Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1581/24.9JABRG-K.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: ANTÓNIO AUGUSTO MANSO
Descritores: HABEAS CORPUS
PRISÃO ILEGAL
PRISÃO PREVENTIVA
PRAZO
CONTAGEM DE PRAZOS
INDEFERIMENTO
Data do Acordão: 03/19/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: HABEAS CORPUS
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário :
I - É manifestamente infundada a petição de habeas corpus, quando, através da avaliação sumária dos seus fundamentos, se pode concluir, sem margem para dúvidas, que será indeferida.

II - Como é jurisprudência constante e pacífica do Supremo Tribunal de Justiça, os motivos de «ilegalidade da prisão», como fundamento da providência de habeas corpus, têm de reconduzir-se à previsão das alíneas do n.º 2 do art.º 222.º do CPP, de enumeração taxativa.

III - Não cabem no âmbito da providência de Habeas Corpus, (a)a falta de audição do arguido sobre as medidas de coação promovidas no primeiro interrogatório, ou (b)os pressupostos da prisão preventiva como (i)o perigo de fuga, (ii)de perturbação da investigação ou (iii)da continuação da actividade criminosa, questões para as quais se encontram legalmente previstos meios próprios de intervenção no processo, onde devem ser conhecidas, como efectivamente o foram, em recurso, antes interposto para o Tribunal da Relação.

Decisão Texto Integral:
Juízo de Instrução Criminal de ...-Juiz...

Habeas Corpus

Acordam, em conferência, na 3.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça,

1. Relatório

1.1. AA, preso preventivamente no Estabelecimento Prisional ..., à ordem do processo de Inquérito n.º 1581/24.9JABRG-K.S1, a correr termos no Departamento de Investigação e Acção Penal de ..., apresenta petição de habeas corpus, subscrita pela sua mandatária, com fundamento em prisão ilegal, invocando o disposto nos artigos 222º, n.º 2, als. b) e c) e 223º do Código do Processo Penal (doravante CPP), nos termos e com os fundamentos seguintes (cujas conclusões se transcrevem):

… … …

I. A decisão de aplicar a prisão preventiva sem a audição pessoal do arguido antes da imposição da medida configura uma grave violação dos direitos fundamentais do arguido, nomeadamente os direitos à audição e à defesa, consagrados na Constituição da República Portuguesa.

II. Estes direitos são garantidos pelo artigo 32.º da Constituição, que estabelece, em seu n.º 1, que todos têm direito a ser ouvidos no processo judicial e, consequentemente, a poderem exercer o direito de defesa.

III. A omissão desta diligência processual, ou seja, a falta de audição pessoal do arguido, constitui uma nulidade insanável, conforme estabelecido no artigo 119.º, alínea c), do Código de Processo Penal (CPP).

IV. A nulidade insanável, neste contexto, é aquela que não pode ser sanada, mesmo que não seja arguida, sendo relevante para a proteção dos direitos constitucionais do arguido.

V. A audição pessoal do arguido é um direito essencial para a salvaguarda de uma decisãojusta e imparcial, garantindoque oarguido tenha aoportunidade de se manifestar sobre os elementos que possam fundamentar a sua prisão preventiva.

VI. A ausência dessa audiência compromete a própria legitimidade do ato processual e compromete o direito ao contraditório e à defesa, pilares do Estado de Direito democrático.

VII. A prisão preventiva, sendo a medida de coação mais gravosa prevista no ordenamento jurídico português, deve ser aplicada apenas em situações de estrita necessidade e sempre quando existam os requisitos legais rigorosamente preenchidos, conforme estipulado no artigo 212.º do Código de Processo Penal.

VIII. Este artigo descreve de forma precisa as condições em que a prisão preventiva pode ser determinada, sendo elas o perigo de fuga, o risco de perturbação da investigação ou a necessidade de garantir a ordem pública.

IX. No caso concreto em análise, não foi apresentada fundamentação suficiente que demonstre a existência de risco concreto de fuga, de perturbação da investigação ou de continuidade da atividade criminosa.

X. A mera alegação de gravidade dos factos imputados ao arguido ou de vínculos com o estrangeiro, sem a demonstração concreta de que estes factos representam efetivos riscos, não são suficientes para justificar a aplicação de uma medida tão restritiva.

XI. A prisão preventiva, por ser uma medida excepcional e de caráter preventivo, não deve ser uma resposta automática, mas sim um último recurso quando as alternativas menos gravosas não sejam suficientes para garantir o bom andamento do processo e a ordem pública.

XII.A ausência de oportunidade para o arguido se manifestar sobre os elementos que justificariam a prisão preventiva é uma violação grave do princípio do contraditório, que é um princípio fundamental do direito processual penal, garantindo que todas as partes envolvidas tenham a possibilidade de conhecer e responder aos argumentos utilizados contra elas.

XIII. O direito ao contraditório está consagrado no artigo 32.º da Constituição e é um princípio chave para assegurar que o processo judicial se desenvolva de forma justa e equitativa.

XIV. Ao não permitir que o arguido seja ouvido pessoalmente antes da aplicação da prisão preventiva, o tribunal fere diretamente o seu direito de defesa.

XV.O contraditório não é apenas um direito formal, mas uma garantia substantiva de que a decisão judicial será tomada de forma equilibrada, levando em consideração as alegações e provas apresentadas pela defesa, o que contribui para a construção de uma decisão justa.

XVI. A falta de observância desse princípio compromete a validade da decisão que impôs a prisão preventiva, tornando-a passível de nulidade.

XVII. A aplicação da prisão preventiva deve ser feita com base no princípio da proporcionalidade, que exige que a medida de coação mais grave seja utilizada apenas quando não existirem alternativas menos restritivas.

XVIII. Este princípio está consagrado no artigo 202.º do Código de Processo Penal, que orienta o juiz a aplicar a medida de coação mais favorável ao arguido, desde que ela seja suficiente para garantir a eficácia do processo e a ordem pública.

XIX. No caso em questão, existem alternativas à prisão preventiva que poderiam ser aplicadas de forma a garantir a continuidade da investigação

sem a necessidade de privação da liberdade do arguido.

XX. Entre essas alternativas estão a obrigação de apresentações periódicas às autoridades, a proibição de contactos com outros arguidos ou testemunhas, ou a proibição de sair do país.

XXI. Estas medidas são eficazes para proteger o regular andamento do processo e a ordem pública, sem impor uma medida de coação excessivamente restritiva.

XXII. A falta de uma fundamentação adequada para a prisão preventiva e a ausência de uma análise das alternativas possíveis configuram uma violação do princípio da proporcionalidade, o que justifica a sua revisão e a substituição por medidas de coação menos gravosas.

XXIII. O habeas corpus é um remédio jurídico de caráter excepcional que visa proteger a liberdade de uma pessoa contra ilegalidades flagrantes na sua detenção ou prisão.

XXIV. No presente caso, a prisão preventiva foi aplicada sem a devida fundamentação legal, o que caracteriza uma ilegalidade manifesta.

XXV. O habeas corpus, neste contexto, surge como uma medida adequada para a revisão da prisão preventiva, com o objetivo de assegurar a liberdade do arguido e corrigir a ilegalidade.

XXVI. A utilização do habeas corpus é particularmente importante para garantir a celeridade na revisão de medidas que atentam contra a liberdade individual.

XXVII. Uma vez que a prisão preventiva é uma medida de extrema gravidade e o arguido se encontra privado da sua liberdade, o habeas corpus serve para restabelecer a legalidade de forma célere e evitar abusos de poder.

XXVIII. A prisão preventiva só pode ser aplicada quando existirem elementos fáticos concretos que justifiquem o risco de fuga, a perturbação da investigação ou o perigo de continuidade da atividade criminosa.

XXIX. No caso em questão, não foram apresentados dados suficientes ou provas concretas que demonstrem a existência de tais riscos.

XXX. A simples menção de que o arguido tem vínculos com o estrangeiro ou que os factos imputados são graves não constitui, por si só, uma justificação válida para a prisão preventiva.

XXXI. O risco de fuga, por exemplo, deve ser concretizado com base em elementos como a possibilidade de o arguido sair do país ou a existência de antecedentes criminais que comprovem a intenção de evadir-se.

XXXII. Da mesma forma, o risco de perturbação da investigação deve ser demonstrado de forma clara, com a exposição de elementos que evidenciem que a presença do arguido fora do estabelecimento prisional prejudicaria a coleta de provas ou a atividade de investigação.

XXXIII. Tendo em conta a ausência de audição pessoal do arguido, a falta de fundamentação concreta e a existência de medidas alternativas menos gravosas, a prisão preventiva mostra-se desproporcional e inadequada no presente caso.

XXXIV. A sua revogação é, portanto, a medida mais justa e apropriada, em conformidade com o Código de Processo Penal.

XXXV. A revogação da prisão preventiva e a sua substituição por medidas de coação menos gravosas, como a obrigação de apresentações periódicas ou a proibição de contactos com os outros arguidos, garantem a continuidade da investigação e da ordem pública, respeitando simultaneamente os direitos fundamentais do arguido.

XXXVI. O habeas corpus, ao ser utilizado neste caso, tem o objetivo de garantir a liberdade do arguido e corrigir a ilegalidade flagrante na sua prisão preventiva. A análise dos factos e da qualificação jurídica deve ser feita de forma sumária, sem prejudicar a análise detalhada que ocorrerá no processo principal.

XXXVII. No caso, a qualificação dos factos até o momento aponta para a inexistência de crimes que justificariam a aplicação da prisão preventiva, o que reforça a necessidade de revisão imediata da medida.

XXXVIII. O habeas corpus possui um caráter excepcional, sendo utilizado apenas quando houver uma ilegalidade flagrante na detenção ou prisão do arguido.

XXXIX. No caso presente, a aplicação da prisão preventiva sem a fundamentação adequada e sem o cumprimento das formalidades processuais configura uma ilegalidade que justifica o uso desta medida.

XL.O habeas corpus visa garantir a liberdade do arguido de forma célere e evitar abusos de autoridade, sem prejudicar o regular andamento do processo.

XLI. A decisão que aplicou a prisão preventiva ao arguido deve ser revista, tendo em vista as graves violações processuais e constitucionais identificadas.

XLII. A falta de audição pessoal do arguido, a ausência de fundamentação concreta e a possibilidade de aplicação de medidas de coação menos gravosas impõem a revogação da prisão preventiva e a sua substituição por alternativas adequadas e proporcionais.

XLIII. Este proceder é fundamental para respeitar os direitos fundamentais do arguido e assegurar a legalidade no processo penal.

Deste modo, entende o requerente que "devera a presente P E T I Ç Ã O D E H A B E A S C O R P U S ser julgada procedente, por provada, e em consequência determinar-se a imediata restituição do requerente à liberdade", nos termo dos artigos 222.º 2 al. b) e 223.º do Código do Processo Penal, em estrito cumprimento dos artigos 32n°s 1,2,3, 5e6, 202° n° 2 e 204 da CRP.

Requer-se que desde já que se proceda à inquirição do arguido nos termos do artigo 60.º 1 al. a) e g) do Código do Processo Penal.

1.2. A Senhora Juíza titular do processo prestou a informação a que se refere o artigo 223.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, por despacho exarado no processo, sobre as condições em que foi efetuada e se mantém a prisão do requerente, dele fazendo constar o seguinte:

“Ref.ª 17453611:

Do pedido de habeas corpus apresentado pelo arguido AA:

Remeta imediatamente a petição ao Exmo. Senhor Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, com as seguintes informações:

- foi aplicada ao arguido a medida de coação de prisão preventiva em sede de primeiro interrogatório judicial de arguido detido, no dia 20 de Setembro de 2024, encontrando-se indiciado da pratica de (i)um crime de tráfico de estupefacientes agravado, p. e p. pelo n.º 1 do artigo 21.º, n.º 1 e 24.º, alíneas b), c) e f), do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro; (ii)um crime de associação criminosa, p. e p. pelo artigo 28.º, n.º 1, do Decreto-Lei nº15/93, de 22 de Janeiro., sendo este um crime conotado como criminalidade altamente organizada, de acordo com a al. m) do art.º 1º do CPP e (iii)um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art.º 86º, n.º 1, alínea c) da Lei 5/2006, de 23/2 (RJAM).

- decisão que foi confirmada pelo Venerando Tribunal da Relação de Guimarães no transato dia 14.01.2025 (ref.ª ...36);

- A revisão da medida de coação foi efectuada por despacho de 20.12.2024 (vide ref.ª ...86);

- o prazo máximo da prisão preventiva será de dois anos, de acordo com o disposto no n.º 2 do art.º 215º do CPP.

Assim sendo, mantenho a medida de coação de prisão preventiva por não se ter ultrapassado qualquer prazo legal e por se manterem todos os pressupostos que a determinaram e posteriormente a mantiveram.”

1.3. O processo está instruído com os elementos tidos por pertinentes como o pedido de habeas corpus, informação judicial nos termos do art.º 223º, 1, do CPP, sendo os demais elementos consultáveis no processo.

1.5. Convocada a secção criminal e notificados, o Ministério Público e o defensor, realizou-se a audiência, em conformidade com o disposto nos n.ºs 1, 2 e 3 do artigo 223.º do CPP.

Após, reuniu o tribunal para deliberar (artigo 223.º, n.º 3, 2.ª parte, do CPP), fazendo-o nos termos que seguem.

2. Fundamentação

2.1. Dados de facto.

2.1.1. Da petição, da informação a que se refere o artigo 223.º, n.º 1, do CPP e dos elementos/documentos juntos, resulta esclarecido, em síntese e no mais relevante para a decisão, que:

(i). O requerente, AA, é arguido nos autos principais de inquérito n.º 1581/24.9JABRG-K.S1, do Departamento de Investigação e Ação Penal de ...;

(ii). Foi ouvido em 1º interrogatório judicial de arguido detido a 20.09.2024, nos termos do art.º 141º do Código de Processo Penal;

(iii). Concluído o primeiro interrogatório foi proferido o despacho judicial, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, que decidiu, além do mais, sujeitardo arguido, para além do Termo de Identidade e Residência já prestado, à medida de coação de prisão preventiva, tudo ao abrigo do disposto nos artigos 191.º, 192.º, 193.º, 194.º, n.º 1, 196.º, 201.º, nºs 1 e 3, 202.º, n.º 1, alíneas a) e b) e 204.º, alíneas a), b) e c), todos do Código de Processo Penal.”

(iv). Ao requerente é imputada a pratica de (i)um crime de tráfico de estupefacientes agravado, p. e p. pelo n.º 1 do artigo 21.º, n.º 1 e 24.º, alíneas b), c) e f), do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro; (ii)um crime de associação criminosa, p. e p. pelo artigo 28.º, n.º 1, do Decreto-Lei nº15/93, de 22 de Janeiro., sendo este um crime conotado como criminalidade altamente organizada, de acordo com a al. m) do art.º 1º do CPP e (iii)um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art.º 86º, n.º 1, alínea c) da Lei 5/2006, de 23/2 (RJAM).

(v)-Interposto recurso confirmou o Tribunal da Relação de Guimarães esta decisão por acórdão de 14.01.2025.

(vi).A 20.12.2024, havia sido proferido despacho judicial de reexame dos pressupostos da prisão preventiva, do requerente, nos termos do art.º 213º do CPP, mantendo-se sujeito à medida de coação de prisão preventiva.

(vii).Situação em que se mantém (de execução da medida de coação de prisão preventiva imposta ao requerente por decisão judicial confirmada pelo Tribunal da Relação de Guimarães).

2.2. Direito

2.2.1. No capítulo dos Direitos Liberdades e Garantias pessoais, prevê o art.º 27º da Constituição da Republica Portuguesa-CRP, sob a epígrafe “direito à liberdade e à segurança”, que todos têm direito à liberdade e à segurança, ninguém podendo ser total ou parcialmente privado da liberdade, a não ser em consequência de (i)sentença judicial condenatória pela prática de acto punido por lei com pena de prisão ou de (ii)aplicação judicial de medida de segurança.

O direito à liberdade é entendido como o direito à liberdade de movimentos, à liberdade ambulatória, à liberdade física, à livre circulação nas circunstâncias de tempo, modo e lugar que a cada cidadão aprouverem.

Constitui, assim, um direito fundamental dos cidadãos constitucionalmente garantido, ou uma garantia constitucional do direito à liberdade individual, mas também tutelado por instrumentos jurídicos internacionais aos quais Portugal está vinculado, como a Convenção Europeia dos Direitos Humanos-CEDH e o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos-PIDCP.

O art.º 5º da CEDH, reconhece que “toda a pessoa tem direito à liberdade”, ninguém podendo ser privado da liberdade, salvo se for preso em cumprimento de condenação, decretada por tribunal competente, de acordo com o procedimento legal.

Reconhece que a pessoa privada da liberdade por prisão ou detenção tem direito a recorrer a um tribunal, a fim de que este se pronuncie, em curto prazo de tempo, sobre a legalidade da sua detenção e ordene a sua libertação, se a detenção for ilegal1.

E no art.º 9º do PIDCP prevê-se que, “todo o indivíduo tem direito à liberdade” pessoal. Proibindo a detenção ou prisão arbitrárias, estabelece que “ninguém poderá ser privado da sua liberdade, excepto pelos motivos fixados por lei e de acordo com os procedimentos nela estabelecidos”.

Determina, ainda, que, “toda a pessoa que seja privada de liberdade em virtude de detenção ou prisão tem direito a recorrer a um tribunal, a fim de que este se pronuncie, com a brevidade possível, sobre a legalidade da sua prisão e ordene a sua liberdade, se a prisão for ilegal.

Não sendo um direito absoluto, o direito a não ser detido, preso ou privado da liberdade, total ou parcialmente, o art.º 27º n.º 3 da CRP elenca os casos em que se pode ser privado da liberdade, o que consta, também, das alíneas a), b), c) d) e f) do n.º 1 do art.º 5º da CEDH, preceito, no qual se inspirou o art.º 27º da CRP2.

As condições e o tempo de prisão, são disciplinadas por lei, como previsto, ainda, pelo citado art.º 27º, n.º 3, da CRP.

Não sendo respeitadas ou sendo violadas, prevê a CRP e o CPP meios processuais de reacção a eventual detenção ou prisão ilegal.

Para além dos meios normais de reacção, (como a arguição de invalidade, reclamação ou recurso), preveem os artigos 31º da CRP e 222º do CPP, a providência de habeas corpus contra o abuso de poder, por virtude por virtude de prisão ou detenção ilegais.

O artigo 31.º da Constituição da República Portuguesa-CRP, sob a epigrafe Habeas Corpus, dispõe que:

«1. Haverá habeas corpus contra o abuso de poder, por virtude de prisão ou detenção ilegal, a requerer perante o tribunal competente.

2. A providência de habeas corpus pode ser requerida pelo próprio ou por qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos.

3. O juiz decidirá no prazo de oito dias o pedido de habeas corpus em audiência contraditória.”

Consagra, pois, este preceito constitucional, o direito à providência de habeas corpus como direito fundamental contra o abuso de poder, por virtude de prisão ou detenção ilegais.

Densificando o artigo 31.º n.º 1 da CRP, dispõe o artigo 222.º do CPP que:

“1 - A qualquer pessoa que se encontrar ilegalmente presa o Supremo Tribunal de Justiça concede, sob petição, a providência de habeas corpus.

2 - A petição é formulada pelo preso ou por qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos, é dirigida, em duplicado, ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, apresentada à autoridade à ordem da qual aquele se mantenha preso e deve fundar-se em ilegalidade da prisão proveniente de:

a) Ter sido efetuada ou ordenada por entidade incompetente;

b) Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou,

c) Manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial.”

O pedido de habeas corpus, no sentido da jurisprudência e doutrina, visa reagir contra o abuso de poder, por prisão ou detenção ilegal e constitui, não um recurso, mas uma providência extraordinária com natureza de acção autónoma e com fim cautelar, destinada a pôr termo no mais curto espaço de tempo a uma situação ilegal de privação de liberdade3. E extraordinária porque singular, com finalidade e processamento próprios4.

A providência de habeas corpus, sobretudo no que aqui mais releva, não se destina a apreciar a validade e o mérito de decisões judiciais, a apurar se foram ou não observadas as disposições da lei do processo e se ocorreram ou não irregularidades ou nulidades resultantes da sua inobservância; trata-se de matérias para as quais se encontram legalmente previstos meios próprios de intervenção no processo, onde devem ser conhecidas, de acordo com o estabelecido nos arts. 118.º a 123.º, do CPP e por via de recurso para os tribunais superiores (art.º 399.º e ss., do CPP)5.

A concessão do habeas corpus pressupõe a atualidade da ilegalidade da prisão, reportada ao momento em que a petição é apreciada6, não se admitindo, no nosso regime constitucional e legal, habeas corpus preventivo.

O habeas corpus não exclui o direito ao recurso, nem é subsidiário do recurso, no sentido de apenas poder ser utilizado após se esgotarem outras formas de reação. Pode “coexistir”, com os demais meios judiciais comuns de reacção, como a arguição de invalidade, reclamação ou com o recurso7.

Não existe relação de litispendência ou de caso julgado entre o recurso e a providência de habeas corpus, como refere o artigo 219.º, n.º 2, do CPP.

Além disso, os motivos de «ilegalidade da prisão», como fundamento da providência de habeas corpus, têm de reconduzir-se à previsão das alíneas do n.º 2 do art.º 222.º do CPP, de enumeração taxativa.

Assim, o STJ apenas tem de verificar, (a)se a prisão resulta de uma decisão judicial exequível, (b)se a privação da liberdade se encontra motivada por facto que a admite e (c)se estão respeitados os respetivos limites de tempo fixados na lei ou em decisão judicial8.

E nos casos de abuso de poder, este há de ser facilmente perceptível dos elementos constantes do processo, há de tratar-se de um “erro grosseiro, patente e grave, na aplicação do direito”, em todas situações elencadas nas três alíneas do n.º 2 do art.º 222.º do CPP, entendimento que tem sido reiterado pela jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça9.

2.2.2. Neste caso estão imputados ao arguido requerente, além do mais, a prática de (i)um crime de tráfico de estupefacientes agravado, previsto pelo n.º 1 do artigo 21.º, n.º 1 e 24.º, alíneas b), c) e f), do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro e punível com pena de prisão de 5 a 15 anos, e de (ii)um crime de associação criminosa, previsto pelo artigo 28.º, n.º 1, do Decreto-Lei nº15/93, de 22 de Janeiro e punível com pena de prisão de 10 a 25 anos, sendo este, ainda, um crime conotado como criminalidade altamente organizada, de acordo com a al. m) do art.º 1º do CPP.

Nos termos do disposto no art.º 202º, n.º 1, al. a) e b) do CPP, pode o juiz impor ao arguido a prisão preventiva quando houver fortes indícios da prática de crime doloso punível com pena de prisão de máximo superior a 5 anos - a)-, houver fortes indícios da prática de crime doloso de terrorismo, criminalidade violenta ou altamente organizada punível com pena de prisão de máximo superior a 3 anos – b).

E, dispõe o art.º 215º do CPP, sob a epigrafe “prazos de duração máxima da prisão preventiva”, que:

«1 - A prisão preventiva extingue-se quando, desde o seu início, tiverem decorrido:
a) Quatro meses sem que tenha sido deduzida acusação;

b) Oito meses sem que, havendo lugar a instrução, tenha sido proferida decisão instrutória;
c) Um ano e dois meses sem que tenha havido condenação em 1.ª instância;
d) Um ano e seis meses sem que tenha havido condenação com trânsito em julgado.
2 - Os prazos referidos no número anterior são elevados, respetivamente, para
seis meses, dez meses, um ano e seis meses e dois anos, em casos de terrorismo, criminalidade violenta ou altamente organizada, ou quando se proceder por crime punível com pena de prisão de máximo superior a 8 anos”, …

No caso em apreço, levando em conta os crimes imputados ao requerente e o disposto no art.º 202º e n.º 2 do artigo 215.º, do CPP, para além de ser possível a aplicação da medida de coação de prisão preventiva, o prazo de duração máxima desta, sem que seja deduzida acusação, será de seis meses.

Não o prazo de 2 anos como consta do despacho judicial a que se refere o art.º 223º, n.º 1 do CPP – informação. Será de 2 anos apenas nas hipóteses em que tenha decorrido este prazo sem que tenha havido condenação com trânsito em julgado.

Tem sido entendimento pacífico, na jurisprudência deste Supremo Tribunal, que é a partir do momento do despacho judicial que aplica ao arguido a medida de coação de prisão preventiva que se contam os prazos máximos desta medida de coação correspondentes à fase pré-acusatória, e não do momento da detenção que o tenha precedido, como se decidiu nos Acs. deste STJ, de 19.07.2019, proferido no processo n.º 12/17.5JBLSB-L.S1, de 08.04.2020, de 11.11.2021, proc. 869/18.2JACBR-G.S1, de 20.12.021, proferido no processo n.º 543/19.2PALGS-D.S1 e 26.06.2024, proferido no proc. n.º 1529/23.8PFLRS-A.S1.

Tem sido, igualmente, jurisprudência pacifica do Supremo Tribunal de Justiça, o entendimento de que, para a verificação do cumprimento do prazo máximo de prisão preventiva previsto no artigo 215.º, n.º 1, al. a), do CPP, é relevante a data de dedução da acusação e não a notificação desta ao arguido, como decidido, entre muitos, nos acórdãos supra citados, e ainda, de 17.05.2023, proferido no proc. 3233/21.2T9VNF-J.S1, de 29.06.2023, proferido no proc. 787/22.0PBMTA-B.S1, e de 31.08.2023, proferido no proc. 442/23.3JABRG-B.S1. Sendo, também, esta, a opinião da doutrina, não sendo julgada inconstitucional tal interpretação pelo Ac. do Tribunal Constitucional n.º 280/200810.

No caso, o requerente foi ouvido em 1º interrogatório judicial de arguido detido a 20.09.2024, e nessa data aplicada a medida de coação de prisão preventiva.

Por despacho judicial de 20.12.2024, foram reexaminados os pressupostos da prisão preventiva neste caso, nos termos do art.º 213º do CPP, tendo sido decidido manter a medida de coação de prisão preventiva do requerente.

Por despacho de 12.03.2025 (ref.ª...26), notificado à mandatária do recorrente a 13.03.2025 (ref.ª...69), considerando a natureza dos crimes em questão, o número de arguidos, as diligências já realizadas e por realizar, as quais se revelam necessárias para a investigação, foi declarada a especial complexidade dos presentes autos, nos termos do art.º 215º n.ºs 3 e 4 do Código de Processo Penal.

Em consequência, o prazo de duração máxima da prisão preventiva passará a ser não já o previsto no art.º 215º, n.º 2 do CPP (de 6 meses), mas sim o previsto no artigo 215.º, n.º 3, mais concretamente de um ano, que se só se completa a 19.09.202511, data até quando deverá ser deduzida acusação e que está longe de se verificar.

Assim, quando em 03.03.2025, o requerente deu entrada do requerimento de pedido de habeas corpus, não se verificava, como não se verifica hoje, qualquer motivo para invocar irregularidades e muito menos para fundamentar o pedido da providência de habeas corpus.

2.2.3. O requerente indica, ora o disposto na al. b), ora o disposto na al. c), ambas do n.º 2 do art.º 222º do CPP, sem que se verifique qualquer situação enquadrável nestas alíneas, sem motivo, portanto, para ser pedida a providência de habeas Corpus.

O que se verifica é, antes, o inconformismo do requerente com a decisão de aplicação da medida de coação de prisão preventiva.

Dela interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Guimarães, que confirmou aquela decisão da 1ª instância.

Inconformado ainda, apresenta este pedido de Habeas Corpus, onde, tal como naquele recurso, lança, ainda, mão de pressupostos de aplicação desta medida como (i)o perigo de fuga, (ii)o risco de perturbação da investigação (iii)o perigo de continuação da actividade criminosa e necessidade de garantia da ordem publica, defende ainda que (iv)não foi ouvido sobre a medida de coação que lhe foi aplicada, o que constitui nulidade nos termos do art.º 119º do CPP e não respeita o princípio do contraditório, consagrado no art.º 32º da CRP.

Mas como supra se disse, o pedido de Habeas Corpus não se destina a apreciar a validade e o mérito de decisões judiciais, a apurar se foram ou não observadas as disposições da lei do processo e se ocorreram ou não irregularidades ou nulidades resultantes da sua inobservância; trata-se de matérias para as quais se encontram legalmente previstos meios próprios de intervenção no processo, onde devem ser conhecidas, de acordo com o estabelecido nos arts. 118.º a 123.º, do CPP e por via de recurso para os tribunais superiores (art.º 399.º e ss., do CPP)5.

E que o habeas corpus não exclui o direito ao recurso, nem é subsidiário do recurso, no sentido de apenas poder ser utilizado após se esgotarem outras formas de reação. Pode “coexistir”, com os demais meios judiciais comuns de reacção, como a arguição de invalidade, reclamação ou com o recurso7, não existindo relação de litispendência ou de caso julgado entre o recurso e a providência de habeas corpus, como refere o artigo 219.º, n.º 2, do CPP.

Ora, neste caso, como referido, o Tribunal da Relação de Guimarães por acórdão de 14.01.2025, conheceu já das questões aí suscitadas que de novo repete neste pedido, negou provimento ao recurso do requerente e confirmou o despacho judicial que determinou a aplicação ao requerente da medida de coação de prisão preventiva.

Antes disso, ainda, por despacho judicial de 20.12.2024, foram reexaminados os pressupostos da prisão preventiva, neste caso, nos termos do art.º 213º do CPP, revisão que o requerente também invoca, tendo sido decidido manter a medida de coação de prisão preventiva do requerente.

2.2.4. Em suma, não se verifica qualquer das situações a que se referem as alíneas a), b) e c) do n.º 2 do art.º 222º, do CPP.

Verifica-se, antes, que a prisão preventiva, em que o peticionante atualmente se encontra, resulta de uma decisão judicial exequível, decisão proferida pelo juiz de instrução competente, que a privação da liberdade se encontra motivada por factos pelos quais a lei a admite, os crimes que lhe são imputados, e que estão respeitados os respetivos limites de tempo fixados por lei.

É, pois, manifesta a falta de fundamento para o pedido da presente providência de habeas corpus.

Com efeito, é manifestamente infundada a petição quando, através de uma avaliação sumária dos seus fundamentos, se pode concluir, sem margem para dúvidas, que está votada ao insucesso.

Na verdade, os crimes imputados ao arguido admitem a aplicação da medida de coação de prisão preventiva, o prazo de prisão preventiva que seria de 6 meses, após despacho de declaração de especial complexidade dos presentes autos, passou a ser o previsto no art.º 215º, n.º 3 do CPP, de 1 (um) ano, que só se completa a 19.09.2025, o Juiz de Instrução Criminal Competente decidiu aplicar esta medida, decisão confirmada pelo Tribunal da Relação de Guimarães e já antes confirmada no reexame dos pressupostos da prisão preventiva nos termos do art.º 213º do CPP, pelo que não se verifica qualquer motivo que fundamente o pedido desta providência de Habeas Corpus, sendo evidente a falta de razão do requerente e o insucesso do pedido.

3. Decisão

Pelo exposto, acordam no Supremo Tribunal de Justiça, 3ª secção, em:

(i)-indeferir o pedido de habeas corpus apresentado por AA, julgando-o manifestamente infundado - artigo 223.º, n.º 4, al. a), e n.º 6, do CPP;

(ii)-condenar o peticionante nas custas, fixando-se a taxa de justiça em 3 UCs, nos termos do artigo 8.º, n.º 9, e da Tabela III do Regulamento das Custas Processuais.

(iii)-condenar, ainda, o peticionante ao pagamento de uma quantia de 6 UC – art.º 223º, n.º 6 do CPP.

*

Supremo Tribunal de Justiça, 19 de Março de 2025.

António Augusto Manso (Relator)

Maria Margarida Almeida (Adjunta)

Carlos Campos Lobo (Adjunto)

Nuno António Gonçalves (Presidente da secção)

_____________________________________________

(1) - v. ac. do STJ, de 14.07.2021, proc. 2885/10.3TXLSB-AA.S1, www.dgsi.pt.

(2) - v. ac. do STJ, de 24.04.2024, Proc. n.º 2592.08.7PAPTM-C.S1, www.dgsi.pt.

(3) - v. ac. do STJ de 02.06.2021, 156/19.9T9STR-A.S1, www.dgsi.pt.)

(4) - Eduardo Maia Costa, 2016, p. 48, citado por Tiago Caiado Milheiro in Comentário Judiciário ao CPP, AAVV, Coimbra, Almedina, tomo III, em anotação ao art.º 222º do CPP.

(5) - ac. do STJ de 16.11.2022, proc. 4853/14.7TDPRT-A.S1, www.dgsi.pt.

(6) – ac. do STJ de 22.03.2023, Proc. n.º 631/19.5PBVLG-MC.S1, in www.dgsi.pt.

(7) - ac. STJ de 19-11-2020 - A. Gama, citado por Tiago Caiado Milheiro, in Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, AA.VV., t. III, Coimbra, Almedina, 2022, p. 586)

(8) - ac. do STJ de 16.11.2022, proc. 4853/14.7TD PRT-A.S1, www.dgsi.pt

(9) – ac. do STJ de 20.11.2019, proc. n.º 185/19.2ZFLSB-A.S1,www.dgsi.pt.

(10) -v. Tiago Caiado Milheiro, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, AA.VV., Tomo III, Coimbra, Almedina, 2022, p. 592/593.

(11)- porquanto se trata de um prazo de natureza substantiva, devendo computar-se nos termos dos artigos 296.º e 279.º, do Código Civil como se diz no citado acórdão do STJ de 11.11.2021.