Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
39/16.4TRGMR
Nº Convencional: 3ª SECÇÃO
Relator: OLIVEIRA MENDES
Descritores: RECURSO PENAL
INSTRUÇÃO
REQUERIMENTO DE ABERTURA DE INSTRUÇÃO
REJEIÇÃO
PROCESSO RESPEITANTE A MAGISTRADO
Data do Acordão: 06/21/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL PENAL – ACTOS PROCESSUAIS / NULIDADES – FASES PRELIMINARES / INQUÉRITO / ENCERRAMENTO DO INQUÉRITO / INSTRUÇÃO.
Doutrina:
- Maia Costa, Código de Processo Penal Comentado, 2ª edição, 2016, p. 950.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGOS 118.º, N.ºS 1 E 2, 283.º, N.º 3, ALÍNEAS A), B) E C), 287.º, N.º 2,
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

- DE 20-06-2002, PROCESSO N.º 4250/01;
- DE 24-09-2003, PROCESSO N.º 2299/03;
- DE 07-12-2005, PROCESSO N.º 1008/05.
Sumário :

I - Enquanto a falta ou omissão das exigências previstas na 1.ª parte do n.º 2 do art. 287.º do CPP faz incorrer o requerimento de abertura de instrução em mera irregularidade (art. 118.º, n.º 2, do CPP), a falta ou omissão das exigências previstas na 2.ª parte daquele dispositivo faz incorrer o requerimento de abertura de instrução em nulidade (2.ª parte do n.º 2 do art. 287.º, als. b) e c) do n.º 3 do art. 283.º e 118.º, n.º 1, todos do CPP).
II - A assistente, para além de ter enunciado as razões de facto e de direito da sua discordância em relação à decisão do MP de arquivamento por falta de indícios suficientes, muito embora de forma pouco rigorosa, indicou os factos e o direito de modo a termos por cumprido o ónus imposto na parte final do n.º 2 do art. 287.º do CPP, pelo que não deve, nem pode, ser rejeitado como foi, por falta de cumprimento daquele ónus, o requerimento de abertura de instrução que aquela assistente apresentou.
III - O requerimento de abertura de instrução apresentado pela assistente foi rejeitado, também, por omitir a identificação do arguido, omissão que efectivamente ocorre. Porém, só a falta de narração dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido e de indicação das disposições legais aplicáveis constitui motivo de rejeição sem possibilidade de convite ao assistente para aperfeiçoamento do requerimento de abertura de instrução. No caso de falta de identificação do arguido deve pois o assistente ser convidado a completar aquele requerimento.
IV - Só a ausência de indicações que conduzam à impossibilidade de identificação do arguido, ou seja, a sua individualização sem quaisquer ambiguidades, integra a nulidade da acusação prevista na al. a) do n.º 3 do art. 283.º do CPP, sendo certo que no caso não há qualquer dúvida sobre a individualização do arguido.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

Em processo de instrução que correu termos no Tribunal da Relação de Guimarães sob o n.º 39/16.TMGMR, no qual figura como arguido AA, juiz ..., e como assistente BB, devidamente identificada, foi rejeitado, por inadmissibilidade legal, o requerimento de abertura da instrução apresentado pela assistente.

É do seguinte teor o despacho de rejeição[1]:


Requerimento de abertura de instrução formulado pela assistente BB a fls. 619 e seguintes:
Não se conformando com o despacho de arquivamento proferido a fls. 532 e seguintes, por não se mostrar “suficientemente indiciado o crime de violência doméstica e tendo-se já extinto o direito de queixa pelos ilícitos eventualmente ocorridos”, a assistente BB veio requerer a abertura de instrução, pretendendo a pronúncia do arguido, pelas razões que alega de fls. 619 a 643 dos autos, pela prática de um crime de violência doméstica, previsto e punível pelo artigo 152º do Código Penal.
***
Cumpre proferir despacho liminar, sendo certo que o requerimento só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução – artigo 287º, n.º 3 do Código de Processo Penal.
O tribunal é o competente.
O requerimento é tempestivo.
A requerente tem legitimidade – artigo 287º, n.º 1, al. b) do Código de Processo Penal.
Importa, agora, apreciar a admissibilidade legal da instrução.
Findo o Inquérito, o Ministério Público proferiu despacho de arquivamento (cfr. fls. 532 s 538).
Inconformada, a denunciante, constituída assistente, veio requerer, com os fundamentos constantes de fls. 619 a 643 dos autos, a abertura de instrução.
Apreciemos.
Conforme estabelecido no artigo 287º, nº 1, do Código de Processo Penal, a assistente tem a possibilidade legal de requerer a instrução em crimes de natureza pública ou semipública, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação.
A instrução, que tem sempre carácter facultativo, como fase intermédia entre o inquérito e o julgamento «visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento» (artigo 286.°, n.º 1 do Código de Processo Penal).
O fim da instrução é, pois, da comprovação da existência de indícios suficientes de se ter verificado o crime e de quem foi o seu agente (artigo 283.º, n.º1, do Código de Processo Penal).
Com efeito, em conformidade com o disposto no art. 308.º, n.º 1, se até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respetivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia.
Daí que o requerimento de abertura de instrução seja a peça processual, mediante a qual o arguido ou o assistente, expressam as suas razões de divergência com o precedente despacho do Ministério Público, de acordo com o preceituado no artigo 287.°, n.º 1 do Código de Processo Penal.
No caso de a instrução ser requerida pelo assistente, que é o que aqui interessa, a mesma apenas pode dizer respeito a factos relativamente aos quais o Ministério Público não tenha deduzido acusação e os mesmos não sejam suscetíveis, como é óbvio, de acusação particular, pois, se assim sucedesse, bastaria que tal libelo fosse deduzido.
Porém, a simples apresentação de requerimento para abertura de instrução não determina de forma automática que esta fase processual tenha lugar.
Estatui o art. 287.°, n.º 2, do Código de Processo Penal referindo-se  ao requerimento de abertura de instrução do assistente, que o mesmo deve conter «em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for o caso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e outros, se espera provar», sendo certo que a tal requerimento, quando formulado pelo assistente, é aplicável «o disposto no artigo 283.°, n.º 3, alíneas b) e c) (...)».
Neste último segmento normativo estipula-se que «a acusação contém, sob pena de nulidade: b) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada; c) A indicação das disposições legais aplicáveis».
Quer isto dizer que o requerimento de abertura de instrução do assistente está sujeito ao formalismo da acusação, isto é, equipara-se-lhe (vide, entre outros, os acórdãos do TRL de 21.10.1999, CJ, XXII pág. 158 e de 09.02.2000, CJ, XXIII, 1.°, 153; e do TRP de 15.04.1998, BMJ n.º 476.°, pág. 487).
Podemos, pois, concluir que, por força da conjugação dos artigos 287.°, n.º 2 e 309.°, n.º 1, ambos do Código de Processo Penal, a instrução requerida pelo assistente, em caso de despacho de arquivamento do inquérito pelo Ministério Público – aquele que importa ter em conta – não pode destinar-se à simples impugnação de tal despacho, sendo certo que tal exigência, formalismo e equiparação não se pode afirmar ou exigir ao requerimento formulado pelo arguido (cfr. artigo 287º, n.º 2, in fine, a contrario sensu).
Assim, tratando-se de uma instrução requerida pelo assistente, que visa sempre a pronúncia do arguido, acresce ainda mais um requisito, ou seja, deve tal requerimento conter ainda a narração própria de uma acusação, mediante a descrição dos factos integradores de um crime e a indicação da correspondente disposição legal que o tipifica.
Com efeito, no requerimento para abertura de instrução, o assistente tem de indicar os factos concretos que, ao contrário do Ministério Público, considera indiciados ou que pretende vir a fazer indiciar no decurso da investigação requerida. Aliás, tal descrição factual deverá conter os factos concretos suscetíveis de integrar todos os elementos objetivos e subjetivos do tipo criminal que o assistente considere ter preenchido/violado.
Nesta conformidade, o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente deve sempre descrever, de modo autónomo, os factos imputados ao arguido, indicando ainda os tipos legais de crime que os mesmos integram.
Por sua vez, conforme já referimos e de acordo com o citado artigo 287.° do Código de Processo Penal, através do seu n.º 3 «O requerimento só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução».
Entendemos que quando a lei fala em “inadmissibilidade legal”, tem em vista os casos em que da própria lei resulta clara e expressamente, como não admissível aquela fase processual, ou seja: nas outras formas de processo que não a comum e abreviado (art. 286.º, n.º 3 do Código de Processo Penal); se requerida por outras pessoas não o arguido ou assistente, ou ainda que requerida por estes, quando o fazem fora dos casos definidos no art. 287.º, n.º 1, al. a) e b), do mesmo código, ou se o requerimento do assistente não configurar uma verdadeira acusação (não contiver a identificação do arguido, ou não descrever os factos componentes do crime imputado ou se os factos descritos não constituem crime, nomeadamente), caso em que faltará o próprio objeto do processo.
Na verdade, a omissão no requerimento do assistente da identificação do arguido é motivo de rejeição da acusação por inadmissibilidade legal (artigo 287º n.º 3 do Código de Processo Penal) – vide, neste sentido, entre outros os Acórdãos do TRP de 21.11.2001 e de 31.05.2006, ambos disponíveis em www.dgsi.pt.
A conclusão não se altera perante a remissão para o auto de notícia ou para a denúncia (ou para outras peças processuais) que tenham dado origem ao processo, ou se o mesmo se limitar a remeter para o auto de participação/denúncia/queixa ou para os documentos apresentados, dando por reproduzido os mesmos.
É que tal narração factual por remissão poria em causa as garantias de defesa do arguido e seria uma violação da estrutura acusatória do processo penal, consagrada pelo artigo 32º, nº 5, da Lei Fundamental.
Na verdade, se a instrução for requerida pelo assistente e não contiver os requisitos específicos de uma acusação atrás enunciados, tal requerimento é inadmissível, tornando, por isso, inexequível, por falta de objeto, o controlo jurisdicional da decisão do Ministério Público.
Compreende-se que assim aconteça pois, equivalendo o requerimento de abertura de instrução, em tudo, à acusação, constituindo substancialmente, uma acusação alternativa ao despacho de abstenção proferido pelo Ministério Público, é esse mesmo requerimento que ao reproduzir uma acusação define, delimita e fixa o objeto do processo a partir da sua apresentação, limitando os poderes de cognição do juiz de instrução (cfr. artigos 288.°, n.º 4, 307.° a 309.° do Código de Processo Penal) e possibilita o direito do arguido defender-se das imputações que lhe são feitas (artigos 61.°, n.º 1, als. b) e f) do Código de Processo Penal e 32.° da Constituição da República Portuguesa).
Como escreve Germano Marques da Silva em “Do Processo penal preliminar” pág. 254 “O Juiz está substancial e formalmente limitado na pronúncia aos factos pelos quais tenha sido deduzida acusação formal, ou tenham sido descritos no requerimento do assistente e que este considera que deveriam ser o objeto da acusação do MP. O requerimento para a abertura da instrução formulado pelo assistente constitui, substancialmente uma acusação alternativa (ao arquivamento ou à acusação deduzida pelo MP), que dada a divergência assumida pelo MP vai necessariamente ser sujeita a comprovação judicial”.
De facto, ao assim fixar o objeto do processo, pretende-se a salvaguarda do exercício efetivo ao contraditório e, consequentemente, do direito de defesa do arguido.
E só assim se respeitará a estrutura acusatória que preside ao direito processual penal português, na medida em que «o juiz está substancial e formalmente limitado na pronúncia aos factos (...) que tenham sido descritos no requerimento do assistente e que este considera que deveriam ser objecto da acusação do Ministério Público.» – Germano Marques da Silva, Do Processo Penal Preliminar, pág. 264.
Com efeito, a estrutura acusatória do processo penal português, garantia de defesa que consubstancia uma concretização no processo penal de valores inerentes a um Estado de direito democrático, assente no respeito pela dignidade da pessoa humana, impõe que o objeto do processo seja fixado com o rigor e a precisão adequados em determinados momentos processuais, entre os quais se conta o momento em que é requerida a abertura da instrução.
Tal exigência decorre, pois, de princípios fundamentais do processo penal, nomeadamente das garantias de defesa e da estrutura acusatória.
E na senda de tal obrigatoriedade a lei claramente evidencia a consequência da sua omissão: tal constitui causa para a sua rejeição por parte do juiz de instrução criminal.
Com efeito, a inobservância do analisado requisito legal constitui fundamento para a rejeição do requerimento do assistente por inadmissibilidade legal da instrução, nos termos do artigo 287.º n.º 3 do Código Processo Penal (cfr. entre outros os Acórdãos do TRP de 06.07.2011, proc. 6790/09.8TDPRT.P1; de 11.05.2011, proc. 588/07.4TAVNG.P1; de 15.09.2010 proc. 167/08.0TAETR-C1.P1, de 14.07.2010, proc. 579/08.9GDVFR-A.P1; Acórdãos do TRC de 30.01.2013, proc. 1195/11.3TALRA.C1; de 07.03.2012 proc. 903/09.7PBVIS.C1; Acórdão do TRG de 18.12.2012, proc. 2449/10.1TAGMR.G1; Acórdão do STJ de 22.03.2006, proc. 357/05, todos disponíveis em www.dgsi.pt).
Chamado a apreciar a norma do artigo 283.º, n.º 3, alíneas b) e c), do Código de Processo Penal, interpretada no sentido de ser exigível, sob pena de rejeição, que constem expressamente do requerimento para abertura da instrução apresentado pelo assistente os elementos mencionados nessas alíneas, o Tribunal Constitucional, no seu Acórdão n.º 358/2004, publicado no Diário da República, II Série, n.º 150, de 28 de Junho de 2004, concluiu pela não inconstitucionalidade da norma em apreciação, expressando o seguinte entendimento:
«Dada a posição do requerimento para abertura da instrução pelo assistente, existe (…) uma semelhança substancial entre tal requerimento e a acusação. Daí que o artigo 287.º, n.º 2, remeta para o artigo 283.º, n.º 3, alíneas b) e c), ambos do Código de Processo Penal, ao prescrever os elementos que devem constar do requerimento para a abertura da instrução.
Assim, o assistente tem de fazer constar do requerimento para abertura da instrução todos os elementos mencionados nas alíneas referidas do n.º 3 do artigo 283.º do Código de Processo Penal. Tal exigência decorre, como se deixou demonstrado, de princípios fundamentais do processo penal, nomeadamente das garantias de defesa e da estrutura acusatória. É, portanto, uma solução suficientemente justificada e, por isso, legitimada.
(…) [A] exigência de rigor na delimitação do objecto do processo (recorde-se, num processo em que o Ministério Público não acusou), sendo uma concretização das garantias de defesa, não consubstancia uma limitação injustificada ou infundada do direito de acesso aos tribunais, pois tal direito não é incompatível com a consagração de ónus ou de deveres processuais que visam uma adequada e harmoniosa tramitação do processo.
De resto, a exigência feita agora ao assistente na elaboração do requerimento para abertura de instrução é a mesma que é feita ao Ministério Público no momento em que acusa.
Cabe também sublinhar que não é sustentável que o juiz de instrução criminal deva proceder à identificação dos factos a apurar, pois uma pretensão séria de submeter um determinado arguido a julgamento assenta necessariamente no conhecimento de uma base factual cuja narração não constitui encargo exagerado ou excessivo.
Verifica-se, em face do que se deixa dito, que a exigência de indicação expressa dos factos e das disposições legais aplicáveis no requerimento para abertura de instrução apresentado pelo assistente não constitui uma limitação efectiva do acesso do direito e aos tribunais.
Com efeito, o rigor na explicitação da fundamentação da pretensão exigido aos sujeitos processuais (que são assistidos por advogados) é condição do bom funcionamento dos próprios tribunais e, nessa medida, condição de um eficaz acesso ao direito.»
Por outro lado, entendemos que não deve o juiz convidar o assistente colmatar as lacunas do seu requerimento de instrução, conforme, alias, o Supremo Tribunal de Justiça no seu Acórdão nº 7/2005, de 12 de Maio de 2005 (publicado no Diário da República, I Série-A, n.º 212, de 4 de Novembro de 2005), fixou jurisprudência nos seguintes termos: «Não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do artigo 287.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido».
O Tribunal Constitucional, chamado a apreciar a constitucionalidade do artigo 287.º do Código de Processo Penal, no Acórdão nº 636/2011, de 20 de Dezembro de 2011 (publicado no Diário da República, II Série, de 26/11/2012), decidiu: «Não julgar inconstitucional a norma contida conjugadamente nos n.ºs 2 e 3 do artigo 287.º do CPP, na interpretação segundo a qual, não respeitando o requerimento de abertura de instrução as exigências essenciais de conteúdo impostas pelo n.º 2 do artigo 287.º do CPP, e não ocorrendo nenhuma das causas de rejeição previstas no n.º 3 do mesmo preceito, cabe rejeição imediata do requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente (não devendo antes o assistente ser convidado a proceder ao seu aperfeiçoamento para suprir as omissões/deficiências constatadas)».
Revertendo para o requerimento de abertura de instrução em apreço, apresentado pela assistente BB, cumpre dizer que tal requerimento é, desde logo, omisso quanto à identificação do arguido.
Por outro lado, não descreve, de modo autónomo, os factos imputados ao arguido, limitando-se a aludir a documentos juntos aos autos (caso do artigo 52º do requerimento de abertura de instrução (RAI), sendo que a referência nele constante a “31 de junho de 2011”, não corresponde a “fls. 77”), como se fossem factos (como é do caso da referência a “Fls. 112 a 116” e a “Fls. 161 a 178”, sem transcrição das mensagens aí referidas.
Na verdade, lendo-se o requerimento de abertura de instrução em causa, verifica-se que a assistente não concedeu autonomia à vertente da “acusação”, reconduzindo-se a salientar as suas divergências relativamente à apreciação levada a efeito no despacho de arquivamento, analisando a prova produzida, fornecendo a sua interpretação dos factos, com referência para os factos constantes do mesmo despacho de arquivamento (para além de indicar as diligências de prova que no seu entender devem ser realizadas em sede de instrução). A assistente manifesta as razões da sua discordância quanto à decisão por parte do Ministério Público no sentido do arquivamento, analisa os meios de prova recolhidos no inquérito, designadamente quanto ao seu conteúdo e credibilidade e no meio dessa análise transcreve as mensagens que alegadamente lhe foram enviadas pelo arguido e já transcritas no despacho de arquivamento, afirmando “…conforme consta no despacho de arquivamento …”, “Consta ainda no despacho em análise…”, “… conforme é referido no despacho de arquivamento”, “Consta ainda da decisão de arquivamento…”, “…consta dos autos”, “Nos presentes autos consta ainda …” (artigos 55º a 68º do RAI).
Constatamos, assim, que, e ao contrário daquilo a que estava obrigada, a assistente não fez no requerimento de abertura da instrução a necessária inventariação factual equivalente a uma acusação pública, porquanto não enumerou de forma cabal, precisa, concreta, autónoma e determinada os factos que pretende estarem indiciados, suscetíveis de integrarem a prática pelo arguido de um ilícito típico que permita a aplicação de uma pena. 
De facto, a metodologia seguida pela assistente não se traduz numa verdadeira imputação de factos, mas antes na discordância relativamente ao que a assistente considera ter sido uma errada opção por parte do titular do inquérito, à qual contrapõe, invocando os elementos probatórios constantes dos autos, a sua, evidenciando, assim, a dita divergência.
Não escamoteamos que se trata de uma vertente importante e obrigatória que deve integrar o requerimento de abertura de instrução, mas não substitui a “acusação” exigível ao assistente sempre que, na sequência do arquivamento do inquérito, pretende a pronúncia do arguido.
Repare-se, por exemplo, que a assistente não faz referência ao tipo de relação que terá ocorrido entre ela e o arguido, assim como à forma como tal relação terá evoluído, quando começou e quando terminou (à semelhança do que consta no artigo 1º da “Denúncia”), não concretizando em que contexto as afloradas mensagens terão sido enviadas (tratando-se de factos relevantes para a caracterização do ilícito, na medida em que exige um certo relacionamento, contemporâneo ou precedente aos factos, entre a vítima e o agente).
Acresce ainda que no RAI apresentado, a assistente recorre à tipificação legal do crime com referência ao artigo 152º do Código Penal, sem outra especificação ou concretização. Acontece que o artigo 152º do Código Penal descreve no seu nº 1, uma forma “simples”, punida com pena de prisão de 1 a 5 anos, se pena não resultar de outra disposição legal; descreve no seu nº 2, uma primeira forma “agravada” pelas circunstâncias nele referidas, punida com pena de prisão de 2 a 5 anos; descreve no seu nº 3, uma outra forma duplamente “agravada”, punida com pena de prisão de 2 a 8 anos. E a assistente limita-se a invocar o artigo “152º do Código Penal”.
Em suma, o RAI em causa não enumera, de modo inteligível e autonomizado, os factos concretos e objetivos que considera terem sido praticados pelo denunciado (factos esses nus e crus, reveladores de uma certa realidade), antes inserindo referências factuais (por vezes genéricas), de modo disperso, misturando factos e direito, no âmbito da crítica dirigida ao despacho de arquivamento.
Ou seja, a assistente não elaborou um requerimento de abertura da instrução onde desse cumprimento às imposições legais supra referidas, nomeadamente no sentido de que se possa afirmar estarmos perante uma verdadeira acusação.
Tal circunstância, entendemos, impõe a rejeição do requerimento de abertura de instrução em causa, por legalmente inadmissível (cfr. artigo 287.º, n.º 3, do Código de Processo Penal).
Pelo exposto, por inadmissibilidade legal da instrução, rejeito o requerimento para o efeito apresentado.

A assistente interpõe recurso deste despacho, sendo do seguinte teor as conclusões nele formuladas:

1. No despacho de que se recorre foram cometidos erros na apreciação da meteria de facto e na aplicação da matéria de direito, impondo-se uma solução totalmente inversa à decidida no despacho ora impugnado, competindo, assim, a este Tribunal ad quem usar dos seus poderes/deveres (funcionais) de censura.

2. Efetivamente é consabido que, o requerimento de abertura de instrução, apesar de não estar sujeito a formalidades especiais, deve conter as razões de facto e de direito da discordância do despacho final, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos atos de instrução que pretende que sejam levados a cabo, os meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e os factos que através daqueles meios de prova pretende provar.

3. É igualmente consabido, que quando o requerimento de abertura de instrução é apresentado pelo assistente, lhe são aplicáveis as alíneas b) e c) do n.º 3 do artigo 283.º do Código de Processo Penal, ou seja, que é imposto ao assistente que no seu requerimento faça uma narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se, possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada, bem como, a indicação das disposições aplicáveis. 

4. Contrariamente ao que consta no mencionado despacho de rejeição do requerimento de abertura de instrução, e conforme ao diante se demonstrará, o requerimento apresentado pela assistente cumpre todos os requisitos previstos, quer no artigo 287.º n.º 2, quer no artigo 283.º n.º 3 alíneas b) e c) do Código de Processo Penal, uma vez que, no mesmo se encontram descritos os factos e a norma jurídica incriminadora, existe suficiente clareza e precisão nos factos imputados, e inexistem dúvidas na identificação do seu agente. 

5. Conforme facilmente se constata através da leitura do requerimento de abertura de instrução, no artigo 23.º a recorrente fez referência expressa ao facto do arguido ter praticado os factos em discussão nos autos após a mesma ter terminado definitivamente a relação de namoro que mantivera consigo.

6. Posteriormente, nos artigos 55.º a 67.º, a assistente descreveu concretamente os factos praticados pelo arguido, sendo certo que, além de transcrever as mensagens que consubstanciam a prática do crime de violência doméstica, também identificou o dia e a hora em que as mesmas lhe foram enviadas.

7. No seu requerimento, a recorrente referiu ainda que o arguido deu início ao processo de intimidação e perseguição constante dos autos com o intuito de a castigar pelo facto da mesma ter terminado definitivamente a relação de namoro que tinha consigo, por não aceitar o fim da relação, demonstrando claramente quais os motivos subjacentes à prática de tais factos pelo arguido.

8. Também facilmente se constata através da leitura do requerimento de abertura de instrução que a recorrente além de fazer referência à disposição aplicável, após mencionar qual o bem jurídico tutelado pelo crime de violência doméstica e o tipo objetivo e subjetivo do mencionado crime, demonstrou claramente que no caso concreto, com o envio das mensagens, o arguido violou o bem jurídico integridade psíquica, liberdade e honra, que com a sua conduta o mesmo quis ofender esses bens jurídicos, e ainda que o mesmo atuou de forma livre, bem sabendo que a sua conduta era proibida por lei.

9. A assistente, no seu requerimento fez uma descrição fáctica equivalente a uma acusação pública, com indicação precisa dos factos que a mesma considera estarem indiciados, integradores tanto dos elementos objetivos como dos elementos subjetivos do crime de violência doméstica, pelo que, constando do requerimento de abertura de instrução todos os elementos necessários, quer os factos quer os fundamentos para que ao arguido possa vir a ser aplicada uma pena, dele resultando bem claro o objeto da instrução, não temos quaisquer dúvidas de que a referida peça processual possui a vertente de acusação exigida por lei.

11. Entende também a recorrente que os fundamentos utilizados pelo Exmº Senhor Doutor Juiz de Instrução Criminal para justificar a não admissão do requerimento apresentado pela assistente, além de serem falsos e, por vezes, vagos, criam a convicção de que o tribunal “a quo” não apreciou com a devida atenção o mencionado requerimento, pois, é desde logo falso que a mesma se tenha limitado a aludir a documentos juntos aos autos, pois, conforme já se demonstrou, apesar de inicialmente ter feito menção a tais documentos no artigo 52.º da sua peça processual, a verdade é que, nos artigos posteriores, descreveu concretamente os factos praticados pelo arguido.

12. No artigo 23.º do seu requerimento, a assistente, além de se referir expressamente à existência de uma relação de namoro, também explicou que as mensagens foram enviadas como retaliação por ter terminado a mencionada relação, pelo que, é igualmente falsa a alegação constante no despacho de que se recorre, segundo a qual, a mesma não tinha feito referência ao tipo de relação que mantivera com o arguido, bem como, à concretização do contexto em que as mensagens foram enviadas.

13. Também não corresponde à verdade que a recorrente se tenha limitado a fazer referência ao artigo 152.º do Código Penal, pois, a mesma demonstrou claramente que os factos praticados pelo arguido preenchem todos os pressupostos do mencionado ilícito criminal, sendo ainda certo que, apesar de efetivamente, por mero lapso de escrita, a recorrente não ter feito referência expressa ao n.º 1 do artigo 153.º do Código Penal, a verdade é que, atentos os factos constantes do requerimento de abertura de instrução é manifesto que os factos levados a cabo pelo arguido integram a prática do crime de violência doméstica simples, e não agravada, pois, reitera-se, em momento algum a assistente mencionou qualquer circunstância suscetível de integrar os n.ºs 2 ou 3 do mencionado preceito legal.

14. A recorrente entende ainda que, alguns dos argumentos utilizados pelo Exmº Senhor Doutor Juiz de Instrução Criminal se revelam vagos e indeterminados, nomeadamente, quando o mesmo refere que a assistente não enumerou de forma cabal, precisa, concreta, autónoma e determinada os factos que imputa ao arguido, pois, tendo em conta que na sua peça processual a assistente além de descrever os factos praticados pelo arguido, transcreveu as mensagem e identificou o dia e as horas em que as mesmas lhe foram remetidas, não se percebe como poderia a assistente ser mais “cabal, precisa, concreta e determinada” na descrição dos mesmos.

15. Tal entendimento do tribunal “a quo” poderá conduzir a resultados injustos, na medida em que, os fundamentos utilizados consistem numa válvula de escape que poderá ser sempre utilizada pelo tribunal quanto o mesmo se queira abster de apreciar questões submetidas à sua apreciação.

16. Parece-nos que, a decisão sob censura, se “agarra” a uma questão formal inexistente, ficcionando uma omissão “fetal” de forma a que o processo morra à nascença.

17. O RAI de forma bastante especificada, formula uma verdadeira acusação dirigida à atuação do arguido, constituído, sindicando, em todas as vertentes a decisão do MP que culminou no arquivamento do processo.

18. Importa não “desprezar” partes essenciais do processo, atendendo a que a grande maioria dos factos resulta da prova documental produzida, nomeadamente, a transcrição notarial das sms enviadas pelo arguido à assistente.

19. O arguido é o único sujeito processual identificado nos autos com essa qualidade, está perfeitamente identificado no TIR que prestou, sendo que, a partir desse momento processual inicial, e depois de assumida tal qualidade, poderá ser apenas denominado de arguido.

20. Ainda que o entendimento do Exmo. Senhor Doutor Juiz “a quo”, vingasse, deveria ter sido ordenada a notificação da assistente para que a mesma pudesse completar o requerimento com a indicação do nome do arguido - AA, pois, por ser perfeitamente sanável, com uma leitura atenda do TIR, não se vislumbra qualquer argumento contra tal possibilidade.

 

21. Tratando-se de uma omissão, o Juiz deverá proceder do seguinte modo: quanto ao assistente notificá-lo-á para que complete o requerimento com os elementos que omitiu e que não deveria ter omitido (art. 287º, nº 3). Se o assistente não completar o requerimento, o Juiz não procederá à Instrução.”

22. No Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 13.01.2016 – proc. n.º 136/14.0T9VFR.P1, no qual os Exmos Senhores Juízes Desembargadores referiram que o Acórdão do STJ n.º 7/2005, preenche a lacuna da lei “apenas no que respeita à “narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido”, pois, a redação restritiva do mesmo não exclui todas as outras possíveis deficiências de que possa sofrer o requerimento de abertura de Instrução do assistente, não impedindo o convite ao aperfeiçoamento, quanto às mesmas.

24. Nos presentes autos, impõe-se, pois, a substituição da decisão de rejeição do requerimento de abertura de instrução, por outra que o receba, ou se assim não se entender, deverá ser proferida decisão que formule convite ao aperfeiçoamento, por forma a fazer constar a identificação do arguido, conforme se encontra indicada no TIR - AA.

25. A recorrente entende ainda que, o facto de no requerimento de abertura de instrução não constar a identificação expressa do arguido não pode fundamentar a rejeição do mesmo, pois, se assim fosse, estaria a permitir-se que um sujeito processual ficasse impedido de praticar atos com vista à descoberta da verdade por uma questão meramente formal que, além de ser sanável através da simples leitura do despacho de arquivamento que suporta o requerimento da assistente, e para o qual a recorrente remeteu na parte introdutória do seu requerimento, a verdade é que, no caso concreto, tal questão, não assume relevância, na medida em que, neste processo apenas foi constituído um arguido.

26. Nesta situação, o Exmº Senhor Doutor Juiz de Instrução Criminal deveria ter ordenado a notificação da assistente para que a mesma pudesse completar o requerimento com tal elemento.

27. Tal como Maia Gonçalves e os Juízes Desembargadores do Tribunal da Relação do Porto, no acórdão de 13.01.2016 – proc. n.º 136/14.0T9VFR.P1, a recorrente entende que esta solução é a que melhor concilia o direito de acesso à justiça com os direitos de defesa do arguido, sendo ainda certo que, não se poderá esquecer que o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7/2005 apenas uniformizou jurisprudência para os casos em que no requerimento de abertura de instrução falte a narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido.

28. Face ao exposto, impõe-se, pois, a substituição da decisão de rejeição do requerimento, por outra que receba o requerimento de abertura de instrução.

Na contra-motivação apresentada o Ministério Público formulou as seguintes conclusões:

1 - Nos termos do artigo 287.º, n.º 2, do C.P.P., é aplicável ao requerimento para abertura de instrução o disposto no artigo 283.º, n.º 3, als b) e c) – isto é, a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada e a indicação das disposições legais aplicáveis.

2 - No requerimento para abertura de instrução, tem o assistente de indicar os factos concretos que, ao contrário do M. P., considera indiciados ou que pretende vir a fazer indiciar no decurso da investigação requerida, requerimento que, equivalendo à acusação, define e delimita o objecto do processo, por força da estrutura acusatória que preside ao direito processual penal português, a qual impõe que aquele seja fixado com o rigor e a precisão adequados em determinados momentos processuais, entre os quais se conta o momento em que é requerida a abertura da instrução.

3 - Pretendendo-se, através desta, a confirmação ou infirmação da decisão final do inquérito, o seu objecto tem de ser definido de um modo suficientemente rigoroso em ordem a permitir a organização da defesa, abrangendo, naturalmente, tal definição a narração dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena, bem como a indicação das disposições legais aplicáveis.

4 - O requerimento apresentado pela assistente não cumpre tal desiderato, sendo omisso quanto à identificação do arguido não descrevendo, de modo autónomo, os factos imputados, limitando-se à alusão dos documentos juntos aos autos, como se de factos se tratasse, sem transcrição das mensagens a que se alude, procurando salientar as suas divergências, a sua discordância, relativas à apreciação empreendida no despacho de arquivamento, fornecendo a sua interpretação relativamente aos factos ali constantes, e analisando, quanto ao seu conteúdo e credibilidade, os meios de prova recolhidos no inquérito, mas não concedendo autonomia à “acusação”, não inventariando ”de forma cabal, precisa, concreta, autónoma e determinada”, os factos que pretende como indiciados, susceptíveis de integração de um ilícito típico, a permitir a aplicação de uma pena, isto, para além da falta de especificação e concretização necessárias relativas à tipificação legal do crime imputado.

5 - Na falta de narração sintética e precisa dos factos constitutivos do crime nas suas circunstâncias de espaço, tempo, lugar e modo, de uma construção fáctica e sequencial, narrativamente orientada que defina em concreto o objecto do processo e por consequência o caso julgado da decisão a proferir, dúvidas não ficam de que o requerimento apresentado pela assistente não preencheu os requisitos contemplados no artigo 283º, nº 3, aplicável por força da remissão operada pelo artigo 287º, nº 2, ambos do C.P.P.

6 – “Não há lugar ao convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do artº 287º, nº 2 do C.P.P., quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido” Ac. do S.T.J. nº 7/2005 de 12/5/2005 - fixação de jurisprudência – publicado no D.R., I Série-A, nº 212 de 4/11/2005.

7 – Insere-se na inadmissibilidade legal da instrução, prevista  no n.º 3 do  artigo 287.º do Código de Processo Penal o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente, perante a não dedução de acusação pública, que não contenha a narração, ainda que sintética, dos factos que imputa ao arguido e pelos quais pretende que este venha a ser pronunciado.

8 – Por não ter violado qualquer normativo legal, nenhuma censura merece a decisão sob escrutínio.

É do seguinte teor a contra-motivação apresentada pelo arguido:

Vem o presente recurso interposto da, sempre douta e esclarecida Decisão proferida a fls. que entendeu rejeitar, e bem, o requerimento de abertura de instrução formulado nos autos por banda da Assistente.

            Sabido que é pelas conclusões formuladas pela Recorrente que fica delimitado o âmbito do recurso, teremos de concluir que as concretas questões que constituem o thema decidendum são:

1- Aferir se o requerimento de abertura de instrução formulado nos autos cumpre com o disposto no artº 287º, nº 2 e 283º, nº 3, b) e c), ambos do CPC.;

2- Aferir se tal requerimento identifica a norma incriminatória;

3- Aferir se o Mmº JIC deve convidar o requerente de instrução a colmatar eventuais deficiências, incluindo para identificação do arguido.

            Delimitado o objecto do recurso, afigura-se inquestionável que o requerimento de abertura de instrução formulado pela Assistente há-de respeitar o disposto no artº 283º, nº 3 – b) e c) do CPP, ou seja a narração dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena, incluindo se possível o lugar, o tempo e a motivação da sua prática e quaisquer circunstâncias relevantes para determinação da sanção.

           Isto é, tal como lapidarmente referido no, sempre douto, Despacho recorrido, “o requerimento de abertura de instrução do assistente está sujeita ao formalismo da acusação, isto é, equipara-se-lhe”.

           Assim, a reacção contra o despacho de arquivamento do inquérito formulado pelo Ministério Público não se basta com uma simples impugnação dos seus fundamentos ou explanação das razões conceptuais de divergência por banda da Assistente, mas antes a concreta narração própria de uma acusação, com descrição dos factos integradores de um determinado crime e com a correspondente indicação da norma incriminadora que tipifica o ilícito.

            Tanto significa que o requerimento de abertura de instrução pelo assistente terá de descrever, autonomamente, quais os factos imputados e indicar o(s) tipo(s) legal(is) que tais factos integram, sendo ainda imprescindível a própria identificação do arguido, tudo sob pena de faltar o próprio objecto do processo.

           É que, sendo o processo penal enformado pelo princípio do acusatório, do qual resulta a indisponibilidade do objecto e do conteúdo do processo, constitui pressuposto processual da instrução, para além do mais, a identificação da pessoa ou pessoas que a assistente pretende ver pronunciados, não estando tal tarefa na disponibilidade do juiz de instrução.

           Argumentar-se que a identificação do arguido consta do respectivo termo de constituição, seria o mesmo que uma acusação proferida pelo Mº Pº em que se requer, meramente, o julgamento da “pessoa constituída arguida”, ou “da pessoa do denunciado”.

           Isto é, na tese da Recorrente, competiria ao Mmº Juiz de Instrução no por si desejado despacho de pronúncia proceder à identificação do pronunciado, competência que extravasa o legalmente estatuído e que, in casu, só à requerente compete.

            Por outro lado, como bem se observa na Decisão recorrida, a Assistente no seu requerimento de abertura de instrução limita-se a remeter as razões de facto para documentos juntos aos autos, dando-os por reproduzidos.

           Isto é, na tese da Recorrente, competiria ao Juiz de Instrução copiar o teor de tais documentos, da denuncia ou de outras peças processuais para efectuar, elencar e ordenar a descrição fáctica a incluir no protendido despacho de pronúncia, como se ao Magistrado competisse a prática de actos que só à parte compete, assim a substituindo.

            Acresce que a mera narração factual, por mera remição, sempre coloca em causa as garantias de defesa do arguido, em clara violação da estrutura acusatória do processo penal, com consagração constitucional no artº 32º, nº 5 da CRP.

            Com efeito, na ausência de todos os requisitos específicos de uma acusação e enunciados no artº 283º do CPP, é o requerimento de abertura de instrução inexequível no controlo jurisdicional da decisão do Mº Pº, por falta de objecto.

            Sendo assim, mister é que, para que o requerimento de abertura de instrução constitua uma acusação, em alternativa ao despacho de arquivamento, tem ele de, dessa forma e por essa via, delimitar o objecto do processo, assim, delimitando os poderes de cognição do Juiz de Instrução - cfr. artºs 288º, 4; 307º, 308º e 309º - bem como possibilitar o inalienável direito de defesa quanto a tais imputações.

           É inequívoco que o requerimento de abertura de instrução, quando deduzido por assistente, consubstancia uma autêntica acusação, como é entendimento doutrinário e jurisprudencial, sem discrepância – cfr. Germano Marques da Silva , in Curso de Processo Civil , III , pág. 139 , Frederico de Lacerda da Costa Pinto , Segredo de Justiça e Acesso ao Processo , in Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais , Almedina , 90ª 92 e jurisprudencialmente o Ac. do TC n.º 385/2004 , in DR , II Série , de 28.6.2004 

           E da acusação, sob pena de ser julgada por manifestamente infundada, nos termos do art.º 311.º n.ºs 1 e 2 a) e 3 b), do CPP, deve constar a descrição factual, pois ela não pode deixar de obedecer aos princípios da suficiência e clareza , para que o arguido conheça os factos que lhe são imputados, se possa defender e o tribunal compreender a imputação , numa óptica de cooperação intersujeitos processuais e o objecto do processo fique todo definido –cfr. José António Barreiros , Manual de Processo Penal , 1989 , 424 e Leones Dantas , in R M P , 1977 , 111 e segs . 

 

            Sendo a instrução uma comprovação judicial do acerto decisório do M.º P.º em não acusar, para introdução do facto em juíz, há-de o assistente, se intenta consegui-lo, substituir-se-lhe, procedendo, além do mais, àquela narração, precisa e concisa, cabendo ao juiz dirigir o andamento do processo. . 

            Por outro lado e como já supra salientado, a mera referência a alegadas mensagens, não permite concluir pelo cumprimento do ónus processual imposto à Assistente para um exacto requerimento de abertura de instrução, sem olvidar que nem sequer contextualiza tais mensagens com a alegada relação.

           Ademais, o requerimento de abertura de instrução formulado pela Assistente mistura factos e direito e mais não logra do que uma mera crítica, estritamente opinativa, quanto ao Despacho de arquivamento e isto sem olvidar que a mera referência à norma contida no artº 152º do CP, pela sua tripla previsão, nem sequer satisfaz a exigência legal imposta à Requerente.

           Em suma, tal como decidido, a assistente não elaborou um requerimento de abertura de instrução com o imprescindível cumprimento das disposições legais supra referidas, especificamente dele não constando a necessária conclusão de ter sido formulada uma acusação nos termos impostos por Lei.

            Pugna, ainda, a Recorrente no sentido de perante a incontornável inexistência dos requisitos impostos pela lei processual e a que supra aludimos, deveria ela ser convidada a suprir tais deficiências.

            Cremos que, também, aqui a resposta que se impõe é negativa.

            Com efeito, tal como decidido no Ac. do TRP de 31.05.2006, deve ser rejeitado o requerimento de abertura de instrução que não contém a identificação ou as indicações tendentes à identificação do arguido.

           Acresce que, a recorrente, ao defender que o senhor juiz de instrução devia dar um despacho de aperfeiçoamento, está implicitamente a reconhecer que o requerimento de abertura de instrução por si formulado não obedece aos requisitos estabelecidos no C. P. Penal.

          Acontece que, tal como foi decidido no despacho recorrido, é jurisprudência maioritária dos tribunais e foi decidido pelo TC, entre outros, no Ac. n.º277/2001, processo n.º189/2000, DR, II série, de 23/03/2001, págs. 5265 e seguintes, não há lugar ao convite ao aperfeiçoamento, para além do mais, porque se esgotou o prazo para a formulação do requerimento de abertura de instrução e porque não há fundamento legal para o requerido convite, tendo sido esta a intenção do legislador na medida em que a sugestão do CSM nesse sentido, aquando do processo legislativo que resultou no D/L n.º59/98, não mereceu acolhimento na votação na especialidade da proposta de lei de revisão do Código de Processo Penal.

A Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu o seguinte parecer:

1 – BB apresentou denúncia, em 18/2/2016, contra o Juiz AA, imputando-lhe factos que qualificou de crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152.º, do C.P.

2 – Realizado que foi o inquérito, pelo MºPº no Tribunal da Relação de Guimarães, veio a ser proferido despacho de arquivamento do processo, em 14/11/2016, por não se mostrar suficientemente indiciado “o crime de violência doméstica e tendo-se já extinto o direito de queixa pelos ilícitos eventualmente ocorridos, (…)” – cfr. despacho de fls. 532 e segs, maxime, fls. 537.

3 – A denunciante, entretanto constituída Assistente, requereu, em tempo e com legitimidade, a abertura de instrução, conforme requerimento de fls. 585 a fls. 609, que, com a devida vénia, se dá aqui por reproduzido.

4 – O Sr. Juiz Desembargador, exercendo as funções de JIC nos autos, decidiu, fundamentadamente, rejeitar o pedido de abertura de instrução, por despacho de 12/1/2017, considerando que “(…) o RAI em causa não enumera, de modo inteligível e autonomizado, os factos concretos e objetivos que considera terem sido praticados pelo denunciado (factos esses nus e crus, reveladores de uma certa realidade), antes inserindo referências factuais (por vezes genéricas), de modo disperso, misturando factos e direito, no âmbito da crítica dirigida ao despacho de arquivamento.

Ou seja, a assistente não elaborou um requerimento de abertura da instrução onde desse cumprimento às imposições legais supra referidas, nomeadamente no sentido de que se possa afirmar estarmos perante uma verdadeira acusação.

Tal circunstância, entendemos, impõe a rejeição do requerimento de abertura de instrução em causa, por legalmente inadmissível (cfr. artigo 287.º, n.º 3, do Código de Processo Penal).”

3 – Deste despacho, recorre a Assistente para este Venerando Tribunal, em tempo e com legitimidade.

O MºPº respondeu, também em tempo e com legitimidade.

O recurso foi admitido com o efeito e modo de subida devidos.

4 – O tema em discussão é, pois, o de saber se o requerimento de abertura de instrução apresentado pela Assistente contém os requisitos mínimos exigidos pela lei – arts. 287.º, com referência ao art. 283.º, ambos do CPP – para ser deferido.

4.1 – A Assistente, em longas e confusas alegações, pugna pela revogação do despacho recorrido, a ser substituído por outro que receba o pedido e determine a abertura da fase de instrução.

4.2 – O MºPº defende o despacho recorrido, nos seus precisos termos, considerando que o requerimento de abertura de instrução não satisfaz os requisitos contidos no art. 287.º, do CPP.

4.3 - Dando aqui por reproduzidas a fundamentação do despacho recorrido e as respostas do MºPº e do denunciado, importa, apenas, sublinhar:

Dispõe o art. 287.º, nº 2, do CPP que o requerimento de abertura de instrução não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos actos de instrução a levar a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos, que através de uns e de outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistentes o disposto nas alíneas b) e c) do n.º 3 do art. 283.º.

O art. 283.º, n.º 3, als. b) e c), determina que a acusação contenha, sob pena de nulidade:

“b) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena, (…) indicando, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada;

c) a indicação das disposições legais aplicáveis;

(…)”

É afinal, a consagração legal da celebre mnemónica alemã dos “5W”, traduzidos para “Quem, fez o quê, quando, como e porquê”.

Maia Costa, em anotação ao art. 287.º, do Código de Processo Penal, Comentado, de António Henriques Gaspar, et alii diz, no ponto 7, que não haverá lugar a convite para aperfeiçoamento do requerimento de abertura de instrução se deste faltar a narração dos factos no requerimento do assistente, para constituir o elemento definidor do âmbito temático da instrução. Nesta situação, o requerimento terá de ser indeferido.

O Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 258/04, citado naquelas referidas anotações, julgou não inconstitucional o art. 287.º, n.º 2, conjugado com o art. 283.º, n.º 3, als. b) e c), ambos do CPP, interpretado no sentido de ser exigível, sob pena de rejeição, que constem expressamente do requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente os elementos mencionados nessas alíneas. No mesmo sentido, o Acórdão do T.C. 636/11, citado nos mesmos comentários.

4.4. Retomando o caso concreto, o requerimento de abertura de instrução “perde-se” em considerações e consequências sociais e familiares da violência doméstica, procurando definir o conceito jurídico e aplica-lo, ainda que genericamente, ao comportamento do arguido, com citação de jurisprudência e doutrina – art. 1º a 51º.

Nos arts. 52.º a 67.º do requerimento a Assistente limita-se a transcrever as mensagens recebidas do arguido – algumas delas eventualmente injuriosas e difamatórias, mas o direito de queixa caducara já á data da apresentação da denúncia – mas sem delas resultarem quaisquer dos elementos típicos, objectivo e subjectivo, do crime de violência doméstica, nem sequer a Assistente a eles se reporta, nomeadamente ao dolo, à ilicitude dos factos, à ofensa ou trauma psicológicos que as mensagens do arguido lhe provocaram, concreta e o mais possível individualizadamente. Isto vale por dizer, como o afirmou o Sr. Juiz de Instrução, o assistente tem de indicar os factos concretos criminosos que considera indiciados, susceptíveis de integrar todos os elementos objectivos e subjectivos de tipo criminal que considere ter o arguido violado

“(…) o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente deve sempre descrever, de modo autónomo, os factos imputados ao arguido, indicando ainda os tipos legais de crime que os mesmos integram (…)” – fls. 659.

Escreve-se no Ac. do STJ, de 7/3/2007, pº 4688/06, 3ª secção que “a estrutura acusatória do processo determina que o “thema” da decisão seja apresentado ao juiz e que a decisão deste se deva situar dentro da formulação que lhe é proposta no requerimento para abertura de instrução (…)

O requerimento para abertura de instrução não está sujeito a formalidades especiais — artigo 287.°, n.° 2, do CPP — mas há-de definir o thema a submeter à comprovação judicial sobre a decisão de acusação ou de não acusação.

O objecto da instrução deve ser suficientemente delimitado, com a indicação («mesmo em súmula≫. diz a lei — artigo 287°, n.° 2, do CPP) das razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação ou arquivamento, bem como a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e outros, se espera provar.

(...) O requerimento para abertura da instrução constitui, pois, o elemento fundamental de definição e determinação do âmbito e dos limites da intervenção do juiz na instrução: investigação autónoma, mas delimitada pelo tema factual que lhe é proposto através do requerimento de abertura da instrução”.

O Ac. do STJ, de 20/4/2017, pº 2263/15.8JAPRT.P1.S1, pronuncia-se sobre a identificação e caracterização dos bens jurídicos protegidos pelo crime de violência doméstica, dizendo que:

“(…)

Generalizadamente, porém, se aponta como carecidas de protecção a saúde e a dignidade da pessoa entendida esta numa dimensão garantística da integridade pessoal contra ofensas à saúde física, psíquica emocional ou moral da vítima embora no estrito âmbito de uma relação de tipo intra-familiar pois é a estrutura “família” que se toma como ponto de referência da normativização acobertada nas alíneas a) a d) do n° 1 do art. 152° o que não significa porém, como também já foi salientado, que seja a “família” a figura central alvo de protecção mas antes essa pessoa que nela se insere, individualmente considerada.

A violência doméstica pressupõe um contacto relacional perdurável no seio dessa estrutura de tipo familiar, com o sedimento tradicional que esta noção inevitavelmente comporta e também, claro está, com a ponderação da realidade sócio-cultural hodierna o que se traduz numa multiplicidade de sujeitos passivos inseridos nesse contacto.

Frise-se que a ideia de perdurabilidade nada tem a ver com uma qualquer exigência de frequência ou repetição dos “actos violentos” para ter como verificado o crime.

Mas a violência doméstica pressupõe também uma contundente transgressão relativamente à esfera de autonomia da vítima sujeita na maioria dos casos, como a experiencia demonstra, a uma situação de submissão à vontade do(a) agressor(a), ≪de alguém de quem possa depender, ao nível mesmo da vontade sobre as dimensões mais elementares da realização pessoal» redundando ≪numa específica agressão marcada por uma situação de domínio (...) geradora de um específico traço de acentuada censura≫ que escapa em geral à razão de ser dos tipos de ofensas à integridade física, coacção, ameaça, injúria, violação, abuso sexual, sequestro, etc.

Serão estes, porventura, os traços que mais vincam a natureza do crime, a sua peculiar estrutura, mais do que a discussão à volta do recorte preciso do bem jurídico protegido.

Assumindo que a violência doméstica é essa agressão levada a cabo de modo variado à autodeterminação da vítima que fica afectada pelos vários comportamentos tipificados não parece intransponível que esse ataque possa ser tido como dirigido à dignidade da pessoa e que seja esse um dos âmbitos de tutela que se visa assegurar.

(…) a violência doméstica pressupõe aquela durabilidade relacional familiar e aquela outra situação de domínio e de constrangimento da livre determinação da vítima, de disposição da sua vida, num sentido mais geral, ou, dito de modo mais expressivo, ≪a eliminação do núcleo fundamental de autonomia da vontade e de disposição livre da mesma pela vítima≫ (…)”.


*

4.5. No requerimento da Assistente para abertura de instrução não constam, pois, os requisitos exigidos pelos art. 287.º, n.ºs 2 e 3 283.º, n.º 3, als. a), b) e c), todos do CPP, para o seu deferimento.

Dele não consta a identificação do arguido, a descrição dos factos, ainda que em súmula, praticados por aquele, o contexto e circunstancialismo social e familiar que possam considerar-se como integrando o crime de violência doméstica, o tipo de dolo.

4.6. Pelo exposto e pelo que mais de afirma no despacho recorrido e nas respostas do MºPº e do arguido, não se mostram reunidos, no requerimento da Assistente, os requisitos exigidos pelos citados arts. 287º e 283º do CPP, que permitam ou imponham o deferimento do requerimento da Assistente para abertura de instrução.

5. Por isso que se emite Parecer no sentido da improcedência do recurso interposto pela Assistente e denunciante BB

Na resposta apresentada a assistente reafirma a assumida posição na motivação de recurso.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

                                          *

O requerimento para a abertura da instrução, o qual constitui o elemento fundamental para a definição e determinação do âmbito e dos limites da intervenção do juiz na instrução, conquanto não esteja submetido a formalidades especiais, a verdade é que está sujeito a determinadas exigências, impondo a lei adjectiva penal no mesmo se indiquem, em síntese, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos actos de instrução que se pretende o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar – artigo 287º, n.º 2, do Código de Processo Penal[2].

Deste modo, constituem elementos essenciais do requerimento para a abertura da instrução a enunciação das razões de facto e de direito da discordância em relação à decisão de acusação ou de arquivamento.

Por outro lado, sendo a instrução requerida pelo assistente, como no caso vertente se verifica, certo é que ao respectivo requerimento, por força da parte final do n.º 2 do artigo citado, é ainda aplicável o disposto no artigo 283º, n.º 2, alíneas b) e c), o que significa que o mesmo terá de conter, sob pena de nulidade:

- Narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada;

- Indicação das disposições legais aplicáveis[3].

Daqui decorre que, enquanto a falta ou omissão das exigências previstas na 1ª parte do n.º 2 do artigo 287º, faz incorrer o requerimento para a abertura da instrução em mera irregularidade (artigo 118º, n.º 2), a falta ou omissão das exigências previstas na 2ª parte daquele dispositivo faz incorrer o requerimento para a abertura da instrução em nulidade (segunda parte do n.º 2 do artigo 287º, alíneas b) e c) do n.º 3 do artigo 283º e 118º, n.º 1).

No caso vertente, sob o entendimento de que o requerimento para abertura da instrução apresentado pela assistente não enumera, de modo inteligível e autonomizado, os factos concretos e objectivos que considera terem sido praticados pelo denunciado (factos esses nus e crus, reveladores de uma certa realidade), antes inserindo referências factuais (por vezes genéricas), de modo disperso, misturando factos e direito, no âmbito da crítica dirigida ao despacho de arquivamento, não dando assim cumprimento às imposições legais, nomeadamente no sentido de que se possa afirmar estarmos perante uma verdadeira acusação, foi aquele requerimento rejeitado, por legalmente inadmissível, nos termos do artigo 287º, n.º 3, do Código de Processo Penal.

 A assistente, como resulta da sua motivação de recurso, ao invés, entende que o seu requerimento para abertura da instrução de forma bastante especificada, formula uma verdadeira acusação dirigida à actuação do arguido, constituído, sindicando, em todas as vertentes a decisão do MP que culminou no arquivamento do processo.

Vejamos se tal se verifica ou não, mais concretamente se o requerimento para a abertura da instrução apresentado pela assistente, conforme impõe a parte final do n.º 2 do artigo 287º, por referência ao artigo 283º, n.º 2, alíneas b) e c), contém:

- Narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada;

- Indicação das disposições legais aplicáveis.

Ora, a verdade é que a assistente, para além de ter enunciado as razões de facto e de direito da sua discordância em relação à decisão do Ministério Público de arquivamento por falta de indícios suficientes, muito embora de forma pouco rigorosa, indicou os factos e o direito de modo a termos por cumprido o ónus imposto na parte final do n.º 2 do artigo 287º.

Vejamos.

No artigo 2º do seu requerimento instrutório a assistente começa por referir a existência de indícios claros de que o comportamento do arguido é susceptível de integrar a autoria do crime de violência doméstica, previsto e punível pelo artigo 152º, do Código Penal, dando conta no artigo 3º de que aquele comportamento teve início após o fim da da relação existente entre ambos, comportamento motivado pela não-aceitação do termo da relação, o qual se materializou pelo envio reiterado, sucessivo, quase sempre durante a madrugada, de mensagens e expressões por correio electrónico e telefone, com o intuito conseguido de a perturbar e atormentar.

No artigo 23º consignou:

«De facto, as situações de violência e ameaça que constam dos autos, tiveram como consequência culminar, quando o arguido resolve, com claro intuito de “castigar” a denunciante pelo facto da mesma ter terminado definitivamente a relação de namoro que mantivera consigo, instigando o irmão da assistente contra ela, desrespeitando falsamente a vontade de dispor em testamento do “ex-sogro” prestando para o efeito um depoimento falso no âmbito do processo n.º 3606/12.1TBBRG, depoimento este que permitiu a anulação do testamento, e que deu origem ao processo 563/14.3TABGR, no qual o denunciado foi já acusado e pronunciado da prática do crime de falsidade de testemunho, encontrando-se a decorrer o julgamento por tais factos».

Acrescentado nos artigos 27º, 28º, 29º, 30º e 32º que o arguido, desprezando a decisão da assistente de terminar definitivamente a relação, levou a cabo a prática de uma série de actos que, pela sua reiteração, e incisão na intimidade da assistente consubstanciam um violência emocional e psicológica; o arguido desprezou, menosprezou, criticou e humilhou a assistente, em privado, por palavras e comportamentos que quis levar a cabo; o arguido procurou mediante os comportamentos que levou a cabo, atemorizar a vítima, persegui-la, acusá-la de ter amantes, de ser infiel, usando a filha em comum como “arma de arremesso” ameaçando maltratá-la no caso de separação, manipulando ainda a filha mais velha da assistente, dizendo-lhe falsamente que a mãe era uma acompanhante de luxo; as últimas estratégias levadas a cabo pelo arguido enquadram-se já nos domínios da ameaça e da intimidação, duas outras formas de violência frequentes que visam impedir a vítima de reagir aos abusos perpetrados pelo companheiro; inclui-se também aqui a utilização dos filhos para a imposição de poder sobre a vítima (e.g., levar os filhos a humilhar a vítima; ameaçar que, em caso de separação, conseguirá afastar as crianças da vítima, ameaçar que se suicida caso a vítima o abandone).

Dando conta das consequências desses actos no artigo 36º nele exarou:

«… foram produzidos danos irreversíveis  com alterações da imagem corporal e disfunções sexuais, além de distúrbios cognitivos e de memória (e.g., pensamentos e memórias intrusivos, dificuldades de concentração, confusão cognitiva, perturbações de pensamento – não é raro a assistente afirmar que “está a enlouquecer”, dado que a sua vida se tornou ingerível e incompreensível), com distúrbios de ansiedade, hipervigilância, medos, fobias, ataques de pânico, vergonha, culpa, níveis reduzidos de autoestima e um autoconceito negativo, vulnerabilidade e dependência emocional»

Situando no tempo e sublinhando alguns factos nos artigos 52º, 55º, 56º, 58º, 59º, 60º, 61º, 62º, 63º, 65º, 66º, 67º, dos quais destacamos:

- Artigo 56º - Mensagem enviada no dia 02.08.2011, às 19:43: «Desculpe incomoda-la D. BB. Mas é que ouvi dizer que se dedica ao fabrico e à comercialização de artigos de ourivesaria, Assim sendo e porque tenciono dar um presente original a uma amiga, pergunto-lhe se me pode fazer um broche?»;

- Artigo 58º - Mensagem enviada no dia 31.07.2011, às 13:17: «Estás muito enganada. Eu não penso que tu és maluca. Eu sei que tu és uma doente mental militante e voluntária. Mas, o teu reinado acabou. Alguém te vai tirar o tapetinho dos pés. No teu caso mentira e crime estão ligados»;

- Artigo 59º - Mensagem enviada no dia 02.08.2011, às 2:18: «vai-te foder, sua filha da puta»;

- Artigo 60º - Mensagem enviada no dia 01.08.2011, às 00:30: «sabes: tenho um grupo de cerca de 50 “amigas” que fodo quanto, como e quando quero. Já viste se o circo acabasse!? Lamento dizer-te que não fazes parte do grupo. Não tens os requisitos mínimos»;

- Artigo 61º - Mensagem enviada no dia 01.08.2011, às 13:23: «Uma coisa é absolutamente certa: mais cedo ou mais tarde, alguém se vai arrepender muito. Dadas as cirucnstâncias esse alguém não sou eu»;

- Artigo 62º - Mensagem enviada no dia 01.08.2011, às 13:50: «Alguém se vai arrepender muito»;

- Artigo 63º - Mensagem enviada no dia 06.07.2011, às 14:35: «Estou a mijar. Isto diz-te alguma coisa? Ou a tua boquinha não pode falar?»;

- Artigo 67º - Mensagem enviada no dia 06.07.2011, às 13:59: «neste momento, só consigo sentir nojo, vergonha de ti. Muita vergonha mesmo. Mas, ATENÇÂO, nada que me surpreenda, nada de novo, o mesmo de sempre… (…) Porca».

Sendo que nos artigos 76º, 77º, 78º, 79º, 80º, 81º e 82º volta a dar conta dos efeitos e consequências do comportamento do arguido sobre a sua pessoa, concretamente dos actos descritos, bem como da intenção prosseguida por aquele, referindo que:

- Artigo 77º: «Em todas as situações atrás descritas, não temos dúvidas que o arguido não aceitou o final da relação, e quis pressionar, atingir, insultar, ameaçar, “encurralar” e fazer temer pela sua integridade física a assistente, sua ex-companheira e mãe dos seus filhos com expressões insultuosas e agressões que lhe dirigiu, bem como provocar-lhe medo, mau estar e insegurança, querendo, com as condutas adoptadas, causar inquietação à requerente, pretendendo que a mesma se sentisse menorizada, humilhada e psicologicamente desgastada, perturbando-a assim de forma reiterada no seu bem-estar e sossego, atingindo-a psíquica e emocionalmente»;

- Artigo 80º: «… as mensagens enviadas pelo arguido lhe provocaram inquietação, temor, humilhação e intimidação, tanto mais que se tratava de um juiz...»;

- Artigo 81º: «… ficou coibida de sair sozinha de casa à noite, só o fazendo quando alguém a ia buscar».

Finalmente, nos artigos 106º, 107º, 108º e 109º faz referência ao elemento de índole subjectiva, tendo consignado:

«Com as condutas supra descritas quis o arguido atingir, insultar e fazer temer pela integridade física a ofendida, sua ex-mulher e mãe da sua filha, com expressões insultuosas e agressões verbais que lhe dirigiu.

Por outro lado, importa referir que com as condutas adotadas, o arguido quis causar inquietação à requerente, pretendendo que a mesma se sentisse menorizada, humilhada e psicologicamente desgastada, perturbando-a assim de forma reiterada no seu bem-estar e sossego, atingindo-a psíquica e emocionalmente, o que conseguiu, bem sabendo que a afectava na sua saúde física e psíquica, querendo ainda atingi-la na sua dignidade enquanto ser humano, o que conseguiu, e por último, na componente patrimonial impedindo-a de receber o quinhão hereditário que lhe coube a mais por testamento do pai, o que também conseguiu ainda que parcialmente.

Acresce ainda que, o arguido agiu livre, bem sabendo que a sua conduta era, como é, proibida por lei.

Pelo que, é manifesto que os factos praticados pelo arguido configuram a prática do crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152 do Código Penal».

Nesta conformidade, uma vez que a assistente deu cumprimento ao ónus imposto na parte final do n.º 2 do artigo 287º, não deve nem pode ser rejeitado como foi, por falta de cumprimento daquele ónus, o requerimento para a abertura da instrução que a mesma apresentou.

                                        *

Certo é que o requerimento para a abertura da instrução apresentado pela assistente foi rejeitado, também, por omitir a identificação do arguido, omissão que efectivamente ocorre.

Sucede, porém, como já se deixou consignado, que só a falta de narração dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido e de indicação das disposições legais aplicáveis constitui motivo de rejeição sem possibilidade de convite ao assistente para aperfeiçoamento do requerimento de abertura de instrução. No caso de falta de identificação do arguido deve pois o assistente ser convidado a completar aquele requerimento.

Aliás, como vem sendo entendido, só a ausência de indicações que conduzam à impossibilidade de identificação do arguido, ou seja, a sua individualização sem quaisquer ambiguidades, integra a nulidade da acusação prevista na alínea a) do n.º 3 do artigo 283º[4], sendo certo que no caso vertente não há qualquer dúvida sobre a individualização do arguido.

                                           *

Termos em que se acorda revogar a decisão impugnada, a qual deverá ser substituída por outra que convide a assistente a indicar a identificação do arguido e, identificado este, declare aberta a instrução.

                                                                        *

Oliveira Mendes (Relator)

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[1] - O texto que a seguir se transcreve, bem como os demais que se irão transcrever, correspondem ipsis verbis ao constante dos autos
[2] - Serão deste diploma todos os demais preceitos a citar sem menção de referência.
[3] - O requerimento do assistente para a abertura da instrução, não sendo uma acusação em sentido processual-formal, no entanto, deve constituir processualmente uma verdadeira acusação em sentido material, que delimite o objecto do processo (da instrução) e, por isso, os termos e os limites dos poderes de conhecimento e de decisão do juiz de instrução – cf. entre outros, os acórdãos do Supremo Tribunal de 02.06.20, 03.09.24 e 05.12.07, proferidos nos Processos n.ºs 4250/01, 2299/03 e 1008/05.
[4] - Cf. Maia Costa, Código de Processo Penal Comentado (2ª edição-2016), 950.