Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2012/19.1T8PNF.P1.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: PEDRO DE LIMA GONÇALVES
Descritores: RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
ACIDENTE DE VIAÇÃO
DANO BIOLÓGICO
DANOS FUTUROS
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
CÁLCULO DA INDEMNIZAÇÃO
PERDA DA CAPACIDADE DE GANHO
CRITÉRIOS
EQUIDADE
PODERES DE COGNIÇÃO
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Data do Acordão: 02/06/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :
I - O dano biológico integrado por défice funcional permanente da integridade fisico-psíquica de 6 pontos, compatível com o exercício de atividade profissional mas que implica esforços suplementares para o exercício da mesma, é indemnizável sob uma vertente patrimonial, como dano patrimonial futuro que tem em conta a expressão daquele défice.

II - Tratando-se de calcular um quantitativo indemnizatório que traduza o capital de que o lesado se veja privado para o futuro em virtude do défice funcional sofrido, para tal há que ter em conta o período de tempo que, considerando a idade do lesado aquando da data da consolidação médico-legal das lesões (pois é a partir desta que fica definido o défice funcional), tem em conta a sua esperança média de vida, e a consideração do salário médio mensal nacional dos trabalhadores por conta de outrem por referência ao ano da consolidação médico-legal das lesões, isto no caso de o lesado ser estudante, pois neste caso não existe qualquer elemento que indicie que o mesmo se iria situar no patamar mais baixo de uma carreira profissional ou que iria conformar-se com o recebimento do salário que qualquer empresa é obrigada a pagar independentemente das habilitações ou da profissão exercida pelo trabalhador.

Decisão Texto Integral:

Acórdão


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I. Relatório

1. AA propôs ação declarativa comum contra “Seguradoras Unidas S.A.”, à qual sucedeu, entretanto, a “Generali Seguros, S.A.”, pedindo a condenação desta a pagar-lhe a quantia global de €76 000,00 acrescida de juros à taxa legal desde a citação até efetivo pagamento, e ainda a ressarcir-lhe os danos que se venha a apurar serem causa direta e necessária das lesões sofridas com o evento, a ser apurados mediante incidente de liquidação de sentença.

Alegou para tal ter sofrido danos patrimoniais e não patrimoniais para cujo ressarcimento indicou aquele montante na sequência de acidente de viação cuja responsabilidade imputa a veículo automóvel seguro na Ré.

2. Citada, a Ré veio contestar, aceitando a responsabilidade da condutora do veículo por si seguro na eclosão do acidente, impugnou parte dos danos e sua extensão e os montantes indemnizatórios alegados pela Autora.

3. Findos os articulados, e na sequência do requerimento apresentado pela Ré, foi ordenada e efetuada pelo INML perícia médico-legal à pessoa da Autora.

4. Teve lugar audiência prévia, em sede da qual foi proferido despacho saneador e ulterior despacho de identificação do objeto do litígio e enunciação dos temas da prova.

5. Procedeu-se a julgamento, tendo na sua sequência sido proferida sentença em que se decidiu nos seguintes termos:

Pelo exposto, de harmonia com as disposições legais citadas, julgo a presente acção parcialmente procedente, e consequentemente, decide-se:

1. Condenar a Ré Seguradoras Unidas, SA., a pagar à Autora AA:

a) a título de danos patrimoniais (ajudas medicamentosas), a quantia de global de € 4.000,00 (quatro mil euros), acrescida de juros de mora à taxa de 4% ao ano, desde a data da citação até efectivo e integral pagamento;

b) a título de dano pela perda da capacidade de ganho e pelos esforços acrescidos, a quantia global de € 15.000,00 (quinze mil euros), acrescida de juros de mora à taxa de 4% ao ano, desde a data da citação até efectivo e integral pagamento;

c) a título de danos não patrimoniais, a quantia global de € 20.000,00 (vinte mil euros), acrescida de juros de mora à taxa legal de 4% ao ano, desde a data da presente sentença, até efectivo e integral pagamento.

2. No mais, absolve-se a R. do peticionado.”

6. Inconformada com esta decisão, a Autora interpôs recurso de apelação.

7. O Tribunal da Relação do Porto veio a proferir acórdão, decidindo: “Por tudo exposto, acorda-se em julgar parcialmente procedente o recurso e, revogando-se parcialmente a sentença recorrida, decide-se:

- condenar a Ré a pagar à Autora a quantia de 39.810 euros a título de indemnização do dano biológico enquanto dano patrimonial futuro, acrescida de juros à taxa legal desde a citação até efetivo e integral pagamento;

- manter o decidido na sentença recorrida quanto à condenação da Ré a pagar à Autora a quantia de 4000 euros a título de indemnização por despesas com medicamentos, acrescida de juros à taxa legal desde a citação até efetivo e integral pagamento.”

8. Inconformada, a Ré veio interpor recurso de revista, formulando as seguintes (transcritas) conclusões:

1. Não resulta da prova produzida que a recorrente, em consequência da incapacidade de que ficou a padecer, tenha tido uma real e efectiva perda de rendimentos.

2. À conta dos esforços suplementares que tem de realizar a recorrente não vê perdida qualquer parcela do rendimento que aufere.

3. Do ponto de vista patrimonial é bem mais penalizadora a existência de uma incapacidade permanente que se traduz numa real e efectiva perda de rendimentos do que outra qualquer incapacidade que não tenha essa repercussão, até porque se há perda de rendimentos decorrente de incapacidade permanente, então necessariamente essa incapacidade, pela sua própria natureza, vai também reflectir-se em termos de dano biológico na sua vertente patrimonial extra-laboral.

4. Não pode ocorrer que, partindo-se da não existência efectiva de perda de rendimentos, se venha a atribuir indemnização que ultrapassa largamente a que seria devida caso essa perda de rendimento existisse de facto, o que aconteceria no caso dos presentes autos se à recorrente fosse atribuída indemnização superior à arbitrada na decisão proferida na primeira instância.

5. Na verdade, seguindo os critérios que lançam mão das fórmulas e tabelas que os nossos tribunais habitualmente utilizam para o cálculo de indemnização por perda efectiva de capacidade de ganho decorrente de incapacidade permanente (de que é exemplo o Acórdão do STJ de 04.12.2007, no qual foi Relator o Exmo Senhor Juiz Conselheiro Mário Cruz, disponível em www.dgsi.pt), se essa perda de capacidade de ganho se verificasse – e não se verifica, como vimos – no caso em análise, considerando a idade da recorrida de 14 anos à data do acidente, a sua incapacidade de 6 pontos, um rendimento mensal de € 505,00, a indemnização a atribuir seria de cerca de € 10.000,00 para um período de vida activa de 70 anos.

6. E mesmo se, ao invés de um rendimento mensal de € 505,00, se lançasse mão do rendimento mensal de € 943,00, a indemnização a atribuir seria de cerca de € 20.000,00 para um período de vida laboral útil de 50 anos, isto é, aproximadamente metade do valor fixado no douto acórdão recorrido.

7. As fórmulas matemáticas funcionam como critério auxiliar da equidade, e esta impõe que o valor indemnizatório em causa seja fixado em quantia não superior a € 15.000,00.

8. Não se deve lançar mão a qualquer outro rendimento que não aquele de € 505,00, correspondente ao salário mínimo à data do acidente, quando a recorrida era ainda estudante, até porque a recorrida não demonstrou –aliás, nem alegou–qual o rendimento que aufere como empregada de restaurante, desconhecendo-se ainda quando é que iniciou tal actividade.

9. Segundo os dados da Pordata, a que se faz referência no douto acórdão recorrido para lançar mão do salário mensal de € 943,00, no ano da consolidação médico-legal das lesões, isto é, em 2017, o salário médio mensal dos trabalhadores por conta de outrem no Alojamento e Restauração, onde se integra a actividade de empregada de restaurante da recorrente, era de €666,60 para as mulheres, ambos os valores ilíquidos (antes da dedução de quaisquer descontos).

10. O valor da indemnização em causa é a entregar imediatamente e de uma só vez mas destina-se a ressarcir um dano patrimonial futuro.

11. A indemnização pelo dano biológico, na vertente de dano patrimonial, deve ser fixada em quantia não superior a € 15.000,00.

12. No douto acórdão recorrido fez-se menos correcta aplicação e interpretação do disposto nos art.ºs 562º, 563º, 564º e 566º, nº3, todos do CCivil.”

9. A Autora não contra-alegou.

10. Cumpre apreciar e decidir.

II. Delimitação do objeto do recurso

Como é jurisprudência sedimentada, e em conformidade com o disposto nos artigos 635º, nº 4, e 639º, nºs 1 e 2, ambos do Código de Processo Civil, o objeto do recurso é delimitado em função das conclusões formuladas pelo recorrente, pelo que, dentro dos preditos parâmetros, da leitura das conclusões recursórias formuladas pela Ré/ ora Recorrente decorre que o objeto do presente recurso está circunscrito à questão de saber qual decorre que o objeto do presente recurso está circunscrito à questão de saber qual o quantum indemnizatório relativo ao dano patrimonial futuro na vertente de dano biológico.

III. Fundamentação

1. As instâncias deram como provados os seguintes factos:

1.1. No dia 20/08/2015, pelas 12 horas, próximo do Cruzamento do ..., entre a Av.... e a Rua ..., na freguesia de ..., concelho de ..., ocorreu um embate.

1.2. No evento foram intervenientes a A., na qualidade de peão e BB, como condutora do veículo matrícula ..-..-FX, ligeiro de passageiros, marca Opel, modelo Corsa.

1.3. O embate ocorreu da seguinte forma: atento o sentido de marcha L...- P..., a A., já na rua ..., atravessou a via da berma esquerda para a berma direita em momento em que o sinal se encontrava verde.

1.4. A dada altura, quando se encontrava prestes a concluir o atravessamento, foi embatida do lado direito.

1.5. Devido ao embate da frente do FX contra as pernas da A., esta foi atirada contra o solo, aí se quedando imobilizada.

1.6. Do local do acidente e no dia do mesmo, a A. foi transportada para Centro Hospitalar ..., Epe, aí ficando internada.

1.7. Após entrada, observação e realização de exames, no C... apurou-se que a A., devido ao sinistro, sofreu traumatismo dos membros inferiores, designadamente: fractura da diáfise do fémur direito e esquerdo e fratura dos ossos da perna esquerda.

1.8. Lesões que exigiram cirurgia (osteossíntese com vareta dos fémures e tíbia esquerda), com internamento entre 20/08/2015 e 28/08/2015.

1.9. Continuou o tratamento das lesões por conta da Cª de Seguros Açoreana, ora Seguradoras Unidas, S.A., no Hospital de ..., onde voltou a ser operada em 13/11/2015, com vista à extração da vareta do fémur esquerdo e com colocação de uma placa.

1.10. Entre 28/12/2015 e 23/05/2016 efetuou cerca de 90 tratamentos de fisioterapia e hidroterapia.

1.11. Desde o sinistro até à data da alta foi uma vez por mês a consulta no Hospital de ..., na cidade ....

1.12. A A. teve alta definitiva, atribuída pela Ré, em 24/05/2016.

1.13. Após a alta, por recomendação da médica de família, continuou os tratamentos de fisioterapia e hidroterapia até janeiro de 2017.

1.14. Devido ao sinistro a A. passou a ter dificuldades em correr e saltar, em subir e descer escadas, em caminhar por períodos prolongados e em efetuar tarefas que exijam esforços.

1.15. Fruto do acidente, a A. apresenta as seguintes sequelas: a) Membro inferior direito: cicatrizes na face lateral da coxa, no terço proximal com 6 cm de comprimento e três de 1 cm, uma no terço proximal e duas no terçodistal; cicatriz de abrasão na face medial do joelho direito com 4x2 cm; AA do joelho e anca completas; sem sinais de instabilidade no joelho; tornozelo com dorsiflexão até 10º e flexão plantar até 40º, inversão e eversão normais; b) Membro inferior esquerdo: cicatriz operatória linear na face lateral da coxa, joelho e terço proximal da perna com 20 cm de comprimento; cicatriz linear nacarada de 6 cm na face lateral da anca à esquerda; cicatriz linear de 1cm na face lateral da coxa; cicatriz linear de 6 cm de comprimento nacarada na face anterior do joelho; cicatrizes de 1 a 2 cm localizadas no tornozelo esquerdo; AA do joelho completas; ligeira gaveta anterior; tornozelo com dorsiflexão até 10º e flexão plantar até 40º, inversão e eversão com ligeira limitação comprimento dos MIS superior à direita quantificado em 0,5 cm quando se mede da EIAS até maléolo medial; amiotrofia de 1 cm na perna esquerda.

1.16. A data da consolidação médico-legal é fixada em 13/01/2017, tendo um défice funcional permanente de integridade físico-psíquica de seis pontos, que é compatível com a atividade que tinha à data do acidente, de estudante, mas implica esforços suplementares, que se estendem à atividade que empregada de restaurante que exerce ou de educadora de infância, para a qual está a estudar.

1.17. O quantum doloris é fixável em 5/7, o dano estético permanente em 4/7 e a repercussão permanente nas atividades desportivas e de lazer no grau 1/7, tendo ainda uma dependência permanente de ajudas medicamentosas, em SOS no caso de sentir dor.

1.18. A A. nasceu em .../11/2000.

1.19. À data do acidente a A. era estudante e atualmente frequenta a licenciatura de Educação Básica da Escola Superior de Educação....

1.20. Devido às lesões, a A. sofreu dores fortes e durante pelo menos um mês, após o sinistro, perdeu toda a autonomia, carecendo da ajuda de terceira pessoa para tudo, inclusive para as necessidades fisiológicas e de higiene.

1.21. Após esse tempo, quando começou a usar canadianas, passou apenas a carecer de ajuda para tomar banho.

1.22. Após ser operada a 13/11/2015, voltou a carecer de ajuda de terceira pessoa para todos os afazeres do seu dia-a-dia, durante um mês.

1.23. A difícil recuperação criou para a A. dificuldades acrescidas em retomar a sua atividade escolar e viu, por via disso, dificultado o seu nível de aproveitamento escolar.

1.24. Careceu da ajuda permanente de 3ª pessoa durante pelo menos dois meses e careceu da ajuda de duas canadianas durante pelo menos seis meses.

1.25. Durante vários meses teve que ser transportada de maca para ir efetuar curativos e também só conseguiu movimentar-se com a ajuda de canadianas.

1.26. Sofreu transtorno e dores com as deslocações e os tratamentos e teve dificuldade em vestir-se e em calçar-se.

1.27. Ficou ansiosa e com medo de atravessar a via.

1.28. Após o sinistro e até recuperar a mobilidade, a A. teve que mudar para casa de um familiar, uma vez que a sua habitação se situa no último andar, sem elevador.

1.29. Foi transferida para a R. a responsabilidade por acidentes de viação causados pelo FX, através do contrato de seguro titulado pela apólice ...46.

1.30. A R. procedeu ao pagamento à A. (pagamentos realizados em nome da mãe da A., por esta ser à data menor de idade), da quantia total de € 1.996,26, sendo € 120,62 referente a despesas de farmácia; € 779,40 a despesas diversas e € 1.096,24 a despesas de transportes.

2. E foram julgados como não provados os seguintes factos:

2.A) Atualmente mantém a placa no fémur esquerdo e a vareta no fémur direito e tíbia esquerda.

2.B) A A., em consequência do sinistro, suportou em viagens e em medicação quantia superior a € 1.000,00, não reembolsada pela R..

2.C) A A. no futuro carecerá de efetuar cirurgia com vista à retirada dos materiais e eventual correção das cicatrizes e de mais tratamentos.

3. Apreciação do recurso

A questão objeto do recurso é assim uma só: a de saber se a indemnização atribuída à Autora, a título de dano patrimonial por perda da capacidade de ganho, foi bem apreciada pelo Tribunal da Relação.

A Ré/Recorrente entende que não.

Por um lado, considera:

i. “que não resulta da prova produzida que a recorrente, em consequência da incapacidade de que ficou a padecer, tenha tido uma real e efectiva perda de rendimentos”;

ii. “à conta dos esforços suplementares que tem de realizar a recorrente não vê perdida qualquer parcela do rendimento que aufere.”

A Ré, também, entende que a decisão está errada porque o Tribunal da Relação usou o critério do salário médio para definir o rendimento da Autora, que refere não estar apurado, quando no seu entendimento devia usar-se o salário mínimo nacional, ou no máximo, o salário médio mensal dos trabalhadores por conta de outrem no Alojamento e Restauração (a Autora era estudante, mas tinha uma atividade na restauração).

Vejamos.

No recurso da apelação, insurgia-se contra a sentença no que concerne ao quantitativo indemnizatório atribuído, a título de indemnização do dano biológico na sua vertente de dano patrimonial futuro, conformando-se, contudo com o montante indemnizatório faxado quanto aos danos não patrimoniais.

Pronunciando-se sobre essa questão, afirma o Tribunal da Relação do Porto:

A Autora, na sequência das lesões sofridas com o acidente, ficou com um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 6 pontos, que é compatível com a atividade que tinha à data do acidente, de estudante, mas implica esforços suplementares, que se estendem à atividade que empregada de restaurante que exerce ou de educadora de infância, para a qual está a estudar (nºs 16 e 19 dos factos provados).

Aquele défice funcional integra o chamado dano biológico e na medida em que este, não obstante compatível com aquelas atividades, implica esforços suplementares em relação a elas, é indemnizável sob uma vertente patrimonial, como dano patrimonial futuro que tem em conta a expressão daquele défice, sem prejuízo de uma vertente não patrimonial que o mesmo também pode ter (que abrangerá, por exemplo, o dano estético decorrente das sequelas das lesões e a repercussão destas, em termos de prejuízo de afirmação pessoal, nas atividades de lazer e desportivas da lesada, etc…) – neste sentido, entre variados outros, vide os acórdãos do STJ de 4/6/2015 (proc. nº1166/10.7TBVCD.P1.S1), 20/10/2011 (proc. nº 428/07.5TBFAF.G1.S1), 31/5/2012 (proc. nº1145/07.1TVLSB.L1.S), 20/1/2010 (proc. nº 203/99.9TBVRL.P1.S1), 20/5/2010 (proc. nº 103/2002.L1.S1), 26/1/2016 (proc. nº2185/04.8TBOER.L1.S1), 12/7/2018 (proc. nº1842/15.8T8STR.E1.S1) de 29/10/2019 (proc. nº7614/15.2T8GMR.G1.S1), 10/12/2019 (proc. nº32/14.1TBMTR.G1.S1), 21/1/2021 (proc. nº6705/14.1T8LRS.L1.S1) e 12/1/2022 (proc. nº6158/18.5T8SNT.L1.S1), todos disponíveis em www.dgsi.pt.

Para o cálculo da indemnização pela vertente patrimonial de tal dano – que é a que ora está em causa – a lei não traça um critério definido.

Há assim que recorrer à equidade, como previsto no art. 566º, nº3 do C. Civil (a jurisprudência é praticamente unânime neste sentido, indicando-se como exemplos concretos os acórdãos do STJ que supra se referiram).

Como critério auxiliar ou orientador daquele critério da equidade, a jurisprudência tem vindo a utilizar fórmulas matemáticas/tabelas financeiras para calcular um quantitativo indemnizatório que traduza o capital de que o lesado se veja privado para o futuro em virtude do défice funcional sofrido [referimo-nos às fórmulas já sobejamente conhecidas propugnadas pelos acórdãos do S.T.J. de 2/2/93 e de 5/5/94, in CJSTJ, tomos I e II, págs. 128 e 86, respetivamente, e acórdão da Relação de Coimbra de 4/4/95,in CJ, tomo II, pág. 23, que depois no acórdão do STJ de 4/12/2007 (proc. nº07A3836) foram convertidas, em vista de uma sua mais fácil aplicação, na tabela de factores por período de tempo que ali se dá conta, abrangendo factores correspondentes a períodos de 1 a 50 anos].

Por outro lado, o próprio legislador, por via da Portaria 377/2008 de 26/5, atualizada pela Portaria 679/2009 de 25/6, estabeleceu, em vista da sua utilização extrajudicial, valores orientadores de proposta razoável para indemnização do dano corporal resultante de acidente de viação e refere ali também uma fórmula matemática (a da portaria atualizadora, no seu anexo III, sobre dano patrimonial futuro, acaba por se reconduzir à fórmula utilizada naqueles acórdãos do STJ e da Relação de Coimbra que se indicaram) e uma tabela de factores por período de tempo (caso do Anexo III) e uma outra por pontos e idade (caso do Anexo IV, quanto à compensação devida pela violação do direito à integridade física e psíquica).

De qualquer modo, nenhum dos referidos critérios auxiliares ou orientadores se sobrepõem àquele citério fundamental, de fonte legal, que é a equidade.

Assim considerando, no caso vertente, para o cálculo da indemnização em análise, há que ter em conta os seguintes factores:

- o período de tempo que, considerando a idade da lesada aquando da data da consolidação médico-legal das lesões (pois é a partir desta que fica definido o défice funcional), que no caso são os 16 anos de idade – pois aquela data ocorre a 13/1/2017 e a Autora nasceu a 30/11/2000 (nºs 16 e 18 dos factos provados) –, tem em conta a sua esperança média de vida, pois, em contrário do defendido na sentença recorrida e como se diz no acórdão do STJ de 12/1/2022, já acima referido, deve-se atender “à esperança média de vida do lesado e não à sua previsível idade de reforma, na medida em que a afectação da capacidade geral tem repercussões negativas ao longo da vida do lesado, tanto directas como indirectas” [no mesmo sentido da consideração da esperança média de vida, vide ainda, por exemplo, os acórdãos do STJ de 12/7/2018 (proc. nº1842/15.8T8STR.E1.S1), 29/10/2019 (proc. nº7614/15.2T8GMR.G1.S1), 19/5/2020 (proc. nº3907/17.2T8BRG.G1.S1) e 10/12/2019 (proc. nº32/14.1TBMTR.G1.S1)]; que essa esperança média de vida para as mulheres, segundo dados da Pordata (estatísticas sobre Portugal e Europa – vide www.pordata.pt), é, já desde 2013, de 83 anos; e, assim, que face aos 16 anos que a Autora tinha aquando daquela consolidação médico-legal das lesões e aqueles 83 anos de esperança média de vida, decorrem 67 anos;

- o défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 6 pontos de que a Autora passou a sofrer;

- o salário médio mensal nacional dos trabalhadores por conta de outrem por referência ao ano da consolidação médico-legal das lesões, no caso o ano de 2017, o qual, segundo dados da Pordata (site supra referido), era de 943,00 € – isto no pressuposto da consideração de que ao tempo do acidente a lesada era estudante e continuava a sê-lo, frequentando uma licenciatura, aquando da prolação da sentença recorrida (nº19 dos factos provados), não se tendo apurado o auferimento de qualquer salário, pois, como se refere no Acórdão do STJ de 22/6/20171 para situação idêntica, não sendo possível conjecturar acerca da sua evolução educacional e profissional e da sua carreira profissional ou dos rendimentos que da mesma poderia auferir, “[a] todos os títulos, parece mais razoável, mais previsível e, por isso, mais justo um critério que assente a referida indemnização, pelo menos, no salário médio nacional, já que não existe qualquer elemento que indicie que o A. se iria situar no patamar mais baixo de uma carreira profissional ou que iria conformar-se com o recebimento do salário que qualquer empresa é obrigada a pagar independentemente das habilitações ou da profissão exercida pelo trabalhador”;

- na sequência da consideração do salário médio mensal referido no item anterior, que dele resulta um valor anual de 13.202,00 € (943,00 x 14).

A sentença recorrida, partindo da consideração do salário mínimo nacional à data do acidente e os 70 anos de idade como limite de vida ativa, fixou a indemnização do dano em referência em 15.000 €, acrescida de juros à taxa legal de 4% desde a citação até efetivo e integral pagamento.

A Autora, no seu recurso, sem apontar qualquer concreto critério para a sua contabilização, indica a quantia de 55.000 euros e a ré, também no seu recurso, defende a indemnização de tal dano nos termos em que o foi na sentença recorrida.

Pelo nosso lado, entendemos ser de optar pelo cálculo da indemnização tendo por base o montante de perda de rendimento anual correspondente ao seu défice funcional com base no referido salário médio mensal, que ascende a 792,12 € (13.202,00 € x 6%), e os acima referidos 67 anos, e depois, por via do seu recebimento a pronto, a proceder a uma dedução ao montante do capital assim encontrado na proporção de 1/4, dada a idade bastante jovem da lesada [no sentido do cálculo da indemnização do dano futuro por défice funcional por esta forma e com a dedução de uma sua proporção por ocorrer uma antecipação do seu pagamento, vide o artigo do Sr. Conselheiro Joaquim José de Sousa Dinis “Dano Corporal em Acidentes de Viação”, publicado na CJ, Acórdãos do STJ, ano IX, tomo I, 2001, págs. 9 e 10, e Rita Mota Soares, in “O dano biológico quando da afectação funcional não resulte perda da capacidade de ganho – o princípio da igualdade”, revista “Julgar” nº33, Setembro-Dezembro de 2017, pág. 126; também no sentido da referida dedução pelo motivo indicado, vide, entre variados outros, os acórdãos do STJ de 5/7/2007 (proc. nº07A1734) e 10/12/2019 (proc. nº 32/14.1TBMTR.G1.S1)].

Fazendo as contas, encontra-se o valor de capital de 53.072,04 € (792,12 € x 67) e deduzindo-lhe 1/4 (13.268,01 €) chega-se ao valor final de 39.804,03 €, que entendemos ser de arredondar para 39.810 €.

Assim, fixa-se a indemnização pelo dano biológico, enquanto dano patrimonial, naquela quantia de 39.810 € (trinta e nove mil, oitocentos e dez euros)

A tal quantia acresce juros à taxa legal desde a citação até efetivo e integral pagamento, (critério pelo qual se optou na sentença recorrida e não questionado em sede de recurso, e que se quadra com os arts. 805º nº1 e 806º nº2 do C. Civil).”

Na sentença proferida pelo Tribunal de 1.ª instância, os critérios usados haviam sido diversos:

“O cálculo da frustração do ganho deverá conduzir a um capital que considere a produção de um rendimento durante todo o tempo de vida activa da vítima, adequado ao que auferiria se não fora a lesão correspondente ao grau de incapacidade, desde que tal seja previsível.

Tem-se, então, de ter conta, a idade ao tempo do acidente, o prazo de vida activa previsível, os rendimentos auferidos nesse período de tempo (ou capacidade para tal), os encargos, o grau de incapacidade, além de outros elementos eventualmente a ter em conta.

Para o cálculo de tal indemnização a lei não traça um critério definido, sendo, aliás, tarefa bem difícil, e nada unânime, já que uns recorrem a fórmulas matemáticas (o que possibilita a uniformidade de julgados e uma maior facilidade de cálculo) e outros à equidade, e outros, ainda, socorrem-se de ambas as possibilidades, conjugando-as (cfr. o Estudo realizado pelo Dr. Sousa Dinis, Dano Corporal em Acidentes de Viação, Cálculo de indemnização, Situações de agravamento, in CJSTJ, 1997, Tomo II, pp. 11 e ss.).

Recorrer-se-á à equidade, nos termos do previsto no art. 566º, n.º 3, do CC, sem descurarmos os factores que a seguir se referem, na senda do Ac. do STJ de 08/02/2001, proferido no processo n.º 3940/2000 e relatado pelo Ex.mo Senhor Juiz Conselheiro Dionísio Correia.

Ter-se-á em conta, como limite temporal de vida activa do lesado, os 70 anos de idade, como limite de vida activa em Portugal, no seguimento, aliás, do entendimento da maioria da jurisprudência actual – cfr. o Ac. do STJ de 27/05/2010, in www.dgsi.pt (em tempos tal limite ficava-se pelos 65 anos – v.g., o Ac. do STJ de 31/03/93, BMJ, 425-544, o que com a evolução actualmente existente, também com novos cuidados de saúde, aumentou a esperança média de vida e a vida activa dos cidadãos, reflectida também no constante aumento da idade de reforma), sem se esquecer, assim e também, a esperança média de vida.

Importa, ainda, ter em consideração as regras constantes da Portaria n.º 377/08, de 26/05, sendo mais um elemento coadjuvante na fixação da indemnização (não sendo, contudo, vinculativo – cfr. o Ac. da RP de 17/09/2009, in www.dgsi.pt).

O critério que se tem por base para o cálculo desta indemnização, é o de determinar um capital equivalente ao rendimento de que o lesado foi privado e de que o irá ser até ao final da sua vida.

Outra das variantes a ter em conta é a taxa de juro anual, que no início e segundo o Ac. do STJ de 18/01/79, BMJ, 283-275, era fixada em 9%, mas que actualmente, e dados os mais de 40 anos passados sobre esse acórdão, se considera adequado fixar em 2%.

No caso concreto, temos de ter em conta a idade da A. à data do acidente (14 anos), um tempo provável de vida activa até aos 70 anos (56 anos de vida activa), a esperança média de vida, uma incapacidade de 6 pontos e, ainda, que a A. era estudante e o salário mínimo à data era de €505,00 (a A. estaria a terminar o segundo ciclo do ensino básico e essa era certamente a penalização expectável àquela data) e que pelo menos esse valor a A. conseguiria vir a obter (note-se que a A. actualmente trabalha na área da restauração, ainda não tendo terminado o curso em educação básica) – € 505,00x14=€ 7.070,00x6%=€ 424,20 (pensão anual).

(…)

Assim, e num puro juízo de equidade, atendendo a todos os factores já enunciados, e considerando já o facto de a A. poder exercer uma actividade, mas implicar esforços suplementares na realização da mesma, temos por justa a fixação da indemnização global de € 15.000,00, sendo esta a quantia a que a A. tem direito a título de indemnização pela perda da capacidade de ganho, contabilizados como danos futuros.”

Vejamos as questões suscitadas pela Ré.

Importa, em primeiro lugar, referir que na fixação do quantum indemnizatório, o Acórdão da Relação lançou mão de juízo de equidade (artigos 496º, nº3 e 566º, nº3, do Código Civil), pelo que não cabe ao Supremo Tribunal de Justiça, por não envolver a resolução de uma questão de direito, sindicar os valores exatos dos montantes indemnizatórios concretamente arbitrados, “cingindo-se a sua apreciação ao controle dos pressupostos normativos do recurso à equidade e dos limites dentro dos quais deve situar-se o juízo equitativo, nomeadamente os princípios da proporcionalidade e da igualdade conducentes à razoabilidade do valor encontrado”

(Ac. do STJ, de 4 de março de 2014, acessível em www.dgsi.pt)

- cfr. Ac. do STJ, de 6 de outubro de 2016, acessível em www.dgsi.pt

e Ac. do STJ, de 28 de janeiro de 2016, acessível em www.dgsi.pt

A utilização de critérios de equidade não impede que se tenham em conta as exigências do princípio da igualdade, sendo que a prossecução desse princípio implica a procura de uma uniformização de critérios, naturalmente incompatível com as circunstâncias do caso (Acórdão do STJ, de 4 de junho de 2015, acessível em www.dgsi.pt).

Ora “os tribunais não podem nem devem contribuir de nenhuma forma para alimentar a ideia de que neste campo as coisas são mais ou menos aleatórias, vogando ao sabor do acaso ou do arbítrio judicial. Se a justiça, como cremos, tem implícita a ideia de proporção, de medida, de adequação, de relativa previsibilidade, é no âmbito do direito privado e, mais precisamente, na área da responsabilidade civil que a afirmação desses vetores se torna mais premente e necessária, já que eles conduzem em linha reta à efetiva concretização do princípio da igualdade consagrado no artº 13º da Constituição” (Acórdão do STJ, de 21 de fevereiro de 2013, acessível em www.dgsi.pt), cumprindo não nos afastarmos do equilíbrio e do valor relativo das decisões jurisprudenciais mais recentes (Ac. do STJ, de 4 de junho de 2015, acessível em www.dgsi.pt).

i. Quanto à inexistência de danos:

O Tribunal de 1.ª instância considerou que houve facto ilícito, culpa, dano e nexo de causalidade, pelo que quanto a esta questão, por não ter havido impugnada em sede de recurso para o tribunal da Relação, a questão mostra-se definitivamente decidida.

Na sentença proferida pelo Tribunal de 1.ª instância foi decidido que o dano se encontrava demonstrado. Logo, a única questão que importa e sobre a qual este Tribunal se pode pronunciar é sobre o valor do dano patrimonial relativo à perda da capacidade de ganho resultante do facto ilícito e culposo.

ii. Quanto à inexistência de perda de rendimentos:

A questão colocada é também questão que não foi objeto de apelação pela é, pelo que a questão não pode ser também apreciada.

Os recursos apenas se destinam a tratar de questões que tenham sido versadas em acórdão recorrido e que nele tenham sido suscitadas e não de quaisquer outras que os recorrentes entendam suscitar, e muito menos, quando já não podem recorrer de alguma decisão que se tenham por definitivamente decidida.

iii. Quanto ao critério do salário e do tempo

O Tribunal da Relação do Porto decidiu bem ao considerar que o período de referência para o cálculo da indemnização deveria ser a esperança média de vida do lesado e não a sua previsível idade de reforma, na medida em que a afetação da capacidade geral tem repercussões negativas ao longo da vida do lesado, tanto diretas como indiretas, como disse.

E também decidiu bem em considerar o valor de referência do salário médio do ano da lesão, por se tratar de uma pessoa jovem, estudante universitária, com um projeto de vida que se perspetiva poder colocar a Autora num patamar médio de rendimentos no futuro, e que veio justificado com a indicação da sua profissão atual principal – estudante – mas que também desenvolve alguma outra atividade profissional no domínio da restauração e na educação, sem que os valores que aqui aufere sejam conhecidos.

Por outro lado, o Tribunal da Relação não deixou de ponderar a solução propugnada na sentença – considerar o salário mínimo e o limite de idade de 70 anos, como limite de vida ativa – e sobre os mesmos justificou a sua inadequação, como tem sido também frisado em diversos arestos deste Supremo Tribunal.

O Tribunal da Relação também aplicou os critérios habituais da jurisprudência na fixação deste tipo de danos:

- Procurou um valor objetivo, a partir do défice funcional de 6%, que aplicou ao valor do rendimento anual, obtendo um valor ano de 792,12 €;

- Multiplicou o valor anual pelos anos que faltariam até ao fim da esperança média de vida da concreta Autora – mulher – 67 anos;

- Operou um desconto, no valor obtido, por a indemnização ser atribuída de uma só vez;

- Ponderou o resultado à luz da equidade, arredondando ainda o valor obtido a partir de elementos objetivos.

Quer isto dizer que o Tribunal da Relação utilizou os critérios habituais da jurisprudência na fixação do valor indemnizatório segundo a equidade, usando fórmulas apenas como ponto de partida, para logo as corrigir com os elementos usuais – inflação, esperança média de vida da mulher, conhecimentos e habilitações do profissional e seu projeto de vida profissional, desconto por antecipação, etc.

Em síntese, a decisão recorrida é respeitadora das normas legais aplicáveis e oferece uma compensação justa e equitativa do dano sofrido pela Autora, pelo que deve ser confirmada, encontrando-se em linha com a jurisprudência do STJ nas situações em que não há incapacidade total e permanente, mas apenas esforços acrescidos que se projetam na sua futura capacidade de ganho.

Deste modo, o recurso improcede.

IV. Decisão

Posto o que precede, acorda-se em negar a revista, e, consequentemente, em manter o Acórdão recorrido.

Custas pela Recorrente.

Lisboa, 6 de fevereiro de 2024

Pedro de Lima Gonçalves (Relator)

António Magalhães

Maria João Vaz Tomé