Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
6556/22.0T8MAI.P1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: CARLOS PORTELA
Descritores: IMPUGNAÇÃO DE PATERNIDADE
INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE
LEGITIMAÇÃO
PERFILHAÇÃO
LACUNA DA LEI
INTEGRAÇÃO
PATERNIDADE BIOLÓGICA
PRESUNÇÃO LEGAL
ILISÃO DA PRESUNÇÃO
PROVA
EXAME LABORATORIAL
RECUSA
INVERSÃO DO ÓNUS DA PROVA
CONSTITUCIONALIDADE
ABUSO DO DIREITO
Data do Acordão: 06/17/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
Sumário (cf. art.º 663º, nº7 do CPC):

I. A partir da entrada em vigor do D.L. nº496/77 de 25 de Novembro e tendo em vista a eliminação do ordenamento das disposições inconciliáveis com a Constituição, designadamente as que assentavam na distinção entre filhos legítimos e ilegítimos, como ocorria nomeadamente com os artigos 1873.º a 1875.º do Código Civil, a legitimação como forma de estabelecimento da paternidade deixou de estar prevista na nossa lei civil substantiva.

II. Assim no caso dos autos a impugnação da paternidade constante do registo que a Autora pretende e que resulta do mecanismo da legitimação –, e que pediu em cumulação com a de investigação de paternidade, – não está, pois, prevista em qualquer norma do Código Civil.

III. Não tendo a situação de facto em apreço solução expressa na lei, afigura-se necessário, nos termos do disposto no artigo 10.º do Código Civil, procurar a norma aplicável aos casos análogos

IV. Como antes ocorria na figura da legitimação e agora ocorre no instituto da perfilhação o que releva é a declaração de vontade daquele que num e noutro dos casos reconhece e aceita ser pai.

V. É correcta a forma de integrar a lacuna legal através da aplicação ao caso concreto do actual regime legal da perfilhação.

VI. Dúvidas não podem restar quanto à admissibilidade da cumulação na mesma acção dos pedidos de impugnação da paternidade e consequente cancelamento do registo de paternidade e de investigação de paternidade biológica.

VII. Em reforço deste entendimento valem as regras previstas na 2ª parte do nº1 do art.º 36º do Código de Processo Civil, onde se permite que um mesmo autor demande conjuntamente vários réus, por diferentes quando estes estão entre si numa relação de prejudicialidade ou dependência.

VIII. Atenta a cumulação de pedidos o prazo de caducidade previsto no nº2 do art.º 1817º, não corre uma vez que deve considerar-se que só com este processo e, por via da procedência do pedido de impugnação da perfilhação e, por ter sido ordenado o cancelamento desse registo, pode o Autor ver reconhecida paternidade diferente da registada.

IX. Em face do disposto na alínea e) do art.º 1871º do CC, passou a admitir-se que a prova da paternidade por qualquer forma, nomeadamente por exames genéticos, servia de fundamento bastante à presunção legal que cabia ao investigado afastar.

X. De acordo com a jurisprudência actualmente consolidada do Tribunal Constitucional, a livre apreciação da recusa do investigado a submeter-se a tal exame de que resulta a inversão do ónus da prova sobre a paternidade não viola qualquer princípio ou norma constitucional.

XI. Cabendo ao Réu, por força da presunção e da inversão do ónus da prova provar os factos de que podia resultar que não é o pai da Autora e não o tendo feito, a dúvida resolve-se contra si, em consequência da aplicação conjugadas dos artigos 344º, nº2 e 414º do Código Civil.

XII. O exercício do direito ao reconhecimento da paternidade não pode ser considerado em si mesmo desproporcional ou excessivo mesmo nos casos em que o pretenso pai venha com a propositura da acção a ter inconvenientes ou transtornos.

XIII. Não faz qualquer sentido limitar no tempo o exercício de um direito para proteger as expectativas da outra parte nos casos em que o seu titular tinha, por força de lei, um prazo ainda em curso que lho permitia exercer e com o qual a contraparte devia contar.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


I. Relatório:

AA veio propor a presente acção de investigação de paternidade contra BB pedindo que o mesmo fosse reconhecido como seu pai e a consequente “rectificação” do seu registo de nascimento.

Para tanto e em síntese alegou que nasceu em ... de ... de 1963, encontrando-se a sua mãe solteira e tendo sido inscrito no seu registo de nascimento que o seu pai era incógnito após o que, aquando do casamento da sua mãe com CC, em ... de ... de 1966, foi legitimada como filha deste.

Apesar disso, afirma ser o Réu o seu pai biológico, pois foi com ele que a sua mãe manteve relação de namoro e teve relações sexuais exclusivas entre Outubro e Março de 1963.

Mais alegou que o mesmo sempre lhe disse que era seu pai, tendo com ela convivido desde os seus dez anos, reconhecendo publicamente essa paternidade e tendo-a acolhido durante cerca de um ano em sua casa quando a mesma fugiu de casa da sua mãe aos dezasseis anos aí a tendo tratado como filha até ao momento em que a Autora foi agredida pela esposa do Réu e saiu, por isso, de casa deste passando a residir com a sua avó materna.

Não obstante, afirma que o Réu continuou a conviver consigo, tratando-a como filha e, mais tarde, considerando e tratando os seus filhos como netos até que, após a pandemia da doença Covid-19 cessaram os contactos entre ambos e o tratamento da Autora como sua filha.

Foi proferido despacho liminar pelo qual a Autora foi convidada a aperfeiçoar a petição inicial por forma a, em simultâneo, demandar o seu pai (CC) com vista à impugnação da perfilhação constante do registo, por apenas se poder vir a reconhecer a paternidade do Réu após cancelamento dessa inscrição.

A Autora respondeu a tal convite juntando petição inicial aperfeiçoada em que demandou, além do primitivo Réu, os herdeiros de CC, já falecido, com vista a que fosse declarado que não é sua filha, além de ter mantido o demais pedido.

Citados os Réus apenas o Réu BB contestou excepcionando a caducidade do pedido de impugnação da paternidade pelo decurso do prazo de 10 anos desde a maioridade da Autora, à luz do artigo 1842.º, número 1 c) do Código Civil e do pedido de reconhecimento da paternidade por decurso do prazo previsto no artigo 1817.º, número 1 do mesmo diploma legal.

Excepcionou, ainda, o abuso de direito da Autora alegando que a mesma vem exercê-lo de forma “inopinada” e “arbitrária” perturbando a tranquilidade da sua velhice.

Impugnou os factos alegados pela Autora como fundamento da acção alegando nomeadamente que esteve internado durante o período de concepção da Autora, alegando que a sua mãe teve vários relacionamentos sexuais, negando que alguma vez a tenha reconhecido e tratado como filha.

A Autora veio pedir a antecipação da produção da prova pericial ao ADN alegando doença oncológica do Réu ao que este se veio opor.

Foi proferido despacho saneador no qual e entre o mais, foram admitidos os meios de prova requeridos, entre eles a prova pericial consistente em exame de ADN à Autora, à sua mãe e ao Réu BB, tendo.

Na sequência foi proferido despacho que cominou a recusa do mesmo em fazer tal teste com a livre apreciação da mesma e a possibilidade de inversão do ónus da prova.

Por vicissitudes várias espelhadas no processo, não se realizou o exame de ADN ao Réu.

Na sequência de tal impossibilidade foi proferido despacho com o seguinte teor: “no seguimento do despacho de 13/1/2023, e nos termos dos artigos 417º, n.º 2 do CPC e 344º, n.º 2 do C. Civil, determino a inversão do ónus de prova nos presentes autos”.

Foi proferida sentença em que se julgaram improcedentes as excepções de caducidade invocadas na contestação e onde se julgou a acção procedente, declarando-se, em consequência que CC não é o pai da autora, e reconhecendo-se que o réu BB, filho de DD e EE, é o pai biológico daquela, determinando-se que se proceda às respectivas alterações no registo de nascimento, quer no que se refere à paternidade, quer no que se refere à avoenga paterna.

Desta decisão veio o Réu interpor recurso de apelação.

Tramitado o recurso foi proferida decisão que por maioria e com fundamentação parcialmente diversa negou provimento ao mesmo e confirmou a decisão proferida.

E é desta decisão que veio o Réu interpor o presente recurso de revista, apresentando desde logo e nos termos legalmente prescritos as suas alegações.

A Autora respondeu às alegações de recurso.

Foi proferido despacho que admitiu o recurso como sendo revista, com subida imediata, nos autos e efeito suspensivo (cf. os artigos 671º, nºs 1 e 3 este a contrario, 675º, nº1 e 676º do CPC).

Cumpridas que estão todas as formalidades legais e nada obstando ao conhecimento do méri0to cumpre pois decidir.

*

II. Enquadramento de facto e de direito:

É consabido que o objecto do recurso, sem prejuízo da análise das questões que sejam de conhecimento oficioso obrigatório, está definido pelo conteúdo das conclusões vertidas pelo réu/recorrente nas suas alegações (cf. artigos 608º, nº2, 635º, nº4 e 639º, nº1 do CPC).

Nos autos é o seguinte o teor das conclusões mas alegações de recurso do réu, BB:

1-A presente revista é interposta do acórdão proferido pela Relação que confirma a sentença de procedência da acção, embora com distintos fundamentos e voto de vencido; daí a admissibilidade do recurso, como recurso ordinário, ao abrigo do disposto no artigo 671º nº 1 e 3 do C.P.C., por inexistir uma «dupla conforme».

2-Por outro lado, o recurso justifica-se como excecional, pela necessidade para a boa aplicação do direito, nomeadamente no que se refere à questão da impugnação da paternidade por parte de filha legitimada pelo casamento, o que se invoca nos termos do nº 1 al. a) do artigo 672º do CPC.

3-Efetivamente, trata-se de uma questão juridicamente relevante, controvertida e a que as instâncias não deram, na nossa mui modesta opinião, o adequado tratamento, nomeadamente pela desconsideração das normas especificas acerca da aplicação das leis no tempo, visto estar em causa uma figura do pretérito que não deveria, como foi, ser analisada à luz dos institutos hodiernos, mas sim, e pelo contrário, à luz do enquadramento jurídico que tinha, à data da prática dos factos relevantes e, principalmente, da produção dos seus efeitos.

4-O problema dos conflitos de leis no tempo põe-se com muito particular acuidade na nossa época em que são tão grandes e frequentes as alterações legislativas, sendo o intérprete remetido para o princípio da não retroatividade da lei, nos termos do artigo 12º do Código Civil, princípio este, à primeira vista tão simples, mas que, sabemos, se tem revelado de aplicação sobremodo complexa nas diferentes hipóteses, sendo este um desses casos.

5-São estas as razões que levam à necessidade de reapreciação do assunto por esse tribunal superior, visando uma melhor aplicação do direito, e que se invocam nos termos e para os efeitos do disposto na alínea a) do nº 2 do artigo 672º do CPC.

6-Discordamos veementemente do entendimento do aresto da Relação do Porto de que ora se recorre de revista, no sentido de que se deva aplicar à impugnação da paternidade fixada por via da legitimação, o regime aplicável ao da perfilhação, entendimento que reputamos de violador do disposto quer no artigo 12º do Código Civil, quer no artigo 10º, que rege acerca do recurso à analogia.

7-Sob o ponto de vista do recorrente, o aresto em crise acaba por dispor de forma diversa acerca do estabelecimento da filiação da autora, daquela que estava em vigor à data da legitimação da autora pelo casamento dos pais (...-...-1966), e ao abrigo da qual se produziram os relevantes efeitos que a lei visava regular, os quais, no caso, eram a sua total equiparação, e de pleno direito, desde a data do casamento dos pais, a filha legítima.

8-Á luz do regime jurídico então vigente, o artigo 110º do Código de Seabra, aprovado pela carta de lei de 1 de Julho de 1867, estipulava que: «o matrimónio legitima os filhos nascidos antes delle das pessoas que o contrahem; e que §3º- os effeitos da legitimação principiam, em todo o caso, desde a data do matrimónio.» Mais estabelecendo o artigo 121º que «os legitimados por subsequente matrimónio são em tudo equiparados aos filhos legítimos.»

9-O casamento dos progenitores tinha, assim – e teve até aos finais da década de 70, tendo-se mantido ainda com o Código de 1966 – um efeito legitimamente superveniente, tornando aquela filiação numa filiação equivalente à legítima.

10- Como tal e no respeito das normas que regem sobre a aplicação das leis no tempo, fazendo uma rigorosa subsunção dos factos ao direito e tendo ainda presente a «ratio legis» do instituto da legitimação, entendemos que se a autora foi legitimada pelo casamento de seus pais FF e CC em ...-...-1966, nos termos da qual e a partir dessa data (“ex vi” do disposto no parágrafo 3º do artigo 112º do Código de Seabra) passou a deter, para todos os efeitos legais, o estatuto de filha legítima – sendo legalmente o seu estatuto equiparado ao de filho legítimo e não ao de perfilhado – não se compreende, nem aceita, que a Relação a trate diversamente.

11- No nosso modesto entendimento, não existe rigorosamente qualquer lacuna a integrar, não havendo razão para aplicação por analogia de um qualquer outro regime legal, nomeadamente o da perfilhação, que é um regime totalmente distinto e que parte – ao contrário da legitimação pelo casamento – do reconhecimento de que o filho não foi concebido pelo progenitor que perfilha.

12- Pelo contrário, a legitimação parte do princípio de que as pessoas que contraem casamento, já têm filhos entre si. O aresto viola a lei, no seu elemento gramatical, desde logo, quando defende, diversamente, que a legitimação dos filhos de um dos cônjuges nascido antes do casamento, pressupõe um reconhecimento por parte do pai, pois a norma refere-se a filho de ambos. Na nossa perspectiva, reportando-nos à década de sessenta do século passado, se um progenitor legitimava um filho pelo seu casamento com o outro progenitor, é porque confessadamente teve relacionamento sexual no período de concepção que lhe deu a convicção da paternidade. Se, diversamente, quisesse apenas assegurar que tivesse um pai registado, tinha-o perfilhado.

13- Ao concluir que o regime actual da perfilhação é o que tem maior analogia com o da legitimação pela qual se estabeleceu a paternidade da autora, o acórdão recorrido, esquecendo a antiguidade da filiação da autora, estabelece raciocínios com base em dados estatísticos atuais e tece considerações que estão muito longe e completamente desfasadas da realidade que em 1966 se vivia, não fazendo a devida interpretação do preceito.

14- Se noutros tempos e noutros séculos, o filho legitimado era como o legítimo, não se pode aceitar que se entenda de outro modo, hoje, em pleno século XXI, e se passe a discriminar a autora por ter nascido no século passado, fora do casamento, fazendo equivalê-la a uma pessoa perfilhada.

15- A interpretação e integração de lacunas que o acórdão recorrido faz, concluindo no sentido da aplicabilidade à filha legitimada do disposto no artigo 1859º nº2 do Código Civil, é contrária a este princípio basilar da nossa Constituição, porquanto se por imperativo constitucional, a lei deixou de fazer distinção entre filhos legítimos e ilegítimos, obviamente que também deixou de a fazer entre filhos legítimos e legitimados ou de pleno direito, como é o caso da autora.

16- Impunha-se que por força do princípio da não discriminação, não se aplicasse aquele artigo e antes se julgassem aplicáveis as regras gerais constantes dos artigos 1839º e seguintes do Código Civil e não o regime da perfilhação previsto no artigo 1859º do Código: - se os filhos legitimados passam, de pleno direito, a ser tratados como legítimos, é evidente que aos mesmos se devem aplicar, para efeitos de impugnação de paternidade, os prazos para os filhos legítimos, e não para os perfilhados.

17- Nos termos supra é patente o enquadramento da situação da autora, enquanto registada como filha legítima de CC, no disposto nos artigos 1839º e seguintes do Código Civil, sendo a interpretação defendida violadora da Constituição.

18- Ora, nos termos do citado normativo, assistia, de facto, legitimidade à autora para impugnar a sua paternidade (cfr. nº 1 do citado 1839º CC), tal como lhe assistia legitimidade para investigar a sua paternidade (cfr. nº 1 do artigo 1817º nº 1 do CC), todavia, em honra de um princípio fundamental do nosso ordenamento jurídico – da certeza e segurança jurídicas – essa impugnação de paternidade está sujeita aos prazos previstos no artigo 1842º do CC, e especificamente aos prazos previstos no nº 1 al c) dessa mesma norma.

19- Subsumindo-se a situação no dispositivo da al c) do nº 1 do artigo 1842º do Código Civil, é forçoso concluir pela caducidade do direito de a autora, como filha, impugnar a sua paternidade, com as legais consequências.

20- No caso que nos ocupa, em momento prévio ao da citação do réu, por motivos que ignoramos, a presente acção foi levada a despacho liminar, através do qual, antes dos efeitos de estabilização da instância, a autora foi convidada a corrigir a petição, no sentido da necessidade de cumular o pedido de investigação.

21- Independentemente de a cumulação de pedidos ser abstratamente admissível, o facto é que, no caso concreto – face ao decurso do prazo de 10 anos do nº 1 do preceito e à inverificação da situação, alegada, do nº b) do artigo 3º do normativo, determinantes da caducidade do direito de acção da A. – apenas restaria àquela intentar a acção no prazo de 3 anos seguintes à rectificação, declaração de nulidade ou cancelamento do registo inibitório do registo da paternidade pretendido, conforme nº 2 do artigo.

22- Sendo certo que se o registo a favor de CC ainda não foi cancelado e se se entende aplicável, neste enquadramento, o nº 2 do artigo 1817º do Código Civil, então a acção de investigação de paternidade não é tempestiva.

23- O exercido do direito de acção pela autora não terá caducado, admite-se o raciocínio, mas com certeza que não pode ser considerado tempestivo; ora, não sendo exercido tempestivamente e conforme à previsão da norma, terá de ser indeferido o pedido da autora.

24- O aresto em crise entende criticável ter de se aguardar pelo trânsito em jugado da acção de impugnação para, só então, a autora ficar em condições de propor a acção de investigação da paternidade, mas com todo o devido respeito, é isso que, claramente, resulta das normas aplicáveis, em observância do princípio da segurança e da certeza jurídicas.

25- Segundo o entendimento mais corrente, a sobredita acção de impugnação tanto pode ser instaurada, em simultâneo, sob a forma de pretensão cumulada, com a acção para o reconhecimento da paternidade, como poderá ser intentada autonomamente, sem prejuízo dos prazos de caducidade estabelecidos para a acção de investigação, o que tem levado, neste caso, à instauração desta acção de modo a prevenir o decurso dos respectivos prazos de caducidade, mas sempre e de todo o modo, ficando a instância suspensa até ser decidida a causa prejudicial de impugnação, nos termos conjugados dos artigos 269.º, n.º 1, alínea c), 272.º, n.º 1, 1.ª parte, e 276.º, n.º 1, alínea c), do CPC., o que no caso, se deveria ter decidido (pelos motivos que infra se vão apresentar).

26- Por todo o exposto, entendemos que a autora não pode beneficiar do prazo a que alude o nº 2 do artigo 1817º do CC por não ter sido cancelado o registo inibitório da sua paternidade.

27- Acresce que, estando registada a filiação da A. em relação a CC, resulta do disposto no art.º 1848º nº 1 do Código Civil não ser possível o reconhecimento de outra filiação, enquanto aquele registo não for rectificado, declarado nulo ou cancelado, como decorre das disposições conjugadas, ainda, dos artigos 3º nºs 1 e 2 do Código do Registo Civil, sendo pacífica a precedência da impugnação de paternidade em relação à investigação de paternidade.

28- Sucede que essa precedência impõe que, primeiramente, se verifique o êxito da acção de impugnação de paternidade para que, sucessivamente, se averigue da eventual procedência da acção de investigação, ora, na nossa perspectiva, a acção de impugnação não podia proceder, não só em virtude da invocada caducidade, pelo decurso do prazo de 10 anos previsto no artigo 1842º nº 1 al. c) do CC., que entendemos aplicável; como ainda em virtude da falta de prova do facto essencial que constituía a causa de pedir dessa impugnação.

29- Constituindo a causa de pedir, na acção de impugnação, os factos reveladores da manifesta improbabilidade da paternidade e, na acção de investigação, o facto naturalístico da procriação biológica, sucede que em sede de impugnação da matéria de facto, o Tribunal da Relação retirou do elenco dos factos provados, porque a ele nenhum depoimento fez referência, aquele – e único – de onde seria legítimo retirar a manifesta improbabilidade da paternidade pelo CC, que era o ponto 7 – que dizia que a ré FF e o CC não mantiveram relações de cópula completa nos primeiros 120 dias dos 300 que precederam o nascimento da autora.

30- Assim sendo, cremos manifesto não estar afastada a hipótese de este ser, de facto, seu pai.

Seria fundamental a prévia prova da inexistência de relacionamento de cópula entre os nubentes que vieram a contrair casamento legitimante da autora para que depois, uma vez eliminado aquele como pai do registo de nascimento, pudesse ser levada a efeito a investigação de paternidade.

31- Tal não sucedeu, in casu. Como tal, deveria a impugnação de paternidade ser julgada improcedente, ficando prejudicado o conhecimento de mérito da investigação de paternidade que só, subsequentemente, teria lugar, atenta a precedência lógica – e legal – da mesma.

32- Refira-se ainda que o Tribunal da Relação modificou o facto provado em 8 – de que a autora é fruto do relacionamento sexual de cópula completa entre a Ré FF e do Réu BB – com o argumento de que se trata de uma conclusão e que a mesma não se pode retirar da prova produzida. Mas substituiu-a por um facto – de que aqueles tiveram relações sexuais de cópula completa entre Outubro de 1962 e Março de 1963 – que também não se podia retirar da prova produzida (pois não houve ninguém que falasse de relações sexuais, naquele ou noutro lapso temporal) de onde passou a ser legítimo retirar uma presunção legal de paternidade! Tratou-se manifestamente de um artifício que não cremos admissível.

33- Sob a ótica do recorrente, se não se podia retirar aquela conclusão da prova produzida, isso significa que a prova também não permitiria fazer uso daquela presunção para chegar a essa conclusão, pelo que deve ser censurado, violando a norma substantiva invocada, ou seja, a alínea e) do nº 1 do artigo 1871º do Código Civil.

34- Por último, o recorrente invocara o abuso de direito e pese embora tenha logrado a prova da matéria para o efeito invocada, foi afastada pela Relação a aplicação deste instituto como forma de paralisar a pretensão exercida pela autora, sem verificar que se invocara o mesmo, na tipologia de desequilíbrio, ou seja, o exercício de um direito que devido a circunstâncias extraordinárias dá origem a resultados totalmente estranhos ao que é admissível pelo sistema, quer por contrariar a confiança ou aquilo que o outro podia razoavelmente esperar, quer por dar origem a uma desproporção manifesta e objectiva entre os benefícios recolhidos pelo titular ao exercer o direito e os sacrifícios impostos à outra parte resultantes desse exercício.

35- Nos termos supra expostos, cremos ser manifesto o desequilíbrio entre as posições jurídicas de autora e réu, decorrentes de uma actuação injustificadamente tardia daquela, face à prova feita, com a qual o réu jamais contava, pondo em causa o princípio da certeza e segurança jurídica nas relações jurídico-familiares estabelecidas.

36- Salvo o devido respeito, não assiste razão à Relação quando nega o abuso de direito com fundamento na circunstância de considerar tempestivo o exercício; cremos ser uma análise algo redutora, que confunde dimensões distintas do exercício de um direito.

*

Já quanto à autora/recorrida a mesma, nas suas contra alegações, defende a tese de que não se verifica qualquer caducidade do prazo para instaurar a presente acção de impugnação da paternidade pelo facto de o direito a instaurar a acção de investigação de paternidade ser imprescritível, podendo assim ser instaurado a todo o tempo.

Defende ainda que ao contrário do que alega o Réu, nada impede a cumulação de pedidos, sendo certo que por agilização e celeridade processual o mesmo é recomendável.

Alega também que não existe também qualquer intempestividade, porquanto a procedência da impugnação da paternidade é pressuposto lógico da consequente admissibilidade da investigação da paternidade.

Por fim e quando à decisão da matéria de facto, considera que a impugnação da paternidade não seria apenas demonstrável pela verificação da não existência de relações sexuais – estas até poderiam, em conceito, ter ocorrido –, mas outrossim pela existência de relações sexuais com outra pessoa, como efectivamente se veio da demonstrar no ponto 9 dado como provado pelo Tribunal da Relação do Porto e que foi o pressuposto racional para que fosse dada por verificada a paternidade do Réu.

Conclui pela improcedência do recurso interposto e pela confirmação da decisão proferida.

Face ao acabado de expor, resulta claro que são as seguintes as questões suscitadas no presente recurso:

1ª) A impugnação da paternidade por parte da Autora, enquanto filha legitimada pelo casamento;

2ª) A cumulação dos pedidos de impugnação de paternidade e de investigação de paternidade;

3ª) A improcedência do pedido de impugnação de paternidade (por caducidade e por falta de prova do facto essencial que constituía a causa de pedir);

4ª) A forma como se interpretou e aplicou a prova por presunção e se procedeu à inversão do ónus da prova na alteração operada quanto ao facto provado em 8;

4ª) O abuso de direito.

Por força das decisões proferidas pelas instâncias, é a seguinte a decisão da matéria de facto que importa considerar:

A) Factos provados:

1. O réu GG nasceu em ...-...-1945;

2. A Autora, nascida a ... de ... de 1963, foi registada em ... de ... de 1963 na Conservatória de Registo Civil como filha da FF e de pai incógnito.

3. Em ... de ... de 1966 foi averbado ao seu registo de nascimento que a Autora foi legitimada pelo casamento da sua mãe com CC, no mesmo dia.

4. CC faleceu no dia ... de ... de 2004, no estado de casado com FF.

5. A Ré FF e CC contraíram casamento entre si, sem convenção antenupcial, no dia ... de ... de 1966;

6. Esse casamento foi dissolvido por óbito de CC, em ... de ... de 2004;

7. A ré FF e CC não mantiveram relações de cópula completa nos primeiros 120 dias dos 300 que precederam o nascimento da A. (eliminado).

8. Sendo que a autora é fruto do relacionamento sexual de cópula completa entre a Ré FF e o Réu BB (eliminado)

9. Entre Outubro de 1962 e Março de 1963 a primeira ré manteve relação de namoro e relações sexuais de cópula completa com o terceiro réu.

10. A ré FF trabalhava para os pais do réu GG;

11. Sendo estes os seus padrinhos;

12. A Autora teve conhecimento que era filha do Réu BB desde, pelo menos, os seus 16 anos;

13. O réu GG encontra-se casado há 58 anos com HH, que tem 77 anos.

14. Desse casamento nasceram três filhos, tendo 3 netos;

15. O réu tem toda a sua vida perfeitamente estabilizada.

16. Vive em harmonia com esposa, filhos e netos.

17. Integrado no meio social em que se insere, ou seja, é pessoa reputada, considerada e por todos respeitada.

18. Quando a mãe da Autora era por ela questionada sobre a sua paternidade, a mesma recusava-se a admitir que o Réu fosse o seu pai.

19. A Autora fugiu de casa quando tinha cerca de 16 anos e a mãe do Réu, madrinha da mãe da Autora, encontrou-a e levou-a a casa deste.

20. A Autora ali permaneceu por pelo menos uns dias, após o que regressou a casa da sua avó materna.

21. Desde pelo menos os seus dezasseis anos a Autora deixou de procurar o Réu.

22. O Réu encontrava-se por vezes com a Autora em cafés ou no supermercado.

B) Factos não provados:

a) Que a autora não tenha sido gerada fruto de relacionamento sexual de cópula completa entre a ré FF e o réu GG.

b) A ré FF e CC não mantiveram relações de cópula completa nos primeiros 120 dias dos 300 que precederam o nascimento da Autora

c) Pelo menos quando a Autora tinha 16 anos o Réu GG tratou a mesma como filha;

d) Quando a Autora frequentava a escola primária, com cerca de 10 anos, o terceiro Réu começou a procurá-la na escola, numa média de uma vez por semana, geralmente à sexta-feira, manifestava afecto por ela e oferecia-lhe prendas, roupas, entregando-as à sua professora para lhe serem entregues e dizia que era seu pai, evidenciado vontade em estar e conviver com a Autora.

e) A mãe da Autora batia-lhe quando esta recebia prendas do Réu bem como noutras ocasiões, manifestando-lhe que ela era indesejada.

f) O terceiro réu dizia a toda a gente que a Autora era sua filha e demonstrava publicamente gostar dela.

g) Aquando da fuga referida em 18 a Autora foi tratada pelo Réu como sua filha, tendo o mesmo mobiliado um quarto só para ela e cuidado do seu sustento, suportando-o financeiramente.

h) Nessa altura o Réu, a sua mulher e os filhos de ambos, trataram a Autora, respectivamente, como sua filha, enteada e irmã em casa e fora dela, em festas e eventos públicos, acompanhando a mesma tal agregado em todos os actos da vida diária, refeições, saídas em família e outros.

i) Cerca de um ano depois de ter sido acolhida em casa do Réu a Autora foi agredida pela mulher daquele por se ter recusado a tomar conta da sua filha mais nova e de novo fugiu para casa da sua avó materna.

j) Desde então a Autora deixou de procurar o Réu tendo este continuado a telefonar-lhe, e a encontrar-se com ela regularmente em casa desta ou da mãe dela.

l) O Réu, após o nascimento dos filhos da Autora, manifestou enorme alegria e contribuiu com dinheiro para as despesas com os netos.

m) Ligava à Autora nos dias de aniversários desta e dos seus filhos e, regularmente, para saber de todos.

n) Em meados de 2020 a Autora soube que o Réu estava internado no IPO.

o) Depois disso a Autora tentou visitar o Réu, mas disseram-lhe que já teria tido alta e ido para casa pelo que telefonou para a residência ele, com o intuito de se inteirar do seu estado de saúde e ir visitá-lo, o que a sua mulher recusou

p) Desde então, a Autora não consegue falar com o terceiro Réu, apesar das diversas tentativas para esse efeito.

*

Cabe pois apreciar as questões suscitadas no recurso e que já antes aqui deixamos melhor identificadas, a primeira das quais é a da impugnação da paternidade por parte da Autora, enquanto filha legitimada pelo casamento da sua mãe com CC.

Ficou já visto que neste ponto o réu, BB, se insurge contra o entendimento da Relação segundo o qual à impugnação de paternidade fixada por via da legitimação deviam ser aplicadas as regras da perfilhação.

Vejamos, pois, da pertinência desta sua pretensão.

A este propósito importa chamar à discussão a seguinte matéria dada como provada no ponto 2., antes melhor referido: “A Autora, nascida a ... de ... de 1963, está registada como filha da FF e de CC, tendo sido legitimada como filha deste pelo casamento do mesmo com a sua mãe ocorrido em ... de ... de 1966.”

Como bem se refere no acórdão recorrido, à data do nascimento da Autora e do casamento dos seus pais estava em vigor o Código Civil aprovado por Carta de Lei de 1 de Julho de 1967 (comummente conhecido como Código Civil de Seabra) cujo artigo 119.º estabelecia, quanto aos filhos nascidos fora do casamento, como foi a Autora, o seguinte: “O matrimonio legitima os filhos nascidos antes dele das pessoas que o contraem:1º Se os dictos filhos são reconhecidos pelos paes e mães no assento do casamento, ou o foram no de nascimento dos mesmos filhos, ou em testamento ou escritura pública, quer anteriores ou posteriores ao casamento”.

É sabido que a partir da entrada em vigor do D.L. nº496/77 de 25 de Novembro, a legitimação como forma de estabelecimento da paternidade deixou de estar prevista na nossa lei civil substantiva.

Isto, tendo em vista a eliminação do ordenamento das disposições inconciliáveis com a Constituição, designadamente as que assentavam na distinção entre filhos legítimos e ilegítimos, como ocorria nomeadamente com os artigos 1873.º a 1875.º do Código Civil.

Assim sendo e subscrevendo o entendimento da Relação, dizemos também nós que “a impugnação da paternidade constante do registo que a Autora pretende –, e que pediu em cumulação com a de investigação de paternidade a convite do tribunal, – não está, pois, prevista em qualquer norma do Código Civil já que dele foi eliminada a legitimação como forma de estabelecimento da paternidade”.

Todos sabemos que actualmente o estabelecimento da paternidade está dividido em duas subsecções da Secção II intitulada “Estabelecimento da Paternidade” sendo a primeira intitulada “Presunção de Paternidade”, que vai do artigo 1826.º ao artigo 1846.º e a segunda intitulada “Reconhecimento de Paternidade” que abarca os artigos 1847.º a 1873.º

Ora é nesta segunda subsecção e mais concretamente nos artigos 1849º a 1863º que se encontra previsto o regime legal da perfilhação.

Está visto que, segundo as instâncias, este regime da perfilhação é o que mais se aproxima do da legitimação à luz do qual a Autora dos autos passou a ver reconhecido como seu pai aquele que veio a casar com a sua mãe após o seu nascimento.

A este propósito refere a Relação que não tendo a situação de facto em apreço solução expressa na lei, se afigura necessário, nos termos do disposto no artigo 10.º do Código Civil, procurar a norma aplicável aos casos análogos.

E afirma que para aferir qual o regime que mais se assemelha à forma pela qual foi estabelecida a paternidade da Autora e que, portanto, se pode considerar análogo para efeito de integração da lacuna legal, se impunha analisar as respectivas naturezas jurídicas e razões de ser dos regimes legais em “confronto”.

Podemos dizer, desde já, que sufragamos a forma como se procedeu a essa análise comparativa.

Assim e quanto ao regime previsto no Código de Seabra, impõe-se salientar o seguinte:

Desde logo o seu art.º 119º no qual se visava a legitimação dos filhos nascidos fora do casamento.

Cabe ainda salientar as diferenças que então existiam no tratamento dado por lei aos filhos legítimos (nascidos na constância do matrimónio ou nos trezentos dias subsequentes à sua dissolução) e aos filhos ilegítimos, todos os outros (cf. a este propósito o previsto nos artigos 121º e 129º).

Como bem se faz notar na decisão recorrida, “a legitimação divergia, assim, da perfilhação no Código de Seabra, estipulando-se por via dela uma alteração do estado dos filhos ilegítimos para legítimos que tinha dois pressupostos cumulativos: o posterior casamento dos seus pais ou mães e o seu reconhecimento pelo cônjuge destes.”

Aportando ao actual regime legal do reconhecimento da paternidade o que importa desde logo salientar é a distinção que resulta das presunções legais que o legislador entendeu definir, nomeadamente no artigo 1826.º do Código Civil, das regras que estão previstas para o reconhecimento da paternidade decorrente da perfilhação.

Assim na primeira hipótese, o legislador faz decorrer de determinados factos certos um terceiro facto incerto: o de que o pai é o marido da mãe. Ou seja, o fundamento desta presunção é o da grande probabilidade de, sendo o filho concebido durante o casamento, e no pressuposto de cumprimento dos deveres conjugais, ser o marido da mãe o seu pai biológico.

Importa no entanto não esquecer que tal presunção pode ser ilidida através de uma acção de impugnação, sendo certo que quando é o filho o impugnante o prazo fixado por lei é o de 10 anos após a maioridade ou emancipação ou, depois deste, de três anos desde que teve conhecimento de factos de que pode resultar que não é filho do marido da sua mãe.

Quanto à segunda hipótese, é consabido que segundo o disposto no art.º 1849º do Código Civil, a paternidade resulta de “um acto pessoal e livre”.

Nestes casos a paternidade assim estabelecida pode também ser impugnada, mas a todo o tempo, conforme prescreve o art.º 1859º, nº2 do Código Civil.

Está visto por todos que nos autos e por ambas as instâncias, foram encontradas semelhanças relevantes entre este regime e o da legitimação.

E bem, como continuaremos a verificar.

Assim e desde logo porque no caso dos autos não está em causa nenhuma presunção, nem nenhum efeito automático do casamento.

Mais ainda por se saber que a legitimação dos filhos de um dos cônjuges nascido antes do casamento pressupõe um reconhecimento por parte do pai.

A este propósito e de forma avisada cita-se a opinião de Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, segundo os quais a perfilhação consiste “numa manifestação de um indivíduo que se apresenta como progenitor de um filho que ainda não tem a paternidade estabelecida” (cf. Curso de Direito da Família, Vol. II, Coimbra Editora, 2006, pág.149).

Nestes termos e independentemente da natureza que se queira atribuir ao acto de perfilhação, a verdade é que o mesmo revela ter grandes semelhanças com a declaração de “reconhecimento” prevista no supra citado artigo 119.º do Código de Seabra, não tendo qualquer similitude com o actual e o anterior regime de reconhecimento da paternidade com base na presunção a que antes fizemos melhor referência.

Como bem se afirma na decisão recorrida, nos casos (como o da Autora) em que o filho nasceu antes do casamento dos pais, não é de todo correcto presumir-se que o mesmo foi concebido em decorrência de cumprimento dos deveres de “fidelidade conjugal” e de coabitação impostos então pelo art.º 1184.º do Código de Seabra.

Subscrevemos assim a ideia, de que então só o reconhecimento da paternidade/maternidade pelo cônjuge da mãe/pai permitia a legitimação do filho do casal.

E sufragamos igualmente o entendimento de que o mesmo se passa actualmente com a perfilhação, instituto que como se refere é actualmente e segundo as estatísticas, a forma mais comum de estabelecimento da paternidade no nosso País.

Em suma, como antes ocorria na figura da legitimação e agora ocorre no instituto da perfilhação o que releva é a declaração de vontade daquele que num e noutro dos casos reconhece e aceita ser pai.

Bem decidiu pois a Relação quando considerou ter sido correcta a forma como a 1ª instância procedeu à integração da lacuna legal através da aplicação ao caso concreto do actual regime legal da perfilhação.

Por ser assim, improcedem neste ponto os argumentos que sustentam o recurso do réu, BB.

Ficou visto que a segunda questão suscitada na revista é a da cumulação dos pedidos de impugnação de paternidade e de investigação de paternidade.

A este propósito são os seguintes os argumentos que sustentam o inconformismo do réu/recorrente:

Independentemente de não questionar a possibilidade de cumulação destes dois pedidos, o Réu entende que a Autora não pode beneficiar do prazo previsto no nº2 do art.º 1817º do Código Civil, por ainda não estar cancelado o registo inibitório da sua paternidade.

Defende ainda que estando registada a filiação da Autora, em relação a CC, o que resulta do disposto no art.º 1849º, nº1 do Código Civil é que não e possível o reconhecimento de outra filiação, enquanto aquele registo não for rectificado, declarado nulo ou cancelado, como decorre das regras do artigo 3º, nºs 1 e 2 do Código de Registo Civil.

Apreciando tal argumentação.

Dúvidas não podem restar quanto à admissibilidade da cumulação na mesma acção dos pedidos de impugnação da paternidade e consequente cancelamento do registo de paternidade e de investigação de paternidade biológica.

Aliás, neste sentido vai de forma praticamente unânime quer a doutrina quer a jurisprudência (cf. Remédio Marques, na anotação ao art.º 1848º, nº1 do CC – Código Civil Anotado, - Livro IV, Direito da Família, pág.766 e entre outros o acórdão do STJ, de 18.02.2015, no processo 4293/10.7TBSTS.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt.).

Em reforço deste entendimento valem também as regras previstas na 2ª parte do nº1 do art.º 36º do Código de Processo Civil, onde se permite que um mesmo autor demande conjuntamente vários réus, por diferentes quando estes estão entre si numa relação de prejudicialidade ou dependência.

Por fim, tem ainda razão a Relação quando refere que o réu não veio aos autos invocar a inadmissibilidade da cumulação de pedidos, fazendo uso do mecanismo previsto no art.º 186º, nº2, alínea c) do CPC.

A ser assim e por este conjunto de razões impõe-se concluir que também aqui não merecem provimento os argumentos do réu/recorrente BB.

A outra questão a apreciar é como já vimos a da improcedência do pedido de impugnação de paternidade, a qual assenta na tese do recorrente, na caducidade e na falta de prova do facto essencial que constituía a causa de pedir.

Quanto à caducidade o que cabe dizer é o seguinte:

No entendimento do réu a acção não podia proceder por ter já decorrido o prazo de 10 anos previsto no art.º 1842º, nº1, alínea c) do Código Civil.

Mas não tem de todo razão nesta sua alegação como bem se explica no acórdão recorrido.

Concretizando.

Ficou já decidido que quanto à paternidade da Autora vale o regime da perfilhação previsto no artigo 1848º e seguintes do Código Civil.

E a ser assim resulta claro que ao pedido de impugnação formulado nos autos devem ser aplicadas as regras previstas no art.º 1859º, nº2 do Código Civil, segundo o qual, “a acção pode ser intentada, a todo o tempo, pelo perfilhante, pelo perfilhado, ainda que haja consentido na perfilhação, por qualquer outra pessoa que tenha interesse moral ou patrimonial na sua procedência ou pelo Ministério Público.”

Face ao exposto, dúvidas não restam de que o pedido de impugnação foi tempestivamente interposto.

E o mesmo ocorre no que toca ao pedido de investigação de paternidade por parecer óbvio que atenta a cumulação de pedidos, o prazo de caducidade previsto no art.º 1817º, nº2 do CC, só pode começar a correr depois de estar decidido de impugnação de paternidade.

Neste sentido o supra citado acórdão do STJ de 18.02.2015 onde sinteticamente se defende que enquanto pender o pedido de impugnação de paternidade (no caso a perfilhação), o prazo de caducidade previsto no nº2 do art.º 1817º, não corre uma vez que deve considerar-se que só com este processo e, por via da procedência do pedido de impugnação da perfilhação e, por ter sido ordenado o cancelamento desse registo, pode o Autor ver reconhecida paternidade diferente da registada.

Agora quanto à alegada falta de prova do facto essencial que constituía a causa de pedir.

Na tese do Réu era “fundamental a prévia prova da inexistência de relacionamento de cópula entre os nubentes que vieram a contrair o casamento legitimante da paternidade da autora para que depois, uma vez eliminado aquele pai do registo de nascimento, pudesse ser levada a efeito a investigação de paternidade”, o que na sua opinião não ocorreu nos autos por ter sido transposta para a matéria de facto não provada a seguinte factualidade: “b) A ré FF e CC não mantiveram relações de cópula completa nos primeiros 120 dias dos 300 que precederam o nascimento da Autora.”

E a ser assim, “deveria a impugnação de paternidade ser julgada improcedente, ficando prejudicado o conhecimento do mérito da investigação de paternidade que só, subsequentemente, teria lugar, atenta a procedência lógica – e legal – da mesma”.

Não tem no entanto razão nesta sua argumentação.

Se não vejamos.

O facto de ter sido retirado dos factos provados a matéria antes melhor identificada não implica que passe a estar provado o seu contrário, ou seja, que tenham existido relações sexuais entre a mãe da autora e o réu, CC durante o período ali referido.

Por outro lado, a circunstância de estar aqui dada como não provada tal factualidade não afasta a possibilidade de ser apreciada e valorada a restante matéria de facto dada como provada, nomeadamente aquela que permitiu às instâncias concluir que o pai biológico da Autora não é aquele que casou com a sua mãe e a legitimou como filha.

Nestes termos, não colhe pois o argumento de que ficou por provar “o facto essencial que constituía a causa de pedir do pedido de impugnação da paternidade.”

A propósito da prova por presunção e da inversão do ónus da prova, podemos desde já dizer que merece ser sufragada a fundamentação que consta do acórdão recorrido e que pode ser sintetizada do seguinte modo:

Em face do disposto na alínea e) do art.º 1871º do CC, passou a admitir-se que a prova da paternidade por qualquer forma, nomeadamente por exames genéticos, servia de fundamento bastante à presunção legal que cabia ao investigado afastar.

Desde então o Tribunal Constitucional firmou jurisprudência, hoje consolidada, declarando que a livre apreciação da recusa do investigado a submeter-se a tal exame de que resulta a inversão do ónus da prova sobre a paternidade não viola qualquer princípio ou norma constitucional sem prejuízo de tais exames não poderem ser realizados coactivamente.

Em face da inversão do ónus da prova tinha que confirmar-se a procedência da pretensão da autora de ver reconhecido que o réu GG é o seu pai biológico, pois a mesma ficou desobrigada de provar os factos que levariam a tal conclusão, não tendo o mesmo Réu logrado provar os factos que permitissem afastar essa paternidade, desde logo porque não permitiu a realização da perícia que poderia ter afastado a conclusão a que se chegou.

Cabendo ao Réu, por força da presunção e da inversão do ónus da prova provar os factos de que resultasse que não é o pai da Autora e não o tendo feito, a dúvida resolve-se contra si, em consequência da aplicação conjugadas dos artigos 344º, nº2 e 414º do Código Civil.

A propósito da decisão que optou no sentido da inversão do ónus da prova o que cabe dizer, desde logo é o seguinte:

Estamos perante uma decisão da Relação que mais não fez do que confirmar uma decisão interlocutória da 1ª instância.

Ora é consabido que os acórdãos da Relação que apreciem decisões interlocutórias só admitem recurso de revista nos casos previstos nas alíneas a) e b) do nº2 do art.º 71º do CPC.

Resulta claro que nos autos o réu/recorrente, GG não veio invocar nenhuma destas normas.

E a ser assim, tal questão não pode ser objecto da apreciação no presente recurso de revista.

Mas mesmo que assim não fosse, o que é relevante salientar é o seguinte:

Ainda que não se tivesse decidido, como se decidiu, no sentido da inversão do ónus da prova, a verdade é que a Autora beneficia da presunção de paternidade estabelecida na alínea e) do nº1 do art.º 1871º do CC, por ter ficado provado que entre Outubro de 1962 e Março de 1963 (ou seja, durante o período legal de concepção – art.º 1798º do CC) a sua mãe manteve relações sexuais de cópula completa com o réu GG.

E sendo certo que tal presunção não foi ilidida nos termos do disposto no nº2 do art.º 1871º do CC, bem decidiu a Relação quando subscrevendo o entendimento da 1ª instância confirmou a tese de que devia ser reconhecido que o réu BB é o pai biológico da Autora.

Ou seja, também aqui não merecem acolhimento os argumentos que sustentam o recurso do réu GG.

Por fim quanto à questão do abuso de direito o que há a dizer é o seguinte:

Já vimos quais são as razões nas quais o Réu considera que deve ser revogada a decisão da Relação onde se considerou não ser abusivo o exercício pela Autora do direito que pretende ver tutelado nos autos.

Mas sem razão como já de seguida veremos.

Como está expresso no art.º 334.º, “é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.”

Sabe-se que tal preceito consagra uma concepção objectiva do abuso do direito. Assim, não é necessária a consciência de se excederem, com o exercício do direito, os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico; basta que se excedam esses limites.

O princípio do abuso do direito constitui um dos expedientes técnicos ditados pela consciência jurídica para obtemperar, em algumas dessas situações particularmente clamorosas, aos efeitos da rígida estrutura das normas legais.

Ocorrerá abuso de direito quando um determinado direito, em si mesmo válido, seja exercido de modo que ofenda o sentimento de justiça dominante da comunidade social.

Se para determinar os limites impostos pela boa e pelos bons costumes, há que atender de modo especial às concepções ético-jurídicas dominantes na colectividade, já a consideração do fim económico e social do direito apela de preferência para os juízos de valor positivamente consagrados na própria lei.

Em qualquer dos casos, não se podem excluir os factores subjectivos nem afastar-se a intenção com que o titular tenha agido (apesar da concepção objectiva consagrada no artigo 334.º).

A consideração daqueles factores pode interessar, quer para determinar se houve ofensa da boa-fé ou dos bons costumes, quer para decidir se se exorbitou do fim social ou económico do direito (neste sentido cf. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, I, 2ª ed., págs. 423 e 424.

Regressando ao caso concreto o que verificamos é que segundo a tese do réu GG a propositura da acção foi “arbitrária”, “anormal” e “inopinada”.

Alega ainda que em face da sua idade e da sua integração familiar e social, a acção lhe causou “sobressalto”.

Subscrevemos o entendimento da Relação segundo o qual para além desta adjectivação, o Réu nada alegou de concreto que permita concluir que a Autora exerce o seu direito com manifesta violação dos limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do mesmo.

Como já ficou referido decorre do disposto no art.º 334º do Código Civil, para que para que se considere abusivo o exercício de um direito o mesmo deve exceder “manifestamente” os limites “impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social e económico desse direito”.

Por ser assim não é qualquer comportamento que se revele desproporcional ou excessivo em face dos interesses em confronto que justifica o recurso a tal norma, de carácter excepcional.

Ou seja, exige-se que a desproporção ou o excesso se revelem manifestos.

Em concreto, o exercício do direito ao reconhecimento da paternidade não pode ser considerado em si mesmo desproporcional ou excessivo mesmo nos casos em que o pretenso pai venha com a propositura da acção a ter inconvenientes ou transtornos.

Ficou visto que o Réu coloca a tónica da sua argumentação na sua idade, bem como na da investigante, e no facto de nos anos decorridos desde o nascimento da sua pretensa filha ter constituído uma família harmoniosa e estar socialmente inserido, sendo reputado e respeitado pelo que, neste momento, o eventual reconhecimento da paternidade, perturbaria essa harmonia e a paz que contava ter na sua velhice.

Para tanto, fez alusão à estabilidade da sua vida familiar e social e à sua reputação.

Resulta provado nos autos tal circunstancialismo familiar mas tem razão a Relação quando faz notar ser incompreensível em que medida entende o Réu que tais estabilidade e reputação possam ser postas em causa por força do reconhecimento de uma filha que concebeu há cerca de sessenta anos e quando tinha 17 ou 18 anos de idade.

Ora também nós secundamos a ideia de que o que é em regra reprovado socialmente e no âmbito da família é o comportamento de quem não quer assumir a paternidade e já não o reconhecimento dos deveres dela resultantes.

Segundo o Réu, atenta a idade da Autora esta já adquiriu há muito a maturidade e experiência para o exercício do seu direito.

Alega ainda que por força da sua própria idade e do percurso de vida, foi levado a acreditar que não ocorreria esta perturbação da sua estabilidade familiar.

É aceite por todos que uma das modalidades de abuso de direito estudada pela doutrina e posta em prática pela jurisprudência é a da supressio, a qual consistente na repetida ou continuada inacção de quem podia exercer um direito desde que esse comportamento omissivo tenha causado na contraparte a convicção e que o mesmo já não viria a ser exercido.

Para lançar mão desta via de impedir o exercício de um direito há que ter redobradas cautelas. É que não pode, por via da cominação da inacção durante um certo lapso de tempo, impedir-se o exercício de um direito para o qual a lei não previu um prazo de caducidade ou prescrição ou quando estes, existindo, estejam ainda em curso. Sob pena de se estar a criar ou a encurtar um prazo que o legislador não quis estabelecer.

Assim, por exemplo, não pode, por princípio, cominar-se um credor que demorou 10 anos a reclamar o pagamento do seu crédito com o impedimento de exercício do seu direito quando o legislador estabeleceu um prazo de 20 anos para a prescrição do mesmo, apenas com o argumento de que a cobrança causou sobressalto ao devedor que já se convencera de que não teria de pagar a sua dívida.

Menezes Cordeiro, Código Civil Comentado I – Parte Geral, Almedina, pág.936, alude a propósito da qualificação da inacção como abusiva, ao “silêncio eloquente” querendo significar que não é qualquer inacção que justifica o recurso à figura do abuso de direito.

A este propósito tem inteira razão a Relação quando faz notar que apenas é objecto de censura o comportamento omissivo que tem na sua base circunstâncias que no caso impunham um dever de agir. E mais ainda quando em simultâneo, a omissão decorreu de comportamentos que levaram o devedor a acreditar, legitima e fundadamente, na renúncia do credor ao exercício do seu direito.

Em suma, “a confiança criada no devedor tem, ela mesma, que decorrer dos comportamentos do titular do direito e não de uma mera expectativa pessoal (e porventura optimista) da parte contra quem o direito está a ser exercido.

É válida a ideia de que não faz qualquer sentido limitar no tempo o exercício de um direito para proteger as expectativas da outra parte nos casos em que o seu titular tinha, por força de lei, um prazo ainda em curso que lho permitia exercer e com o qual a contraparte devia contar.

Voltando ao concreto, verificamos que da matéria dada como provada nos autos nada resulta que nos permita concluir que a conduta da Autora teve apenas como objectivo obter um resultado não tutelado por lei.

Mais, a mesma matéria também não espelha um comportamento que permita concluir que a Autora exerceu de forma manifestamente desproporcionada o seu direito, ou que na base do mesmo estejam interesses não tutelados pela ordem jurídica.

Por fim, está por provar que o reconhecimento do direito da Autora a ver o Réu reconhecido como seu pai, excede os limites da boa-fé e dos bons costumes ou ultrapasse o seu fim social ou económico.

Nestes termos, também nós consideramos que não ser abusivo o exercício pela Autora de tal direito.

Ou seja, também nesta parte improcede o recurso do réu, GG.


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III. Decisão:

Pelo exposto, nega-se a revista e confirma-se a decisão recorrida.


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Custas a cargo do réu/recorrente (cf. art.º 527º, nºs 1 e 2 do CPC).

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Notifique.

Lisboa, 17 de Junho de 2025

Carlos Portela (relator)

Emídio Francisco Santos

Isabel Salgado