Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
18318/17.1T8LSB-C.L1.S1
Nº Convencional: 4.ª SECÇÃO
Relator: DOMINGOS JOSÉ DE MORAIS
Descritores: INTERPRETAÇÃO CONFORME A CONSTITUIÇÃO
AÇÃO EXECUTIVA
GRADUAÇÃO DE CRÉDITOS
CREDITO LABORAL
SALÁRIO
PENHOR
CONTA BANCÁRIA
Data do Acordão: 11/27/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADAS AS REVISTAS
Sumário :
I. - O direito à retribuição é um dos direitos fundamentais dos trabalhadores. 

II. - O penhor de conta bancária consubstancia uma garantia especial pessoal sobre um direito e não um direito real de garantia, pelo que não beneficia do regime previsto para o penhor no artigo 666.º do Código Civil, gozando apenas de um privilégio mobiliário geral.

III. - Na graduação de créditos em concurso bilateral, o crédito salarial deve anteceder o penhor de conta bancária.

Decisão Texto Integral:

Acordam os Juízes na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça

I.Relatório

1. No processo de execução em que é Exequente AA e Executada Sublimedestino, Lda., foi penhorado o saldo existente na conta de Depósito a Prazo MN Residentes n.º ..........01, titulado pela Executada.

2. Para garantia das obrigações emergentes do mencionado contrato de crédito em conta corrente, a Executada Sublimedestino, Lda., e o Banco BPI, S.A. celebraram um Contrato de Penhor a que foi atribuído o n.º .....45.

3. - Nos presentes autos de reclamação de crédito, que correm por apenso àquela execução, o Banco BPI, S.A. reclamou a quantia de € 39.265,84 relativa a valores disponibilizados pela Reclamante na referida conta corrente, acrescidos de juros.

4. - Foi proferida sentença, decidindo:

“(G)raduo os créditos pela seguinte forma:

1º - O crédito EXEQUENDO, e respectivos juros de mora.

2º - O crédito reclamado pelo “BANCO BPI, S.A.”, e respectivos juros de mora.”.

5. - Por acórdão de 11 de outubro de 2023, o Tribunal da Relação do Porto decidiu:

“(A)corda-se em confirmar a graduação recorrida.”.

6. - A executada Sublimedestino, Lda., interpôs recurso de revista excepcional, concluindo, em síntese:

I. O Acórdão fundamento do presente recurso é o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto no dia 12 de Setembro de 2019 no processo 681/11.0TYVNG-A.P1, cujo sumário se passa a citar: “I - Na graduação de créditos, em insolvência, o penhor prevalece sobre o privilégio mobiliário comum dos trabalhadores relativamente ao bem móvel ou direito dado em garantia. (…)

II. Igualmente, apresentamos como segundo Acórdão fundamento do presente recurso, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (6.ª Secção) proferido no dia 22 de Setembro de 2021 no Processo n.º 775/15.2T8TS-C.P1.S1, cujo sumário parcialmente transcrevemos: “(...) II - Concorrendo na mesma graduação créditos garantidos por penhor, créditos com privilégio mobiliário geral emergentes de contrato de trabalho, ou da sua violação ou cessação, e créditos com privilégio mobiliário geral da Segurança Social por contribuições e quotizações, a ordem de prioridade que compete a esses créditos é aquela que, em geral, estabelece a lei, ou seja: 1.º- o crédito pignoratício; 2.º - o crédito laboral; 3.º - o crédito da Segurança Social.

IV. O crédito exequendo goza de privilégio mobiliário geral nos termos do artigo 333.º n.º 1 alínea a) do Código do Trabalho.

V. O crédito do Credor Reclamante Banco BPI é um crédito garantido por um penhor constituindo anteriormente sobre um depósito a prazo de € 25.000,00.

VI. A Recorrente depositou a quantia de € 25.000,00 numa conta bancária a prazo aberta no Reclamante BPI e constituiu a favor deste um penhor sobre esse seu valor monetário.

VII. O penhor de depósito a prazo numa instituição bancária é uma verdadeira garantia real e não uma garantia pessoal atípica.

XI. Sendo assim, tendo sido constituído anteriormente à penhora, o penhor constituído a favor do Banco reclamante prevalece sobre o privilégio mobiliário geral de que goza o crédito laboral do Exequente, sendo-lhe, pois, oponível, nos termos do disposto nos artigos 666.º n.º 1, 675.º n.º 1 e 749.º n.º 1 do Código Civil.

IX. Ademais, o penhor de conta bancária confere, igualmente, ao credor o direito à satisfação do seu crédito com preferência sobre os demais credores, pelo valor de certa coisa móvel, ou pelo valor de créditos ou outros direitos não suscetíveis de hipoteca, pertencentes ao devedor ou a terceiro (art.º 666º, nº 1, do Código Civil).

7. - O reclamante Banco BPI, S.A., interpôs recurso de revista excepcional, concluindo, em síntese:

O Crédito em causa emergiu da celebração entre o Recorrente e a Executada de um contrato de crédito em conta corrente até ao limite de € 50.000,00, contrato esse datado de 02/12/2016.

Tendo as partes para o efeito efetivado a competente redução a escrito do contrato de penhor de depósito a prazo com a identificação da operação a garantir, ou seja, contrato de crédito em conta corrente, e identificação da conta em causa, a saber, ...........01 e respetivo ativo, depósito a prazo MN – Residentes, no valor de € 25.000,00.

Ora, a questão fundamental de direito em objeto prende-se com a qualificação jurídica atribuída ao Penhor, nomeadamente se o penhor de depósito a prazo em objeto tem natureza de garantia pessoal atípica como entendeu o Tribunal da Relação ou natureza de garantia real.

Entendeu a Relação no acórdão que aqui se recorre que o penhor de crédito não pode por definição considerar-se um direito real de garantia uma vez que não recai sobre coisa corpórea, sustentando que o penhor de conta bancária é uma garantia pessoal atípica dobrada pela autorização de debitar na conta garante determinadas importâncias.

Conclui que não se logra a aplicação ao penhor de conta bancária o regime previsto para o penhor, artigos 666.º e segts. do CC.

Ora, o entendimento do aqui Recorrente e de vários arestos da Relação de Lisboa e Porto e outros e ainda do Supremo Tribunal de Justiça é de que o penhor se consubstancia num verdadeiro direito real de garantia sobre determinada coisa móvel com o respetivo direito de sequela que prevalece sobre todos os demais créditos, incluindo, aqueles que beneficiem de privilégio mobiliário geral.

O penhor em objeto é uma garantia real completa, que confere ao credor o direito à satisfação do seu crédito com preferência sobre os demais credores.

Quanto ao lugar da graduação desses créditos no caso de existir penhor com garantia sobre determinados móveis, decorre do artigo 666.º do Código Civil que o penhor confere ao credor preferência no pagamento sobre os demais credores.

8. - Os recursos de revista excecionais, foram admitidos pelo Acórdão da Formação de 22 de maio de 2024, por considerado verificado o requisito do artigo 672.º, n.º 1, alínea c) do Código de Processo Civil (CPC).

9. - O Ministério Público emitiu parecer no sentido da improcedência de ambos os recursos.

10. - Cumprido o disposto no artigo 657.º, n.º 2, ex vi do artigo 679.º, ambos do CPC, cumpre apreciar e decidir.

II. - Fundamentação de facto.

A matéria relevante é a que consta do Relatório que antecede.

III. – Fundamentação de direito

1. - Do objeto dos recursos de revista.

Como decorre das conclusões dos recursos de revista importa saber:

A) - Do recurso da executada, Sublimedestino, Lda.;

- Se na graduação de créditos de concurso bilateral o penhor de conta bancária deverá anteceder o privilégio mobiliário geral dos créditos laborais.

B) - Do recurso do reclamante, Banco BPI, S.A.:

- Se o penhor sobre uma conta bancária reveste a natureza de um genuíno direito real dotado de sequela;

- Se na graduação de créditos de concurso bilateral o penhor de conta bancária deverá anteceder o privilégio mobiliário geral dos créditos laborais.

2. - O Acórdão do Tribunal da Relação, após citar vária doutrina e jurisprudência, concluiu: “(…), uma vez que o penhor em causa não consubstancia uma garantia real a graduação mostra-se correctamente efectuada.”, ou seja, em 1.º lugar o crédito exequendo e em 2.º o crédito reclamado.

A Executada considera que “tendo sido constituído anteriormente à penhora, o penhor constituído a favor do Banco reclamante prevalece sobre o privilégio mobiliário geral de que goza o crédito laboral do Exequente, sendo-lhe, pois, oponível, nos termos do disposto nos artigos 666.º n.º 1, 675.º n.º 1 e 749.º n.º 1 do Código Civil.”.

O Reclamante entende “que o penhor se consubstancia num verdadeiro direito real de garantia sobre determinada coisa móvel com o respetivo direito de sequela que prevalece sobre todos os demais créditos, incluindo, aqueles que beneficiem de privilégio mobiliário geral.

O penhor em objeto é uma garantia real completa, que confere ao credor o direito à satisfação do seu crédito com preferência sobre os demais credores.”.

Apreciemos.

3. - Dos privilégios creditórios

3.1. - O artigo 59.º - Direitos dos trabalhadores - da Constituição da República Portuguesa (CRP), consagra:

1. Todos os trabalhadores, sem distinção de idade, sexo, raça, cidadania, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, têm direito:

a) À retribuição do trabalho, segundo a quantidade, natureza e qualidade, observando-se o princípio de que para trabalho igual salário igual, de forma a garantir uma existência condigna;

(…).

3. Os salários gozam de garantias especiais, nos termos da lei.”. (negritos nossos)

[A actual redacção do artigo 59.º (5.ª versão) foi introduzida pela Lei n.º 1/97, de 20/09 – Revisão Constitucional].

Como escrevem Gomes Canotilho e Vital Moreira, in Constituição da República Portuguesa,

Anotada, Vol. I, 4.ª edição, pág. 777, «A imposição constitucional de garantias especiais dos salários foi acrescentada pela RC/97, tratando-se de discriminação positiva dos créditos salariais em relação aos demais créditos sobre os empregadores. A instituição de garantias de pagamento dos créditos e indemnizações complementares resultantes do não pagamento de salários é, hoje, uma imposição do direito da União Europeia (cfr. Directivas 80/97 e 2002/74.» [O negrito e o itálico da expressão discriminação positiva integram o texto original].

As Directivas 80/987/CEE do Conselho, de 20 de Outubro de 1980, e 2002/74/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de Setembro de 2002, tratam da protecção dos trabalhadores assalariados em caso de insolvência do empregador.

3.2. - Sobre o disposto no artigo 59.º, n.º 1, alínea a) e n.º 3, da CRP, o Tribunal Constitucional já se pronunciou, pelo menos, nos seguintes Acórdãos:

3.2.1. - No Acórdão n.º 373/1991, de 17 de Outubro de 1991, Processo n.º 405/91, Plenário, [que apreciou a constitucionalidade dos artigos 5.º, 6.º, 8.º, 9.º, 13.º, 15.º, 16.º e 25.º do Decreto aprovado pelo Conselho de Ministros, registado sob o n.º 412/91, respeitante ao regime jurídico do serviço doméstico, alterando o Decreto-Lei n.º 508/80, de 21 de Outubro], foi afirmado:

3 - As normas dos artigos 9.º (conceito e modalidades de retribuição), 13.º (duração do trabalho), 15.º (descanso semanal) e 16.º (direito a férias) constituem o segundo dos blocos normativos autonomizados por conveniências metodológicas.

Todas elas têm de comum respeitarem a «direitos sociais», vinculativos para o legislador que lhes deve dar execução, «concretizando-os».

Também outros traços comuns lhe assistem: consagram direitos constitucionalmente reconhecidos [artigo 59.º, n.º 1, alíneas a) e b), da CR], cuja mediação legislativa não lhes retira a aplicabilidade directa, são vinculativos genericamente, só podem ser restringidos por lei nos casos expressamente previstos na Lei Fundamental e à luz de interesses públicos constitucionalmente relevantes, restrições essas de carácter geral e abstracto, em princípio, sem efeitos retroactivos e, de qualquer modo, sempre proporcionadas e adequadas.

Os preceitos citados respeitam, em primeira linha, ao direito à retribuição do trabalho, ao direito a um limite máximo da jornada de trabalho, ao direito a descanso semanal e a férias periódicas, sendo certo que a doutrina constitucionalista nacional os elenca como «direitos análogos» com impressivo consenso: v. g., Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 1.º vol., 2.ª ed., Coimbra, 1984, pp. 129 e 322, Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, tomo IV, Coimbra, 1988, pp. 143 e 144, e Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais, p. 212.

Estes direitos são dotados de um núcleo essencial intocável que, nessa dimensão, se configura como uma verdadeira garantia, pelo que, ao menos no que a esse núcleo se refere, não se vê motivo bastante para nos afastarmos da posição expressa da doutrina quanto à sua qualificação como «direitos análogos» aos «direitos, liberdades e garantias», o que, aliás, se congraça com as considerações já tecidas no ponto III-2.2.”. (negritos nossos).

3.2.2. - No Acórdão n.º 498/2003, de 22 de Outubro de 2003, Processo n.º 317/02, 3.ª secção:

“Do outro lado, porém, encontra-se um direito constitucionalmente incluído entre os direitos fundamentais dos trabalhadores, o direito à retribuição do trabalho, que visa “garantir uma existência condigna”, conforme preceitua o artigo 59º, n.º 1, alínea a), da Constituição, e que o Tribunal Constitucional já expressamente considerou como direito de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias (cfr. Acórdão n.º 373/91, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 20, p. 111 e segs. e Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, tomo IV, ed., Coimbra, p. 152, Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., Coimbra, 1993, p. 318, João Caupers, Os Direitos Fundamentais dos Trabalhadores e a Constituição, Coimbra, 1985, p. 141, nota 215 e João Leal Amado, ob. cit., p. 32, nota 44).” (negrito e sublinhado nossos)

3.2.3. - No Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 620/2007, de 20 de Dezembro de 2007, Processo n.º 1130/2007, Plenário, foi consignado:

5. O artigo 59º, n.º 1, alínea a), da Constituição consagra em relação a todos os trabalhadores o direito à «retribuição do trabalho segundo a quantidade, natureza e qualidade, observando-se o princípio de que para trabalho igual salário igual, de forma a garantir uma existência condigna».

O direito à retribuição do trabalho, ainda que sediado no Titulo III da Parte I da Constituição, relativo aos «direitos e deveres económicos e sociais», tem sido reconhecido como um direito fundamental de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, que, como tal, compartilha do regime constitucional próprio destes em todos os aspectos materiais do seu regime, e designadamente com referência ao artigo 18º (Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, Coimbra, 4ª edição, págs. 374 e 770; Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, Coimbra, 2005, pág. 598).”.

3.2.4. - No Acórdão n.º 257/2008, de 30 de Abril de 2008, Processo n.º 446/2007, 2.ª Secção, pode ler-se:

“(…), o Acórdão n.º 498/2003 chama a atenção para a particular “natureza do direito” aqui confrontado com o princípio da confiança.

E esta é, do nosso ponto de vista, uma diferença particularmente relevante. Na verdade, a retribuição da prestação laboral, quer na sua causa, que na sua destinação típica, está intimamente ligada à pessoa do trabalhador. Ela é a contrapartida da disponibilização da sua energia laborativa, posta ao serviço da entidade patronal. Ela é também, por outro lado, o único ou principal meio de subsistência do trabalhador, que se encontra numa situação de dependência da retribuição auferida na execução do contrato para satisfazer as suas necessidades vivenciais.

É esta dimensão pessoal e existencial que qualifica diferenciadamente os créditos laborais, justificando a tutela constitucional reforçada de que gozam, para além da conferida, em geral, às posições patrimoniais activas.

É, na verdade, esta perspectiva valorativa que levou à consagração do direito à retribuição do trabalho entre os direitos dos trabalhadores enumerados no n.º 1, alínea a), do artigo 59.º da CRP, por forma a “garantir uma existência condigna” – direito este já expressamente considerado pelo Tribunal Constitucional como um direito de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias (Acórdão n.º 379/91). Por outro lado, no n.º 3 do mesmo preceito estabelece-se que “os salários gozam de garantias especiais, nos termos da lei”.

Esta previsão constitucional de garantias especiais para créditos salariais seguramente que, não só justifica, como impõe, regimes consagradores da sua discriminação positiva, em relação aos demais créditos sobre os empregadores (cfr., neste sentido, GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa anotada, I, 4.ª ed., Coimbra, 2007, 777).”. [a referência ao “Acórdão n.º 379/91” deve ser lapso, pois, o Acórdão n.º 498/2003 faz menção expressa ao “Acórdão n.º 373/91”, supra citado]. (negritos nossos)

3.2.5. - No Acórdão n.º 396/2011, de 21 de setembro de 2011, Processo n.º 72/2011, Plenário:

“(…), acrescentando-se, na revisão de 1997, a imposição constitucional de “garantias especiais dos salários” (n.º 3 do artigo 59.º). Não é de crer que o programa constitucional, tão exaustivamente delineado, nesta matéria, só fique integralmente preenchido com a atribuição da natureza de direito fundamental legal ao direito à irredutibilidade da retribuição, qualificação para a qual não se descortina fundamento material bastante.

Direito fundamental, esse sim, é o "direito à retribuição", e direito de natureza análoga aos direitos liberdades e garantias, como é pacífico na doutrina e este Tribunal tem também afirmado (cfr., por exemplo, o Acórdão n.º 620/2007).”. (negritos nossos).

3.2.6. - No Acórdão n.º 510/2016, de 21 de setembro de 2016, Processo n.º 243/2016, 2.ª secção:

“Acresce a importância autónoma da retribuição, justificativa de medidas de proteção especiais e com uma incidência imediata no plano da concorrência entre as empresas (artigos 59.º, n.ºs 1, alínea a), e 3, e 81.º, alínea f), ambos da Constituição). Conforme reconhecido no Acórdão n.º 257/2008:

«[A] retribuição da prestação laboral, quer na sua causa, que na sua destinação típica, está intimamente ligada à pessoa do trabalhador. Ela é a contrapartida da disponibilização da sua energia laborativa, posta ao serviço da entidade patronal. Ela é também, por outro lado, o único ou principal meio de subsistência do trabalhador, que se encontra numa situação de dependência da retribuição auferida na execução do contrato para satisfazer as suas necessidades vivenciais.

É esta dimensão pessoal e existencial que qualifica diferenciadamente os créditos laborais, justificando a tutela constitucional reforçada de que gozam, para além da conferida, em geral, às posições patrimoniais ativas.

É, na verdade, esta perspetiva valorativa que levou à consagração do direito à retribuição do trabalho entre os direitos dos trabalhadores enumerados no n.º 1, alínea a), do artigo 59.º da CRP, por forma a “garantir uma existência condigna” – direito este já expressamente considerado pelo Tribunal Constitucional como um direito de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias (Acórdão n.º 379/91). Por outro lado, no n.º 3 do mesmo preceito estabelece-se que “os salários gozam de garantias especiais, nos termos da lei”.

Esta previsão constitucional de garantias especiais para créditos salariais seguramente que, não só justifica, como impõe, regimes consagradores da sua discriminação positiva, em relação aos demais créditos sobre os empregadores (cfr., neste sentido, Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, I, 4.ª ed., Coimbra, 2007, 777).»

E, por isso, é pacífico na doutrina, e este Tribunal tem também afirmado, que o direito à retribuição é um direito de natureza análoga aos direitos liberdades e garantias (v., entre muitos, os Acórdãos n.ºs 620/2007 e 396/2011), que, de resto, o Estado tem o dever de proteger (cfr. artigo 59.º, nº 2, da Constituição).” (negrito e sublinhado nossos).

3.3. - A “discriminação positiva” foi consagrada no artigo 377.º - Privilégios creditórios - do Código do Trabalho (CT) de 2003 [anterior artigo 4.º da Lei n.º 96/2001, de 20 de agosto, revogada pela Lei n.º 99/2003, de 27 de agosto], ao qual corresponde o actual artigo 333.º do CT/2009, que determina:

1 - Os créditos do trabalhador emergentes de contrato de trabalho, ou da sua violação ou cessação gozam dos seguintes privilégios creditórios:

a) Privilégio mobiliário geral;

b) Privilégio imobiliário especial sobre bem imóvel do empregador no qual o trabalhador presta a sua actividade.

2 - A graduação dos créditos faz-se pela ordem seguinte:

a) O crédito com privilégio mobiliário geral é graduado antes de crédito referido no n.º 1 do artigo 747.º do Código Civil;

b) O crédito com privilégio imobiliário especial é graduado antes de crédito referido no artigo 748.º do Código Civil e de crédito relativo a contribuição para a segurança social.”.

A “discriminação positiva” está ainda reflectida no artigo 738.º - bens parcialmente penhoráveis - n.º 1, do novo CPC, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho e alterado pela Lei n.º 114/2017 de 29 de Dezembro, Lei do Orçamento do Estado de 2018, que estabelece:

1 - São impenhoráveis dois terços da parte líquida dos vencimentos, salários, prestações periódicas pagas a título de aposentação ou de qualquer outra regalia social, seguro, indemnização por acidente, renda vitalícia, ou prestações de qualquer natureza que assegurem a subsistência do executado.”. (negritos nossos).

3.4. - A legislação ordinária acolhe, assim, a garantia constitucional da “existência condigna” da pessoa humana, princípio inerente a um Estado de Direito.

Dito de outro modo: a legislação ordinária impõe que o trabalhador assalariado mantenha, pelo menos, dois terços da parte líquida do seu salário para que mantenha uma vida digna, pessoal e familiar, em particular, a nível alimentar e habitacional, direitos básicos da dignidade da pessoa humana.

E o relevo nuclear do direito à manutenção de uma vida digna é atestado pela vinculação do legislador ao estabelecimento de garantias especiais para os salários, ou seja, tais garantias especiais são de natureza pessoal, estabelecidas, privativamente, no n.º 3 do artigo 59.º da CRP, em benefício dos credores trabalhadores assalariados: “o direito à retribuição é um direito de natureza análoga aos direitos liberdades e garantias”, como afirmado nos citados Acórdãos do Tribunal Constitucional.

Como escreve Rui Medeiros, in “O Direito Fundamental à Retribuição, em especial, o princípio a trabalho igual salário igual”, pág. 121, «(...), a própria fixação das garantias especiais dos salários, nos termos do n.º 3 do artigo 59.º, não deve ignorar que a retribuição do trabalhador constitui também uma forma de assegurar uma existência condigna. Neste sentido, "as expressões mais significativas do nexo estabelecido entre a retribuição e as necessidades do trabalhador consistem num conjunto de normas legais que oferece uma especial tutela da integridade dos valores que compõem o salário". Neste contexto, o salário mínimo pode relevar em várias dimensões do sistema de protecção do salário (...)». (negrito nosso)

Ora, o penhor de conta bancária não goza de qualquer garantia constitucional equiparada à retribuição do trabalho.

4. - Da natureza jurídica do penhor de conta bancária.

4.1. - Neste contexto, não gozando o penhor de conta bancária de qualquer garantia constitucional equiparável, pode considerar-se um direito real de garantia, para efeitos do artigo 666.º do Código Civil, como defende o Reclamante, ou, uma garantia pessoal atípica/irregular, como concluiu o Tribunal da Relação de Lisboa?

4.2. - O penhor de conta bancária vem suscitando divergências na doutrina e na jurisprudência, quanto à questão do objeto da garantia e, por consequência, a sua natureza e oponibilidade em relação a terceiros.

Em síntese, essa divergência consiste: (i) por um lado, considerando o penhor de conta bancária como um penhor regular e oponível a terceiro: (ii) por outro lado, considerando-o um penhor irregular e inoponível a terceiros, na medida em que é um direito real de garantia atípico, uma garantia especial sobre um direito.

Exemplos:

* Considerado um direito real de garantia:

- Acórdão do STJ de 7 de junho de 2005, in

https://jurisprudencia.csm.org.pt/ecli/ECLI:PT:STJ:2005:05A1774.80/

- Acórdão do STJ de 5 de Abril de 2022, in

https://jurisprudencia.csm.org.pt/ecli/ECLI:PT:STJ:2022:1855.17.5T8SNT.A.L1.S1.9D/

- Acórdão do TR Coimbra de 21.05.2019, proc. n.º 4705/17.9T8VIS-B.C1, in www.dgsi.pt.

- Acórdão do TR Porto de 12.09.2019, proc. n.º 681/11.0TYVNG-A.P1, in www.dgsi.pt.

- Marco Carvalho Gonçalves, Das Lições de Direito Executivo, 5.ª ed., Almedina, pág. 498.

- Manuel Augusto Gama Prazeres, Do Concurso de Credores e Da Verificação e Graduação de Créditos, 2.ª ed., Livraria Cruz, Braga, pág. 19.

- António Pedro A. Ferreira, Direito Bancário, pág. 662.

* Considerado uma garantia especial pessoal sobre um direito/atípica/irregular:

- Acórdão do TRP, de 03.10.1996, 9531254, proc. n.º 9531254, in www.dgsi.pt.

- Acórdão do TRC, de 14.12.2004, proc. n.º 859/04, entendeu que o penhor de depósito bancário é um direito real de garantia atípico e por isso inoponível a terceiros.

- Pedro Romano Martinez/Pedro Fuzeta da Ponte, Garantias do Cumprimento, 5.ª edição, Almedina.

- António Menezes Cordeiro, Manual de Direito Bancário, 4.ª Edição, 2010, Almedina.

- Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Direitos Reais, 3.ª Edição, Almedina; e Garantia das Obrigações, 5.ª ed. 2016.

- Miguel Lucas Pires: (i) Questões Laborais, Ano XV, N.º 31, Janeiro/Junho 2008, págs. 59 e segs.; (ii) Penhor ou penhores? Dissertação de doutoramento em Ciências Jurídico-Civilísticas, Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, junho de 2012, p. 120-121; (iii) Dos privilégios creditórios: regime jurídico e sua influência no concurso de credores, Almedina, 2015, 2.ª Edição, em especial, págs. 359 e segs.

4.3. - Quid iuris?

4.3.1. - Decorre do artigo 735.º n.º 2 do Código Civil que os privilégios mobiliários gerais se tornam eficazes no momento de penhora ou acto equivalente.

Eles incidem sobre a generalidade de móveis existentes no património do devedor, não configurando um direito real de garantia sobre qualquer deles em concreto, mas tão só uma forma anómala de preferência relativamente aos restantes credores comuns - cfr. Paulo Cunha, A Garantia nas Obrigações, vol. II, págs. 269-270 -.

No dizer de Miguel Lucas Pires, em Artigo publicado in Questões Laborais, Ano XV, N.º 31, págs. 59 e segs., “O Código Civil consagra, na alínea d) do n.º 1 do art. 737.º, um pri­vilégio creditório mobiliário geral a favor dos créditos emergentes do contrato de trabalho, da respectiva violação ou cessação, pertencentes ao trabalhador e relativos aos últimos seis meses.

A protecção insuficiente que esta norma concedia aos créditos labo­rais - Traduzida, nomeadamente no facto de apenas incidir sobre o património mobiliário do devedor, de apenas abranger um lapso temporal relativamente diminuto (6 meses) e de, em confronto com outros créditos privilegiados (por força da gradua­ção estabelecida no art. 747.º do Código Civil) e com outros créditos preferentes (com base no disposto no art. 749.º do mesmo Código), ocuparem uma posição particularmente ingrata [nota (2)] -, determinou o surgimento da Lei n.º 17/86, de 14 de junho, na qual se consagram novas garantias desta índole - mais concretamente um privilégio mobiliário geral e um privilégio imobiliário geral - desti­nadas a garantir os créditos emergentes do contrato de trabalho regulados nessa lei (art. 12.º da referida Lei, também conhecida por Lei dos Salários em Atraso).

Relativamente à legislação anterior, a tutela mais cabal conferida aos créditos laborais traduziu-se na sujeição do património imobiliário do devedor à garantia dos trabalhadores, na supressão do limite temporal e na melhoria da graduação no concurso com outros créditos privilegiados”.

E acrescenta na nota (3):

Importa, a este último respeito, distinguir consoante se trate do privilégio mobiliário ou imobiliário. No que a este último diz respeito, não subsistem dúvidas que ocupará o topo da pirâmide dos créditos privilegiados; relativamente os primeiros, a deficiente redacção da norma em questão (art. 12.º, n.º 3, alínea a), da Lei n.º 17/86), não permite uma resposta tão inequívoca, mas a posição dominante aponta no sentido de também o privilégio mobiliário geral ocupar a posição cimeira no confronto com os outros privilégios mobiliários, sejam eles gerais ou especiais (defendendo esta posi­ção, Menezes Cordeiro, Manual de Direito do Trabalho, Almedina, 1991, pág. 742, nota 64; A. Luís Gonçalves, Privilégios creditórios: evolução histórica; regime; sua inserção no tráfico creditício, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Vol. LXVII, pág. 7; Monteiro Fernandes, Direito do Trabalho, Almedina, 1999, pág. 425, e nós próprios no nosso Dos privilégios creditórios: regime jurídico e sua influência no concurso de credores, Almedina, 2004, págs. 264 a 266.

Contra, Sal­vador da Costa, O concurso de credores, 2.ª Edição, Almedina, 2001, págs. 255 a 257). Daí que, com a entrada em vigor, primeiro da Lei n.º 17/86 e, sobretudo, da Lei n.º 96/2001, a generalidade dos créditos laborais passou a ser protegida por outros privilégios de maior amplitude e melhor graduação; pelo que se deve ter por revogado o art. 737.º, n.º 1, alínea d), do Código Civil (ou, quando muito, serviria de tutela aos créditos de natureza excepcional não abrangidos pela Lei n.º 96/2001). Com a entrada em vigor do Código de Trabalho e na medida em que a globalidade dos créditos labo­rais passou a estar garantida pelos privilégios nele regulados, a conclusão impõe-se por maioria de razão.”.

E sob a epígrafe “1.2. Privilégio mobiliário geral”, pág. 74, escreve:

Relativamente a esta garantia, não se levantam as mesmas dúvidas suscitadas a propósito da sua congénere imobiliária, uma vez que a sujei­ção ao regime do art. 749.º do Código Civil (e a consequente subordina­ção, em caso de concurso, a outras garantias reais) é inequívoca.

De facto, e como já foi abordado anteriormente, a generalidade dos diplomas legais que criaram privilégios creditórios não se ocuparam da problemática da respectiva graduação no confronto com outros créditos preferente, pelo que esta matéria será regulada pela lei civil geral.”.

Ora, não definindo a lei qual a natureza jurídica do penhor de conta bancária e respectiva graduação no confronto com outros créditos preferentes, em particular com os créditos salariais, cabe ao intérprete fazê-lo no contexto jurídico constitucional vigente.

Importa, pois, saber se o penhor de conta bancária pode considerar-se um direito real de garantia ou uma garantia pessoal sobre um direito/atípica/irregular, para efeitos de uma graduação de créditos em concurso bilateral: crédito salarial versus penhor de conta bancária.

4.3.2. - Como supra referido, uma parte da doutrina e da jurisprudência considera que “Constituído validamente, o penhor é oponível erga omnes e prefere ao privilégio geral, pelo que os créditos laborais não podem ser, quanto ao bem empenhado, graduados antes do crédito pignoratício.”.

[cfr. o sumário do referido Acórdão do STJ de 7 de junho de 2005, proc. n.º 05A1774].

A outra parte advoga que o penhor de créditos, não constitui, porém, um direito real de garantia, uma vez que não incide sobre coisas corpóreas, sendo antes uma garantia especial sobre direitos.

Francesco Santoro-Passarelli, in Teoria Geral do Direito Civil, 1967, Coimbra, pág. 36, escreveu: “a propriedade e os outros direitos que se chamam reais (de res) têm sempre e apenas como objecto uma coisa em sentido próprio, uma porção de matéria. E, em nossa opinião, distinguem-se dos outros direitos subjectivos precisamente porque, embora estabelecendo, como qualquer outro direito, uma relação entre sujeitos, incidem directamente sobre a res, de modo que perante o seu titular a generalidade dos outros sujeitos fica apenas com uma obrigação secundária e reflexa de abstenção”.

António Menezes Cordeiro, in Direitos Reais, Cadernos de Ciência e Técnica Fiscal (114), Vol. II, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1979, pág. 1076, considera que “o penhor de créditos tem por objecto não um direito – ou uma coisa – mas uma prestação. Consequentemente não é um direito real, nem penhor. A semelhança económica que apresenta com o penhor em sentido próprio justifica, contudo, que se fale de penhor de créditos.

E, mais recentemente, in Manual de Direito Bancário, 6.ª Edição, Almedina, pág. 818, escreveu: “o denominado “penhor” de conta bancária não é um verdadeiro penhor, no sentido de um direito real de garantia; trata-se, antes, de uma garantia pessoal dobrada pela autorização de debitar, na conta garante, determinadas importâncias. Esta solução tem, implícita, uma cláusula de principal pagador (…). Além disso limita a responsabilidade do garante ao montante da conta em jogo (…)”.

Em síntese, António Menezes Cordeiro considera que o penhor de conta bancária se afasta do penhor civil, uma vez que não só não recai sobre uma coisa corpórea ou a ela assimilável, como a afetação do dinheiro depositado através do débito na conta sobre a qual incidiu o penhor, se afigura como um regime peculiar, dado que a verdadeira diferença entre o penhor de conta bancária e o penhor civilístico é o facto de aquele impor ao autor do mesmo a obrigação de manter a conta provisionada, considerando que, assim, a garantia não é real sendo, ao invés, pessoal.

No mesmo sentido, Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, in Direitos Reais, 3.ª Edição, Almedina, pág. 424: “o penhor de direitos, designadamente o penhor de créditos, não constitui, porém, um direito real de garantia, uma vez que não incide sobre coisas corpóreas, sendo antes uma garantia especial sobre direitos.”. - cfr. ainda, do mesmo autor, in Garantia das Obrigações, 5.ª ed. 2016, pág. 286 -.

4.3.3. - De todo o exposto é, pois, de concluir que, não constituindo o penhor de conta bancária um direito real de garantia, mas tão só uma garantia especial pessoal sobre um direito, não lhe é aplicável o regime previsto no artigo 666.º do Código Civil, gozando apenas de um privilégio mobiliário geral.

E, como tal, na graduação de créditos em concurso bilateral, o crédito salarial deve anteceder o penhor de conta bancária, só assim ficando salvaguardada a garantia constitucional especial do crédito salarial do Exequente, prevista no citado artigo 59.º, n.º 3 da CRP, garantia essa de que não goza o penhor do Reclamante, Banco BPI, S.A..

Improcedem, pois, os recursos de revista.

IV. - Decisão

Atento o exposto, acordam os Juízes que compõem a Secção Social em julgar improcedentes os recursos de revista e manter o acórdão recorrido.

Custas a cargo dos Recorrentes, na proporção de metade.

Lisboa 27 de novembro de 2024

Domingos José de Morais (relator)

Mário Belo Morgado

José Eduardo Sapateiro