuais sujeito à medida coativa de prisão preventiva, tendo sido conduzido ao Estabelecimento Prisional.

(iii) - Por despachos dos Juízes de Instrução Criminal datados de 2 de dezembro de 2021 e de 28 de fevereiro de 2022, foi reapreciada e mantida essa medida de coação aplicada ao arguido AA.

(iv) - Em 7 de março de 2022 foi deduzida acusação contra o arguido AA, tendo-lhe sido imputada a prática, em coautoria material, de 1 (um) crime de furto qualificado (previsto e punido pelos artigos 203º, nº 1, e 204º, nº 1, alínea a), por referência ao artigo 202º, alínea a), do Código Penal); 1 (um) crime de roubo (previsto e punido pelo artigo 210º, nº 1 e nº 2, alínea b), por referência aos artigos 204º, nº 1, alínea a), e nº 2, alínea f), e 202º, alínea a), do Código Penal, e ao artigo 4º do D.L. nº 48/95, de 15/3); 1 (um) crime de detenção de arma proibida (previsto e punido pelo artigo 86º, nº 1, alínea c), da Lei nº 5/2006, de 23/2), 1 (um) crime de roubo (previsto e punido pelo artigo 210º, nº 1 e nº 2, alínea b), por referência aos artigos 204º, nº 1, alínea a), e 202º, alínea a), do Código Penal); 1 (um) crime de roubo (previsto e punido pelo artigo 210º, nº 1, do Código Penal) e 1 (um) crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelos artigos 2º, nº 1, alínea m), 3º, nº 1 e nº 2, alínea ab), e 86º, nº 1, alínea d), da Lei nº 5/2006, de 23/2, ordenando-se, no seu final, a notificação do arguido e da sua I. Defensora e a remessa dos autos ao JIC para reexame dos pressupostos da prisão preventiva nos termos do art. 213º, nº 1, al. b), do Código de Processo Penal;

(v) - Por despacho do Juiz de Instrução Criminal, datado de 08 de março de 2022 foi reexaminada a medida de coação de prisão preventiva aplicada ao arguido AA, nos termos do artigo 213º, nº 1, alínea b) do Código de Processo Penal e mantida a mesma;

(vi) - Por despacho proferido em 21 de abril de 2022, pelo Juiz 1 do Juízo Central Criminal de Almada, foi recebida a acusação deduzida pelo Ministério Público e reexaminado o estatuto processual do arguido, decidiu-se manter a medida de coação de prisão preventiva, por se verificarem os respetivos pressupostos de facto e de direito e não se mostrar ultrapassado o respetivo prazo máximo dessa medida de coação de prisão preventiva, o qual é de 1 (um) ano e 6 (seis) meses, atento o disposto no artigo 215º, nº 1, alínea c) e nº 2 do Código de Processo Penal.

5. Questão objeto do habeas corpus

Saber se o peticionante se encontra ilegalmente em prisão preventiva, nos termos do art. 222º, nº 2, al. c), do Código de Processo Penal, porquanto se mantém para além do prazo máximo de 4 meses fixado no art. 215º, nº 1, alínea a) do C.P.P. e o recebimento da acusação só ocorreu passados 6 meses desde a determinação da prisão preventiva, devendo, consequentemente, ser imediatamente restituído à liberdade.

6. Direito

Delimitado o objeto da providência requerida pelo arguido, importa tecer breves considerações sobre este instituto jurídico e as normas que fundamentam o pedido visando a sua imediata restituição à liberdade (artigos 27º, 28º, nº 4, 31º, nº 1, 32º, nº 1 da C.R.P. e artigos 215º, 217º e 222º, nºs 1 e 2, al. c), do C.P.P.).

6.1. A liberdade física, liberdade de movimentos, expressão da dignidade da pessoa humana é, desde tempos longínquos, objeto de ilegalidades e violações por abuso de poder.

Como garantia do direito à liberdade física das pessoas e à segurança, o art. 27º, da Constituição da República Portuguesa, formula o princípio de que «todos têm direito à liberdade e à segurança» (nº 1), «e ninguém pode ser total ou parcialmente privado da liberdade, a não ser em consequência de sentença judicial condenatória pela prática de ato punido por lei com pena de prisão» (nº 2).

Excetua-se deste princípio, a privação da liberdade pelo tempo e nas condições que a lei determinar, nomeadamente, no caso de «prisão preventiva por fortes indícios de prática de crime doloso a que corresponda pena de prisão cujo limite máximo seja superior a três anos.» (art. 27º, nº 3, al. b) da C.R.P.).

Em reforço do mesmo princípio, o art. 28º da C.R.P. estatui, designadamente, que «A prisão preventiva tem natureza excecional, não sendo decretada nem mantida sempre que possa ser aplicada caução ou outra medida mais favorável prevista na lei.» (nº 2) e que «A prisão preventiva está sujeita aos prazos estabelecidos na lei.» (nº 4).

A prisão ou detenção é ilegal quando ocorra fora dos casos previstos nestes preceitos constitucionais.

Para pôr termo à situação de ilegalidade da prisão, o art. 31º da Constituição da República Portuguesa, prevê, como providência específica, o «habeas corpus», dispondo o seguinte:

«1. Haverá habeas corpus contra o abuso de poder, por virtude de prisão ou detenção ilegal, a requerer perante o tribunal competente.

 2. A providência de habeas corpus pode ser requerida pelo próprio ou por qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos.

 3. O juiz decidirá no prazo de oito dias o pedido de habeas corpus em audiência contraditória.».

O abuso de poder, referido nesta norma constitucional, traduz uma atuação especialmente gravosa no âmbito dessa ilegalidade, referindo o deputado Barbosa de Melo, em sede de Comissão Eventual para a Revisão Constitucional, no âmbito da IV Revisão Constitucional, que a ideia por trás da fórmula consagrada no art. 31º, nº 1, “…é que não basta que a prisão viole um aspeto menor, é necessário a violação de um princípio essencial da lei. Uma ilegalidade que é uma mera irregularidade não justifica o habeas corpus que é uma providência excecional.”.[3]

Anotando este art. 31º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa, escrevem Gomes Canotilho e Vital Moreira:

Na sua versão atual, o habeas corpus consiste essencialmente numa providência expedita contra a prisão ou detenção ilegal, sendo, por isso, uma garantia privilegiada do direito à liberdade, por motivos penais ou outros, garantido nos arts. 27º e 28º (...).

A prisão ou detenção é ilegal quando ocorra fora dos casos previstos no art. 27º, quando efetuada ou ordenada por autoridade incompetente ou por forma irregular, quando tenham sido ultrapassados os prazos de apresentação ao juiz ou os prazos estabelecidos na lei para a duração da prisão preventiva, ou a duração da pena de prisão a cumprir, quando a detenção ou prisão ocorra fora dos estabelecimentos legalmente previstos, etc..

Sendo o único caso de garantia específica e extraordinária constitucionalmente prevista para a defesa dos direitos fundamentais, o habeas corpus testemunha a especial importância constitucional do direito à liberdade”.

Ainda na doutrina constitucional, Jorge Miranda e Rui Medeiros, em anotação ao art. 31º, nº 1, da Lei Fundamental, defendem, sobre a qualificação de «providência extraordinária», atribuída ao habeas corpus, que esta “…não significa e não equivale á excecionalidade. Juridicamente excecional é a privação da liberdade (pelo menos, fora dos termos e casos de cumprimento de pena ou medida de segurança) e nunca a sua tutela constitucional. A qualificação como providência extraordinária será de assumir no seu descomprometido significado literal de providência para além (e, nesse sentido, fora – extra) da ordem de garantias constituída pela validação judicial das detenções e pelo direito ao recurso de decisões sobre a liberdade pessoal.”. [4]

Na conformação constitucional e no seu desenho normativo, o habeas corpos é uma providência judicial urgente. “Visa reagir, de modo imediato e urgente, contra a privação arbitrária da liberdade ou contra a manutenção de uma prisão manifestamente ilegal” decretada ou mantida com violação “patente e grosseira dos seus pressupostos e das condições da sua aplicação”.[5]

A natureza que a providência assume na jurisprudência tradicional do STJ, tem sido perfilhada, no essencial, pelo Tribunal Constitucional.[6] 

Na concretização do art. 32º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa - que estabelece a cláusula geral de que «O processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso» - o legislador manteve, no atual Código de Processo Penal de 1987, o regime diferenciado de habeas corpus, por detenção ilegal (art. 220º) e, por prisão ilegal (art. 222º), que advém do Decreto-Lei nº 35.043, de 20 de outubro de 1945. 

6.2. Dando expressão ao art.31º da Constituição da República Portuguesa, o art. 222º, nº 2, do Código de Processo Penal, estabelece como pressupostos de habeas corpus, em virtude de prisão ilegal:

«a) Ter sido efetuada ou ordenada por entidade incompetente;

b) Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou

c) Manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial.».

No seguimento do entendimento do habeas corpus, como uma providência extraordinária, a jurisprudência deste Supremo Tribunal vem considerando que os fundamentos do «habeas corpus» são aqueles que se encontram taxativamente fixados na lei, não podendo esse expediente ser utilizado para a sindicância de outros motivos suscetíveis de pôr em causa a regularidade ou a legalidade da prisão.[7]

Em matéria de prazos da prisão preventiva, os prazos a considerar são os vertidos do art. 215º do CPP, sob a epígrafe «prazos de duração máxima da prisão preventiva», onde se dispõe, nomeadamente, e com interesse para o presente caso:

«1- A prisão preventiva extingue-se quando, desde o seu início, tiverem decorrido:

a) Quatro meses sem que tenha sido deduzida acusação;

b) Oito meses sem que, havendo lugar a instrução, tenha sido proferida decisão instrutória;

c) Um ano e dois meses sem que tenha havido condenação em 1.ª instância;     

2- Os prazos referidos no número anterior são elevados, respetivamente, para seis meses, dez meses, um ano e seis meses e dois anos, em casos de terrorismo, criminalidade violenta ou altamente organizada, ou quando se proceder por crime punível com pena de prisão de máximo superior a 8 anos, ou por crime:

(…).».

Os prazos de prisão preventiva aqui previstos são válidos para as diversas fases processuais nele consideradas.

Como consigna o acórdão do STJ de 16/03/2011, na jurisprudência uniforme deste Supremo Tribunal, são estes os prazos a que o art. 222º, nº 2 alínea c) do C.P.P. se refere para alegar excesso de prazo de prisão preventiva e não quaisquer outros prazos que corram durante o decurso da prisão preventiva, como os de reexame dessa medida a que alude o art. 213º do mesmo Código.[8]

É também jurisprudência constante do Supremo Tribunal de Justiça, o entendimento de que o prazo máximo de duração da prisão preventiva a que se reporta o art. 215º, nº 1 alínea a) do Código de Processo Penal, conta-se desde a data do início daquela medida coativa, caducando na data da dedução da acusação – que não da data em que a acusação foi notificada ao arguido ou ao respetivo mandatário.

Sintetizando o sentido desta jurisprudência, consigna-se no acórdão deste Supremo Tribunal, de 14 de janeiro de 2021, que: “Tanto resulta, desde logo, do elemento literal que pode extrair-se da referência, na alínea a) do nº 1 do artigo 215º, do CPP, à dedução da acusação – ademais replicado nas restantes alíneas (proferida decisão instrutória, tenha havido condenação) do mesmo segmento normativo.

14. Todos aqueles casos se reportam à data da prática do acto processual ou da prolacção da decisão (acusação, decisão instrutória, condenação), que não ao momento em que aquela chega ao conhecimento do arguido ou do respectivo mandatário.

15. E assim, sob pena de, em caso de pluralidade de arguidos, o prazo se reportar a datas diversas, consoante os diferentes momentos de recepção da decisão, de, eximindo-se o destinatário ao recebimento da notificação, aquele prazo se prolongar indevida e indefinidamente, e mesmo de se fazer recair sobre os Serviços o cumprimento de um ónus que apenas pode imputar-se ao magistrado.

16. Neste sentido se pronunciaram, designadamente, os acórdãos, do Supremo Tribunal de Justiça, de 10 de Dezembro de 2008 (processo P3971, disponível, como os mais citandos sem menção de origem, na base de dados do IGFEJ), bem como os (ali citados) acórdãos, do Supremo Tribunal de Justiça, de 11 de Outubro de 2005 (Coletânea de Jurisprudência - STJ, 2005-3-186), de 13 de Fevereiro de 2008 (processo 522/08), e, por mais recente, o acórdão de 29 de Outubro de 2020 (processo 96/20.9PHOER-B.S1), vindo ademais tal interpretação a passar o teste da constitucionalidade – cf. acórdãos, do Tribunal Constitucional, nºs 404/2005, 208/2006, 2/2008 e 280/2008 (disponíveis na base de dados do TC) –, designadamente por referência aos preceitos constitucionais invocados pelo requerente.”.[9]

Por fim, importa anotar que o arguido sujeito a prisão preventiva é posto em liberdade logo que a medida se extinguir, salvo se a prisão dever manter-se por outro processo (art.217º, nº1, do C.P.P).

7. Retomando o caso concreto.

É pacifico que o arguido ficou sujeito à medida coativa de prisão preventiva, no dia 11 de setembro de 2021, por despacho judicial, na sequência de 1º interrogatório judicial, considerando que existiam forte indícios da prática, em coautoria, de dois crimes de roubo, p. e p. pelo art. 210º, nº 1, do Código Penal.

Cada um dos crimes de roubo imputados ao arguido, naquele despacho, tem uma moldura penal de 1 a 8 anos de prisão.

Prima facie, o prazo máximo da prisão preventiva é de 4 meses, sem que tenha sido proferida acusação, nos termos do art. 215º, nº 1, alínea a), do Código de Processo Penal e é este prazo que o peticionante invoca a seu favor para concluir que se encontra ilegalmente preso, uma vez que a acusação não terá sido deduzida antes de terminar aquele prazo, pois só foi recebida passados 6 meses.

Diversa é a perspetiva da Ex.ma Juíza que presta a informação ao abrigo do disposto no art. 223º, nº 1 do Código de Processo Penal, pois os dois crimes de roubo que determinaram a aplicação da medida coativa de prisão preventiva ao ora peticionante integravam, até à dedução da acusação, o conceito de criminalidade violenta a que alude o art. 1º, alínea j), do Código de Processo Penal) e, desde a dedução da acusação, os crimes que lhe são imputados integram ainda o conceito de criminalidade especialmente violenta , a que alude art. 1º, alíneas l) do Código de Processo Penal, pelo que os prazos máximos de duração da prisão preventiva aplicáveis são os previstos no artigos 215º, nºs 1 e 2 do mesmo Código, os quais não foram ultrapassados até ao momento em que foi deduzida a acusação ou até à decisão a proferir em 1ª instância.

Vejamos.

O art. 1º do Código de Processo Penal, sob a epígrafe «Definições legais» estabelece, com interesse para a presente decisão:

«Para efeitos do disposto no presente Código considera-se:

(…)

j) 'Criminalidade violenta' as condutas que dolosamente se dirigirem contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou a autoridade pública e forem puníveis com pena de prisão de máximo igual ou superior a 5 anos;

l) 'Criminalidade especialmente violenta' as condutas previstas na alínea anterior puníveis com pena de prisão de máximo igual ou superior a 8 anos;

(…)».

É o bem jurídico protegido no tipo criminal que, por força do disposto na alínea j), deste art.1º, define se as condutas do agente que dolosamente se dirigiram contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou a autoridade pública, integram, ou não, o conceito de “Criminalidade violenta”.

O bem jurídico é a expressão do interesse da pessoa ou da comunidade, na manutenção ou integridade de um certo estado, objeto ou bem em si mesmo socialmente relevante e por isso juridicamente reconhecido como tal. Os bens jurídicos são concretizações dos valores constitucionais, expressa ou implicitamente ligados aos direitos e deveres fundamentais e à ordenação social, política e económica. [10]

Pese embora na sistematização do Código Penal, o crime de roubo, p. e p. pelo artigo 210º, se enquadre na categoria dos crimes contra o património (Título II, do Livro II - Parte especial), e mais especificamente, dos crimes contra a propriedade (Capítulo II – artigos 203º a 216º), é pacifica a afirmação, na doutrina e na jurisprudência, de que o roubo é um crime complexo que ofende bens jurídicos patrimoniais e bens jurídicos pessoais.

É a dimensão pessoal protegida que confere ao crime de roubo as características que o distingue do furto, na medida em que a subtração da coisa móvel é levada a cabo com violência, física ou psíquica, que pode pôr em causa a liberdade da pessoa e a sua integridade física, com ameaça, que põe em causa a liberdade individual, e com a colocação na impossibilidade de resistir, que também ofende a liberdade individual e em certos casos a integridade física.

O tipo penal em causa é pluriofensivo, de bens patrimoniais e, essencialmente, de bens pessoais, como a integridade física do visado, que faz dele um crime comunitariamente altamente reprovável, pelo alvoroço e alarme social que origina, por atingir segmentos indefesos socialmente, jovens em idade escolar, idosos e mulheres, a que acresce o facto dos seus agentes agirem, frequentemente, em grupo, com grande poder de mobilidade.

Neste sentido, se pronunciam, na doutrina, Conceição Ferreira da Cunha, in “Código Conimbricense ao Código Penal”, Coimbra Ed., Tomo II, págs. 160 a 163; Lobo Moutinho, in “Da Unidade à Pluralidade de Crimes no Direito Penal Português, Faculdade de Direito da UC, 2005, pág. 972, e Paulo Pinto de Albuquerque, “Comentário do Código Penal” 2.ª ed. UCE, pág. 657. E, na jurisprudência, decidiram, entre outros, os acórdãos do S.T.J. de 14 de abril de 1983 (BMJ nº 326, pág. 422) e de 6 de outubro de 2021 (proc. nº 01/20.8PAVNF.S1- 3.ª Secção, in www.dgsi.pt).

Perante o exposto, consideramos que o bem jurídico nos dois crimes de roubo, p. e p. pelo art.210º do Código Penal, imputados ao ora peticionante, em coautoria, antes da acusação - um indiciariamente praticado com elevada violência física contra o corpo de BB e outro por meio de ameaça contra CC, fazendo-a recear pela sua vida e integridade física -, integra o conceito de “criminalidade violenta” previsto no art. 1º, al. j) do Código de Processo Penal.        

Atento o disposto no art. 215º, nºs 1, alínea a) e 2, do Código de Processo Penal, o prazo de duração máxima da prisão preventiva a que o arguido AA estava assim sujeito, até à dedução da acusação, era de 6 meses – e não apenas de 4 meses.

Uma vez que o arguido se encontra em prisão preventiva desde o dia 11 de setembro de 2021, esta medida coativa ter-se-ia extinguido se até ao dia 11 de março de 2022, não tivesse sido deduzida acusação.

Estando provado que em 7 de março de 2022, o Ministério Público deduziu acusação contra o arguido AA, o prazo extintivo da prisão preventiva contido no art. 215º, nºs 1, alínea a) e 2 do Código de Processo Penal, não ocorreu, ainda que a acusação possa, eventualmente, ter sido levada ao conhecimento do arguido e da sua Ex.ma Defensora após o dia 11 de março de 2022 (o que se desconhece).

Também o recebimento da acusação, mesmo que decorridos 6 meses desde a determinação da prisão preventiva, é irrelevante para o regime dos prazos de duração máxima de prisão preventiva enumerados no art. 215º, nº 1 do C.P.P., pois que, como atrás se consignou, os atos processuais relevantes para este efeito reportam-se à prolação da acusação, da decisão instrutória, da condenação ou do trânsito em julgado.

Com a dedução da acusação passaram a ser-lhe imputados, em coautoria, entre outros, três crimes de roubo, sendo um simples e dois de roubo agravado, p. e p. pelo art. 210º, nºs 1 e 2º, al. b), do Código Penal.

Sendo a moldura penal prevista, para cada dos crimes de roubo agravado, de 3 a 15 anos de prisão, a conduta do ora peticionante passou a preencher, ainda, o conceito de “criminalidade especialmente violenta”, a que alude o art.1º, alínea l), do Código de Processo Penal.

Tendo decorrido o prazo para o arguido AA requerer a instrução - uma vez que foi já sido recebida a acusação e ordenado o cumprimento do disposto nos artigos 311º-A e 311º-B do C.P.P. - o prazo máximo de prisão preventiva passa a ser de 1 ano e 6 meses até à condenação em 1º instância, nos termos do art. 215º, nºs 1, al. c) e 2, do Código de Processo Penal.  

Em suma, a medida coativa de prisão preventiva do peticionante mostra-se ordenada por entidade competente; é motivada por facto pelo qual a lei o permite; e não se mantém para além dos prazos fixados na lei, pelo que não se verificam os pressupostos para deferir o habeas corpus fixados nos artigos 31º da Constituição da República Portuguesa e 222º do Código de Processo Penal.

Inexistindo um quadro de abuso de poder, por virtude dos fundamentos de habeas corpus invocados pelo peticionante/arguido e, sendo manifestamente infundada a petição, mais não resta que indeferi-la e condenar este no pagamento da soma prevista no nº 6 do art.223º do Código de Processo Penal.

III - Decisão

Nestes termos e pelos fundamentos expostos, decidem os juízes que constituem este coletivo da 5.ª Secção Criminal, em:

 a) Indeferir o pedido de habeas corpus peticionado pelo arguido AA, nos termos do art. 223º, nº 4, alínea a), do C.P.P., por falta de fundamento bastante;

b) Condenar o peticionante, nos termos do art. 223º, nº 6, do C.P.P., no pagamento de uma soma de 6 UCs; e

 b) Condenar o mesmo peticionante nas custas do processo, fixando em 2 (duas) UCs a taxa de justiça.

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(Certifica-se que o acórdão foi  processado em computador pelo relator e integralmente revisto e assinado pelos seus signatários, nos termos do art. 94º, nº 2 do C.P.P.). 

         

Lisboa, 9 de junho de 2022

Orlando Gonçalves (Relator)

Adelaide Sequeira (Adjunta)

Eduardo Loureiro (Presidente da Secção

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[1] Por lapso manifesto escreveu-se “artigo 22º do CPP”, pois a norma reproduzida é a do art.222.º do C.P.P.
[2] O mesmo lapso manifesto volta a ser aqui cometido, ao escrever-se “Artigo 22° n° 2 alínea c) do CPP”, quando a norma em causa é o art.222.º, n.º2, alínea c), do C.P.P..
[3] Assim, Diário da Assembleia da República, de 12-9-1996, II série –RC, n.º 20, pág. 523 e Cons. Maia Costa, in “Julgar”, n.º 29, “Habeas corpus: passado, presente, futuro, pág. 238.
[4] Cf. “Constituição Portuguesa anotada”, Coimbra ed., 2005, tomo I, págs. 342/343.
[5] Cf. acórdão do STJ de 9/08/2017, in www.dgsi.pt.
[6] Cf. acórdão n.º 423/2003, Pº nº 571/2003, de 24.09.03, in www.tribunalconstitucional.pt
[7] Cf. acórdãos do STJ de 19-05-2010, CJ (STJ), 2010, T2, pág.196, e de 03-03-2021, proc. n.º 744/17.8PAESP-A.S1, in www.dgsi.pt.
[8] Cf. proc. n.º 155/10.6 JBLSB, in dgsi.pt
[9] Cf. Proc. n.º 3/20.9FCOLH-E.S1 - 5.ª Secção, in www.dgsi.pt. No mesmo sentido ainda, do presente relator e Juíza Conselheira Adjunta, o acórdão do S.T.J. de 20 dezembro de 2021, no proc. n.º 543/19.2PALGS-D.S1.- 5.ª Secção.  
[10] Cf. Figueiredo Dias, in “Direito Penal – Parte Geral” Tomo I, Coimbra Editora, 2.ª edição, págs. 114 e 115.