Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1481/19.4T8PVZP1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: MARIA DA GRAÇA TRIGO
Descritores: CONTRATO DE SEGURO
SEGURO DE VIDA
INVALIDEZ
INTERPRETAÇÃO
DEVER DE COMUNICAÇÃO
DEVER DE ESCLARECIMENTO PRÉVIO
CLÁUSULA CONTRATUAL GERAL
NULIDADE DE CLÁUSULA
EXCLUSÃO DE CLÁUSULA
ÓNUS DA PROVA
BOA FÉ
RECURSO DE REVISTA
Data do Acordão: 09/18/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :

I. Se a definição do conceito de invalidez absoluta e definitiva, constante de determinada cláusula de um contrato de seguro, foi excluída dos contratos dos autos por o seu significado não ter sido devidamente explicado ao aderente, considerando-se que, sem essa explicação, o mesmo não poderia contar que a invalidez absoluta e definitiva assim fosse definida, então não poderá admitir-se que, na interpretação das demais cláusulas segundo os critérios gerais da interpretação das declarações negociais, se atribua a essa expressão o sentido da definição excluída.

II. Sufraga-se a orientação jurisprudencial deste STJ de acordo com a qual, para preencher o conceito de invalidez absoluta e definitiva não definido no contrato, releva “a invalidez (…) que, em concreto, se traduz em restrições que, atendendo aos esforços, capacidades e qualificações específicas da profissão exercida, inviabilizam sem mais a manutenção da profissão ou outra com rendimentos equiparáveis”.

III. A alegação e prova da existência de “um desequilíbrio nas prestações gravemente atentatório da boa fé” para efeitos de declaração da nulidade dos contratos ao abrigo do art. 9.º, n.º 2, da LCCG, cabe à seguradora (cfr. art. 342.º, n.º 1, do CC) e implica a alegação e prova dos quantitativos em causa; sem isso, não é possível apurar da existência ou não de um desequilíbrio entre as prestações que seja de tal modo significativo que atente contra o princípio da boa fé.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


I – Relatório

1. AA instaurou a presente acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra Lusitânia Vida – Companhia de Seguros, S.A. e Caixa Económica Montepio Geral, S.A., pedindo que:

“a) as Rés sejam condenadas a reconhecer a nulidade da cláusula 2ª nº 1 das condições gerais das apólices;

b) a Ré seguradora seja condenada a pagar-lhe:

i) a quantia de € 160.000 correspondente ao capital de ambas as apólices;

ii) os juros de mora vencidos no valor de € 13.238,36 e dos que se vencerem até integral pagamento.

c) para o caso de se entender que a Ré seguradora não está obrigada a pagar-lhe os juros peticionados, pede que a mesma seja condenada a pagar-lhe quantia equivalente ao acréscimo de despesas e encargos que teve de suportar junto do Banco Réu com o pagamento das prestações dos financiamentos bancários, vincendas na data em que participou à seguradora o sinistro, quantia a liquidar em momento posterior, tendo em conta que os referidos financiamentos ainda se mantêm em curso de pagamento prestacional..

Alega, em síntese, que, por intermédio do banco réu e por exigência deste, propôs à ré seguradora a sua (do autor) adesão a dois contratos de seguro, pelo prazo de cinco anos, com início em 12 de Janeiro de 2015, com o capital de € 80.000,00 cada, cobrindo o risco vida e invalidez absoluta e permanente, para garantia de dois financiamentos contratados por uma empresa de que é sócio, tendo como beneficiários o banco até ao valor do capital em dívida, e a si próprio ou os seus herdeiros relativamente ao remanescente; as propostas foram aceites pela ré tendo sido emitidas as apólices n.º ........34 e n.º ........37.

Acrescenta que, em 16 de Abril de 2015, encontrava-se no porto de pesca de ... em actividade de apoio em terra à empresa de que é co-titular, no cais onde havia acostado a sua embarcação, quando um veículo o atingiu, derrubou e lançou para o interior daquela, caindo sobre o seu corpo, especialmente sobre as suas pernas; foi hospitalizado, submetido a diversos tratamentos cirúrgicos, designadamente, osteotaxia do fémur esquerdo e da tíbia direita, bypass vascular fémuro-tibial esquerdo e encavilhamento fémur esquerdo e da tíbia direita, ficou internado 110 dias, passou depois a ser assistido em regime ambulatório pela seguradora de acidentes laborais, voltando a ser submetido a outras cirurgias e fisioterapia; após a alta em 2 de Novembro de 2016, apresenta sequelas que discrimina, tendo-lhe sido atribuída IPP de 88,25% e considerado completamente incapaz para o exercício da actividade profissional habitual, carecendo de ajuda de terceira pessoa para algumas actividades.

Participou os factos aos réus, mas a seguradora comunicou-lhe que a situação não se enquadra no artigo 2.º, ponto 1, das Condições Especiais do seguro que considera que a pessoa segura se encontra no estado invalidez absoluta e definitiva se estiver totalmente incapaz para o exercício de qualquer actividade lucrativa e necessite do recurso sistemático à assistência a uma terceira pessoa para os normais actos da vida humana (comer, beber, lavar-se, entre outros), não sendo possível qualquer melhoria segundo os conhecimentos médicos actuais, recusando, por isso, o pagamento.

Defende que o conteúdo e a interpretação que a ré faz de tal cláusula são abusivos e desproporcionais, implicando que o autor se encontrasse em vida vegetativa, desmentindo a protecção que o seguro visa conceder ao cliente e ao seu negócio e alegando que o seu significado não lhe foi explicado nem lhe foi dada hipótese de negociar a dita cláusula.

Refere que é previsível que os financiamentos se encontrem totalmente pagos ou amortizados no momento em que transitar a sentença a proferir nos autos, pelo que, a essas quantias, deverão acrescer juros à taxa máxima desde 9 de Setembro de 2017, momento em que a ré lhe comunicou que se recusava a cumprir os contratos de seguro, que calcula em €13.238,36 ou o equivalente ao acréscimo de despesas.

2. O réu banco contestou, admitindo a adesão do autor aos contratos de seguro titulados pelas apólices que identificou, mas contrapôs que lhe entregou as condições gerais, particulares e especiais das mesmas e, previamente, esclareceu as suas dúvidas e lhe explicou o conteúdo da proposta de adesão e das opções de cobertura, só tendo o autor assinado depois de se considerar esclarecido; refere que a dita cláusula está redigida de forma clara e objectiva e que foi explicada ao autor.

3. A ré seguradora contestou, contrapondo que, desde a subscrição do contrato, o autor conhecia a cobertura nos termos definidos nas condições que juntou aos autos e que a cláusula em questão lhe foi comunicada; reconheceu que a exigência de assistência de terceira pessoa constante da cláusula deve ser afastada, não contesta que o demandante padeça de uma incapacidade, mas não resulta que a mesma se refira ao exercício de toda e qualquer actividade lucrativa.

Refere que o declaratário médio não pode deixar de entender que a garantia de invalidez absoluta e definitiva se refere a todo e qualquer trabalho; entende que, na hipótese de anulação das condições de subscrição, que constituíram o pressuposto essencial da assunção do risco, o contrato não pode subsistir.

Após prolação de despacho de convite ao aperfeiçoamento, deduziu reconvenção pedindo que, caso se considere procedente a nulidade do clausulado das apólices, os contratos sejam declarados globalmente nulos, ficando desobrigada da prestação contratual de pagamento do capital seguro, alegando que, quando analisou a subscrição da modalidade dos seguros, considerou a probabilidade de ocorrência dos dois eventos e calculou o respectivo custo, sendo o valor para a invalidez residual; ao passo que, para poder garantir o pagamento na eventualidade de o autor ficar incapaz para o exercício da actividade habitual, este teria de propor outra modalidade, pagar o prémio correspondente a uma taxa autónoma para cada cobertura; sendo que, em tal hipótese, sempre teria a ré seguradora de analisar outros pressupostos, designadamente, os antecedentes clínicos e a profissão habitual do autor.

4. O autor replicou.

5. A reconvenção veio a ser admitida.

6. Por sentença de 23.07.2024 foi proferida a seguinte decisão:

“A) julgando a ação parcialmente provada e procedente:

a) reconhece a nulidade da cláusula identificada no ponto 5) da fundamentação de facto, no segmento “e necessite de recurso à assistência de uma terceira pessoa para os atos ordinários da vida humana”;

b) condena as Rés Lusitânia Vida – Companhia de Seguros, S.A. e Caixa Económica Montepio Geral, S.A. nesse reconhecimento;

c) absolve as demandas dos pedidos formulados pelo Autor AA sob as alíneas b) e c) identificadas no relatório;

B) julga prejudicada a apreciação do pedido reconvencional formulado pela Ré Lusitânia Vida – Companhia de Seguros, S.A.”. [bold nosso]

7. Inconformado, interpôs o autor recurso de apelação para o Tribunal da Relação do Porto, pedindo a alteração da decisão relativa à matéria de facto e a reapreciação da decisão de direito.

Por acórdão de 25.03.2025 foi decidido o seguinte:

“Pelo exposto, acordam os Juízes desta secção cível em julgar parcialmente procedente a apelação e, em consequência, alterando a sentença apelada, em condenar a ré apelada Lusitânia a pagar ao autor apelante a quantia de cento e sessenta mil euros (160.000,00€), a acrescer dos juros calculados à taxa anual de 4%, desde 5/09/2017 até integral pagamento e sobre o valor dos capitais que em cada momento fossem o remanescente àqueles que ao Montepio, enquanto primeiro beneficiário, seriam devidos.

Custas por autor e ré Lusitânia na proporção do decaimento.”.

8. Vem a ré Lusitânia Vida, S.A. interpor recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, formulando as seguintes conclusões:

“A. CONCEITO DE IAD – ÂMBITO DA COBERTURA DAS APÓLICES DOS AUTOS

I. O Tribunal da Relação do Porto, em virtude de ter considerado que não foram cumpridos os deveres de comunicação e informação, também excluiu dos contratos de seguro dos autos a cláusula que definia o conceito de Invalidez Absoluta e Definitiva.

II. Com efeito, entendeu que, para um declaratário normal, tal conceito se considera preenchido quando a invalidez se traduza em ‘restrições que, atendendo aos esforços, capacidades e qualificações específicas da profissão exercida, inviabilizam sem mais a manutenção da profissão ou outra com rendimentos equiparáveis’.

III. A Recorrente não pode, porém, compreender nem aceitar o conceito de Invalidez Absoluta e Definitiva que veio a ser adotado pelo Venerando Tribunal Recorrido.

IV. Como deflui dos factos provados 1., 2., 3., 5., 11., 19., 20, 21. e 22. e ainda do facto não provado 15., ambos os contratos de seguro dos autos tinham como coberturas a “morte” e a “invalidez absoluta e definitiva”, sendo que foi com base na probabilidade da ocorrência de um destes dois eventos, e apenas destes, que a Recorrente fez a sua análise de risco e calculou o prémio a pagar.

V. Resulta ainda do facto provado 11 e do facto não provado 15. que o Recorrido aceitou as coberturas oferecidas por estes contratos de seguro, nos seus exatos termos.

VI. Nos termos da jurisprudência unânime do Tribunal da Relação e deste Venerando Supremo Tribunal de Justiça, o declaratário médio não pode deixar de entender que a garantia de Invalidez Absoluta e Definitiva se refere a todo e qualquer trabalho, que não apenas ao trabalho habitual da pessoa segura.

VII. Aliás, este conceito é exatamente o adotado pelo nosso legislador, no Decreto-Lei n.º 187/2007, de 10 de maio, diploma no qual destrinçou categoricamente as situações de invalidez relativa das de invalidez absoluta - vd. artigos 13°, 14° e 15°.

VIII. Pelo que, também por esta razão, não podia o Tribunal da Relação do Porto ter adotado o entendimento vertido no douto acórdão de que se recorre.

IX. Termos em que, ao decidir como decidiu, o acórdão recorrido interpretou e aplicou incorretamente as apólices dos autos, os artigos 10.º e 12.º do DL n.º 446/85, de 25 de outubro, o artigo 236.º do Código Civil e ainda os artigos 13.º, 14.º e 15.º do Decreto-Lei n.º 187/2007, de 10 de maio.

X. Deve, assim, o acórdão recorrido ser revogado e substituído por outro que assevere que o declaratário médio não pode deixar de entender que a garantia de Invalidez Absoluta e Definitiva se refere a todo e qualquer trabalho, que não apenas ao seu trabalho habitual.

B. SITUAÇÃO CLÍNICA CONCRETA DO RECORRIDO

XI. Da matéria de facto provada e da prova pericial junta aos autos, resulta absolutamente cristalino que o Recorrido não se encontra totalmente incapaz para o exercício de qualquer atividade lucrativa, sendo que o seu atual perfil funcional será compatível com a ocupação de um posto de trabalho cujo conteúdo funcional envolva a atividade dos membros superiores, mas sem grande exigência física, como seja, porteiro de edifícios ou rececionista – vd. factos provados 35., 36., 37, relatório de “Avaliação da Capacidade de Trabalho e de Ganho e do Potencial de Reabilitação e Reintegração Profissional e da Necessidade de Produtos de Apoio”, realizado pelo Centro de Reabilitação Profissional de ..., junto aos autos em 04/02/2022 e relatório final de “Perícia de Avaliação do Dano Corporal em Direito Civil”, elaborado pelo INML, junto aos autos a 15/12/2022.

XII. No entanto, o Tribunal da Relação do Porto entendeu que o exercício de tais atividades profissionais, identificadas pelo Centro de Reabilitação Profissional de ..., exigem disponibilidades físicas que o Recorrido não tem.

XIII. Impunha-se nestes autos saber se o Recorrido estava numa situação de incapacidade para o exercício de toda e qualquer profissão ou trabalho.

XIV. Tal resposta assenta em critérios técnicos, científicos e especiais que, como bem entendeu o Tribunal da Relação do Porto, só podem ser aferidos através de prova pericial.

XV. Da prova pericial realizada e da matéria de facto provada resulta que o Recorrido não está totalmente incapaz para o exercício de qualquer atividade lucrativa.

XVI. Pelo que o Tribunal Recorrido jamais poderia considerar que o risco tem-se por verificado.

XVII. Termos em que, ao decidir como decidiu, o acórdão recorrido interpretou e aplicou incorretamente as apólices dos autos, os artigos 10.º e 12.º do DL n.º 446/85, de 25 de outubro e o artigo 236.º do Código Civil.

XVIII. Deve, assim, o acórdão recorrido ser revogado e substituído por outro que declare que a invalidez de que o Recorrido é portador não se encontra coberta pelos contratos de seguro dos autos, absolvendo-se a Recorrente LUSITANIA VIDA do pedido.

C. VERIFICAÇÃO DO RISCO. SURGIMENTO DA OBRIGAÇÃO DA RECORRENTE

XIX. Jamais poderia o Tribunal Recorrido ter julgado como verificado o risco, atendendo ao sentido real que um declaratário normal daria ao conceito de IAD e à concreta situação clínica em que se encontra o Recorrido.

XX. De todo o modo, considerando que o Tribunal da Relação do Porto também decidiu excluir dos contratos de seguro dos autos a cláusula que definia o conceito de IAD e que o considera preenchido quando a invalidez se traduza em ‘restrições que, atendendo aos esforços, capacidades e qualificações específicas da profissão exercida, inviabilizam sem mais a manutenção da profissão ou outra com rendimentos equiparáveis’, impunha-se apreciar a validade dos contratos de seguro em globo.

XXI. Como resulta da matéria de facto provada, os contratos de seguro dos autos apenas previam as coberturas (i) MORTE e (ii) INVALIDEZ ABSOLUTA E DEFINITIVA.

XXII. Deflui ainda da matéria de facto provada que, neste caso, a Recorrente apenas teve em consideração, para efeitos de análise do risco e cálculo do prémio, as referidas coberturas – vd. factos provados 1., 2., 3., 5., 11., 19., 20., 21. e 22

XXIII. Nos contratos de seguros dos autos, as duas coberturas contratadas e aceites pelas Partes – “MORTE” e “INVALIDEZ ABSOLUTA E DEFINITIVA” – são indissociáveis, pelo que caso se pretendesse garantir o pagamento de um capital na eventualidade de ficar incapaz para o exercício da atividade habitual, o Recorrido teria que: (i) ter proposto e subscrito outra modalidade de contrato de seguro; (ii) pagar o prémio correspondente a esse produto e (iii) a Recorrente teria que ter analisado outros pressupostos que, não relevando para o tipo de contrato de seguro celebrado, não foram analisados.

XXIV. São as condições da apólice, no seu conjunto, que refletem i) a vontade das Partes no momento da subscrição do contrato, ii) a sua exata posição jurídica, e iii) as concretas prestações a que cada uma das Partes se vincula, pelo que a nulidade de uma delas altera todos estes fatores.

XXV. Caso os contratos de seguro dos autos não sejam declarados nulos em globo e, a par, se mantenha o conceito de IAD acolhido pelo Tribunal da Relação do Porto, a Recorrente ficará vinculada a contratos cujos critérios nucleares para a análise do risco não foram considerados na formação da sua vontade de contratar.

XXVI. Esta solução impõe um sério e oneroso desequilíbrio nas prestações a satisfazer pela Recorrente face à contrapartida do prémio cobrado, o que é gravemente atentatório da boa fé.

XXVII. Termos em que, ao decidir como decidiu, o acórdão recorrido interpretou e aplicou incorretamente as apólices dos autos e o artigo 9.º do DL n.º 446/85, de 25 de outubro.

XXVIII. Assim, caso se mantenha o entendimento do conceito de Invalidez Absoluta e Definitiva adotado pelo Tribunal da Relação do Porto, deve o acórdão recorrido ser revogado e substituído por outro que declare a nulidade, em globo, dos contratos de seguro dos autos, absolvendo-se a Recorrente do pedido.”.

9. O autor contra-alegou, pugnando pela manutenção da decisão do acórdão recorrido.

II – Objecto do recurso

Tendo em conta o disposto no n.º 4 do art. 635.º do Código de Processo Civil, o objecto do recurso delimita-se pelo conteúdo da decisão recorrida e pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso.

Deste modo, o presente recurso tem como objecto as seguintes questões (por ordem de precedência da sua apreciação):

• Âmbito da cobertura do contrato de invalidez em função do conceito de invalidez absoluta e definitiva a adoptar;

• Consequências da exclusão da cláusula delimitadora do risco de invalidez;

• Verificação do risco coberto pelos seguros celebrados entre as partes.

III – Fundamentação de facto

Factos dados como provados:

1. Em 4 de Dezembro de 2014 o autor assinou proposta de seguro, com o nº .....94 denominada ‘proteção negócio individual empresas’ no balcão de ... da CEMG com a cobertura de pagamento do capital seguro de 80.000€ à data do sinistro em caso de morte ou invalidez absoluta e definitiva, mediante o pagamento de prémio mensal, por referência ao empréstimo com o nº ...........92-7, por cinco anos.

2. Em 4 de Dezembro de 2014 o autor assinou proposta de seguro, com o nº .....94 denominada ‘proteção negócio individual empresas’ no balcão de ... da CEMG com a cobertura de pagamento do capital seguro de 80.000€ à data do sinistro em caso de morte ou invalidez absoluta e definitiva, mediante o pagamento de prémio mensal, por referência ao empréstimo com o nº ...........84-4, por cinco anos.

3. Na sequência da aprovação das propostas identificadas em 1) e 2), a ré emitiu as apólices nº ........34 e ........37, ambas para garantia de morte e invalidez absoluta e definitiva do autor, relativamente ao capital de 80.000€, com início em 12 de Janeiro de 2015 e prazo de cinco anos, tendo como beneficiários a Caixa Económica Montepio Geral até ao capital em dívida e os herdeiros legais da pessoa segura pelo capital remanescente.

4. No artigo 16º nº 3 das condições gerais das apólices identificadas em 3) está previsto que ‘salvo estipulação em contrário, na falta de designação de beneficiário, o beneficiário em caso de vida da pessoa segura é a própria pessoa segura’.

5. No artigo 2º ponto 1 das condições especiais das apólices identificadas em 3) consta ‘a pessoa segura será considerada em estado de Invalidez Absoluta e Definitiva quando se encontrar totalmente incapaz para o exercício de qualquer actividade lucrativa e necessite de recurso à assistência de uma terceira pessoa para os atos ordinários da vida humana’.

6. O autor é, juntamente com os irmãos BB e CC, titular de uma empresa que se dedica à pesca costeira e tinha por função a administração e o apoio das actividades em terra.

7. Na ocasião referida em 1) e 2) a segunda ré concedeu dois financiamentos, no valor de 80.000€ cada, um para a empresa referida em 6) e outro para a empresa de AA, com idêntica actividade.

8. Quando aprovou os pedidos de financiamento, o Banco Réu condicionou a sua concessão à contratação de seguros.

9. Na preparação da proposta de financiamento foi apresentado ao autor o seguro ‘proteção negócio individual empresas’ da ré Lusitânia de que a CEMG é o principal acionista.

10. Os acordos referidos em 1) e 2) constituíam para a segunda ré uma garantia adicional de reembolso em caso de morte ou invalidez nos termos definidos em 5) sofridas pelo autor.

11. O autor achou ajuizada a celebração dos acordos referidos em 1) e 2), pois, em caso de morte ou de acidente grave cujas consequências pudessem comprometer a sua capacidade de trabalho, evitava que a sua empresa, ele próprio, e ainda os seus herdeiros, em caso de morte, ficassem numa situação delicada relativamente aos financiamentos bancários.

12. As propostas referidas em 1) e 2) foram preenchidas pelos funcionários do Banco réu e, subsequentemente, dadas ao autor para apor a sua assinatura.

13. Durante o preenchimento das propostas referidas em 1) e 2) a cláusula referida em 5) foi lida ao autor, sem outra explicação, sendo aconselhado a ler as condições gerais e especiais em casa e a colocar as dúvidas que surgissem.

14. As condições especiais e gerais não foram fornecidas ao autor antes do preenchimento e assinatura das propostas referidas em 1) e 2).

15. Não foi explicado ao autor que para que se encontrasse em ‘invalidez absoluta e definitiva’ era preciso que deixasse de ser capaz de exercer qualquer atividade produtora de rendimentos e de ser autónomo para tarefas básicas da vida diária como comer, vestir-se ou fazer a sua higiene.

16. Não foi dada ao autor a oportunidade de negociar as cláusulas do seguro identificado em 1) e 2).

17. A ré CEMG comunicou ao autor as opções de cobertura referidas em 1) e 2) e fez-lhe perguntas sobre os elementos pessoais que constam das propostas.

18. Após a assinatura dos documentos referidos em 1) e 2), a ré CEMG entregou ao autor as condições gerais e especiais do seguro aí referido.

19. No momento da análise das propostas identificadas em 1) e 2) a ré reconvinte efetuou uma análise de risco em que considerou a probabilidade de ocorrência de dois eventos, morte e ‘invalidez absoluta e definitiva’.

20. Foi com base na probabilidade de ocorrência desses dois eventos que a ré reconvinte calculou o prémio a pagar pelo reconvindo, considerando uma invalidez limite e um prémio residual em relação à cobertura morte.

21. No cálculo do prémio, a ré reconvinte não considerou uma cobertura de invalidez para apenas o exercício da actividade habitual do autor.

22. Para a cobertura referida em 21) a ré reconvinte analisaria outros factores e calcularia o respetivo prémio, fixando uma taxa autónoma respeitante à cobertura de ‘invalidez’ somando-a com a da cobertura ‘morte’.

23. Em 16 de Abril de 2015 o autor encontrava-se no porto de pesca de ... realizando a atividade de apoio em terra à empresa referida em 6).

24. Quando se encontrava na zona do cais onde havia acostado a embarcação da empresa referida em 6), o autor foi colhido por um empilhador.

25. Acto contínuo o autor foi derrubado e projetado para o interior da embarcação.

26. De seguida, o empilhador caiu no interior da embarcação sobre o corpo do autor, lesando, com maior incidência, as suas pernas.

27. Em consequência do referido em 28) o autor sofreu:

- fratura do braço esquerdo,

- fratura exposta da perna e tornozelo direitos,

- fratura exposta da perna esquerda ao nível da coxa, e

- esfacelo da coxa esquerda.

28. Depois de lhe serem prestados os primeiros socorros, o autor foi transportado do local do acidente para o Hospital ..., ficando internado.

29. Nessa unidade hospitalar foi submetido a diversos tratamentos cirúrgicos:

- em Abril de 2015, osteotaxia do fémur esquerdo e da tíbia direita com fixadores externos, osteossíntese do úmero esquerdo, bypass vascular fémuro-tibial esquerdo com colheita de veia safena magna direita e construção de enxerto, desbridamento de tecidos desvitalizados, fasciotomias descompressivas,

- em Maio de 2015, desbridamento de áreas cruentas da coxa esquerda e da perna direita e plastia com enxerto recolhido da coxa direita, desbridamento da área de seroma da coxa esquerda com colocação de dreno aspirativo,

- em Junho de 2015, extração dos fixadores externos e encavilhamento do fémur esquerdo e da tíbia direita.

30. Aí permaneceu internado até 24 de Julho de 2015.

31. De seguida, passou a ser assistido na Casa de Saúde da ..., em regime ambulatório, por conta da seguradora responsável no âmbito do foro laboral.

32. Aí foi submetido às seguintes cirurgias:

- em Agosto de 2015, cirurgia plástica de enxerto de pele na coxa e na perna esquerdas,

- em 29 de Fevereiro de 2016, artrodese do tornozelo direito.

33. Foi submetido, igualmente, a sessões de fisioterapia, tendo alta a 2 de Novembro de 2016.

34. Em consequência das lesões e não obstante os tratamentos, o autor ficou a padecer de sequelas permanentes:

a) rigidez do ombro esquerdo (abdução até 70º, flexão até 104º, rotação externa até 54º e interna até 50º);

b) rigidez do cotovelo esquerdo (arco de mobilidade entre 28º e 54º),

c) diminuição da sensibilidade na face posterior do membro superior esquerdo desde o braço até à mão,

d) encurtamento do membro inferior esquerdo de 5 cm,

e) hipossensibilidade da perna e do pé direitos de modo difuso,

f) anquilose do tornozelo direito em posição favorável,

g) anquilose do médio pé direito,

h) ligeira limitação dos últimos graus de mobilidade da anca esquerda, com referência a dor,

i) rigidez articular do joelho esquerdo, com flexão até 110º,

j) rigidez do tornozelo esquerdo (dorsiflexão até 10º e flexão plantar até 20º),

k) lesão vascular da coxa esquerda,

l) hipossensibilidade em todo o membro inferior esquerdo,

m) cicatriz linear de tipo cirúrgico, vertical no terço distal da face posterior do braço e cotovelo esquerdos, com 14 cm de comprimento, duas cicatrizes lineares de comprimento pericentimétrico, anteriores à sua extremidade distal e uma cicatriz linear de comprimento pericentimétrico posterior à referida extremidade,

n) cicatriz linear, oblíqua com 15 cm por 1 cm na face anterior da raiz da coxa direita, duas áreas cicatriciais hipopigmentadas, retangulares, compatíveis com área de colheita de enxerto cutâneo com 25 cm por 3,5 cm e 10,5 cm por 5 cm no terço médio da face anterolateral,

o) cicatriz vertical com 5 cm na face anterior do joelho direito,

p) várias cicatrizes lineares de comprimento pericentimétrico do terço proximal e médio da face anterior da perna direita,

q) área cicatricial com 9 cm por 5 cm superiormente ao maléolo medial do tornozelo direito e duas cicatrizes lineares verticais, uma com 8 cm na face anterior e outra com 17 cm na face lateral e entre estas, anteriormente ao maléolo lateral, área cicatricial hipercrómica com 4 cm de diâmetro e depressão central com 2 cm por 1,5 cm,

r) quatro cicatrizes na planta do pé direito, a maior com 2 cm por 1 cm no arco plantar, uma com 1,5 cm de diâmetro no calcanhar, uma com 1 cm no médio pé e outra pericentrimétrica no calcanhar e outra na face posterior do calcanhar com 1 cm de diâmetro,

s) área cicatricial irregular, deprimida e com perda de tecido significativa subjacente na face anterior da raiz da coxa esquerda com 16 cm por 6 cm, cinco cicatrizes lineares deprimidas na metade proximal da face lateral alinhadas verticalmente entre si, a menor com 1 cm e a maior com 2,5 cm, cicatriz de comprimento pericentimétrico no terço proximal da face lateral, palpando-se área endurecida anteriormente à mesma, com cerca de 3 cm por 1 cm de maiores dimensões,

t) cicatriz com 3 cm de comprimento na face anterior do joelho esquerdo, adjacente ao polo superior da rótula e outra superiormente à anterior com 1 cm de comprimento,

u) duas cicatrizes lineares, verticais e paralelas entre si, no terço médio da face anterolateral da perna esquerda, ambas com 5,5 cm de comprimento.

35. As sequelas identificadas em 34) a), b), d), f), i), j) e k) correspondem a défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 61,68 pontos compatível com a ocupação de um posto de trabalho cujo conteúdo funcional envolva a actividade dos membros superiores, sem grande exigência física, como porteiro ou recepcionista ou, ainda, funcionário administrativo.

36. No foro laboral foi atribuída ao autor uma IPP de 88,2252%.

37. Foi-lhe igualmente atribuída incapacidade permanente absoluta para a atividade profissional habitual.

38. Concluiu-se por necessidade de ajuda de terceira pessoa para algumas atividades não discriminadas 2 horas por dia.

39. O autor tem dificuldade em deslocar-se em rampas e ruas inclinadas.

40. Tem dificuldade em subir e descer escadas, fazendo-o com apoio de corrimão.

41. Apoia-se em duas canadianas para deambular em espaços exteriores em pequenas distâncias e plano horizontal e com bengala no interior do domicílio.

42. O autor queixa-se de dormência nas pernas.

43. Necessita de fazer aquecimento dos músculos para se levantar da cama de manhã.

44. O autor necessita de auxílio da esposa ou do filho para lavar as costas e para se secar após o duche que toma sentado.

45. O autor parte os alimentos com ambas as mãos, mas apenas usa o garfo na mão direita por incapacidade em elevar a mão esquerda ao nível da boca.

46. Quando socialmente carece de se deslocar a pé por distâncias maiores, designadamente quando acompanha a família ou amigos em algum passeio, tem de o fazer numa scooter.

47. Após participação do sinistro, por missiva datada de 5 de Setembro de 2017, a ré comunicou ao autor ‘de acordo com o nosso Departamento Clínico, no seguimento dos relatórios e informação clínica enviados à Companhia vimos informar que a situação clínica analisada não se enquadra no artigo 2º ponto 1 das Condições Especiais da Apólice. Mais informamos que a pessoa segura será considerada no estado de Invalidez Absoluta e Definitiva quando se encontrar totalmente incapaz para o exercício de qualquer atividade lucrativa e necessite do recurso sistemático à assistência de terceira pessoa para os actos normais da vida humana (comer, beber, lavar-se, entre outros), não sendo possível qualquer melhoria de saúde segundo os conhecimentos médicos atuais. Assim informamos que a Companhia refuta qualquer responsabilidade e não procederá ao pagamento da indemnização. Mais informamos que idêntica informação foi prestada à Caixa Económica Montepio Geral.’

48. Na sequência de comunicação do autor recebida pela ré em 30 de Outubro de 2017, a mesma remeteu missiva datada de 10 de Novembro de 2017, reiterando os argumentos identificados em 47).

49. Na data referida em 47) o valor do capital em dívida de cada um dos financiamentos referidos em 7) ascendia a 48.000€.

50. Após amortizações anuais, os financiamentos ficaram integralmente liquidados a 4 de Dezembro de 2019.

51. Após a data referida em 47) o autor liquidou o montante de 468,49€ de juros e imposto de selo em cada um dos financiamentos.

Factos aditados pela Relação:

53. O autor nasceu em D/M/1964.

54. O autor, mercê das lesões sofridas e suas sequelas, descritas nas alíneas a) a l) do faco 34, sente dores sempre que mantém durante algum tempo a mesma posição corporal -como seja nos casos dos diversos decúbitos, de sedestação, ou da posição ortostática -, bem como quando se desloca em pisos inclinados ou irregulares, ou ao subir escadas, tomando com carácter de regularidade medicação para aliviar as dores

Factos dados como não provados:

a- foi referido ao autor que o seguro referido em 8) seria a celebrar necessariamente com a seguradora ré;

b- as condições especiais e gerais não foram fornecidas ao autor depois da assinatura das propostas;

15- se no momento referido em 1) e 2), o autor fosse informado que a cobertura invalidez apenas funcionava se ficasse em estado vegetativo, o mesmo não teria feito a subscrição das propostas.

16- para cumprir a condição referida em 8), o autor iria procurar outra seguradora.

c- se fosse dada ao autor a informação referida em )[sic], este jamais teria aceite a subscrição de tais seguros, procurando a proteção pretendida pelo banco junto de outra seguradora;

d- o autor carece do auxílio de terceiro para se pôr de pé quando permanece sentado por mais de duas horas;

e- descalço, o autor só consegue andar de lado, e por distâncias muito curtas;

f- sente enormes dores quando se deita na cama, bem como quando se levanta;

g- se a meio da noite tiver de urinar, fá-lo na cama, deitado, para um recipiente próprio, pois as dificuldades que sente para se levantar sozinho são enormes;

h- para não ter de subir as escadas de sua casa, a meio do dia, a esposa serve-lhe o almoço na garagem;

i- tem igualmente muita dificuldade para ler, seja um jornal ou um livro ou revista, porque não consegue manter levantados os membros superiores, por mais do que uns breves minutos;

j- o autor perdeu sensibilidade nas pernas para a temperatura do ambiente que o rodeia ou de algum objeto que o toca;

k- a ré CEMG esclareceu as dúvidas colocadas pelo autor e explicou verbalmente o conteúdo dos documentos referidos em 1) e 2);

l- após lhe ter sido perguntado pela ré se tinha alguma dúvida ou se pretendia algum outro esclarecimento, o autor considerando-se esclarecido, assinou os documentos referidos em 1) e 2).

IV – Fundamentação de direito

1. Recorde-se que o presente recurso tem como objecto as seguintes questões:

• Âmbito da cobertura do contrato de invalidez em função do conceito de invalidez absoluta e definitiva a adoptar;

• Consequências da exclusão da cláusula delimitadora do risco de invalidez;

• Verificação do risco coberto pelos seguros celebrados entre as partes.

2. Antes de mais, importa começar por considerar as decisões das instâncias, bem como a respectiva fundamentação.

O Tribunal da 1.ª instância, considerando ser aplicável aos contratos de seguro dos autos, o Regime Jurídico do Contrato de Seguro, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 72/2008, de 16 de Abril, assim como o regime das Cláusulas Contratuais Gerais, entendeu o seguinte:

- Relativamente ao conceito de invalidez absoluta e definitiva – tal como definido na cláusula 2.ª, ponto 1, das Condições Especiais dos contratos de seguro dos autos (“a pessoa segura será considerada em estado de Invalidez Absoluta e Definitiva quando se encontrar totalmente incapaz para o exercício de qualquer actividade lucrativa e necessite de recurso à assistência de uma terceira pessoa para os atos ordinários da vida humana”), convocou a jurisprudência mais recente do Supremo Tribunal de Justiça (designadamente o acórdão de 27.02.2020, proc. nº 125/13.2TVPRT.P1.S2) e das Relações, salientando que a mesma vem considerando ser excessiva a exigência de cumulação dos dois requisitos constantes da dita cláusula 2.ª, ponto 1;

- Convocou também o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 02.03.2021 (proc. nº 2615/18.1T8VRL.G1.S1), no qual se entendeu que “apenas deverão/poderão ser consideradas afectadas as cláusulas (de exclusão ou limitativas do risco e da consequente responsabilidade/obrigação da seguradora) em função das quais a cobertura do seguro fique aquém daquela que o tomador podia, de boa-fé, contar, tendo em consideração o objecto e a finalidade do contrato”;

- À luz da orientação adoptada em tal jurisprudência, concluiu ser abusivo, e consequentemente nulo, o segundo segmento da cláusula contratual em causa (“necessite de recurso à assistência de uma terceira pessoa para os atos ordinários da vida humana”);

- Mais considerou que, estando provado o incumprimento do dever de informação e de esclarecimento do aderente, esse segmento deveria ser excluído;

- A final proferiu a seguinte decisão: “a) reconhece a nulidade da cláusula identificada no ponto 5) da fundamentação de facto, no segmento “e necessite de recurso à assistência de uma terceira pessoa para os atos ordinários da vida humana”.”;

- Tendo entendido ser válida a primeira parte da cláusula 2.ª, ponto 1 (“a pessoa segura será considerada em estado de Invalidez Absoluta e Definitiva quando se encontrar totalmente incapaz para o exercício de qualquer actividade lucrativa”), procedeu à subsunção do caso dos autos ao conceito de invalidez absoluta e definitiva dele constante, concluindo que os factos provados revelam que o autor – enquanto “titular de uma quota numa sociedade pesqueira irregular” – não está impedido de obter rendimento “na componente de administração ou, mesmo, somente, no âmbito de tarefas típicas de um funcionário administrativo com dificuldades de locomoção” ;

- Concluiu, deste modo, que a situação do autor não se encontra coberta pelos seguros dos autos.

Por sua vez, o Tribunal da Relação, entendendo, tal como a 1.ª instância, ser aplicável o regime jurídico instituído pelo DL n.º 72/2008, assim como o regime das Cláusulas Contratuais Gerais:

- Afirmou que, perante a factualidade provada (pontos 14 e 18), foi violado o dever de informação e de esclarecimento do clausulado contratual no que se refere à cláusula 2ª, ponto 1;

- Consequentemente, deu como excluída dos contratos a dita cláusula 2.ª, ponto 1, na sua totalidade, isto é, deu como excluída também a definição do conceito de invalidez absoluta e definitiva (quando a pessoa “se encontrar totalmente incapaz para o exercício de qualquer actividade lucrativa”);

- Uma vez afastada tal definição, procurou interpretar o conceito de invalidez absoluta e definitiva à luz dos critérios do art. 236.º do Código Civil;

- Convocando a orientação jurisprudencial adoptada no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27.02.2020 (proc. n.º 125/13.2TVPRT.P1.S2), amplamente referida na sentença da 1.ª instância, concluiu pela verificação do risco coberto pelos contratos de seguro.

A análise da fundamentação das decisões das instâncias reveste particular importância no contexto do presente recurso. Na verdade, a síntese apresentada revela o cruzamento, nem sempre muito claro e definido, entre as duas vias de tutela previstas no regime jurídico das Cláusulas Contratuais Gerais. Como é comumente sabido, uma dessas vias (regulada nos arts. 4.º a 9.º do diploma legal) destina-se a assegurar o cumprimento dos deveres de comunicação e de esclarecimento das cláusulas contratuais, mediante a exclusão das cláusulas que não tenham sido devidamente comunicadas ou não tenham sido objecto de esclarecimento; enquanto a outra via (regulada nos arts. 10.º e segs. do mesmo regime) visa garantir o carácter não abusivo do conteúdo das cláusulas ainda que devidamente comunicadas, mediante a declaração da sua nulidade.

Nas palavras de Nuno Pinto Oliveira, “[a] Lei das Cláusulas Contratuais Gerais considera ‘autonomamente’ o problema do ‘desconhecimento’ das cláusulas contratuais não negociadas pelo aderente e o problema do ‘desequilíbrio’ ou da ‘desproporção’ do conteúdo do contrato, distinguindo dois tipos de controlo: o primeiro incide sobre a ‘inclusão’ das cláusulas em contratos individuais ou singulares (arts. 4.º-8.º); o segundo, sobre o ‘conteúdo’ das cláusulas contratuais não negociadas (arts. 15.º-22.º).” (Princípios de Direito dos Contratos, Coimbra Editora, Coimbra, 2011, pág. 241)

Ora, verifica-se que a sentença da 1.ª instância fez alguma confusão entre uma e outra via de tutela, ao considerar: primeiro, que a cláusula 2ª, ponto 1, dos contratos de seguro dos autos não fora objecto dos devidos esclarecimentos; em seguida, que devia ser excluído dos contratos (apenas) o segundo segmento da definição do conceito de invalidez absoluta e definitiva; e, finalmente, que o conteúdo dessa segunda parte da cláusula devia ser tido como abusivo e, consequentemente, ser, nessa medida, declarada nula a cláusula.

Por se afigurar relevante para o devido enquadramento das questões objecto do presente recurso, são de assinalar em tal fundamentação as seguintes incongruências: (i) se se entende que a cláusula não foi devidamente comunicada, então a cláusula terá de ser excluída na sua totalidade e não apenas no que se refere ao segundo segmento; (ii) se se considera ser de excluir o segundo segmento da cláusula, não faz sentido que se tenha declarado a nulidade desse mesmo segmento por o seu teor ser abusivo, a não ser que se indicasse ser este um fundamento alternativo ou subsidiário para a irrelevância do dito segmento.

O acórdão da Relação supriu tais falhas, tendo, ao menos aparentemente, seguido apenas a primeira via de tutela do aderente; isto é, dando como provada a violação do dever de esclarecimento quanto à cláusula 2ª, ponto 1, considerou toda a cláusula como excluída dos contratos, passando a averiguar do sentido do conceito de invalidez absoluta e definitiva constante das demais cláusulas contratuais em função dos parâmetros normativos (art. 236.º do CC) da interpretação dos negócios jurídicos. Mais concretamente, enunciou tal questão interpretativa da seguinte forma:

“A questão a decidir consiste em apreciar se o conceito de estado de invalidez absoluta e definitiva, para um declaratário normal, colocado na concreta posição do autor, significa incapacidade absoluta (total, por contraposição a parcial) e definitiva (permanente, por oposição a temporária) para o exercício da profissão habitual (ou semelhante, em termos de desempenho físico/intelectual e até ao nível dos rendimentos propiciados) ou antes traduz a incapacidade absoluta e definitiva para o exercício de qualquer actividade/profissão remunerada (não apenas para o trabalho habitual, mas antes uma perda, completa e definitiva, da capacidade laboral - um estado de incapacidade para todo e qualquer trabalho para o resto da vida).” [bold nosso]

Vindo a concluir, fazendo apelo à jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça sobre esta matéria (na qual se incluem decisões relativas à natureza abusiva de cláusulas similares à cláusula 2ª, ponto 1, dos contratos dos autos), ser de adoptar o primeiro dos dois sentidos apresentados.

Significa isto que o acórdão recorrido, no âmbito da interpretação do conceito de invalidez absoluta e definitiva, acabou por analisar a possibilidade de prevalecer um sentido próximo ou igual ao que constava da cláusula excluída, tendo-o afastado com argumentos utilizados comumente a propósito do controlo do conteúdo de cláusulas contratuais equivalentes à cláusula 2ª, ponto 1, dos contratos dos autos. O que, afinal, se aproxima (ou mesmo se identifica) com a segunda via de tutela do aderente prevista nos arts. 10.º e segs. do diploma das Cláusulas Contratuais Gerais.

Afigura-se que esta ambivalência quanto à via de tutela do aderente que está a ser seguida se manifesta em todo o processado, incluindo as próprias alegações das partes. Trata-se de uma ambivalência inevitável dada a natureza da problemática em causa, mas importa dela ter consciência para se evitarem falhas de ordem técnico-jurídica.

3. Tendo presentes os esclarecimentos anteriores, passemos a conhecer da primeira questão recursória: qual o âmbito da cobertura do contrato de invalidez em função do conceito de invalidez absoluta e definitiva a adoptar.

Afirma-se no acórdão recorrido:

“Conceito que se entende preenchido quando a invalidez se traduza em ‘restrições que, atendendo aos esforços, capacidades e qualificações específicas da profissão exercida, inviabilizam sem mais a manutenção da profissão ou outra com rendimentos equiparáveis, mesmo que sem a necessária articulação com os constrangimentos que frustrem a conservação das tarefas da vida diária com a autonomia apresentada no momento pré-sinistro’ – interessa é que nela se encontrem os ‘requisitos da permanência ou definitividade na afectação da capacidade de ganho que cumprem o interesse do contrato de seguro’ [nota 33: Cfr., mais uma vez, o acórdão do STJ de 27/02/2020 (Ricardo Costa). Seguindo também o entendimento sustentado em texto a propósito da interpretação do conceito de ‘invalidez de absoluta e definitiva’, o acórdão do STJ de 11/05/2023 (Sousa Pinto), no sítio www.dgsi.pt]. Atendendo a este conceito (ao seu sentido e alcance decisivo a que por via interpretativa se acede) da cláusula definidora do risco coberto pelos contratos de seguro discutidos nos autos – a incapacidade, consequência de evento (doença ou acidente), com um determinado grau ou nível de desvalorização (qualquer que seja, contanto que não seja residual ou insignificante), que impeça a pessoa, total e definitivamente, para o exercício da sua actividade profissional ou outra com rendimentos equiparáveis (ou até outra remunerada compatível com os seus conhecimentos e aptidões [nota 34) (…)] – interessa é que nela se encontrem os ‘requisitos da permanência ou definitividade na afectação da capacidade de ganho que cumprem o interesse do contrato de seguro (…)”.

Ainda que conformando-se com a decisão de excluir dos contratos a cláusula 2ª, ponto 1, por manifesto incumprimento do dever de esclarecimento por parte do proponente (cfr. factos provados 12 a 15), insurge-se a recorrente contra o sentido que o acórdão recorrido atribuiu ao conceito de invalidez absoluta e definitiva, alegando essencialmente o seguinte:

- Resulta do facto provado 11 e do facto não provado 15 que o autor aceitou as coberturas oferecidas por estes contratos de seguro, nos seus exactos termos;

- De acordo com a jurisprudência unânime, o declaratário médio não pode deixar de entender que a garantia de invalidez absoluta e definitiva se refere a todo e qualquer trabalho, que não apenas ao trabalho habitual da pessoa segura;

- Este conceito é exactamente o adoptado no Decreto-Lei n.º 187/2007, de 10 de Maio, diploma que destrinçou as situações de invalidez relativa das de invalidez absoluta (ver arts. 13.º, 14.º e 15.º).

Por sua vez, pugna o recorrido pela manutenção da decisão do acórdão recorrido.

Vejamos.

Antes de mais, esclareça-se que o diploma legal indicado pela recorrente diz respeito à protecção dos beneficiários do regime geral de segurança social na invalidez e velhice, pelo que não é, sem mais, aplicável ao domínio dos seguros de vida.

Em segundo lugar, sublinhe-se que, diversamente do alegado, o conceito de invalidez absoluta e definitiva adoptado no acórdão recorrido não é tão restritivo quanto o enunciado pela recorrente. Com efeito, tal conceito – situação de invalidez que inviabiliza “a manutenção da profissão ou outra com rendimentos equiparáveis – não define a invalidez exclusivamente em função da incapacidade para o exercício da profissão habitual, antes inclui a incapacidade para o exercício de outra profissão que permita obter ganhos equiparáveis aos da profissão habitual.

Quanto ao facto provado 11 (“O autor achou ajuizada a celebração dos acordos referidos em 1) e 2), pois, em caso de morte ou de acidente grave cujas consequências pudessem comprometer a sua capacidade de trabalho, evitava que a sua empresa, ele próprio, e ainda os seus herdeiros, em caso de morte, ficassem numa situação delicada relativamente aos financiamentos bancários.”), não nos parece que dele se possa extrair o sentido pretendido; seja pela referência à “sua capacidade de trabalho”, que se afigura ambivalente; seja pela referência à “sua empresa”, que aponta para o exercício da profissão habitual.

Tampouco o facto não provado 15 (“se no momento referido em 1) e 2), o autor fosse informado que a cobertura invalidez apenas funcionava se ficasse em estado vegetativo, o mesmo não teria feito a subscrição das propostas”) permite infirmar o entendimento do Tribunal da Relação porque, da falta de prova do comportamento alternativo do aderente – na hipótese de o dever de esclarecimento quanto ao conteúdo da cláusula 2ª, ponto 1, não ter sido violado –, não pode retirar-se a prova da apreensão pelo aderente do conteúdo dessa cláusula.

Na ausência de outros elementos que nos permitam identificar o significado do conceito de invalidez absoluta e definitiva, é na jurisprudência mais recente dos tribunais superiores que cabe procurar uma orientação clarificadora. Na verdade, como resulta da fundamentação das decisões das instâncias, tal jurisprudência é abundante e multifacetada.

Na jurisprudência deste Supremo Tribunal, e na linha do salientado pelas instâncias, assume particular relevo a análise circunstanciada realizada no acórdão de 27-02-2020 (proc. n.º 125/13.2TVPRT.P1.S2), e reiterada no acórdão de 02-11-2023 (proc. n.º 1132/20.4T8PDL.L1.S1, ambos disponíveis em www.dgsi.pt. É significativa a sua importância para a resolução do caso dos autos porque, naquela decisão, se procura interpretar o conceito de invalidez absoluta e definitiva após se ter afastado a definição que constava do contrato (no caso, por se ter considerado o seu conteúdo abusivo e, consequentemente, se ter declarado a nulidade da cláusula).

Transcreve-se a respectiva fundamentação, na parte relevante:

“3.1. O contrato celebrado entre as partes configura um contrato de seguro, na modalidade do “ramo vida”, que tem por objecto a cobertura do risco de morte ou invalidez, associado aos contratos de financiamento bancário (crédito pessoal e mútuo com hipoteca), garantindo ao tomador do seguro (entidade financiadora) o capital que estiver em dívida à data em que se verifiquem tais eventos – morte (cobertura principal) e invalidez absoluta definitiva (cobertura complementar) da pessoa segura.

É-lhe aplicável o regime legal previsto no DL 72/08, de 16 de Abril (Regime Jurídico do Contrato de Seguro – RJCS), que entrou em vigor em 1 de Janeiro de 2009, e que procedeu à revogação dos artigos 425.º a 462.º do Código Comercial.

Por outro lado, tratando-se igualmente de um contrato de adesão, na medida em que integra cláusulas contratuais gerais elaboradas prévia e unilateralmente (sem negociação individual) pelos seguradores e que os tomadores dos seguros se limitam a aderir ou rejeitar em bloco a esse conjunto de cláusulas padronizadas, aplica-se-lhe o regime do DL 446/85, de 25 de Outubro (v. art. 3º do RJCS).

A decisão do caso implicou o confronto, nas “Condições Gerais e Especiais” da Apólice que titula o contrato de seguro, subscrito pela Ré/seguradora e autor (cfr. fls. 179 e ss dos autos), com a definição constante do capítulo V (“Coberturas Complementares”), no respectivo cap. 30 (“Condições Especiais”), ponto 1. (cfr. fls. 188), em que se define “Invalidez Absoluta e Definitiva” como a “situação em que a Pessoa Segura é considerada clinicamente inapta e incapaz, em consequência de doença ou acidente, de exercer qualquer atividade e, além disso, tenha de recorrer a uma terceira pessoa para efetuar os atos essenciais da vida corrente”, decretando-se nas duas instâncias como cláusula não escrita e nula de acordo com o DL 446/85.

Por outro lado – o que interessa agora –, essa mesma decisão implicou determinar os “requisitos normais” para se preencher o conceito de “invalidez absoluta e definitiva”, tendo em conta o disposto pelo art. 13º, 2, do DL 446/85 («A manutenção de tais contratos [«quando algumas dessas cláusulas sejam nulas»] implica a vigência, na parte afectada, das normas supletivas aplicáveis, com recurso, se necessário, às regras de integração dos negócios jurídicos.»).

3.2. O contrato de seguro de pessoas «compreende a cobertura de riscos relativos à vida, à saúde e à integridade física de uma pessoa ou de um grupo de pessoas nele identificadas» (art. 175º, 1, RJCS).

Na modalidade (ou subtipo) de seguro de vida, o «segurador cobre o risco relacionado com a morte ou a sobrevivência da pessoa»: art. 183º, 1, RJCS. No seu âmbito, a lei aplica-se a «seguros complementares dos seguros de vida relativos a danos corporais, incluindo, nomeadamente, a incapacidade para o trabalho e a morte por acidente ou invalidez em consequência de acidente ou doença» (art. 184º, 1, a), RJCS [3]). Abrangem-se, assim, “todos os seguros em que o risco coberto é o risco morte, ainda que associados a seguros de capitalização, ou o risco de lesão corporal, invalidez, temporária ou permanente, mas também os diversos seguros em que o risco coberto é a saúde, ou a verificação de qualquer evento fortuito que altere a saúde do segurado, como os seguros de saúde e de acidentes pessoais” [4].

Para a resolução da questão, porém, teremos que enfatizar a especificidade trazida pelos autos – cfr. factos 1. a 5. – isto é, a conexão constitutiva do seguro com os contratos de crédito (mútuos bancários) celebrados pelo segurado.

Quando estamos perante seguros de vida associados à contratação de crédito bancário (habitualmente impostos a favor do credor mutuante como condição da concessão do crédito), as cláusulas que definem a cobertura de invalidez devem ser interpretadas de acordo com uma adequada ponderação entre o risco do segurado e o compromisso do segurador, de maneira que tal resulte em equilíbrio de prestação das partes contratantes tendo como azimute o interesse do seguro (enquanto elemento essencial do contrato), estando esse ancorado na titularidade do segurado nos termos do art. 43º do RJCS [5]. Na verdade, sendo esse – em primeira linha e sem prejuízo de o tomador do seguro optar por outras modalidades, coberturas, riscos e beneficiários a propósito do seguro conexo com o financiamento – o pagamento do crédito ao banco (tipicamente como primeiro beneficiário do seguro em face do capital coberto e do prazo do contrato de crédito) quando o segurado já não o possa razoavelmente fazer como o terá feito até ao sinistro, por perda da sua capacidade de obtenção de rendimento [6], a densificação das suas coberturas tem necessariamente que ser empreendida de acordo com esse horizonte teleológico, naturalmente ancorado na expectativa legítima do segurado com a celebração desse seguro [7]. Em síntese, garantir a alteração de vida profissional que constitui causa para não se dispor da mesma condição remuneratória com que se contava para o pagamento dos créditos obtidos.

Mobilizando-se a cobertura em caso de invalidez permanente ou definitiva (independentemente da formulação contratual usada), parece ser de sustentar que a exigibilidade de verificação cumulativa de um elenco de pressupostos exigentes e apertados – nomeadamente, somando a um elevado grau de incapacidade, a insusceptibilidade completa e definitiva para o exercício habitual da profissão ou de qualquer outra profissão e a necessidade da assistência de uma terceira pessoa para efectuar os actos normais da vida diária – traduz-se em limitação objectivamente excessiva (senão mesmo, em determinados casos, inviabilização prática) da cobertura do seguro, com a consequente frustração do equilíbrio prestacional entre segurado e segurador inerente ao interesse contratualmente visado [8]. Estaríamos a ser de tal modo restritivos na definição da invalidade permanente ou definitiva, relevante para a delimitação do risco segurado, que tal cobertura “só funcionará quando o segurado se encontrar em estado de ‘praticamente defunto’” [9].

3.3. Retornemos, porém, à (já referida) circunstância generalizada de os seguros de vida associados aos créditos bancários (maxime, para aquisição de habitação) serem impostos pela parte mais forte, o financiador mutuante, também geralmente relacionado ou com participação no segurador (em situação plurissocietária de relação de domínio, simples ou grupal), tendo em vista (em complemento às garantias pessoais e reais) ressarcir a perda que pode advir do incumprimento do crédito – sendo, pois, nessa perspectiva de coligação ou união funcional[10], um contrato de seguro obrigatório em sentido impróprio [11] ou fáctico. Daí não se estranhar que o legislador tenha avançado para um quadro legal próprio, instituído pelo DL 222/2009, de 11 de Setembro, destinado a estabelecer regras quanto ao regime dos «contratos de seguro de vida cuja contratação tenha por objectivo o reforço de garantia dos contratos de crédito à habitação, quer resultem de uma imposição das instituições de crédito como condição necessária à celebração destes últimos contratos quer resultem de uma opção do consumidor», tendo como foco a protecção do consumidor segurado (v. arts. 1º e 2º) [12].

Nessa disciplina legal considera-se existir união de contratos «se ambos os contratos constituírem objectivamente uma unidade económica, designadamente se o contrato de seguro de vida for proposto pela instituição de crédito ou, no caso de o contrato de seguro de vida ser proposto por terceiro, se a seguradora tiver recorrido à instituição de crédito para preparar ou celebrar o contrato de seguro de vida ou se o contrato de seguro de vida estiver expressamente mencionado no contrato de concessão de crédito à habitação ou, ainda, se a instituição de crédito fizer depender a celebração do contrato de crédito à habitação da celebração de um contrato de seguro de vida» (art. 3º, 2). Porém, desta disciplina não surge qualquer definição ou preceito que nos auxilie na tarefa interpretativa que nos move.

Daí não chocar – antes aconselhar – que, por equiparação extensiva com os seguros obrigatórios de responsabilidade civil, ou por integração analógica, se aplique a esses seguros coligados ou em união contratual (mesmo para com outros créditos que não o de aquisição de habitação) o regime legal das «disposições especiais de seguro obrigatório» constantes dos arts. 146º a 148º do RJCS [13]. E, neste regime, assume relevo central para a questão os n.os 3 a 5 do art. 146º, que manifestam o princípio da utilidade do seguro: por um lado, a imposição de que o dano seguro é determinado pela lei geral (remissão para a solução do art. 138º, 2, do RJCS); por outro lado, a proibição de o âmbito da cobertura incluir exclusões contrárias à natureza da obrigação legal do seguro (v. art. 1º do RJCS), sob pena de incumprimento do dever de cobrir os riscos abrangidos pelo contrato. Ora, aplicando-se este regime, não podemos aceitar que se preencha, para efeitos de cobertura contratual, o conceito de invalidez permanente num complexo de pressupostos de accionamento que tornem excluída a cobertura convencionada e, por essa via, frustrem o interesse do segurado e a teleologia do contrato de seguro.

Pois bem – qual o caminho a seguir?

Não existindo uma definição legal, o percurso definidor desse conceito de invalidade permanente tem que considerar as condicionantes aludidas, assumindo natural destaque o interesse (e finalidade racional) do contrato de seguro e o contexto de coligação imposta com os contratos de financiamento [14]. Logo, a nosso ver, não pode deixar de assentar, na sua base, numa deficiência física e/ou intelectual que, não obstante os cuidados, os tratamentos e os acompanhamentos, clínicos e reabilitadores, realizados depois do sinistro, subsiste a título definitivo em sede anatómica-funcional e/ou psicossensorial [15]. Depois, implica esse trilho precisar que esse estado deficitário, independentemente do seu nível ou grau ou percentagem de incapacidade (desde que não seja residual ou insignificante), teve consequência (enquanto impacto decisivo) na alteração ou modificação do estado de vida, pessoal e profissional, anterior ao sinistro. Para esse juízo sobre o reflexo do sinistro, há que ter em conta, numa ponderação múltipla e não individualmente exclusiva, nomeadamente, a actividade anteriormente desenvolvida como fonte de rendimentos, a idade e o tempo restante de vida activa profissional, a perda de independência psico-motora, o tipo de doença ou restrição de saúde, as habilitações e capacidades literárias e profissionais da pessoa segura e a possibilidade de reconversão para actividade compatível com essas habilitações e capacidades com igual ou aproximada medida de rendimentos, sempre com enquadramento na situação remuneratória concreta (e projecção na “capacidade de ganho” [16]) do segurado após a estabilização das sequelas do sinistro [17].

É relevante a invalidez, por isso, que, em concreto, se traduz em restrições que, atendendo aos esforços, capacidades e qualificações específicas da profissão exercida, inviabilizam sem mais a manutenção da profissão ou outra com rendimentos equiparáveis, mesmo que sem necessária articulação com os constrangimentos que frustrem a conservação das tarefas da vida diária com a autonomia apresentadas no momento pré-sinistro. De facto, nela se encontram os requisitos da permanência ou definitividade na afectação da capacidade de ganho que cumprem o interesse do contrato de seguro. Já não será assim, por exemplo, quando o sinistro provoca uma incapacidade elevada para o trabalho mas a subsequente reconversão profissional para outras tarefas na mesma entidade patronal não conduz a alteração remuneratória [18].”. [bold nosso]

A análise detalhada a que se procede nesta decisão merece a nossa inteira concordância, afigurando-se plenamente válida para a apreciação do caso sub judice.

Com efeito, as diferenças existentes entre um e outro caso – no acórdão de 27-02-2020 a cláusula definidora do conceito de invalidez foi considerada nula, enquanto, no presente caso, a cláusula foi excluída por não ter sido devidamente explicada ao aderente; naquele acórdão o seguro estava acoplado a um mútuo bancário para aquisição de habitação, enquanto, no presente caso, os seguros estão acoplados a um mútuo para o exercido de actividade empresarial –, mostram-se praticamente irrelevantes para as conclusões formuladas. Conclusões que se encontram sintetizadas, de forma precisa, no sumário do mesmo acórdão:

“I - O conceito relevante de invalidez permanente (ou absoluta e definitiva) enquanto integrante de cláusula de contrato de seguro do ramo Vida, associado a contratos de mútuo bancário em que o segurado é mutuário, assenta: (i) na sua base, numa deficiência física e/ou intelectual que, não obstante os cuidados, os tratamentos e os acompanhamentos, clínicos e reabilitadores, realizados depois do sinistro, subsiste a título definitivo em sede anatómica-funcional e/ou psicossensorial e (ii) concretiza-se, independentemente do seu nível ou grau ou percentagem de incapacidade (desde que não seja residual ou insignificante), em consequência (enquanto impacto decisivo) na alteração ou modificação do estado de vida, pessoal e profissional, anterior ao sinistro.

II - Para esse juízo sobre o reflexo do sinistro, há que ter em conta, numa ponderação múltipla e não individualmente exclusiva, nomeadamente, a actividade anteriormente desenvolvida como fonte de rendimentos, a idade e o tempo restante de vida activa profissional, a perda de independência psico-motora, o tipo de doença ou restrição de saúde, as habilitações e capacidades literárias e profissionais da pessoa segura e a possibilidade de reconversão para actividade compatível com essas habilitações e capacidades com igual ou aproximada medida de rendimentos, sempre com enquadramento na situação remuneratória concreta (e projecção na capacidade de ganho) do segurado após a estabilização das sequelas do sinistro.”. [bold nosso]

Deste modo, sufragam-se estes parâmetros interpretativos adoptados pelo acórdão recorrido.

4. Aqui chegados, justifica-se tecer algumas considerações que permitam enquadrar a segunda questão recursória: saber quais as consequências da exclusão da cláusula delimitadora do risco de invalidez.

Com efeito, o estudo da jurisprudência sobre esta matéria permitiu verificar que as decisões judiciais, em especial, as decisões deste Supremo Tribunal, se podem agrupar da seguinte forma:

(i) Aquelas decisões em que se procura interpretar, de forma mais ou menos estrita, mas sem se pôr em causa a respectiva validade, a cláusula de um contrato de seguro de vida e invalidez, acoplada a um contrato de mútuo bancário, em que o conceito de invalidez se encontra definido em termos idênticos aos da cláusula 2ª, ponto 1, dos contratos dos autos. Ver os acórdãos de 02.11.2023 (proc. n.º 1132/20.4T8PDL.L1.S1), de 17-09-2024 (proc. n.º 1175/16.2T8VLG.P1.S1) e de 11-02-2025 (proc. n.º 795/19.8T8PVZ.P1.S1), todos disponíveis em www.dgsi.pt;

(ii) Aquelas decisões nas quais se discute se tem ou não carácter abusivo a cláusula de um contrato de seguro de vida e invalidez, acoplada a um contrato de mútuo bancário, na qual o conceito de invalidez se encontra definido em termos idênticos aos da cláusula 2ª, ponto 1, dos contratos dos autos. Ver, com decisões em sentidos não convergentes, os acórdãos de 07/10/2010 (proc n.º 1583/06.7TBPRD.L1.S1), de 27/5/2010 (proc. n.º 976/06.4TBOAZ.P1.S1), de 09-02-2012 (proc. n.º 1222/09.4TBPNF.P1.S1), de 18/09/2014 (proc. n.º 2334/10.7TBGDM.P1.S19, de 14/12/2016 (proc. n.º 1724/11.2TVLSB.L1.S1), de 02-03-2021 (proc. n.º 2615/18.1T8VRL.G1) e de 04-04-2024 (proc. n.º 3065/16.0T8BRG.G1.S1), todos consultáveis em www.dgsi.pt;

(iii) Aquelas decisões em que, num contrato em que a cláusula que contém a definição de invalidez, foi declarada nula por o seu conteúdo ser considerado abusivo, se pretende apurar qual o significado do conceito de invalidez absoluta e definitiva utlizado no clausulado não afectado pela nulidade. Ver o acórdão de 11-05-2023 (proc. n.º 437/18.9T8CTB.C1.S1), in www.dgsi.pt, bem como o acórdão de 27-02-2020, cuja orientação vimos acompanhando de perto;

(iv) Aquelas decisões em que, num contrato em que a cláusula que contém a definição de invalidez foi excluída por violação dos deveres de comunicação e de esclarecimento, se pretende determinar qual o significado do conceito de invalidez absoluta e definitiva utilizado no demais clausulado. Ver os acórdãos de 29-03-2011 (proc. n.º 313/07.0TBSJM.P1.S1), in www.dgsi.pt, e de 16-06-2011 (proc. n.º 762/05.9 TBSJM.P1.S1), não publicado.

Esta tipologia permite também percepcionar, de forma mais nítida, a seguinte condicionante na resolução dos casos integrados no grupo (iii): se a cláusula que contém a definição do conceito de invalidez foi declarada nula (e, por isso, afastada) com fundamento no carácter abusivo do respectivo conteúdo, não poderá a actividade interpretativa daquele conceito, utilizado nas cláusulas não afectadas pela nulidade, ter como resultado um sentido idêntico ao da cláusula declarada nula. Conclusão que se afigura por demais evidente.

Mas será que a mesma conclusão vale para as situações que (como o caso dos autos) se integram no grupo (iv)?

Teremos de distinguir em função da natureza do dever violado. Se o dever violado foi o dever de comunicação, previsto no art. 5.º do diploma das Cláusulas Contratuais Gerais, pode admitir-se que, através da actividade interpretativa do conceito de invalidez, se conclua que o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, lhe teria atribuído é equivalente ao sentido da definição constante da cláusula excluída.

Mas já não será assim se o dever violado foi o dever de esclarecimento quanto ao significado da cláusula previsto no art. 6.º do diploma das Cláusulas Contratuais Gerais. Se, como sucedeu no caso dos autos, foi este o dever violado, não poderá a actividade interpretativa do conceito conduzir a um resultado idêntico ao da cláusula excluída.

Com efeito, se, como no caso dos autos, a definição do conceito de invalidez absoluta e definitiva, constante da cláusula 2ª, ponto 1, foi excluída dos contratos de seguro por o seu significado não ter sido devidamente explicado ao aderente, considerando-se que, sem essa explicação, o mesmo não poderia contar que a invalidez absoluta e definitiva assim fosse definida, então não poderá admitir-se – como pretende a recorrente –, que, na interpretação das demais cláusulas, se atribua a essa expressão o sentido da definição excluída.

E é isto que explica que, como se referiu supra, no ponto IV, 2, do presente acórdão, nas decisões das instâncias tenham surgido referências a ambas as vias de tutela do consumidor consagradas no regime jurídico das Cláusulas Contratuais Gerais. Aquela que se concretiza através do controlo da inclusão das cláusulas nos contratos singulares e aquela que o faz mediante o controlo do conteúdo das cláusulas. Sendo que, em matéria de seguros de vida e invalidez, esta última via de tutela vem na linha daquilo que se verifica, designadamente na jurisprudência francesa, com o controlo apertado das designadas clauses-coma, aquelas cláusulas que parecem reservar a cobertura do seguro apenas para situações extremas, de tal modo que (na expressão do acórdão deste Supremo Tribunal de 25-07-2010, proc. n.º 976/06.4TBOAZ.P1.S1, in www.dgsi.pt), para preencher os pressupostos da invalidez, se exigiria «que o segurado estivesse num estado de “praticamente defunto”».

5. Tendo presentes as considerações anteriores, concretizemos quais as consequências da exclusão da cláusula delimitadora do risco de invalidez.

Prescreve o art. 9.º do diploma das Cláusulas Contratuais Gerais:

“1 - Nos casos previstos no artigo anterior os contratos singulares mantêm-se, vigorando na parte afectada as normas supletivas aplicáveis, com recurso, se necessário, às regras de integração. dos negócios jurídicos.

2 - Os referidos contratos são, todavia, nulos quando, não obstante a utilização dos elementos indicados no número anterior, ocorra uma indeterminação insuprível de aspectos essenciais ou um desequilíbrio nas prestações gravemente atentatório da boa fé.”.

Sobre a interpretação e aplicação deste regime legal, o acórdão recorrido limitou-se a afirmar o seguinte:

“Violação dos deveres de adequada comunicação e informação que determinam a exclusão da cláusula em questão dos contratos de seguro referidos nos factos provados (art. 8º a) e b) do DL 446/85) – as cláusulas não comunicadas ou relativamente às quais não haja sido adequadamente cumprido o dever de informação são excluídas do contrato singular celebrado (ainda que materialmente incluídas no contrato, não fazem parte dele juridicamente, tudo se passando como se o acordo estabelecido entre as partes não as tivesse previsto), vigorando estes com o demais clausulado e com recurso, na parte afectada, se necessário, às normas supletivas e às regras da integração do negócio jurídico (art. 9º, nº 1 do DL 446/85) a não ser que, como dispõe o nº 2 do preceito, não obstante a utilização dos mecanismos apontados, ocorra uma indeterminação insuprível de aspectos essenciais do contrato ou ocorra um desequilíbrio nas prestações fixadas, gravemente atentatório da boa-fé, o que não acontece, pois estará tão só em causa a determinação do conceito de ‘invalidez absoluta e definitiva’ enquanto risco coberto, o que pode ser conseguido aplicando as regras da hermenêutica negocial).”. [bold nosso]

Insurge-se a recorrente contra este juízo, alegando essencialmente o seguinte:

- Se os contratos de seguro dos autos não são declarados globalmente nulos em globo e, a par, se mantém o conceito de invalidez absoluta e definitiva acolhido pelo Tribunal da Relação do Porto, a recorrente ficará vinculada a contratos cujos critérios nucleares para a análise do risco não foram considerados na formação da sua vontade de contratar;

- Esta solução impõe um sério e oneroso desequilíbrio nas prestações a satisfazer pela recorrente face à contrapartida do prémio cobrado, o que é gravemente atentatório da boa fé;

- Termos em que, ao decidir como decidiu, o acórdão recorrido interpretou e aplicou incorrectamente as apólices dos autos e o art. 9.º do DL n.º 446/85, de 25 de Outubro.

Pugna o recorrido pelo bem fundamentado do acórdão recorrido.

Quid iuris?

Está em causa apurar se, uma vez excluída a cláusula 2ª, ponto 1, e uma vez rejeitado que, por via interpretativa, se atribua ao conceito de invalidez absoluta e definitiva um sentido equivalente ao da definição constante daquela cláusula, os contratos de seguro dos autos devem ser declarados nulos na sua totalidade por ocorrer “um desequilíbrio nas prestações gravemente atentatório da boa fé”, julgando-se assim procedente o pedido reconvencional formulado pela ré seguradora, ora recorrente.

Vem dada como provada a seguinte factualidade:

19. No momento da análise das propostas identificadas em 1) e 2) a ré reconvinte efetuou uma análise de risco em que considerou a probabilidade de ocorrência de dois eventos, morte e ‘invalidez absoluta e definitiva’.

20. Foi com base na probabilidade de ocorrência desses dois eventos que a ré reconvinte calculou o prémio a pagar pelo reconvindo, considerando uma invalidez limite e um prémio residual em relação à cobertura morte.

21. No cálculo do prémio, a ré reconvinte não considerou uma cobertura de invalidez para apenas o exercício da actividade habitual do autor.

22. Para a cobertura referida em 21) a ré reconvinte analisaria outros factores e calcularia o respetivo prémio, fixando uma taxa autónoma respeitante à cobertura de ‘invalidez’ somando-a com a da cobertura ‘morte’.

Entende-se que estes factos são aptos a demonstrar que a recorrente não teria celebrado os contratos de seguro dos autos nas condições em que foram celebrados se soubesse que o conceito de invalidez absoluta e definitiva não implicaria a incapacidade laboral para toda e qualquer actividade profissional.

Porém, tais factos, que poderiam ser relevantes para se apreciar um pedido de anulação dos contratos com fundamento em erro, não o são para efeitos de aplicação do regime do n.º 2 do art. 9.º do regime das Cláusulas Contratuais Gerais. Por duas razões.

A primeira porque, como foi acima sublinhado, o conceito de invalidez absoluta e definitiva adoptado no acórdão recorrido – que sufragamos – é mais amplo do que aquele que se encontra descrito no facto provado 21. Como vimos, tal conceito – situação de invalidez que inviabiliza “a manutenção da profissão ou outra com rendimentos equiparáveis – não define a invalidez exclusivamente em função da incapacidade para o exercício da profissão habitual, antes inclui a incapacidade para o exercício de outra profissão que permita obter ganhos equiparáveis aos da profissão habitual.

A segunda porque a alegação e prova – que cabe à recorrente (cfr. art. 342.º, n.º 1, do CC) – da existência de “um desequilíbrio nas prestações gravemente atentatório da boa fé” não se basta com a alegação e prova da factualidade constante dos pontos 19 a 22 dos factos provados, antes implicaria a alegação e prova dos quantitativos em causa. Sem isso, não é possível apurar da existência ou não de um desequilíbrio entre as prestações que seja de tal modo significativo que atente contra o princípio da boa fé.

Conclui-se, assim, ser de manter o entendimento do acórdão recorrido de acordo com o qual, excluída a cláusula 2ª, ponto 1, os contratos de seguro dos autos se mantêm com o sentido de invalidez absoluta e definitiva adoptado no mesmo acórdão: “É relevante a invalidez (…) que, em concreto, se traduz em restrições que, atendendo aos esforços, capacidades e qualificações específicas da profissão exercida, inviabilizam sem mais a manutenção da profissão ou outra com rendimentos equiparáveis”.

6. Antes de prosseguir, importa assinalar que, ainda que não se concluísse pela inexistência de factualidade alegada e provada que permita aferir do preenchimento dos pressupostos do n.º 2 do art. 9.º do diploma das Cláusulas Contratuais Gerais, a declaração de nulidade dos contratos de seguro dos autos, com o fundamento invocado pela recorrente, suscitaria sérias dúvidas de compatibilidade com o direito da União Europeia, tal como interpretado pela jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia.

Significa isto que uma eventual declaração de nulidade dos contratos de seguro dos autos ao abrigo do n.º 2 do art. 9.º, do regime das CCG implicaria a realização de prévio reenvio prejudicial para o TJUE a fim de se averiguar, nas circunstâncias concretas dos autos acima enunciadas, da compatibilidade plena desse regime com o direito da União Europeia.

7. Aqui chegados, estamos finalmente em condições de conhecer da terceira e última questão recursória: verificação do risco coberto pelos contratos de seguros celebrados entre as partes em função do conceito de invalidez enunciado no final do ponto IV, 5, do presente acórdão: “É relevante a invalidez (…) que, em concreto, se traduz em restrições que, atendendo aos esforços, capacidades e qualificações específicas da profissão exercida, inviabilizam sem mais a manutenção da profissão ou outra com rendimentos equiparáveis”.

Consideremos os seguintes factos provados:

- O autor nasceu em D/M/1964 (pelo que tinha 52 anos à data de ocorrência do sinistro: 16-04-2015)

36. No foro laboral foi atribuída ao autor uma IPP de 88,2252%.

37. Foi-lhe igualmente atribuída incapacidade permanente absoluta para a atividade profissional habitual.

38. Concluiu-se por necessidade de ajuda de terceira pessoa para algumas atividades não discriminadas 2 horas por dia.

39. O autor tem dificuldade em deslocar-se em rampas e ruas inclinadas.

40. Tem dificuldade em subir e descer escadas, fazendo-o com apoio de corrimão.

41. Apoia-se em duas canadianas para deambular em espaços exteriores em pequenas distâncias e plano horizontal e com bengala no interior do domicílio.

42. O autor queixa-se de dormência nas pernas.

43. Necessita de fazer aquecimento dos músculos para se levantar da cama de manhã.

44. O autor necessita de auxílio da esposa ou do filho para lavar as costas e para se secar após o duche que toma sentado.

45. O autor parte os alimentos com ambas as mãos, mas apenas usa o garfo na mão direita por incapacidade em elevar a mão esquerda ao nível da boca.

46. Quando socialmente carece de se deslocar a pé por distâncias maiores, designadamente quando acompanha a família ou amigos em algum passeio, tem de o fazer numa scooter.

O acórdão recorrido apreciou da seguinte forma a questão da concretização do risco dos seguros dos autos:

À luz do conceito de invalidez absoluta e definitiva adoptado, “(…) tem de concluir-se pela ocorrência do risco coberto (e pelo consequente surgimento do dever de prestar a cargo da apelada seguradora), isto é, estar o autor em estado de invalidez absoluta e definitiva, ponderando que, nascido em D/M/1964, se dedicava a administrar empresa de pesca, dando também apoio às actividades em terra de tal empresa e que:

- sofreu em 2015 acidente que lhe causou lesões das quais resultam sequelas que importaram lhe fosse atribuída, na sua valorização no foro laboral, uma incapacidade parcial permanente de 88,2252% e, igualmente, uma incapacidade permanente absoluta para a atividade profissional habitual, e que correspondem a um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 61,68 pontos (défice tido como compatível com a ocupação de um posto de trabalho cujo conteúdo funcional envolva a actividade dos membros superiores, sem grande exigência física, como porteiro ou recepcionista ou, ainda, funcionário administrativo),

- em consequência das sequelas permanentes de que ficou a padecer, necessita de ajuda de terceira pessoa para algumas atividades não discriminadas 2 horas por dia, tem dificuldade em deslocar-se em rampas e ruas inclinadas, em subir e descer escadas, fazendo-o com apoio de corrimão, apoia-se em duas canadianas para deambular em espaços exteriores em pequenas distâncias e plano horizontal e com bengala no interior do domicílio e quando carece de se deslocar a pé por distâncias maiores (designadamente quando acompanha a família ou amigos em algum passeio) tem de o fazer numa scooter, tem dormência nas pernas, necessita de fazer aquecimento dos músculos para se levantar da cama de manhã, necessita de auxílio da esposa ou do filho para lavar as costas e para se secar após o duche (que toma sentado), parte os alimentos com ambas as mãos mas apenas usa o garfo na mão direita por incapacidade em elevar a mão esquerda ao nível da boca e, mercê das lesões e sequelas, sente dores sempre que mantém durante algum tempo a mesma posição corporal (como seja nos casos dos diversos decúbitos, de sedestação, ou da posição ortostática), bem como quando se desloca em pisos inclinados ou irregulares, ou ao subir escadas, tomando medicação para aliviar as dores com carácter de regularidade.

Estado (de invalidez permanente e absoluta, no conceito que se acima se delineou) que se conclui valorizando as lesões (facto 27) e sequelas (facto 35) sofridas que o afectam em consequência do acidente que o vitimou – avultam, para lá das reconhecidas limitações funcionais (a incapacidade absoluta e permanente para o exercício da profissão habitual e o défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 61,68 pontos, medicamente tido por compatível com a ocupação de um posto de trabalho cujo conteúdo funcional envolva a actividade dos membros superiores, sem grande exigência física, como porteiro, recepcionista ou funcionário administrativo), a dificuldade na movimentação/locomoção (atente-se na necessidade de usar scooter para se deslocar, salvo em distâncias curtas – usa canadianas nestas deslocações em distâncias curtas no exterior e bengala no interior), a incapacidade para manter, por períodos mais ou menos prolongados, a mesma posição corporal (casos dos diversos decúbitos, de sedestação ou da posição ortostática) – e atendendo à sua idade (ao tempo da consolidação das lesões e sequelas – e portanto, quando adquirida a irreversibilidade do referido estado – já com 52 anos de idade) e à actividade anteriormente exercida (administrava a empresa de pesca e auxiliava nas actividades de tal empresa em terra), conclui-se que o exercício de actividade profissional indiferenciada (ainda que a remuneração se pudesse ter por semelhante à que anteriormente auferia), como a de recepcionista, porteiro ou funcionário administrativo é, no seu caso, possibilidade meramente abstracta (e sendo certo que está absoluta e permanente incapacitado para o exercício da sua profissão habitual), pois que qualquer dessas actividades profissionais implica disponibilidades físicas (capacidades de locomoção e de manutenção da mesma posição corporal) que o autor não tem.”.

Discorda a recorrente deste entendimento, alegando essencialmente o seguinte:

“Da matéria de facto provada e da prova pericial junta aos autos, resulta absolutamente cristalino que o Recorrido não se encontra totalmente incapaz para o exercício de qualquer atividade lucrativa, sendo que o seu atual perfil funcional será compatível com a ocupação de um posto de trabalho cujo conteúdo funcional envolva a atividade dos membros superiores, mas sem grande exigência física, como seja, porteiro de edifícios ou rececionista – vd. factos provados 35., 36., 37, relatório de “Avaliação da Capacidade de Trabalho e de Ganho e do Potencial de Reabilitação e Reintegração Profissional e da Necessidade de Produtos de Apoio”, realizado pelo Centro de Reabilitação Profissional de ..., junto aos autos em 04/02/2022 e relatório final de “Perícia de Avaliação do Dano Corporal em Direito Civil”, elaborado pelo INML, junto aos autos a 15/12/2022.”.

Pugna o recorrido pela manutenção do juízo do acórdão recorrido.

Vejamos.

Afigura-se que a pretensão da recorrente se encontra condenada ao insucesso. Na verdade, não impugna a recorrente o entendimento do Tribunal a quo quanto à verificação do risco coberto pelos seguros em função do conceito de invalidez por aquele adoptado, antes insiste em que a situação de invalidez deve ser concebida como correspondendo à incapacidade para toda e qualquer actividade profissional.

Ora, estando afastada esta acepção de invalidez, perante a prova da gravidade das lesões sofridas pelo autor e suas sequelas permanentes, sufraga-se o entendimento do acórdão recorrido: “atendendo à sua idade (ao tempo da consolidação das lesões e sequelas – e portanto, quando adquirida a irreversibilidade do referido estado – já com 52 anos de idade) e à actividade anteriormente exercida (administrava a empresa de pesca e auxiliava nas actividades de tal empresa em terra), conclui-se que o exercício de actividade profissional indiferenciada (ainda que a remuneração se pudesse ter por semelhante à que anteriormente auferia), como a de recepcionista, porteiro ou funcionário administrativo é, no seu caso, possibilidade meramente abstracta (e sendo certo que está absoluta e permanente incapacitado para o exercício da sua profissão habitual), pois que qualquer dessas actividades profissionais implica disponibilidades físicas (capacidades de locomoção e de manutenção da mesma posição corporal) que o autor não tem.”. [bold nosso]

Conclui-se, assim, pela total improcedência das pretensões da recorrente.

V – Decisão

Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente, confirmando-se a decisão do acórdão recorrido.

Custas pela recorrente.

Lisboa, 18 de Setembro de 2025

Maria da Graça Trigo (relatora)

Orlando Nascimento

Catarina Serra