Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
531/15.8T8LRA.C1.S2
Nº Convencional: 1ª SESSÃO
Relator: HELDER ROQUE
Descritores: COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
COMPETÊNCIA INTERNA
CAUSA DE PEDIR
PEDIDO
DOMICÍLIO
INCUMPRIMENTO DO CONTRATO
Data do Acordão: 07/11/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – ACÇÃO, PARTES E TRIBUNAL / TRIBUNAL / COMPETÊNCIA INTERNACIONAL / COMPETÊNCIA INTERNA / COMPETÊNCIA EM RAZÃO DO TERRITÓRIO.
Doutrina:
- Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, volume 1º, 1960, p. 120, 121, 131 e 132;
- Anselmo de Castro, Lições de Processo Civil, II, reimpressão, 1970, p. 406, 407 410 a 413;
- Remédio Marques, Acção Declarativa À Luz do Código Revisto, 2ª edição, Coimbra Editora, 2009, 259 e 286.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 62.º, ALÍNEAS A) E C), 70.º A 84.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 27-01-1993, IN CJSTJ, ANO I, TOMO I, P. 106;
- DE 07-10-2003, IN CJSTJ, ANO XI, TOMO III, P. 80;
- DE 16-06-2012, PROCESSO N.º 832/07.9TBVVD.L2.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 30-01-2013, PROCESSO N.º 1705/08.3TBVNO.C1.S1, IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :

I - Verificada qualquer uma das circunstâncias atributivas da competência internacional dos tribunais portugueses, enumeradas pelas als. a) a c), do art. 62.º, do CPC, tem-se logo como reconhecida a competência internacional dos tribunais portugueses, que se afere em função da relação material controvertida, ou seja, do pedido e da causa de pedir, tal como os mesmos se apresentam invocados pelo autor.
II - O princípio da coincidência da competência internacional com a competência territorial, segundo o qual os factos que, na órbita da competência interna, determinam a competência territorial do tribunal português, determinam, também, na esfera internacional, a competência da jurisdição portuguesa, em confronto com as jurisdições estrangeiras, estabelecido pela al. a) do art. 62.º, deve ser entendido como pressupondo a remissão para os arts. 70.º a 84.º, todos do CPC.
III - O princípio da coincidência da competência interna e da competência internacional é dominado pelo domicílio do réu, pese embora o litígio possua elementos de conexão com ordens jurídicas estrangeiras, pelo que o tribunal com competência territorial interna é, também, internacionalmente, competente, face à jurisdição atribuída por leis estrangeiras aos tribunais estrangeiros, de acordo com o princípio da dupla funcionalidade.
IV - Quando a causa de pedir é um contrato e o seu incumprimento, ou seja, quando a causa de pedir é complexa, é suficiente que a celebração do contrato tenha ocorrido em Portugal, pois que o ónus da prova do incumprimento impende sobre o réu.
V - O fator de atribuição da competência internacional dos tribunais portugueses que tem subjacente o princípio da necessidade deixou de assumir natureza excecional e subsidiária, face aos demais, por não se exigir, apenas, o requisito da impossibilidade efetiva de o direito invocado não se tornar efetivo senão por meio da ação proposta em território português ou não ser exigível ao autor a sua propositura no estrangeiro, para se bastar com a dificuldade apreciável para o autor na propositura da ação no estrangeiro, desde que subsista a presença de um elemento ponderoso de conexão, pessoal ou real, entre o objeto do litígio e a ordem jurídica portuguesa.
VI - A negação da competência internacional para a presente ação, por eventual não verificação dos fatores de conexão consagrados pelo art. 62.º, do CPC, não encontraria razão justificativa no princípio do «forum non conveniens», em contraponto com a existência de tribunal estrangeiro mais bem colocado para julgar o litígio e que não decline a sua jurisdição.

           
      

        (Acórdão e sumário redigidos ao abrigo do novo Acordo Ortográfico)

Decisão Texto Integral:

ACORDAM OS JUÍZES QUE CONSTITUEM O SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA[1]:

“AA, SA”, com sede na ......., lugar de ......., freguesia de ....., concelho de Leiria, e “BB, SA”, com sede no ...... BB, Bairro ...... .... Luanda, Angola, propuseram a presente ação declarativa, com processo comum, contra CC, SA”, com sede na Rua d........ lugar de P...., freguesia de R...., concelho de L..., “DD, Ldª”, com sede no C........., Q----- V, c................., K............., Luanda, Angola, e EE e mulher, FF, residentes na .........., nº ......... freguesia de C.........., concelho de Leiria, pedindo que, na sua procedência, os réus sejam, solidariamente, condenados a pagarem às autoras a quantia de €322.307,76, quantia esta acrescida de juros vincendos, à taxa supletiva para as operações comerciais, contados sobre €123.787,56, desde a data de citação e até efetivo e integral pagamento [a] e que os réus sejam condenados, solidariamente, no pagamento da quantia de €37,93, por cada dia contado desde a citação e em que o armazém da autora “BB, SA” estiver ocupado com o material destinado aos réus, até à sua efetiva desocupação [b], invocando, para o efeito, e, em síntese, o incumprimento de um contrato de fornecimento e montagem de um pavilhão, em Luanda, que seria pago, através do fornecimento de portões, pela ré CC, SA”, a montar pela ré “DDs, Ldª”, também, em Angola.

A autora “AA, SA” iniciou o fabrico das peças metálicas necessárias à construção e instalação do pavilhão da ré “DD Ldª”, em Angola, que ficou completo, em junho de 2009, tendo sido expedido para Angola, onde chegou, em agosto de 2009, e transportado para as instalações fabris da autora “BB, SA”, onde se encontra em depósito.

Na contestação, a ré “DDs, L.da” invoca a incompetência internacional do tribunal português para conhecer do objeto da presente ação.

Por sua vez, na sua contestação, os réus CC, SA”, e EE e mulher, FF, invocam a exceção do caso julgado.

Na sua resposta, as autoras sustentam o indeferimento das exceções da incompetência internacional e do caso julgado.

No despacho saneador, julgou-se o tribunal português, internacionalmente, incompetente para a tramitação e decisão da presente causa, bem como verificada a exceção de caso julgado, em face dos factos já julgados e apreciados, no processo ordinário nº 128/11.1YIPRT, da Comarca de Leiria, Secção Cível, Juiz 4, com a consequente absolvição dos réus da instância.

Desta decisão, a autora “AA, S.A.” interpôs recurso, tendo o Tribunal da Relação julgado a apelação improcedente, “confirmando o despacho recorrido na parte em que absolve os Réus da presente instância, com fundamento na incompetência internacional dos Tribunais Portugueses para a apreciação da presente lide” e declarado “prejudicado o conhecimento da também invocada exceção de caso julgado, por manifesta inutilidade desse conhecimento”.

Deste acórdão da Relação de Coimbra, os autores interpuseram agora recurso de revista, para este Supremo Tribunal de Justiça, concluindo as alegações com o pedido da sua revogação e substituição por outro que fixe jurisprudência no sentido de serem os tribunais portugueses, internacionalmente, competentes para julgar litígios em que, estando
envolvidos vários ordenamentos jurídicos, alguns dos factos que integram a causa de pedir hajam sido praticados em território português, e, bem assim, conclua pela inexistência da exceção de caso julgado, relativamente à sentença proferida, na ação de processo ordinário nº 128/11.1YIPRT, da Comarca de Leiria, formulando as seguintes proposições que, integralmente, se transcrevem:

1ª - O Tribunal recorrido fez uma errada interpretação e aplicação da lei.

2ª - O Tribunal a quo é internacionalmente competente para a decisão da causa, nos termos do disposto nos artigos 62.°, a); 71.°, n° 1 e 82°, n° 1 do C.P.C., uma vez que a presente ação tem por fundamento o cumprimento de obrigações contratuais e uma indemnização pelo não cumprimento; a primeira e a segunda rés são pessoas coletivas e o tribunal do domicílio do maior número de réus é o da Comarca de Leiria.

3ª - Como refere o Ac. do T.R.P., de 28/02/2013, proferido no âmbito do
processo n.° 182/11.6TVPRT-A.P1, relatado pelo Desembargador José Amaral,
in www.dgsi.pt (Ac. fundamento), a competência internacional dos tribunais portugueses deve ser aferida, na falta de instrumentos internacionais, pelo pedido e pela causa de pedir invocados pelo autor na petição inicial, bastando a verificação de alguma das circunstâncias elencadas no artigo 62.° do C.P.C..

4ª - Decorre da própria lei (artigo 59.° do C.P.C.), da Doutrina (Antunes Varela, ob. citada, página 199) e da Jurisprudência (Acórdãos do STJ, de 30-07-1987, relatado pelo Conselheiro José Domingues ou de 25-11-2004, relatado pelo Conselheiro Araújo de Barros, ambos in www.dgsi.pt), que basta a verificação de alguma das descritas circunstâncias ou fatores (princípio da autonomia ou da independência) para que ao tribunal português seja atribuída a competência.

5ª - Como se refere no Acórdão do S.T.J. de 30/01/2013, relatado pelo Conselheiro Salazar Casanova, in www.dgsi.pt, a competência internacional dos tribunais portugueses deve ser aferida em função do pedido e causa de pedir invocados pelo autor.

6ª - Tendo sido praticados em território português alguns dos factos que servem de causa de pedir na ação, o tribunal português é competente para a julgar, nos termos do artigo 62.°, al. b) do C.P.C..

7ª - Resulta claramente da p.i. que tudo conflui no sentido de que se trata de uma obrigação em que impende sobre a recorrente (devedora) levar, enviar ou expedir, por sua conta e risco, as estruturas metálicas por si fabricadas para Angola (lugar do cumprimento), no qual os segunda e terceiro réus (credores) a rececionam e, portanto, a obrigação se cumpre.

8ª - Os contratos eram celebrados em Portugal, mas executados parcialmente em Angola, sendo que a maioria dos réus (primeira e terceiros) reside ou tem a sua sede em Portugal.

9ª - Ainda que se considerasse que os factos integrantes da causa de pedir foram praticados em território angolano e não em território português, o que só por mero raciocínio académico se admite, é absolutamente incontornável que, pelo menos, alguns deles - como o fabrico das estruturas metálicas pela recorrente – ocorreram em Portugal. E basta isso para, nos termos do disposto na alínea b) do artigo 62.° do C.P.C., o tribunal recorrido ter competência internacional para julgar a causa.

10ª - A segunda ré, tendo embora a sua sede em Angola, foi citada nos presentes autos em Portugal, na sede da primeira ré, em Leiria, por contacto pessoal, na pessoa do seu legal representante, o terceiro réu, EE, em 14/05/2015.

11ª - Dadas as circunstâncias, em que prepondera, por um lado, a sede da recorrente em Portugal e consequente dificuldade de acesso à justiça angolana e, por outro, a facilidade com que os réus se movimentam em Portugal, sempre a competência seria de atribuir ao tribunal português, nos termos da segunda parte da alínea c) do artigo 62.° do C.P.C., uma vez que entre o objeto do litígio e a ordem jurídica nacional existem, como supra referimos, ponderosos elementos de conexão pessoal.

12ª - O douto Acórdão agora posto em crise está, pois, em frontal contradição com o supracitado Acórdão, proferido pelo Tribunal da Relação do Porto, em 28/02/2013, relatado pelo Desembargador José Amaral, transitado em julgado, disponível em www.dgsi.pt, que doravante consideraremos o Acórdão fundamento.

13ª - Ambos os Acórdãos se debruçam sobre a mesma questão fundamental de direito: a de saber se os tribunais portugueses são internacionalmente competentes para o julgamento de litígios em que, estando envolvidos outros países além de Portugal, alguns dos factos que integram a causa de pedir hajam sido praticados em território português.

14ª - O Tribunal recorrido deu resposta negativa, enquanto outros da mesma espécie têm dado resposta positiva.

15ª - A apreciação da questão é absolutamente necessária para uma melhor aplicação do direito, uma vez que, nesta altura, existe uma completa divergência entre Tribunais sobre a supracitada questão de fundo.

16ª - Em nome dos princípios da economia processual e da segurança jurídica torna-se imprescindível que este Colendo Tribunal resolva, de uma vez por todas, a seguinte questão fundamental de direito: serão os tribunais portugueses internacionalmente competentes para o julgamento de um litígio em que, estando envolvidos vários ordenamentos jurídicos, alguns dos factos que integram a causa de pedir hajam sido praticados em território português, nos termos do disposto na alínea D) do artigo 62.° do C.P.C.?

17ª - Não obstante não ter o Tribunal recorrido apreciado o recurso sobre a existência ou não da exceção de caso julgado em relação à sentença proferida na ação de processo ordinário n° 128/11.1 YIPRT da Comarca de Leiria, Secção Cível, Juiz 4, a mesma não se verifica.

18ª - Como estatui o n° 1 do artigo 580.° do C.P.C., o caso julgado
pressupõe a repetição de uma causa, decidida por sentença transitada em julgado.

19ª - O pedido reconvencional formulado pela recorrente nos autos de ação ordinária n° 128/11.1 YIPRT não foi admitido, pelo que não chegou a ser objeto de decisão de mérito.

20ª - O caso julgado pressupõe ainda identidade de sujeitos (artigo 581.°, n.° 1 do C.P.C.), sendo os sujeitos da presente ação distintos do da ação n.° 128/11.1 YIPRT.

21ª - Entre a primeira ação e a atual não se verifica, igualmente, identidade do objeto, entendido este na inter-relação necessária entre o pedido e a causa de pedir.

22ª - Também não se verifica ocorrer, no caso vertente, identidade dos pedidos nem da causa de pedir formulados nas ações judiciais em referência, pelo que, não ocorre exceção do caso julgado.

23ª - Trata-se de meras ações conexas, não se estendendo os efeitos de caso julgado decorrentes da decisão proferida na ação ordinária n.° 128/11.1YIPRT ao presente litígio, sendo distintas as ações e os efeitos jurídicos que em cada uma se visa alcançar, bem como os efeitos jurídicos em que cada uma se fundamenta.

24ª - O Tribunal a quo violou e fez errada interpretação do preceituado nos artigos 62.°; 71.°; 80.°, n.° 1; 81.°, n.° 2; 82.°, n.° 1; 580.° e 581.° do C.P.C, e 20.°, n.° 1 da C.R.P..

Os réus não apresentaram contra-alegações.

                                                                  *
Tudo visto e analisado, ponderadas as provas existentes, atento o Direito aplicável, cumpre, finalmente, decidir.
As questões a decidir, na presente revista, em função das quais se fixa o objeto do recurso, considerando que o «thema decidendum» do mesmo é estabelecido pelas conclusões das respetivas alegações, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, com base no preceituado pelas disposições conjugadas dos artigos 5º, 608º, nº 2, 609º, 635º, nºs 4 e 5, 639º e 679º, todos do Código de Processo Civil (CPC), são as seguintes:

I – A questão da competência internacional dos tribunais portugueses.

II – A questão da exceção do caso julgado.

                    I. DA COMPETÊNCIA INTERNACIONAL

Entendem os autores que os tribunais portugueses são, internacionalmente, competentes para o julgamento de um litígio em que, estando envolvidos vários ordenamentos jurídicos, alguns dos factos que integram a causa de pedir hajam sido praticados, em território português.

A competência internacional designa a fração do poder jurisdicional atribuída aos tribunais portugueses, no seu conjunto, relativamente à fração de poder jurisdicional cometida, por leis nacionais estrangeiras, tratados ou convenções internacionais, a tribunais estrangeiros, para julgar as ações que tenham algum elemento de conexão com ordens jurídicas estrangeiras[2].

A competência internacional dos tribunais portugueses depende, na falta de instrumentos internacionais, da verificação de alguma das circunstâncias discriminadas no artigo 62º, do CPC, aferindo-se em função da relação material controvertida, ou seja, do pedido e da causa de pedir, tal como os mesmos se apresentam invocados pelo autor[3].

Por isso, é que, verificada qualquer uma das circunstâncias atributivas, enumeradas pelas alíneas a) a c), do artigo 62º, do CPC, tem-se logo como reconhecida a competência internacional dos tribunais portugueses.

O primeiro dos fatores atributivos da competência internacional dos tribunais portugueses ocorre, em conformidade com a alínea a), do artigo 62º, citado, “quando a ação possa ser proposta em tribunal português segundo as regras de competência territorial estabelecidas na lei portuguesa;”.

O dispositivo legal, acabado de transcrever, consagra o princípio da coincidência da competência internacional com a competência territorial, segundo o qual os factos que, na órbita da competência interna, determinam a competência territorial do tribunal português, determinam, também, na esfera internacional, a competência da jurisdição portuguesa em confronto com as jurisdições estrangeiras[4].

Ora, o princípio da coincidência da competência internacional com a competência interna, também, designado pelo princípio da exclusividade, estabelecido pela alínea a), do artigo 62º, deve ser entendido como pressupondo a remissão para os artigos 70º a 84º, todos do CPC.

E, no domínio da competência territorial interna, a regra geral constante do artigo 80º, nº 1, do CPC, é a de que “em todos os caos não previstos nos artigos anteriores ou em disposições especiais é competente para a ação o tribunal do domicílio do réu”.

Para além desta regra geral, existem ainda regras especiais limitadoras do âmbito daquela regra geral, designadamente, para o que agora interessa considerar, as dos artigos 71º e 82º, do CPC.

Dispõe o artigo 71º, nº 1, do CPC, que “a ação destinada a exigir o cumprimento de obrigações, a indemnização pelo não cumprimento…é proposta no tribunal do domicílio do réu, podendo o credor optar pelo tribunal do lugar em que a obrigação deveria ser cumprida, quando o réu seja pessoa coletiva ou quando,…”.

A isto acresce que, tratando-se a alegada dívida dos réus para com as autoras de uma obrigação pecuniária, “deve a prestação ser efetuada no lugar do domicílio que o credor tiver ao tempo do cumprimento”, de acordo com o preceituado pelo artigo 774º, do Código Civil (CC).

E, devendo o preço ser pago, “no momento e no lugar da entrega da coisa vendida”, por força do disposto pelo artigo 885º, nº 1, do CC, o respetivo nº 2 acrescenta que “mas, se por estipulação das partes ou por força dos usos o preço não tiver de ser pago no momento da entrega, o pagamento será efetuado no lugar do domicílio que o credor tiver ao tempo do cumprimento”.

Por outro lado, estipula o artigo 82º, nº 1, do CPC, que “havendo mais de um réu na mesma causa, devem ser todos demandados no tribunal do domicílio do maior número;”.

Com efeito, tendo o réu ou algum dos réus o seu domicílio em Portugal, com exceção das situações de competência exclusiva dos tribunais portugueses, a que alude o artigo 63º, do CPC, os tribunais portugueses são, internacionalmente, competentes[5], por força do estipulado pelos artigos 62º, a) e 80º, nº 1, todos do CPC, pelo que o princípio da coincidência da competência interna e da competência internacional é dominado pelo domicílio do réu[6], pese embora o litígio possua elementos de conexão com ordens jurídicas estrangeiras.

Deste modo, o tribunal com competência territorial interna é, também, internacionalmente, competente, face à jurisdição atribuída por leis estrangeiras aos tribunais estrangeiros, de acordo com o princípio da dupla funcionalidade[7].

Deste modo, sendo três os réus demandados e, tendo a sede ou residindo dois deles, ou seja, a maioria, na área de jurisdição da Comarca de Leiria, isto é, os réus CC, SA.”, e EE e mulher, FF, pois, apenas, a ré “DD, L.da” tem sede, em Angola, verifica-se, desde logo, a circunstância atributiva da competência internacional dos tribunais portugueses, por força da coincidência com a competência territorial interna, atento o disposto pelos artigos 62º, a), 80º, nº 1 e 82º, nº 1, todos do CPC.

Por sua vez, tratando-se de uma ação destinada a exigir o cumprimento de uma obrigação pecuniária e a correspondente indemnização pelo não cumprimento, a mesma foi proposta, no tribunal da comarca da maioria dos réus, que é, igualmente, o lugar do domicílio que o credor, a autora “AA, SA”, tem, ao tempo do cumprimento, e, nada se tendo dito quanto ao pagamento do preço, no momento e lugar da entrega da coisa vendida, face à subsequente instalação e montagem do armazém, ocorre ainda a circunstância atributiva da competência internacional dos tribunais portugueses, por força da coincidência com a competência territorial interna, em conformidade com o disposto pelos artigos 62º, a), 71º, nº 1, do CPC, 774º e 885º, nºs 1 e 2, do CC.

Outro dos fatores atributivos da competência internacional dos tribunais portugueses ocorre, em caso de “ter sido praticado em território português o facto que serve de causa de pedir na ação, ou algum dos factos que a integram”.

Trata-se aqui da consagração do princípio da causalidade, reconhecendo-se a competência internacional dos tribunais portugueses quando o facto que serve de causa de pedir na ação, ou algum dos factos que a integram, tiverem sido praticados em território português.

Declara-se, assim, competente a jurisdição portuguesa quando a causa de pedir tenha conexão com o território português, conexão que se traduz na circunstância de ter sido praticado, em Portugal, o ato ou facto que se invoca como causa de pedir.

E, quando a causa de pedir é um contrato e o seu incumprimento, ou seja, quando a causa de pedir é complexa, é suficiente que a celebração do contrato tenha ocorrido em Portugal, pois que o ónus da prova do incumprimento impende sobre o réu[8].

Deste modo, pedindo-se a condenação solidária dos réus a pagarem às autoras a quantia de €322.307,76, e bem assim como a quantia de €37,93, por cada dia contado, desde a citação, e em que o armazém da autora “BB, SA” estiver ocupado com o material destinado aos réus, até à sua efetiva desocupação, invocando as autoras, como fundamento, o incumprimento pelos réus de um contrato de fornecimento e montagem de um pavilhão, em Angola, que seria pago, através do fornecimento de portões, pela ré CC, SA”, a montar pela ré “DD, Ldª”, no mesmo país, tendo a autora “AA, SA” iniciado e concluído, na área da Comarca de Leiria, o fabrico das peças metálicas necessárias à construção do pavilhão da ré “DDs, Ldª”, em Angola, que ficou completo, em junho de 2009, tendo sido expedido para Angola, onde chegou, em agosto de 2009, e foi transportado para as instalações fabris da autora “BB, SA”, onde se encontra em depósito, ocorre, igualmente, a circunstância atributiva da competência internacional dos tribunais portugueses, por força da causalidade, em conformidade com o disposto pelo artigo 62º, b), do CPC.

Contudo, há ainda que reconhecer a existência de uma apreciável maior dificuldade na propositura da ação, no Estado de Angola, não sendo, por isso, exigível aos autores a sua instauração fora de Portugal, sendo indiscutível a presença de um elemento ponderoso de conexão, pessoal e real, entre o objeto do litígio e a ordem jurídica portuguesa, a justificar um novo fator de atribuição da competência internacional dos tribunais portugueses, agora com base no princípio da necessidade, com assento no artigo 62º, c), do CPC.

Este fator de atribuição da competência internacional dos tribunais portugueses deixou de assumir natureza excecional e subsidiária, face aos demais, por não se exigir, apenas, o requisito da impossibilidade efetiva de o direito invocado não se tornar efetivo senão por meio da ação proposta em território português ou não ser exigível ao autor a sua propositura no estrangeiro, para se bastar com a dificuldade apreciável para o autor na propositura da ação no estrangeiro, atendo o disposto pelo artigo 62º, c), do CPC, em confronto com a homóloga redação do artigo 65º, nº 1, d), do CPC, anterior ao DL nº 38/2003, de 8 de março.

Independentemente do regime processual civil angolano quanto à competência internacional dos seus tribunais, no caso em apreço, a negação de competência internacional para a presente ação, por eventual não verificação dos fatores de conexão consagrados pelo artigo 62º, do CPC, não encontraria razão justificativa no princípio do «forum non conveniens», em contraponto com a existência de tribunal estrangeiro mais bem colocado para julgar o litígio e que não decline a sua jurisdição.

Impõe-se, portanto, reconhecer que os tribunais portugueses são, internacionalmente, competentes para o julgamento da presente ação.

                                 II. DO CASO JULGADO

Sustentam as autoras, neste particular, que não se verifica a existência da exceção do caso julgado, relativamente à sentença proferida, na ação de processo ordinário nº 128/11.1YIPRT, da Comarca de Leiria, tratando-se antes de meras ações conexas, não se estendendo os efeitos do caso julgado decorrentes daquela decisão ao presente litígio, sendo distintas as ações e os efeitos jurídicos que, em cada uma, se visa alcançar, bem como os efeitos jurídicos, em que cada uma se fundamenta.

Porém, o acórdão recorrido declarou “prejudicado o conhecimento da também invocada exceção de caso julgado, por manifesta inutilidade desse conhecimento”, face ao entendimento assumido, a propósito da questão da competência internacional, sendo certo que, no despacho saneador, o tribunal de 1ª instância havia considerado verificada a exceção do caso julgado, em face dos factos já julgados e apreciados, no processo ordinário nº 128/11.1YIPRT, da Comarca de Leiria, Secção Cível, Juiz 4, com a consequente absolvição dos réus da instância.

 Porém, não vigorando, em matéria de recurso de revista, a regra da substituição do tribunal recorrido, por lhe não ser, subsidiariamente, aplicável esse regime, atento o disposto pelos artigos 665º, nº 2 e 679º, ambos do CPC, deverão os autos baixar ao Tribunal da Relação, para conhecimento da questão da exceção do caso julgado, entretanto, considerada prejudicada pela decisão emitida quanto à competência internacional, que ora se não confirma.

CONCLUSÕES:

I – Verificada qualquer uma das circunstâncias atributivas da competência internacional dos tribunais portugueses, enumeradas pelas alíneas a) a c), do artigo 62º, do CPC, tem-se logo como reconhecida a competência internacional dos tribunais portugueses, que se afere em função da relação material controvertida, ou seja, do pedido e da causa de pedir, tal como os mesmos se apresentam invocados pelo autor.

II - O princípio da coincidência da competência internacional com a competência territorial, segundo o qual os factos que, na órbita da competência interna, determinam a competência territorial do tribunal português, determinam, também, na esfera internacional, a competência da jurisdição portuguesa, em confronto com as jurisdições estrangeiras, estabelecido pela alínea a), do artigo 62º, deve ser entendido como pressupondo a remissão para os artigos 70º a 84º, todos do CPC.

III - O princípio da coincidência da competência interna e da competência internacional é dominado pelo domicílio do réu, pese embora o litígio possua elementos de conexão com ordens jurídicas estrangeiras, pelo que o tribunal com competência territorial interna é, também, internacionalmente, competente, face à jurisdição atribuída por leis estrangeiras aos tribunais estrangeiros, de acordo com o princípio da dupla funcionalidade.

IV - Quando a causa de pedir é um contrato e o seu incumprimento, ou seja, quando a causa de pedir é complexa, é suficiente que a celebração do contrato tenha ocorrido em Portugal, pois que o ónus da prova do incumprimento impende sobre o réu.

V - O fator de atribuição da competência internacional dos tribunais portugueses que tem subjacente o princípio da necessidade deixou de assumir natureza excecional e subsidiária, face aos demais, por não se exigir, apenas, o requisito da impossibilidade efetiva de o direito invocado não se tornar efetivo senão por meio da ação proposta em território português ou não ser exigível ao autor a sua propositura no estrangeiro, para se bastar com a dificuldade apreciável para o autor na propositura da ação no estrangeiro, desde que subsista a presença de um elemento ponderoso de conexão, pessoal ou real, ente o objeto do litígio e a ordem jurídica portuguesa.

VI – A negação da competência internacional para a presente ação, por eventual não verificação dos fatores de conexão consagrados pelo artigo 62º, do CPC, não encontraria razão justificativa no princípio do «forum non conveniens», em contraponto com a existência de tribunal estrangeiro mais  bem colocado para julgar o litígio e que não decline a sua jurisdição.

DECISÃO[9]:

Por tudo quanto exposto ficou, acordam os Juízes que constituem a 1ª secção cível do Supremo Tribunal de Justiça, em conceder a revista das autoras e, em consequência, revogam o acórdão recorrido, declarando a competência internacional do tribunal português para conhecer do objeto da ação se, entretanto, o Tribunal da Relação de Coimbra, para onde os autos deverão baixar, não julgar procedente a exceção dilatória do caso julgado, cujo conhecimento considerou prejudicado, em função da decisão proferida quanto à competência internacional, que ora se não confirma, cabendo o julgamento aos mesmos Exºs Desembargadores, se possível.

                                                         *                                                             

Custas da revista, a cargo dos réus, solidariamente.

                                                              *

Notifique.

Lisboa, 11 de Julho de 2017

Helder Roque (Relator) *
       Roque Nogueira
       Alexandre Reis

____________


[1] Relator: Helder Roque; 1º Adjunto: Conselheiro Roque Nogueira; 2º Adjunto: Conselheiro Alexandre Reis.
[2] Remédio Marques, Acção Declarativa À Luz do Código Revisto, 2ª edição, Coimbra Editora, 2009, 259; STJ, de 7-10-2003, CJ (STJ), Ano XI, T3, 80.
[3] STJ, de 30-1-2013, Pº nº 1705/08.3TBVNO.C1.S1, www.dgsi.pt
[4] Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, volume 1º, 1960, 120 e 121; Anselmo de Castro, Lições de Processo Civil, II, reimpressão, 1970, 406 e 407. 
[5] STJ, de 16-6-2012, Pº nº 832/07.9TBVVD.L2.S1, www.dgsi.pt  
[6] STJ, de 27-1-1993, CJ (STJ), Ano I, T1, 106.
[7] Remédio Marques, Acção Declarativa À Luz do Código Revisto, 2ª edição, Coimbra Editora, 2009, 286.  
[8] Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, volume 1º, 1960, 131 e 132; Anselmo de Castro, Lições de Processo Civil, II, reimpressão, 1970, 410 a 413.
[9] Relator: Helder Roque; 1º Adjunto: Conselheiro Roque Nogueira; 2º Adjunto: Conselheiro Alexandre Reis.