| Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
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| Nº Convencional: | 5.ª SECÇÃO | ||
| Relator: | VASQUES OSÓRIO | ||
| Descritores: | RECURSO DE ACÓRDÃO DA RELAÇÃO HOMICÍDIO QUALIFICADO PROGENITOR OMISSÃO PROFANAÇÃO DE CADÁVER INCONSTITUCIONALIDADE DECISÃO INTERLOCUTÓRIA IRRECORRIBILIDADE REJEIÇÃO PARCIAL EXCESSO DE PRONÚNCIA OMISSÃO DE PRONÚNCIA IMPROCEDÊNCIA VÍCIOS ARTIGO 410.º DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL INSUFICIÊNCIA DA MATÉRIA DE FACTO | ||
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| Data do Acordão: | 07/09/2025 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
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| Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
| Decisão: | PROVIDO | ||
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| Sumário : | I. No actual regime do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça [redacção da Lei nº 94/2021, de 21 de Dezembro, entrada em vigor em 21 de Março de 2022, dada ao art. 432º do C. Processo Penal], os vícios da decisão e as nulidades que não devam considerar-se sanadas, previstos nos nºs 2 e 3 do art. 410º do C. Processo Penal, só podem fundamentar recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, interposto de acórdão da relação proferido em 1ª instância (alínea a) do nº 1 do art. 432º do C. Processo Penal), ou de acórdão, em recurso per saltum, do tribunal de júri ou do tribunal colectivo que tenha aplicado pena de prisão superior a 5 anos (alínea c) do nº 1 do art. 432º do C. Processo Penal). II. Já o mesmo não sucede nos casos subsumíveis à previsão da alínea b) do nº 1 do art. 432º do C. Processo Penal, onde se estabelece a recorribilidade para o Supremo Tribunal de Justiça das decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas relações,, em recurso, nos termos do art. 400º do C. Processo Penal, sem contemplar como fundamento do recurso, os vícios e as nulidades previstas nos nºs 2 e 3 do art. 410º do mesmo código. III. Não obstante, nos casos previstos na alínea b) do nº 1 do art. 432º do C. Processo Penal, pode sempre o Supremo Tribunal de Justiça conhecer oficiosamente dos vícios previstos no nº 2 do art.410º do C. Processo Penal (Acórdão nº 7/95, de 19 de Outubro, DR I-A, de 28 de Dezembro de 1995), quando a sua existência seja impeditiva da prolação da correcta decisão de direito. IV. Verificando-se, in casu, a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, vícios insusceptíveis de sanação pelo Supremo Tribunal de Justiça, impõe-se o reenvio do processo para novo julgamento, relativamente à totalidade do seu objecto, para o Tribunal da Relação de Lisboa, que procederá nos termos previstos no nº 2 do art. 426º do C. Processo Penal | ||
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| Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, na 5ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça I. RELATÓRIO No Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte – Juízo Central Criminal de ... – Juiz ..., o Ministério Público requereu o julgamento em processo comum, com intervenção do tribunal colectivo, da arguida AA, com os demais sinais nos autos, imputando-lhe a prática, em autoria material e concurso efectivo, de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos arts. 131º e 132º, nºs 1 e 2, a), c), d) e j), ambos do C. Penal, e de um crime de profanação de cadáver, p. e p. pelo art. 254º, nº 1, a), do mesmo código. * * Na audiência de julgamento de 21 de Junho de 2024, na sequência de requerimento do Ilustre Mandatário da arguida solicitando o prazo de 10 dias para se pronunciar sobre o relatório psiquiátrico junto na mesma data, a Mma. Juíza presidente proferiu o seguinte despacho: (…), caso nada seja requerido pela defesa entretanto, para continuação da audiência de julgamento, designa-se o dia 1 de Julho de 2024, pelas 11h30, para alegações finais. Por requerimento de 28 de Junho de 2024, veio a arguida invocar a nulidade ou irregularidade do despacho de 21 de Junho, uma vez que o mesmo não respeitou prazo de 10 dias para se pronunciar sobre o relatório psiquiátrico, acrescendo que foi notificada de um outro relatório, agora de psicologia, em 24 de Junho, para cuja análise deveria também ter o prazo de 10 dias, pelo que foi violado o princípio do contraditório, devendo, em consequência, ser dada sem efeito a data para a continuação da audiência de julgamento. Por despacho de 28 de Junho de 2024 a Mma. Juíza presidente, julgou improcedente a invocada nulidade/irregularidade e manteve a data designada para a continuação da audiência de julgamento. Inconformada com a decisão, a arguida recorreu para o Tribunal da Relação de Lisboa. * Por acórdão de 12 de Julho de 2024, foi a arguida condenada, pela prática de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos arts. 131º e 132º, nºs 1 e 2, a), c) e j), ambos do C. Penal e pela prática do imputado crime de profanação de cadáver, nas penas de 12 anos de prisão e de 7 meses de prisão, respectivamente e, em cúmulo, na pena única de 12 anos e 3 meses de prisão. Inconformada com a decisão, a arguida recorreu para o Tribunal da Relação de Lisboa. * O Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão de 19 de Dezembro de 2024 [com declaração de voto e voto de vencida], decidiu como segue, na parte em que agora releva: “(…). Pelo exposto, acordam em negar provimento aos recursos, interlocutório e principal, confirmando o despacho e o acórdão recorridos. (…)”. * * De novo inconformada, recorre a arguida para o Supremo Tribunal de Justiça, formulando no termo da motivação as seguintes conclusões: A) Constitui objecto do presente recurso o douto Acórdão indicado no intróito, por via do qual o Tribunal da Relação de Lisboa confirmou o Acórdão proferido pelo Tribunal Colectivo que determinou: 1.1 Condenar, em concurso real e efectivo, a arguida AA pela prática, em autoria material, de um crime de homicídio qualificado, na forma consumada, previsto e punido, conjugadamente, pelos arts.º 131.º, 132.º, n.º 1 e n.º 2, alíneas a), c) e j), ambos do Código Penal, na pessoa da vítima BB, na pena de 12 (doze) anos de prisão; 1.2 Condenar, em concurso real e efectivo, a arguida AA pela prática, em autoria material, de um crime de profanação de cadáver, na forma consumada, previsto e punido, conjugadamente, pelos arts.º 254, n.º 1, alínea a), do Código Penal, na pessoa da vítima BB, na pena de 7 (sete) meses de prisão; 1.3 Condenar, a arguida AA, em cúmulo jurídico dos crimes referidos em 1.1 e 1.2, na pena única, de 12 (doze) anos e 3 (três) meses de prisão; 1.4 Condenar a arguida AA no pagamento das custas do processo e nos demais encargos, nos termos legalmente determinados, fixando-se a taxa de justiça em 4 (quatro) UC, (cfr. arts.º 513.º e 514.º, ambos do Código de Processo Penal e art.º 8.º, do Regulamento das Custas Processuais); 1.5 Determinar, ao abrigo do disposto no n.º 2 do art.º 8.º da Lei n.º 5/2008, de 12 de Fevereiro, a recolha de amostra de vestígios biológicos destinados a análise de ADN à arguida AA, com os propósitos referidos no n.º 3 do art.º 18.º, do mesmo diploma legal. B) A recorrente havia interposto recurso intercalar de um despacho interlocutório, que havia negado, à recorrente, o direito ao contraditório face a prova pericial, despacho esse cuja validade a Relação confirmou, mediante fundamentação que é, com todo o respeito, violadora da Constituição da República. C) Com efeito, e numa tentativa de estabelecer o iter processual em questão: D) Na audiência de julgamento em primeira instância, de 21.06.2024, a recorrente foi notificada de um segmento de um segmento de um dos relatórios periciais, a saber, um expediente composto por 10 páginas, sendo a 1.ª, o corpo do email remetido no dia 21.06.2024 pelo Gabinete Médico Legal e Forense da Grande Lisboa (...), tendo como remetente o endereço ...; da 2.ª à 8.ª, inclusive, o “relatório de perícia psiquiátrica forense – perícia médico-legal e forense (art. 159.º n.º 2 do CPP”, referente ao “processo n.º 2024/....85, relatório n.º 2024/017485.R... Data do exame 19/06/2024”, que, a final (pág. 7.º do mesmo relatório) surge assinado pela Sra. Dra. CC (assinatura digital), em ..., no dia 21 de Junho de 2024”; as 9.ª e 10.ª páginas correspondem ao original e ao duplicado da factura n.º ......75, no valor de 2 UC’s, também datados de 21.06.2024 E) O prazo de 10 dias visava, obviamente, o exercício do direito de requerer ao Tribunal que determinasse a prestação, por parte dos peritos, de esclarecimentos complementares, ou a renovação da perícia por diferentes peritos, ou a realização de nova perícia (cfr. art. 158.º/1-a) e b) CPP). F) A primeira instância encurtou o prazo de 10 dias, determinando que o prazo terminaria a 01.07.2024, com o que a recorrente se conformou; G) Mas, a 24.06.2024, a recorrente foi notificada (via Citius) de outro relatório pericial, que desconhecia até então, e face ao qual não abdicou do prazo para se pronunciar (notificação feita pelo ofício com a referência n.º .......23, datado de 19.06.2024); H) Em 27.06.2024 – dentro do prazo de arguição da irregularidade (que se iniciou com a notificação ocorrida em 24.06.2024, dos dois relatórios periciais) – a recorrente veio a argui-la efectivamente, através do requerimento com a referência ......30; pediu a anulação do referido despacho e a remarcação da audiência de julgamento, para alegações orais, para data ulterior ao cabal exercício do contraditório (também face ao expediente notificado em 24.06.2024), tendo, ademais, salientado que o direito ao contraditório flui do art. 32.º/5 da CRP, tendo tal sido indeferido; I) Foi interposto recurso intercalar, no qual foi invocada a inconstitucionalidade da decisão – mormente, na aplicação do art. 105.º/1 CPP, no que tange ao encurtamento do prazo, aplicado, neste caso, a um relatório pericial que a recorrente desconhecia até 24.06.2024! J) As razões que presidem, em certos casos, ao encurtamento do prazo para o contraditório – mormente a iminência do fim do prazo máximo de prisão preventiva (ou de OPHVE, neste caso) – não se verificavam no caso sub iudice, porquanto a recorrente encontrava-se sujeita a tal medida de coacção desde 17.05.2023, sendo o prazo máximo de prisão preventiva, neste caso, de 18 meses (cfr. despacho de 05.05.2023, o processo foi classificado de criminalidade especialmente violenta; o crime imputado tem como limite máximo os 25 anos de prisão; decorre do art. 215.º/1-c) e 2 CPP, que o prazo máximo da prisão preventiva seja de 18 meses); e, à data (28.06.2024) a medida de coacção, durava há 1 ano, 1 mês e 11 dias!!! K) A restrição do contraditório da recorrente não teve qualquer justificação, nem se destinou a salvaguardar um interesse ou direito superior, como o exige o Ac. deste Supremo Tribunal datado de 25.10.2018 (proc. n.º 78/16.5PWLSB-A.S1). L) É inconstitucional a interpretação do art. 105.º/1 do CPP que determine uma redução do prazo para o contraditório, sem que se justifique tal – designadamente, sem que se justifique tal redução por não se encontrar próximo, ou iminente, o termo da prisão preventiva – por violação do art. 36.º/5 da Constituição. M) A alegação de tal inconstitucionalidade foi realizada na motivação de recurso perante a Relação (motivação n.º 54, e conclusão ZZ), não tendo a Relação omitido pronúncia face a tal alegação, qualquer juízo de constitucionalidade sobre a interpretação normativa dada pela instância inferior. N) O que faz do Ac. da Relação, ora sob recurso, nulo, nos termos do art. 379.º/1-c) CPP. O) Ademais, a Relação considerou suficiente a matéria de facto dada como provada, quando, em bom rigor, nenhuma actuação é imputada à recorrente, no que tange a conduta típica conducente ao resultado “morte”; P) Com efeito, a causa da morte da vítima foi a falta de cuidados neonatais, que se impunham. Q) Trata-se da utilização, em sede factual, de conceitos indeterminados e genéricos, que a lei não admite (porquanto o art. 374.º/2 CPP exige a enumeração de factos provados e não provados). R) “Falta de cuidados neonatais” não é nenhum facto, mas sim uma expressão vaga e indeterminada. S) Saliente-se que a causa da morte da vítima não foi asfixia, porquanto a mesma, quando foi colocada no saco era já cadáver (já não respirava –facto provado 4.23da matéria assente). T) Assim, dúvidas não restam que a conduta de colocação da vítima no saco não foi causadora da morte da vítima, tendo as instâncias dado como provado um conceito de facto genérico e indeterminado, não associado a qualquer verbo de acção da recorrente. U) A lei proíbe a utilização de conceitos indeterminados, vagos e imprecisos, na enunciação da matéria de facto, V) Veio, contudo o Acórdão sob recurso, da Relação, explicar que cuidados são esses: “desde logo, têm que ser entendidos como os cuidados necessários à sobrevivência de um recém-nascido, como agasalhá-lo, limpá-lo, alimentá-lo e providenciar para que seja visto de imediato por um médico”. W) Ora, não é admissível à Relação fazer aquilo que a primeira instância não fez – a factualização da suposta conduta típica da recorrente, causadora do resultado previsto no tipo de ilícito (a morte). X) O Ac. da primeira instância é nulo (art. 374.º/2 e 379.º/1-a CPP), sendo igualmente nulo (por excesso de pronúncia – art. 349.º/1-c CPP) o Ac. da Relação, que factualizou – em recurso interposto pela arguida – aquilo que a primeira instância não fez! Se não apurados os factos em primeira instância (quando era imperativo que o fosse!), não pode a Relação fazê-lo! Y) Não há conduta típica imputada à arguida, suficiente para motivar a condenação da mesma. Z) Nulidade que desde já se invoca, para todos os efeitos legais, AA) Pelo que deve ser anulado o Acórdão da Relação, com a anulação, igual, do Acórdão da primeira instância, e julgar-se insuficientes os factos dados como provados, para a condenação, com a absolvição da recorrente face ao crime de homicídio qualificado. BB) Foi dada como provada, no Douto Acórdão proferido em 1.ª instância, toda a factualidade descrita no Relatório Pericial Médico-Legal de Psicologia Forense feito à Arguida. CC) Não obstante, em nada foi tida em conta pelo Douto Tribunal de 1.ª Instância, nem pelo Douto Tribunal da Relação de Lisboa (com excepção da Veneranda Juíza Desembargadora, Dra. DD, cujo voto resultou vencido. DD) O Douto Acórdão recorrido fundamentou a sua decisão totalmente à margem do resultado da perícia médico-legal e forense (que descreve detalhadamente as características psicológicas e de personalidade da Arguida), do qual não discordou, optando por ignorá-lo e alicerçar a sua convicção em diversos construtos da sua lavra, com base nas regras da experiência comum. EE) Ora, o descaso das Instâncias anteriores face ao teor do Relatório Pericial em apreço equivale a uma real discordância do mesmo. FF) Nenhuma das Doutas Instâncias anteriores se socorreu dos argumentos constantes do Relatório Pericial porquanto a análise do mesmo determinaria inevitavelmente a escolha de um iter processual e substantivo bem distinto daquele que foi seguido a final, pelo que, ao ignorar o seu conteúdo, que reduziram a praticamente “nada”, dele não retirando as devidas e imprescindíveis consequências jurídicas que se lhes impunham. GG) Assim, dele se distanciaram sem o sindicar abertamente, bem sabendo que, para o fazerem, estavam obrigadas ao cumprimento do dever de fundamentação, como exigido pelo art.º 163.º do C.P.P. já que a prova pericial representa um desvio ao princípio da livre apreciação da prova no âmbito do processo penal (art.º 127.º do C.P.P.) HH) Determina expressamente o art.º 163.º do mesmo Código que o juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial se presume subtraído à livre apreciação do julgador, o qual deve fundamentar a sua divergência sempre que a sua convicção divergir do juízo contido no parecer dos peritos. II) A prova pericial é de apreciação vinculada, porquanto está em causa a percepção ou a apreciação de factos que exigem especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos (cf. art.º 151.º do C.P.P.). JJ) Por conseguinte, o juízo técnico da prova pericial está subtraído à livre convicção do julgador já que este não se encontra dotado de conhecimentos técnicos iguais aos dos peritos, não podendo desconsiderar, sem mais, o resultado obtido pela perícia (vide art.º 163.º do C.P.P.). KK) O Douto Acórdão proferido em 1.ª Instância jamais mencionou o ponto 7 do Relatório Pericial em análise, onde foi consignada uma resposta expressa aos Quesitos por si colocados: LL) “7. Resposta a Quesitos MM) Respondendo de forma específica aos quesitos colocados por este tribunal: NN) “Exame psiquiátrico e Psicológico à arguida, tendente à verificação, na mesma de patologia do foro psíquico, compatível com a perda de consciência da realidade, e de estado dissociativo da realidade.” (sublinhado nosso). OO) Sendo valor da prova pericial acrescido relativamente a quaisquer outros meios de prova, bem sabia o julgador que dele só poderia divergir fundamentando a sua discordância, cf. determina o art.º 163.º, n.º 2 do C.P.P., o que só seria possível através de outro meio de prova idêntico (jamais por depoimentos testemunhais, pelas declarações da arguida e muito menos pelas regras da experiência comum). PP) A descrição do relatório pericial quanto à personalidade e ao estado psicológico da Arguida resultou do conhecimento especializado da Senhora Perita, especialista nas matérias em causa, sendo que não foi apresentado ao Douto Tribunal a quo qualquer elemento de prova que lhe permitisse divergir do juízo pericial. QQ) Acresce que, ainda que os sujeitos processuais circunscrevam o objecto do recurso à matéria de direito, nada impede V. Exas. de verificar se a prova produzida foi apreciada e valorada à luz dos cânones da ciência ou das legis artis da técnica utilizada no caso concreto. RR) Resulta do exposto que não é possível decidir correctamente a questão de direito sub iudice uma vez que a matéria de facto provada é manifestamente insuficiente para tanto, além de existir erro notório de apreciação da prova produzida face ao teor da Perícia Médico-Legal de Psicologia Forense. SS) Quanto aos elementos subjectivos do tipo, pertencendo o dolo ao mundo interior do agente, ou é revelado pelo arguido, sob a forma de confissão, ou tem de ser extraído dos factos objectivos. TT) No que respeita à falta de consciência da gravidez e ao estado dissociativo da realidade, pese embora o Douto Tribunal tenha dado como provado o teor dos relatórios periciais de psicologia e psiquiatria forense, optou por ignorar o transtornado quadro mental da arguida, concluindo que a mesma estava perfeitamente ciente do que se estava a passar e capaz de se autodeterminar. UU) Ao invés, impunha-se apreciar a conduta da Arguida tendo em conta a factualidade dada como provada quanto ao seu estado físico e anímico à data dos factos conjugada com o seu quadro psicológico e traços de personalidade, o que nunca sucedeu in casu, designadamente equacionando a possibilidade de a mesma se encontrar de tal forma perturbada que agiu de forma totalmente errática e irracional, VV) E jamais com premeditação e especial censurabilidade, sendo que em momento algum delineou um plano para matar a sua filha recém-nascida e de ocultar o seu cadáver. WW) À luz do vertido no Relatório Pericial e, até, das próprias regras da experiência comum, a simples conjectura de que a arguida teria um plano para se desfazer de um bebé em casa carece de lógica, sendo que todas as evidências apontam no sentido da impossibilidade de qualquer premeditação. XX) A vasta factualidade consignada no Relatório Pericial, considerada provada, impunha a sua análise minuciosa e a obtenção de múltiplos esclarecimentos complementares do mesmo, através da colocação de novas perguntas à Senhora Dra. EE, Psicóloga Forense. YY) Fixou-se o Douto Tribunal recorrido na apreciação da questão da imputabilidade da arguida, nada mais extraindo do Relatório Pericial de Psicologia Forense com relevância para a boa decisão da causa e para a descoberta da verdade material (mormente compreender a contribuição do estado psicológico e psíquico da arguida para o desenrolar dos fatídicos acontecimentos do dia 01.03.2023). ZZ) A resposta pericial dada aos quesitos colocados pelo Douto Tribunal (“Exame psiquiátrico e Psicológico à arguida, tendente à verificação, na mesma de patologia do foro psíquico, compatível com a perda de consciência da realidade, e de estado dissociativo da realidade.”) cumpria às Instâncias a verificação da existência de algum fenómeno de natureza psíquica capaz de afectar o comportamento da arguida e o seu estado de consciência no momento da verificação dos factos, AAA) Impondo-se-lhe alicerçar a sua convicção na opinião qualificada dos peritos por não se encontrar dotado dos conhecimentos científicos necessários à compreensão da condição física, psíquica e anímica da arguida à data de 01.03.2023. BBB) Ainda que tais esclarecimentos não fossem reputados necessários, o que não se concebe, nem concede, mas equaciona por dever de cautela de patrocínio, tal circunstância impunha, a fortiori, a prolação de uma decisão diversa daquela que veio a ser proferida porquanto as regras da experiência comum não se podem sobrepor ao conhecimento científico, sob pena de violação do disposto no art.º 163.º do Código de Processo Penal, o que sucedeu in casu, embora de uma forma não explícita. CCC) Não obstante, o Douto Tribunal a quo sustentou várias das suas convicções acerca de matérias de carácter científico em regras da experiência comum, não retirando da prova pericial as conclusões que se lhe impunham, assim desrespeitando a presunção plasmada no art.º 163.º, n.º 1 do C.P.P., segundo a qual só se poderia distanciar-se do Relatório Pericial dele discordando fundadamente (assim ilidindo a invocada presunção). DDD) O Douto Tribunal recorrido incorreu em erro notório de apreciação da prova, no que tange aos elementos periciais, o que sempre determinaria, no mínimo, o reconhecimento da existência de falta de consciência da realidade por parte da arguida e, consequentemente, a ausência de dolo na alegada comissão dos factos. EEE) Resulta provado no relatório pericial que a arguida sofre de diversos transtornos de personalidade graves, que tornaram o seu funcionamento mental frágil, vulnerável e profundamente perturbado, ao ponto de fazer com que a mesma não estivesse dotada de mecanismos que lhe possibilitassem lidar com a realidade como uma pessoa mentalmente saudável. FFF) Fazendo tábua rasa de toda a factualidade dada como provada no aludido relatório pericial, o Douto Tribunal recorrido, entendendo ser a mesma imputável, apreciou os factos como se a mesma fosse mentalmente saudável (foi-lhe diagnosticada uma depressão grave, com ideação suicida, ansiedade, traços de esquizofrenia, compulsivos, dependentes, autodestrutivos, evitantes, desajustamento psicoafectivo, baixa auto-estima, sentimentos de inferioridade, dismorfia corporal, desrealização – sendo mencionada, inclusive, a ocorrência de episódios de abusos sexuais na infância, seguramente traumáticos, circunstâncias jamais valoradas pelo Douto Tribunal recorrido). GGG) Cumpria ao Douto Tribunal recorrido questionar se, à luz dos transtornos mentais de que a arguida já padecia à data dos factos, esta teria capacidade mental e emocional para gerir a situação com que se deparou, particularmente se o quadro psíquico da mesma era ou não compatível com a frieza de ânimo e calculismo que a elaboração de um plano nos termos descritos no Douto Acórdão recorrido acarretaria, HHH) E se tal capacidade mental e emocional da arguida, à data de ....03.2024, seria igualmente suficiente para esta prestar algum tipo de “cuidados neonatais”, alegadamente impostos por um normativo, à vítima. III) O estado físico da recorrente no momento da ocorrência dos factos era, in casu, indissociável do seu estado psicológico, transtornado, factores estes que a impediram de prestar cuidados neonatais à vítima. JJJ) Não procurou o Douto Tribunal recorrido apreciar da falta de capacidade mental e emocional da arguida para gerir a situação, como lhe competia. KKK) Impunha-se, se não mesmo equacionar a hipótese de a arguida ser inimputável, apreciar, no mínimo, a possibilidade de existir uma causa momentânea de inexigibilidade (ou total impossibilidade) de realização de qualquer conduta, positiva ou negativa, tendente ao salvamento da vítima – se não um estado de inimputabilidade, pelo menos, uma situação de exclusão de juízo de censura sobre a sua conduta (uma causa de exclusão da culpa) – ou de enquadrar a sua conduta noutro tipo de ilícito criminal, designadamente o infanticídio ou o homicídio simples. LLL) Diante da factualidade provada através do Relatório Pericial, era imprescindível apurar a verdade em matérias às quais só a ciência poderia responder, não tendo sido esse o iter percorrido pelo Douto Tribunal recorrido. MMM) Sem jamais prescindir, sempre se dirá que (em consonância com a posição sustentada pelo Douto voto vencido – posição da Veneranda Sra. Desembargadora DD), pese embora resulte da perícia psiquiátrica que a arguida é imputável, tal em nada colide com a possibilidade de degradar a qualificação dos factos sub iudice para infanticídio, p.p. no art. 136.º do C.P., ou, caso assim se não entendesse, para homicídio simples, p.p. no art. 131.º C.P., ambos com estrutura dolosa e, consequentemente, culposa. NNN) Atenta a resposta dada pelo Relatório Pericial ao quesitado pelo Douto Tribunal de 1.ª Instância (“Exame psiquiátrico e Psicológico à arguida, tendente à verificação, na mesma de patologia do foro psíquico, compatível com a perda de consciência da realidade, e de estado dissociativo da realidade.”), cumpre salientar que os factos, introduzidos pela prova pericial, ainda que meramente instrumentais, podem ser imprescindíveis na resolução do caso em apreciação. OOO) Determina o art.º 160.º, n.º 1 do C.P.P. que, para efeito de avaliação da personalidade e da perigosidade do arguido, pode haver lugar a perícia sobre as suas características psíquicas independentes de causas patológicas, bem como sobre o seu grau de socialização, perícia essa que pode ser relevante para a decisão da culpa do agente e para a determinação da sanção. PPP) A perícia sobre a personalidade distingue-se da perícia psiquiátrica, que visa exclusivamente a determinação da inimputabilidade ou grau de imputabilidade do arguido. QQQ) Sobre a prova pericial de psicologia, não obstante o seu conteúdo ter sido integralmente dado como provado, referiu a 1.ª Instância, na sua motivação, que «Todavia, a dinâmica dos acontecimentos referida pela arguida em audiência corresponde à dinâmica relatada aquando da realização do relatório pericial de psicologia… Tal permite concluir pela sua consciência, discernimento e livre auto- determinação, aliás como ressalta dos relatórios periciais junto aos autos (cfr. fls. 835 a fls. 845 (perícia psicológica) e de fls. 849 a fls. 852 (perícia psiquiátrica), que, em momento algum falam daquilo a que a defesa da arguida gosta de chamar de “estado dissociativo da realidade” e que não encontra qualquer elemento de sustentação ao longo de todo o processo». RRR) Asserção esta de que se retira a conclusão de que ocorreu um erro notório na apreciação feita sobre a factualidade provada constante do Relatório Pericial, o qual lhe impunha o dever de pedir esclarecimentos e de equacionar um enquadramento jurídico-penal distinto para o caso vertente (infanticídio, ou homicídio simples). SSS) O Douto Tribunal recorrido não podia deixar de valorar um relatório pericial para alicerçar a sua convicção, ademais corroborado pelos depoimentos da Senhora Psicóloga e da Senhora Médica Psiquiatra que prestaram, sobretudo por se encontrar em causa a presunção decorrente do citado art.º 163.º do C.P.P., por força do qual existe um dever acrescido de fundamentação quando o Tribunal opta por afastar a presunção decorrente do seu n.º 1. TTT) Sem prescindir, admitindo cautelarmente que a arguida era imputável, era imperativo que as instâncias conciliassem a prova pericial psicológica com o juízo de especial censurabilidade. UUU) Independentemente da questão da eventual imputabilidade da arguida, assim como da sua gravidez e da eventualidade de a mesma saber ou não que esta existia, sustentou o Douto Tribunal recorrido que a Arguida agiu com especial censurabilidade para a obtenção do resultado morte da sua filha recém-nascida, conceito de que se socorreu para formular o juízo de censura acrescido que motivou a sua decisão no sentido da qualificação do crime de homicídio, VVV) Assim afastando in limine as hipóteses de ser imputado à arguida o crime de infanticídio ou de homicídio simples, cuja apreciação ficou totalmente prejudicada pela desvalorização do Relatório Pericial de Psicologia Forense. WWW) “(…) o Juiz, antes de concluir pela especial censurabilidade ou perversidade do agente, tem que verificar se não existem circunstâncias especiais no facto ou na pessoa do agente que possam atenuar substancialmente o conteúdo da ilicitude ou da culpa do facto (…) a revogação desse efeito terá de basear-se numa acentuada diminuição da ilicitude, designadamente em consequência de uma diminuição do desvalor da conduta como, principalmente na diminuição do desvalor da atitude (…)”, tal como sustenta Teresa Serra in “Homicídio qualificado, Tipo de Culpa e Medida Pena”, Almedina, Coimbra 1992. XXX) A presença de sintomatologia depressiva severa e de longa duração, já existente na Arguida à data da prática dos factos (sublinhado nosso), tal como descrita no Relatório Pericial, sempre afastaria, ab initio, qualquer especial censurabilidade ou perversidade da arguida relativamente ao desvalor da atitude. YYY) Procurou o Douto Tribunal da Relação de Lisboa desvalorizar tal sintomatologia por não ter sido apelidada de “depressão major” e por entender ser algo comum a muitos cidadãos, fazendo tábua rasa de todo o teor do relatório pericial dado como provado, segundo o qual os seus sintomas depressivos se encontram associados a desânimo, pessimismo, sentimentos de fracasso, punição, ódio de si mesma, motivação de cariz suicida, distorções da imagem corporal, problemas de sono, traços de personalidade Evitantes, Esquizoides, Compulsivos, Dependentes, e Autodestrutivos, que originam uma dinâmica emocional, promotora de desajustamento psicoafectivo, baixa autoestima, sentimentos de inferioridade, que se acentua em situações indutoras de stress e desafio, nomeadamente, aquando da emergência do medo de rejeição percebido, perante a qual, esta não evidência recursos de enfrentamento adequados e eficazes, originando um estado de desorientação, e incapacidade para enfrentar as exigências com que se deparam, ZZZ) A que acresce uma maior vulnerabilidade, pela conjuntura sequencial de acontecimentos indutores de stress, vivenciados pela Arguida, durante o período da adolescência, nomeadamente, uma primeira gravidez aos 16 anos de idade, num contexto de namoro da adolescência, o falecimento do seu progenitor [durante a pandemia de Covid-19], bem como a prestação de cuidados ao filho menor, dificuldades relacionais com a progenitora, “tinha mais atrito” (…) “mais espalhafatosa e rígida” (…) “a minha mãe dizia constantemente que aquilo era um peso para ela, que estar a cuidar de todos era um peso, que já não aguentava mais” (sic.), AAAA) A factualidade provada só poderia conduzir à inimputabilidade ou a um distinto enquadramento jurídico penal dos factos, no sentido da degradação da qualificação do crime para o infanticídio, p.p. no art. 136.º do C.P., ou, caso assim se não entendesse, para o homicídio simples, p.p. no art. 131.º C.P. BBBB) À luz do relatório pericial não pode existir especial censurabilidade ou perversidade da Arguida. CCCC) Atenta a prova pericial e o facto de o óbito da recém-nascida ter ocorrido logo após o parto, impunha-se ao Douto Tribunal recorrido equacionar a hipótese da ocorrência de um crime de infanticídio (art. 135.º CP), para o que deveria ter solicitado todos os esclarecimentos pertinentes a partir da perícia realizada, (nem que mais não fosse para a descartar), o que optou por não fazer. DDDD) Como consta do Douto voto vencido, “Na fundamentação da subsunção jurídico-penal, o tribunal recorrido omite qualquer menção ao crime base, p. e p. pelo artº 131º e ao crime de infanticídio p. e p. pelo artigo 136.º, ambos do Código Penal, muito embora decorra da matéria de facto elementos que poderiam afastar a especial censurabilidade e a verificação de um dos elementos do último tipo legal de crime, que se consubstancia na ação típica de matar ter ocorrido logo após o parto. Tendo em vista que a discussão da causa «tem por objecto os factos alegados pela acusação e pela defesa e os que resultarem da prova produzida em audiência, bem como todas as soluções jurídicas pertinentes, independentemente da qualificação jurídica dos factos resultante da acusação ou da pronúncia» (artigo 339.º, n.º4, do C.P.P.), seria de esperar que o tribunal recorrido tivesse equacionado, ainda que fosse para a afastar, a pertinência dos tipos legais referidos, designadamente o de infanticídio, atenta a prova pericial psicológica e a ocorrência da morte da recém nascida logo após o parto. Tanto mais que a arguida, na sua contestação, colocou essa questão, ainda que de forma tecnicamente pouco apurada, que «entrou em pânico», o que melhor se esclarece quando a mesma arguida, juntamente com a contestação, requereu a realização de um exame pericial. Acresce que na motivação o tribunal a quo refere que as declarações da arguida estão em sintonia com as prestadas aquando da elaboração da perícia. Por outras palavras: a arguida, ainda que com alguma imperfeição técnica, invocou, em sua defesa, a perda de consciência da realidade, e de estado dissociativo da realidade desnorte, cansaço, falta de forças, desespero, medo, exaustão e pânico, são as sensações e sentimentos que a arguida, nesses momentos, experienciou. Tudo isto ocorreu num estado totalmente anormal, de pânico, medo e confusão, quando a arguida estava totalmente desnorteada, com a “cabeça a andar à roda”, só vendo sangue e vísceras à sua volta. O tribunal a quo tendo por base a perícia, deveria ter apreciado a questão, como referimos, nem que fosse para a afastar quanto à matéria da influência perturbadora do parto no momento da ação típica. Nos termos do artigo 136.º, do Código Penal, «A mãe que matar o filho durante ou logo após o parto e estando ainda sob a sua influência perturbadora, é punida com pena de prisão de 1 a 5 anos». EEEE) «No direito português a infracção é beneficiada pela lei sob a condição de concorrência de duas ordens de circunstâncias, a saber: - uma de carácter temporal – o momento da acção (conduta que teve lugar durante ou logo após o parto); - outra de tipo pessoal – o condicionamento da acção (conduta que teve lugar sob a influência perturbadora do estado puerperal da mãe). A primeira condição exige que o crime tenha sido consumado durante ou logo após o parto, abrangendo, portanto, a criança que é morta enquanto decorre o parto (nascente) e a que é morta logo que acaba de nascer (neonata). E quando é que se deve considerar que se entrou no período logo após o parto? Parece que esse momento surge, antes mais, quando se derem por determinados os respectivos trabalhos, ou seja, a partir do momento imediatamente a seguir à expulsão da placenta e ao corte do cordão umbilical. Para os fins da lei, contudo, cuida-se ser de alargar esse momento, de forma a abranger também todo o período que se segue, variável e indeterminado, coberto pelo impacto puerperal. É que, enquanto a parturiente não haja ingressado no estado de acalmia e sossego que se segue ao trabalho de parto, não se pode assegurar que a mesma esteja já senhora de si própria e capaz de responder pelo seu instinto maternal, portanto de colocar barreiras a ímpetos incontrolados da expulsão fetal.(…) A outra circunstância de que depende a aplicação da censura indulgente prevista no artigo é o condicionalismo puerperal, perturbador da conduta da mãe. O estado puerperal é o estado psicossomático inerente à mulher, imediatamente antes, durante e logo após o parto, susceptível de alterar a capacidade de entendimento ou de auto-inibição, sendo que o tipo não demanda qualquer inimputabilidade. Pois bem: estando preenchido o primeiro requisito do crime de infanticídio – o crime foi consumado durante ou logo após o parto – não podia o tribunal recorrido deixar de ponderar o segundo, ou seja, pronunciar-se sobre se a conduta teve ou não lugar sob a influência perturbadora do estado puerperal da mãe.» - vide comentário ao art.º 136.º do Código Penal, in Código Penal Anotado de Leal Henriques e Simas Santos, (ed. 3.ª, 2000, 2º Volume, pág. 173). FFFF) Esta tese consta da defesa da Arguida, na sua alegação de recurso perante a Relação, encontrando eco no Relatório Pericial de Psicologia Forense. GGGG) O Acórdão proferido em 1.ª instância nada refere quanto à possibilidade da verificação do crime de infanticídio, porque nem sequer a considerou, sendo que é sua obrigação apurar todos os factos pertinentes para a descoberta da verdade material e para a boa decisão da causa, cfr. art. 339.º, n.º 4 CPP, o que não se verificou no caso presente. HHHH) O referido Acórdão, ao arrepio do relatório pericial, considerou existir especial censurabilidade da conduta da Arguida à qual atribuiu frieza de ânimo e premeditação, sem sequer ponderar outros cenários, mormente a hipótese de o seu comportamento derivar da influência perturbadora do parto. IIII) Já o Douto Tribunal da Relação sustentou que que a conduta da recorrente não configurava a prática de um crime de infanticídio, limitando-se a referir que, no caso vertente, pese embora a morte da vítima tenha ocorrido logo após o parto, nada nos autos revelou que a recorrente tenha agido sob a influência perturbadora do parto, com o que também ignorou in totum o teor do Relatório Pericial. JJJJ) O Douto Acórdão não fez qualquer distinção entre o acto de ocultação da gravidez e o acto de matar um recém-nascido de forma premeditada e com frieza de ânimo, hipóteses que não se podem confundir e não são indissociáveis. KKKK) Constam do Relatório Pericial múltiplos factores psicológicos que, devidamente esclarecidos ou complementados, permitem compreender uma eventual decisão de ocultar uma gravidez sem intenção de matar a recém-nascida (desde a depressão severa, ao medo da rejeição, à baixa autoestima, à dismorfia corporal, etc, etc…), LLLL) Como existem ainda diversos factores do foro mental que podem ter contribuído para a verificação, in casu, da influência perturbadora do parto, que em nada se pode excluir por ter ocorrido uma hipotética ocultação de gravidez. MMMM) O mero facto de se ocultar uma gravidez não permite concluir a existência de uma intenção de matar uma recém-nascida de forma premeditada e com frieza de ânimo (especial censurabilidade), distinção esta que cabia ao Douto Tribunal recorrido fazer. NNNN) Segundo o Acórdão da Relação de Lisboa, proferido no âmbito do Proc. nº 288/89.1 GBMJ.l15 de 29/03/2011, in www.dgsi.pt, “(…) o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada ocorre quando, da factualidade vertida na decisão em recurso, se colhe que faltam elementos que, podendo e devendo ser indagados, são necessários para se poder formular um juízo seguro de condenação ou de absolvição e decorre da circunstância do tribunal não ter dado como provados ou não provados todos os factos que, sendo relevantes para a decisão da causa, tenham sido alegados ou resultado da discussão; daí que aquela alínea se refira à insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito e não à insuficiência da prova para a matéria de facto provada, questão do âmbito do princípio da livre apreciação da prova (art. 127.º), que é insindicável em reexame da matéria de direito. (…)”. OOOO) De acordo com o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 26.02.2009, proferido no âmbito do Proc. n.º 08P3547, in www.dgsi.pt, em que foi apreciada a questão de, apesar de a defesa ter alegado a existência de crime de infanticídio, as instâncias nada terem indagado a tal respeito, “(…) E com a omissão de tal investigação, ficou criada uma situação de insuficiência da matéria de facto provada para a decisão, o que constitui o vício da al. a) do nº 1 do art. 410º do Código de Processo Penal.” PPPP) O mesmo Douto Tribunal proferiu, no âmbito do Proc. 1932/06-3, um Acórdão, datado de 19.07.2006, no qual consignou que “o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada resulta da circunstância de o tribunal não ter esgotado os seus poderes de indagação relativamente ao apuramento da matéria de facto essencial, ou seja, quando o tribunal, podendo e devendo investigar certos factos, omite esse seu dever, conduzindo a que, no limite, se não possa formular um juízo seguro de condenação ou de absolvição. Trata-se, pois, de um vício que resulta do incumprimento por parte do tribunal do dever que sobre si impende de produção de todos os meios de prova cujo conhecimento se lhe afigure necessário à descoberta da verdade e à boa decisão da causa – art. 340º nº 1 do CPP”. (…) Ora, não pode deixar de ser tido em consideração que, a morte da recém-nascida ocorrera de imediato após o parto, pelo menos com a colaboração passiva da mãe, sabendo-se também, desde o início, que a arguida negara a sua evidente gravidez até ao último momento. (…)” QQQQ) Já o Acórdão da Relação de Lisboa, proferido no âmbito do Proc. n.º 288/89.1 GBMJ.l15 de 29.03.2011, considerou que “Sem embargo de se reconhecer que o tempo, entretanto decorrido poder causar dificuldades insuperáveis numa avaliação pericial destinada a determinar se a arguida agiu, ou não agiu, num estado de perturbação pós-parto. De todo o modo, se o tribunal não conseguir obter certezas susceptíveis de considerar verificada, ou de afastar com segurança, àquela influência perturbadora, restar-lhe-á fazer uso do princípio in dubio pro reo nos termos indicados por Figueiredo Dias (ibidem, p. 103): “o que no caso significa que, verificado que a conduta teve lugar logo após o parto, se o juiz, depois de produzida toda a prova possível, ficar em dúvida insanável sobre se a mãe actuou sob a influência perturbadora daquele, ele deve considerar verificada a tipicidade do art. 136°”. RRRR) Neste entendimento, caso o Douto Tribunal não tivesse logrado alcançar certezas susceptíveis de permitir considerar verificada, ou não, a existência da influência perturbadora do parto, deveria recorrer ao princípio in dubio pro reo; caso tal dúvida fosse ultrapassada, deveria punir a arguida pelo crime de homicídio simples, cf. art.º 131° do C.P., afastando a especial censurabilidade. SSSS) Seja na tese da inimputabilidade, do infanticídio ou do homicídio simples, é inequívoco que a divergência não fundamentada da convicção do julgador relativamente ao juízo científico constante do parecer da perita do I.N.M.L. consubstancia um erro notório de julgamento na apreciação da prova assim como uma insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (vide art.º 163.º do C.P.P.). TTTT) Estes vícios têm como consequência a anulação da decisão recorrida e o reenvio do processo para novo julgamento, nos termos conjugados dos art.ºs 410.º, n.º 2, als. a) e c) e 426.º, ambos do C.P.P.. UUUU) Determina o n.º 2 do art.º 426.º do C.P.P. que o reenvio do processo para novo julgamento decretado pelo Supremo Tribunal de Justiça, no âmbito de recurso interposto, em 2.ª instância, de acórdão da Relação é feito para este tribunal, que admite a renovação da prova ou reenvia o processo para novo julgamento em 1.ª instância, o que aqui se peticiona para os devidos e legais efeitos. VVVV) Seja por via da renovação da prova, seja por intermédio do reenvio do processo para novo julgamento na 1.ª Instância, cumpre ao Douto Tribunal valorar adequadamente o Relatório Pericial e proceder à produção de toda a prova pertinente, solicitando esclarecimentos à Sra. Perita ou o fornecimento de novas informações que complementem o Relatório de Perícia Médico-Legal, de modo a aquilatar se existe inimputabilidade da Arguida (por via da sua falta de consciência da gravidez e estado dissociativo da realidade), ou de lhe ser imputada a prática de um crime de infanticídio, p.e p. pelo art.º 136.º do C.P., ou de um crime de homicídio na sua forma simples, p. e p. pelo art.º 131.º do mesmo Código. WWWW) O douto Acórdão recorrido, ao não ter reenviado os autos para a primeira instância, violou os art. 163.º/1 e 2 do CPP (por não ter ilidido a presunção dos juízos técnicos dos relatórios periciais); 127.º CPP (porque a livre apreciação da prova, no contexto pericial, tem a limitação do art. 163.º do CPP); 151.º CPP; 410.º/2, a e c) (porque a Relação não considerou existir erro notório na apreciação da prova, nem insuficiência, para a decisão, da matéria de facto dada como provada); 426.º/1 CPP , e os art. 135.º, 131.º e 132.º/2 b) e c) do Cod. Penal. Sem conceder, XXXX) Ainda que se admita que a “falta de cuidados neonatais” é um facto suspectível de ser imputado à recorrente, o certo é que, in casu, o preenchimento do tipo de ilícito terá, nesse caso, ocorrido por omissão, e não já por acção. YYYY) O que significa que exigia-se ao tribunal a quo, e à Relação, a obrigatória ponderação sobre a aplicação de uma atenuação especial da pena, ex vi do art. 10.º/3 CP. ZZZZ) Ou seja, dando de barato que a enunciação da “falta de cuidados neonatais” como conduta da recorrente, causadora da morte da vítima, cumpre os requisitos impostos por lei à sentença condenatória (exigidos pelo art. 374.º/2 CPP), fica então certo que o preenchimento do tipo ocorreu por omissão e não por acção. AAAAA) Nunca a primeira instância se debruçou sobre tal questão, embora se trate de uma solução jurídica pertinente, porquanto a mesma pode determinar uma atenuação especial da pena (art. 73.º/1 a e b CP). BBBBB) O Ac. recorrido, contudo, debruça-se sobre a questão, mas sem daí retirar as consequências, designadamente, sem se debruçar sobre a potencial aplicação de uma atenuação especial da pena ex vi do art. 10.º/3 e 73.º/1 CP, normas que foram violadas pelo douto Ac. recorrido, que, como tal, devem ser anulado e substituído por outro, que pondere a aplicação da referida atenuação especial da pena. CCCCC) Ainda que assim se não entenda, e caso (o que não se concebe) venha a ser mantida a condenação, a recorrente apela a V. Exas. para a redução da mesma, o mais próximo possível do seu limite mínimo; DDDDD) Com efeito, recorrente foi mãe pela primeira vez aos 16 anos; tem, ainda que com a ajuda de sua mãe, criado o primeiro filho, FF; tem auxiliado também a mãe na educação e criação do seu irmão, GG; vive com a mãe e os dois filhos em morada própria; perdeu o pai com 16 anos de idade – na drástica pandemia que assolou o nosso País, e não só, tendo temperado o seu dia-a-dia com o auxílio possível à sua mãe – mãe essa que é o único membro do agregado familiar que sustenta 3 dependentes, 2 deles dependentes (o irmão e filho da arguida, sendo dependente, ainda); esteve sempre socialmente integrada, sendo um membro activo da comunidade da Paróquia da sua residência; não tem antecedentes criminais de espécie alguma e teve percurso escolar sempre bem sucedido, encontrando-se, à data presente, a estudar Cardiopneumologia. Só assim se fazendo a TÃO COSTUMADA JUSTIÇA! * O recurso foi admitido por despacho de 28 de Janeiro de 2025. * Respondeu ao recurso a Exma. Procuradora-Geral Adjunta junto do Tribunal da Relação de Lisboa, formulando no termo da contramotivação as seguintes conclusões: Questão prévia: 1. As conclusões que integram o recurso apresentado pela arguida são prolixas , extensas e pouco precisas, não cumprindo assim o desiderato previsto no artigo 412º n.º 1 do Código de Processo Penal, devendo em consequência a recorrente ser convidada a apresentar novas conclusões nos termos e com a cominação prevista no artigo 414 n.º 2 do CPP. Arguição de nulidade do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa nos termos previstos noartigo379n.º1 al.c) do CPP em virtude de este não o se ter pronunciado sobre a questão da inconstitucionalidade suscitada pela recorrente, no recurso efectuado da decisão de primeira instância. 2. O Tribunal da Relação conheceu da questão colocada no recurso interlocutório, a saber, o alegado encurtamento do prazo para o exercício do contraditório em virtude de ter “sido designada data para alegações orais antes de decorrida a totalidade do prazo processual peremptório para a arguida se pronunciar sobre o relatório pericial notificado em audiência” e decidiu-a no sentido da não verificação de violação do princípio do contraditório. 3. Uma vez que a inconstitucionalidade invocada se identificava com a violação aquele princípio, e concluindo o tribunal pela não verificação, por maioria de razão, não trouxe a colação a violação daquele princípio Constitucional. 4. Não incorreu o Tribunal da Relação no vicio de omissão de pronúncia previsto no artigo 379 n.º 1 al.c) do CPP invocado pelo recorrente, na medida em que o Tribunal da Relação conheceu e decidiu acerca da questão colocada pelo Recorrente, a de saber, se o despacho sobre recurso havia violado o principio do contraditório, processualmente e constitucionalmente consagrado, por encurtamento do prazo para o exercício daquele, nos termos previstos no artigo 105 n.º 1 do CPP. Invoca o recorrente a verificação de da nulidade do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, por excesso de pronúncia nos termos previstos no artigo 349.º n.º1, al.c) do CPP na medida em que propugna que o tribunal da Relação factualizou a conduta típica da recorrente, causadora do resultado previsto morte, a saber , “a falta de cuidados neonatais”. 5. A expressão “cuidados neonatais” faz parte do saber colectivo de uma sociedade, trata-se de um conceito cultural que integra um conjunto basilar de comportamentos indispensáveis à sobrevivência da criança nos primeiros momentos de vida. 6. O tribunal da Relação de Lisboa, conheceu da questão colocada pelo recorrente [da nulidade do acórdão de 1ª instância por falta de fundamentação] e, na apreciação que efectuou da mesma, concretizou o seu pensamento, explicitando o conteúdo da expressão “cuidados neonatais”, de modo a, por referência ao conteúdo da sentença de primeira instância, demonstrar que os comportamentos que integram estes cuidados estavam devidamente concretizado na sentença e nela eram referenciados. 7. O acórdão da primeira instância concretiza na fundamentação de facto um conjunto de comportamentos que integram a ausência deste cuidado. 8. O acórdão do tribunal da Relação de Lisboa, referenciou os comportamentos por acção e omissão tidos ela arguida e explicitou de que modo estes foram atribuídos à arguida enquanto causa do efeito morte. 9. Ocorre o vício de excesso de pronúncia previsto no artigo 379 n.º 1 al.c. do CPP quando o tribunal conheça de questões de que não podia tomar conhecimento. 10. Não se verifica o alegado vício, porquanto o Tribunal não extravasou o conteúdo material de que podia e devia tomar conhecimento. Da não ponderação quer pelo Tribunal de 1º instância, quer pelo Tribunal da Relação do teor do relatório pericial médico-legal de psicologia forense da arguida e dos vícios daqui decorrentes. 11. Do teor do relatório pericial psicológico, o que se constata é a persistência durante o período de gravidez e por maioria de razão no momento do parto e imediatamente após, de sintomatologia depressiva severa com uma multitude de expressões, aliada a traços de personalidade evitantes, esquizoides, compulsivos, dependentes e autodestrutivos. 12. Tentar perceber, esclarecer, aprofundar, o estado psicológico da arguida no período da gravidez, parto e imediato pós-parto, é o nó górdio, que há-de enquadrar o juízo de culpa, elemento diferenciador dos tipos penais dos artigos 131º, 132 º e 136º do Código Penal. 13. Será o conhecimento e valoração da realidade intra-psíquica da arguida, que nos abrirá ao conhecimento do seu processo volitivo e que permitirá, de uma forma justa, a avaliação da sua acção, máxime a valoração tipificadora penal. 14. O relatório de perícia psiquiátrica forense é inequívoco relativamente à imputabilidade da arguida. 15. A questão coloca-se, então, ao nível do juízo de culpa, elemento diferenciador dos tipos penais dos artigos 131º, 132 º e 136º do Código Penal. 16. O teor do relatório pericial de psicologia, é inequívoco quanto à verificação à arguida de estado depressivo severo de longa duração, bem como de traços de personalidade evitantes, esquizoides, compulsivos, dependentes e autodestrutivos. 17. Só a constatação da gravidade destes traços psicológicos, deveria ter levado o tribunal a questionar e tentar perceber, através de uma mais aprofundada explicação do teor do relatório pericial, qual o peso relativo dos traços de personalidade identificados na arguida para a leitura da realidade de vida em aquela se inseria, e consequente tomada de decisão; qual o peso relativo da sintomatologia depressiva severa identificada para a leitura da realidade vivencial da arguida e consequente tomada de decisão – durante o período de gravidez, no momento do parto e no momento imediato que se lhe seguiu. 18. Se os traços de personalidade identificados são consequência da sintomatologia depressiva severa de longa duração; ou dela dissociados, se lhe são preexistentes; em que medida ambas as realidades se influenciam, e condicionam; 19. Partindo do principio de que o juízo técnico, científico, inerente à prova pericial se presume subtraído à livre apreciação do julgador, conforme decorre do disposto no art.º 163 n.º 1 do CPP, considerando que, caso o julgador dele pretenda divergir deve fundamentar aquela divergência (n.º 2 do artigo citado) o que não aconteceu no caso em apreço, então 20. a conclusão a que chega o acórdão do Tribunal da Relação, ponderando o teor do relatório de perícia psicológica, que a arguida tinha perfeita noção e consciência do seu estado de gravidez, e das responsabilidades dele decorrentes, bem como que intencionalmente tinha ocultado o estado de gravidez, fazendo assim inferir que não planeava manter a criança, tendo concluído pela não verificação de erro de julgamento, está em desacordo com as conclusões do relatório pericial de psicologia e não pode harmoniosamente com as mesmas conviver. 21. O tribunal incorre em erro de julgamento na medida em que diverge, na decisão, do conteúdo do relatório pericial, afirmado o seu contrário, sem que fundamente tal divergência, o que determina a ocorrência de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, nos termos conjugados dos artigos 163 e 410 n.º 2 al. a) do CPP, 22. Ocorre erro notório na apreciação da prova , na medida em que o tribunal considera o conteúdo do relatório pericial de psicologia , mas extrai do seu conteúdo, conclusões que não estão suportadas no mesmo e que o contradizem, nos termos previstos no art.º 410 n.º 2 al. c) do CPP 23. Ademais o tribunal fica aquém das questões de que deveria tomar conhecimento, concretamente, deveria ter aprofundado o juízo de culpa da arguida, afim de considerar os tipos simples, privilegiado e agravado do tipo de homicídio , a isso impunha o conteúdo do relatório pericial psicológico, incorrendo assim no vicio previsto no artigo 379 n.º 1 al.c) do CPP. Vossas Excelências, decidirão. * * Na vista a que se refere o art. 416º, nº 1 do C. Processo Penal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto junto deste Supremo Tribunal emitiu parecer, acompanhando a argumentação do Ministério Pública na resposta ao recurso, realçando a verificação dos vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e de erro notório na apreciação da prova, que afectam o acórdão recorrido, matéria que é de conhecimento oficioso e cuja existência impede a correcta decisão de direito, pelo que se compreende nos poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça, e concluiu pelo provimento do recurso. Foi cumprido o art. 417º, nº 2 do C. Processo Penal. * * Colhidos os vistos, foram os autos presentes à conferência. Cumpre decidir. * * * * II. FUNDAMENTAÇÃO A) Factos provados A matéria de facto provada proveniente da 1ª instância é a seguinte: “(…). [Da acusação:] 1.1 A arguida AA (nascida em ...-...-2004) e HH (nascido em ...-...-2004) mantiveram um relacionamento amoroso durante cerca de um ano, entre Setembro de 2019 a sensivelmente Setembro de 2020. 1.2 Da referida relação nasceu o filho de ambos, FF em ...-...-2021. 1.3 AA apenas deu a conhecer à sua mãe, II e ao HH que estava grávida do FF já na fase final da gravidez, no 7º ou 8º mês da mesma. 1.4 Apesar de terem terminado a relação, AA e HH mantiveram contactos frequentes por causa do menor FF e por vezes tinham relações sexuais. 1.5 Assim que se apercebeu que estava novamente grávida, em data não concretamente apurada, a arguida AA passou a ocultar a gravidez. 1.6 Em consonância com tal resolução, nunca se dirigiu a um médico ginecologista ou obstetra, durante toda a gravidez. 1.7 Nem nunca comprou quaisquer artigos próprios para o seu estado de gravidez, para si ou para o bebé, esforçando-se aliás, durante os meses de gravidez para que a mesma não fosse visível ou perceptível a terceiros, nomeadamente à sua própria mãe. 1.8 O que efectivamente conseguiu, inventando desculpas e afazeres vários para nunca realizar qualquer teste de gravidez. 1.9 Logrou, desse modo, dissimular a gravidez, durante todo o respectivo tempo. 1.10 No dia ... de Fevereiro de 2023 a arguida começou a sentir dores e durante o dia ... de Março de 2023, ficou na sua casa, sita na Rua .... 1.11 No dia ... de Março de 2023, em hora não concretamente apurada, mas antes das 17h00m, a arguida entrou em trabalho de parto. 1.12 Dirigiu-se para a casa-de-banho, pariu na sanita uma criança do sexo feminino, com o peso de 3600 gramas e 51 cm de comprimento. 1.13 Imediatamente após o nascimento, a arguida, puxou com a mão o cordão umbilical que a unia à recém-nascida. 1.14 De seguida, colocou a bebé num saco de plástico, fechado e colocou-o, dissimulado com uma toalha, num canto do seu quarto, assim ocultando a recém-nascida. 1.15 Contudo, porque mantinha fortes hemorragias, e já aquando da chegada da mãe II a casa, entre as 17h00m e as 18h00m, foram accionados os meios de socorro que prestaram à arguida a assistência de emergência que a mesma necessitava, na mesma divisão – o quarto – onde num canto, estava depositada a recém-nascida, e apesar de questionada, a arguida negou sempre ter tido um parto, assim assegurando que nenhuma ajuda ou socorro eram prestados à sua filha. 1.16 A arguida foi transportada para o Hospital ... onde foi admitida, pelas 18h45m, apresentando situação clínica “sugestiva de expulsão de feto compatível com o 2º ou 3º trimestre de gestação”. 1.17 Depois de devidamente assistida e a sua situação clínica ter sido estabilizada, foi a arguida confrontada com as evidências da sua situação clínica e só então, nesse momento, admitiu ter dado à luz um bebé. 1.18 Pelas 21h45m, do mesmo dia ....03.2023, a Polícia encontrou no quarto da AA, num dos cantos, dentro de um saco de plástico, dissimulado numa toalha, o cadáver da recém-nascida. 1.19 A criança que a arguida AA deu à luz, encontrava-se em termo de gestação, com ausência de malformações internas ou externas. 1.20 Nasceu com vida, tendo tido respiração extra-uterina. 1.21 A sua morte ficou a dever-se “à falta de cuidados neonatais, que se impunham”, que a arguida não prestou e impediu que lhe fossem prestados. 1.22 Entre o momento em que pariu, não concretamente apurado, mas certamente entre as 17h00m e as 21h45m a arguida ocultou o nascimento da sua filha e a presença da mesma no local onde a mesma foi encontrada. 1.23 Sabendo que a sua filha nascera com vida, sabia a arguida que ao colocá-la num saco de plástico, da forma como colocou sem qualquer condição para sobreviver, sabendo que a mesma necessitava dos mais básicos e naturais cuidados neonatais, por isso assim agindo também sabia que lhe provocaria a morte, o que quis que sucedesse. 1.24 Nessa conduta agiu a arguida de forma deliberada, livre e consciente, bem sabendo que a mesma era proibida e criminalmente punível. 1.25 A arguida AA, ao esconder a recém-nascida, num interior do saco de plástico, fez com que a mesma não fosse encontrada, agindo igualmente de forma deliberada, livre e consciente, bem sabendo que não estava autorizada a tal procedimento e que essa conduta era proibida e criminalmente punível. 1.26 A arguida agiu de forma livre, deliberada e consciente, sabia que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei, e tinha a liberdade necessária para se determinar de acordo com essa mesma avaliação. * 2. Do relatório da perícia médico-legal de psicologia forense apurou-se de relevante que: Apresenta ao longo da entrevista, uma atitude cordial e colaborante com a realização das tarefas proposta, com humor predominantemente depressivo, pautado por choro fácil, sendo os afetos sintónicos e coerentes com a temática abordada. Não se identificam alterações ao nível da consciência, ou de orientação em relação a si próprio (autopsíquica), no espaço e no tempo (alopsíquica), ou perturbação ao nível da memória, pensamento, atenção ou linguagem, denotando capacidade de reter, fixar e evocar as suas experiências, com raciocínio coerente e juízo crítico mantido. (…) Tendo a gravidez do filho FF, nascido aos 16 anos de idade, “a mãe sempre me ajudou, mas os primeiros 6 meses foi inteiramente com o FF, depois consegui prosseguir com os estudos” (sic.) Na atualidade, relata diagnóstico de depressão pós-parto, proveniente da gravidez do FF, não apurada à data, mas identificada aquando das factualidades. Contextualiza, “o FF nasceu em Abril, após o falecimento do pai em Fevereiro, a Psiquiatra, está mais inclinada para uma depressão pós-parto, pois tudo se agravou após o parto do FF, que foi difícil” (sic.) Sendo acompanhada à data em Psiquiatria, e medicada com Zolofot@ 100 mg e Triticum Ac, em articulação com acompanhamento em Psicologia, em regime semanal, desde .../03/2023. Destacando quanto à condição de saúde atual “é uma das piores alturas da minha vida, agora sinto-me melhor comigo própria, a Psicóloga tem-me ajudado a arrumar as coisas nas gavetas” (sic.). Referindo Insónia intermédia “desde que o filho é pequeno, acordava 3 vezes por noite, tinha sono superficial, parece que nunca dormia, por isso andava sempre um bocado sonâmbula” (…) “ao início custava mais, tomar banho, lavar os dentes, sentia que era sempre a mesma coisa, achava que não valia a pena, quando menos tivesse que fazer melhor ”sic.) (…) Quanto à perceção de si “não sei, sou uma pessoa preocupada com a minha família, com o meu filho, e o meu núcleo de amigos mais próximos, sempre tive um sentimento maternal, com o meu irmão, vê-lo crescer com o meu filho” (sic.) Destaca como melhores qualidades “ sou atenta, e principalmente, uma pessoa, preocupada com as outras pessoas, empática”(…) “sou melhor ouvinte do que faladora, antes da psicóloga, não falava de mim com ninguém, não falava com ninguém, e agora já consigo ter a desenvoltura” (sic.), e como áreas a melhorar “principalmente confiar nas outras pessoas, tenho dificuldade em confiar, e muitas vezes a culpa é minha”(sic.) 4.2. Relato dos factos segundo a examinanda AA, descreve o enquadramento pericial “isto aconteceu principalmente, tive o parto em casa, e infelizmente houve a morte da bebé, com todos os contornos gerou-se o processo” (sic.) Quando solicitada a descrever melhor, “não sei por onde hei-de começar isto, já contei isto tantas vezes, custa sempre estar a voltar atrás, as mesmas coisas (há perda de controlo com choro sintónico, precisando de alguns minutos para se restabelecer). Verbaliza “não é uma coisa que se habitue, não fica mais fácil” (sic.) Acerca das factualidades contantes no processo, afirma “naquele dia, ....03.2023, pronto naquele dia, eu estava em casa, estava de férias da faculdade, tinha acabado os exames, o primeiro semestre” (…) “estava em casa, naqueles dias, estava-me a sentir cansada, dores de cabeça, tínhamos estado todos doentes, nesse dia preparei o meu filho para ir para a escola, até foi a minha mãe que o levou” (sic.) Relata “estava no banho, comecei a ter muitas dores, sai do banho, comecei a sangrar, entrei em pânico, fui para a sanita, tinha vontade de fazer cocó” (sic.) Denota, “nasceu o bebé, o pior é quando nasceu, peguei no bebé, não chorava, nem nada, entrei em pânico, tinha muitas dores” (sic.) Consubstancia “depois por mais que tivesse a bebé ao meu colo, não ouvia nada, não ouvia a chorar, nem nada, pensava no FF, não teve nada a ver com isso” (…) “nessa situação só conseguia chorar, mas ao mesmo tempo estava com dores, paralisada, não sabia o que havia de fazer, reparei que a casa de banho estava cheia de sangue, não sabia do telefone, não sabia de nada, queria ligar à minha mãe, desmaiei, depois desmaiei outra vez” (sic.) Questionada, refere “pus a no chão, depois ao mesmo tempo há uma parte, que não consigo recordar, foi tudo muito rápido, e muito lento” (sic.) Enquadra “desmaiei, no hall de entrada, e o pé da casa de banho, depois lembro que a minha mãe estava ao meu lado, a falar com os bombeiros, não sei o que lhe disse” (sic.). Questionada “senti que tinha sido uma coisa, tão surreal, parecia que tinha sido um pesadelo, não sei” (…) “depois no hospital disse à médica, comecei a perceber, o que estava a acontecer à minha volta, e comecei a juntar dois mais dois, já não sentia dores, não estava no meu corpo, parecia que não estava ali, era muita confusão, muitas luzes, o aparato” (sic.) Assevera “depois passado um bocado, numa zona mais calma, é que eu falei à Médica, e com a Polícia, e depois foram a casa buscar a bebé, de depois fiquei no hospital vários dias” (sic.) Solicitada descreve, “pediram várias vezes para contar uma história, parecia, que estava a contar literalmente uma história, não parecia real, não parecia que tinha acontecido comigo, parecia um pesadelo, e ao mesmo tempo parecia que não tinha acontecido comigo nada daquilo, parecia um pesadelo, não percebia o que se estava a passar ali, juro, eu pensava que só estava tudo bem, depois as pessoas falavam comigo, e eu só chorava, eu pensava que a bebé tinha nascido sem vida, que eu ia morrer no hospital” (sic.) Afirma “depois só conseguia pensar, chorar, pensava neles, não sabia o que se passava com o meu filho, estava preocupada com eles, nunca tinha estado longe do meu filho, só me preocupava sem eles, porque pensava que eu não ia sair dali” (…) “foi muito assustador, não sei explicar” (sic.) Sequencia “depois passado um tempo com a Psicóloga, é que comecei a fazer a história na minha cabeça, comecei a unir as peças” (sic.) Prossegue “depois não conseguia entrar em casa, tinha medo de ir lá para cima, ficamos na casa do namorado da minha mãe, não conseguia subir lá acima, ficava no andar de baixo, só chorava e não conseguia subir” (…) “depois passado um mês com esta medida, não conseguia estar ali, a casa ficou com um certo peso” (…) “ao inicio parece que estava tipo, eu continuei a perder sangue, parecei que estava constantemente com sangue nas mãos, com sangue em todo o lado, não conseguia lidar com nada” (sic.) Menciona “agora após esta acusação, apesar de não ter pensamentos maus, não me recordo de ter pensamentos maus, nada fazia sentido, mas não passa” (…) “parece que custou-me muito ler a acusação, há lá coisas, que não fazem sentido nenhum, relataram-me numa perspetiva Psicopata, e custou-me ler aquilo (sic.) Quanto ao seu sentir “sinto-me triste, não sei sinto, penso que podia fazer tudo diferente, por outro lado, não sei o que podia ter feito diferente, custa-me muito voltar lá atrás, custa-me muito este conjunto de tudo” (sic.) Questionada quanto à sua perceção dos factos “não sei, acho que foi um conjunto de coisas más, o facto de eu não saber que estava grávida, não me fez sequer sentido, faz-me sentido porque fui eu que vivi, mas se alguém me contasse eu também não acreditava” (…) “eu sentia-me pesada, cansada, eu pensando pelas coisas, era-me impossível, ver o que estava à minha volta, não tinha conseguido lidar se soubesse, estava tão mal com tudo” (sic.) Denota “hoje em dia fazia tudo e mais alguma coisa para não ter acontecido as coisas dessa maneira” (…) “sinto que estava sozinha nessa altura, não tinha nada, nem sequer conseguia olhar para mim própria” (sic.) Solicitada a explicar melhor “sentia-me incapaz, sentia que não conseguia cuidar sequer do FF, sentia que qualquer passo em falso, não havia apoio de ninguém” (…) “o pai do FF, não era grande ajuda, a minha mãe dizia constantemente que aquilo era um peso para ela, que estar a cuidar de todos era um peso, que já não aguentava mais” (sic.) Enquadra o contexto do falecimento do progenitor “nós não chegamos sequer a ver o meu pai doente, ele saiu de casa bem, achávamos que ele ia voltar, a minha mãe chegou a visitar uma vez, quando já estava em coma” (sic.), situando o falecimento do pai, em fevereiro de 2021, e o nascimento do filho FF em abril de 2021” (sic.) Questionada quanto à segunda gravidez, “era do pai do FF, já não namorávamos, tentamos reatar, achei que era o melhor que podia fazer, para o bem do FF, estava com ele para ser meu namorado, e não pai do FF, era eu que fazia tudo, não sei” (sic.) Consubstanciando “para mim, não vi nenhum sinal óbvio, tudo pareciam sinais, banais, nunca mais tive o período depois de ter o FF, amamentei até aos 15 meses” (sic.) Inquirida, refere “cheguei a pensar que estava grávida, mas já não estava com o HH há tanto tempo, as poucas vezes que pensei nisso, descartei, descartei completamente, a ideia, sentia que era impossível, estar a passar por aquilo tudo outra vez, não fazia sentido” (…) “não era não querer, era achar impossível” (sic.) Acrescenta “tinha-me acontecido um acidente de ter o FF, aquilo não podia acontecer mais, a ninguém” (sic.) Questionada a explicar melhor os pensamentos que descartou “não era algo, era uma ideia, passou pela cabeça uma vez ou outra, tão rápido ía, como vinha, não era uma coisa que me sentisse a pensar sobre ela, isso é impossível, já não consigo lidar com nada, como era possível, estava mesmo mal, dores de cabeça, cansaço” (…) “não sabia que estava grávida, não fazia sentido” (sic.) 4.3. Situação Atual e Expectativas de Futuro A arguida, reside com a mãe, o irmão, mais novo GG (10 anos), e o filho proveniente do relacionamento com o ex-namorado HH (19 anos), FF (3 anos). Este mantem na atualidade contacto com o pai, vigorando um acordo judicial de responsabilidades parentais, que, no entanto, é gerido de forma flexível. Pagando o pai, de pensão de alimentos do FF, cerca de 100€/mensais. Referindo não existir à data relacionamento amoroso, apenas cordial, motivado pelo entendimento parental. Descreve “sou eu que trato tudo do dia-a-dia, estou em casa, fazer comida, a gestão da casa, fazer as camas, ajudo com o GG e a mãe com a FF” (…) “preparo pequeno-almoço, o vestir, preparar, o GG já é mais independente, já faz algumas coisas sozinho” (sic.) Consubstanciando “sempre ajudei a mãe com o meu irmão, e ela sempre me ajudou a mim com o FF, fomos coordenando e ajudando uma à outra” (sic.) Descrevendo um ambiente familiar pautado por um “relacionamento com a mãe muito melhor, não temos tanto aquela relação de ser alguém superior, tentamos ajudar-nos mutuamente” (…) “damos-nos bem, melhor que antes, andávamos sempre nas rotinas e quase não nos falávamos, era uma relação um bocado distante, falamos mais sobre as coisas tentarmos entender melhor uma a outra” (sic.) Ressalva a existência de rede social de apoio, estando o menor integrado em ama, o que lhe permitiu frequentar o ensino superior. Quanto às expectativas de futuro “gostava de acabar o curso, acompanhar a vida do meu filho, do meu irmão, da minha família, desenvolver e acabar os projetos que agora estão em suspenso” (sic.) Não frequenta na atualidade, a escola, esta suspensa, devido ao processo, terminei o ano passado, não me inscrevi, achei que era algo relativamente rápida” (…) “eu sinceramente acho que está encaminhado para ser justo, compreenderam que eu não tive maldade em nada, não espero uma grande pena como foi falado ao início” (…) “tenho esperança, sinto que vai correr bem, acho eu” (sic.) 4.4. Conjugalidade e Parentalidade: De acordo com a arguida, conheceu a progenitor do menor, HH (19 anos), em contexto escolar “ele era colega de escola, namorámos há cerca de um ano e tal, antes do FF nascer” (sic.) Quanto à evolução relacional “mantivemos o relacionamento durante a gravidez do FF, mas tivemos um bocado afastados, antes do FF nascer” (sic.) Quanto à parentalidade, nomeadamente a gravidez do filho FF, que denota como não planeada, “foi praticamente sozinha” (sic.) Denota quanto ao parto do filho mais velho “pronto estava no hospital, era tudo muito controlado” (sic.), tendo o nascimento ocorrido pouco tempo após saber da gravidez, “as pessoas estavam a assimilar, os avós só souberam, pouco tempo antes de ele nascer” (…) “o meu pai soube que estava grávida antes de ir para o hospital, mas não conseguia falar, não falamos muito em profundo” (sic.) Acrescenta “por outro lado, eu tinha a perceção que o meu pai, tinha chegado a conhecer o FF, que era real, tinha uma imagem na cabeça, de ir buscar o GG à escola, e o FF estava lá, e o meu pai estava lá na rampa, da escola, era uma imagem muito visual de o meu pai estar lá, depois com a Psicóloga, é que comecei a perceber que a imagem não era verdadeira” (…) “as coisas aconteceram muito em cima umas das outras, senão fossem as datas, era uma memória como outra qualquer” (sic.) Acerca da gravidez do FF “quando comecei a ser acompanhada, era sentir que estava tudo bem, fiz as ecografias, e os exames” (sic.) Situa, o início do acompanhamento, “tinha 7 meses de gravidez, soube quando tinha 5/6 meses, depois faleceu o meu pai, e depois começamos a fazer exames, após o falecimento do meu pai” (sic.) Questionada “eu na altura pensava que estava grávida de 2 meses, e quando íamos fazer as primeiras ecografias é que começamos, e começamos a fazer exames, e que percebi que estava grávida à imenso tempo, nasceu um mês e meio depois” (sic.) Quanto aos sinais/sintomas presentes na primeira gravidez “o que me fez desconfiar, foi a ausência de período” (sic.) Descrever a dinâmica afetiva, aquando da gravidez, “no início achava que tinha sido azar, depois comecei a ganhar afeto, relação com o bebé, como não era planeada, não era algo que eu sempre pensasse” (…) “ao início não sabia porque tinha acontecido a mim” (sic.) Quanto ao menor FF “antes de nascer já era a melhor coisa do mundo, era um misto de emoções” (…) “no parto do FF não consegui estar feliz, faltava alguém, estava super feliz, e super triste, ao mesmo tempo, estava sempre anestesiada” (sic.) Caracterizando o menor, “é muito amigo, gosta de brincar com os amigos na amã, é uma criança normal” (…) “está a entrar nas fases das birras” (sic.). No âmbito da avaliação pericial de AA, e com vista a dar resposta aos quesitos do presente processo, elaboramos um protocolo instrumental que incluí medidas de avaliação de personalidade, psicopatologia, e ajustamento emocional. 5.1) Avaliação de Indicadores Cognitivos - Matrizes Progressivas de Raven – forma geral (PMS 38) As matrizes progressivas de Raven, foram desenvolvidas para avaliar componentes da inteligência geral e padrões de pensamento. São constituídas por 5 séries (A,B,C,D,E) com 12 itens cada, de complexidade crescente, que acionam capacidades dedutivas e indutivas, ao nível do pensamento lógico-abstrato, organização preceptiva e estruturação espacial. O resultado obtido pela examinanda, tendo como ponto de referência o seu grupo etário, situa-se na capacidade intelectual média (52 pontos; entre o percentil 50 e 75), enquadrado na Classe III+, remetendo para capacidades ao nível do pensamento lógico-abstrato, organização visuo-percetiva e mobilização e manutenção dos mecanismos atencionais, que permitem um recurso eficaz ao pensamento dedutivo e indutivo. 5.2) Avaliação de indicadores de personalidade e psicopatologia - Questionário de Análise Clínica (C.A.Q) O CAQ, é um inventário de personalidade de auto-preenchimento, composto por 144 itens com formato de resposta tipo Lickert de três opções. Posiciona a personalidade em 12 escalas clínicas que representam traços de personalidade normal ou patológica, consoante a sua elevação, e avaliam Hipocondria (D1), Depressão Suicida (D2), Agitação (D3), Depressão Ansiosa (D4), Depressão baixa-energia (D5), Culpabilidade –Ressentimento (D6), Apatia –retirada (D7), Paranoia (Pa), Desvio Psicopático (Pp), Esquizofrenia (Sc), Psicastenia (As), e Deajuste Psicológico (Ps). Permite ainda avaliação fatores de segunda ordem, Ansiedade, Extroversão, Independência, Socialização controlada ou super-ego, e Depressão. As respostas fornecidas pela examinanda configuram um perfil em valores maioritariamente situados em desvio médio, (7 em 12), e a existência de 2 desvios extremos. Destacando-se em valores inferiores, as escalas Paranoia (Pa), Desvio-Psicopático (Pp), e Agitação (D3) que remetem para um funcionamento pautado pela sensação de confiança face à natureza humana, atribuindo aos outros intenções acentuadamente “positivas”, apresentando um comportamento inibido, com respeito pela norma e pelos valores sociais, evitando envolver-se em situações ilegais, e em situações de risco, com baixa impulsividade, e procura por situações excitantes. No limite superior, surgem as escalas Depressão ansiosa, (D4), Depressão Suicida (D2), e Apatia-Retirada, que evidenciam a existência de uma sensação persistente de ansiedade generalizada (ansiedade traço), pautada por pesadelos e medos e pensamentos de autodestruição, e a perceção de que a vida é demasiado absurda e sem sentido, o que acentua o grau de perturbação, não lhe permitindo vivenciar a vida de forma ”segura e tranquila”, sendo condicionada por um “estado de desorientação, e incapacidade para enfrentar as exigências com que se deparam, estando fartos e desgostosos com a vida, percecionando a morte como o fim dos seus problemas, sentindo-se demasiado inútil, e em baixo, para querer contactar com as outras pessoas”. Destacando-se, ainda quanto aos fatores de segunda ordem, a presença de sintomas característicos de ansiedade, e depressão, uma maior tendência para o comportamento de dependência, sendo a sua socialização efetuada de forma controlado pelo superego, regida pelo cumprimento estrito de regras e imposições sociais. - Inventário Multiaxial Clínico de Millon (MCMI-II) O MCMI.-II é composto por 175 itens, de resposta dicotómica Verdadeiro/Falso, originando 4 Índices de Modificação (Invalidação, Revelação, Desejabilidade, e Depreciação), e 22 escalas clínicas. As escalas Clínicas, dividem- se em 4 grupos: 8 Escalas de Personalidade (Esquizoide, Evitante, Dependente, Histriónica, Narcísica, Antisocial, Agressiva, Compulsiva, Passivo-Agressiva, e Auto-destrutiva), 3 Escalas de Padrões Severos de Personalidade (Esquizotípica, Borderline, e Paranóide); 6 Síndromes Clínicos (Ansiedade, Somatização, Hipomania, Distimia, Dependência Alcoólica, Consumo de Estupefacientes); bem como 3 Síndromes Clínicos Severos (Perturbação do Pensamento, Depressão Major, e Alucinação). As respostas da examinanda, evidencia um perfil de validade questionável, que evidencia uma tendência para apresentar uma imagem depreciativa de si, pautada pela baixa autoestima, sensação de vazio físico e psicológico, com sentimentos de zanga, e tendência a comportamentos auto-destrutivos, que emergem como um pedido de ajuda. Verificando incidência de características de personalidade, associadas a traços Evitantes, Esquizoides, Compulsivos, Dependentes, e Autodestrutivos, que nos remetem para um conflito entre a dependência e a independência, e aproximação-afastamento, apresentam, motivação para as relações interpessoais, no entanto, no contexto relacional ficam apreensivos, preocupados, sentindo-se “ à deriva”, e suprimindo as emoções, persistindo um sentimento de vazio, de abandono, e desproteção, pautando-se por uma necessidade de aceitação não expressa, com acentuada vulnerabilidade à rejeição, e desaprovação, ficando devastados quando a percebem, e evitam que ocorra a tudo o custo. Resultando desta dinâmica relacional e afetiva, um distanciamento social, e a apresentação de um comportamento rígido, meticuloso, disciplinado e conformista, tendo o intuído de mitigar o receio de desaprovação, face à acentuada reatividade a acontecimentos negativos e desafiantes. A nível sintomatológico, emerge a escala Distimia (D), que denota, a presença de sintomatologia depressiva de longa duração. Não se identifica a incidência de padrões de personalidade, ou síndromes clínicos, de natureza severa, em valores clinicamente significativos. 5.3) Avaliação do Ajustamento Emocional Processo: - Escala Geral de Sintomas (SCL-90-R) O SCL-90-R apresenta-se como uma medida multidimensional, de auto-avaliação de sintomas de desajustamento emocional, através de uma escala de Lickert, cuja amplitude de resposta varia entre Nunca (0), Pouco (1), Moderadamento (2), Bastante (3) e Extremamente (4). Organiza-se em 9 dimensões de psicopatologia (somatização, Obsessão-compulsão, sensibilidade interpessoal, depressão, ansiedade, hostilidade, ansiedade fóbica, ideação paranóide, psicoticismo e 3 índices de ajustamento emocional. Considerando as respostas assinaladas pela examinanda, verificam-se valores, sugestivos de desajustamento emocional global, com significado clínico. Evidenciando níveis de impacto significativo, na maioria das dimensões sintomatológicas avaliadas pela escala, sendo exceção a Hostilidade, e Ideação Paranóide, o que apontam para um funcionamento pautado por Sensibilidade Interpessoal (sentimentos de inadequação e inferioridade), Depressão (afecto e humor disfórico, com sinais de isolamento e perda de energia vital), Ansiedade (traço, manifesta em tensão, agitação e nervosismo), Ansiedade Fóbica (medo persistente, irracional, e desproporcionado, com comportamentos de evitamento), e Psicoticismo (indicadores de estilo de vida esquizoide, com isolamento interpessoal) (destacado nosso).. - Inventário de Depressão de Beck (BDI-II) O BDI, é um Inventário de autoavaliação, composta por 21 itens, com formato de reposta tipo Lickert de 4 pontos, disposto por ordem de gravidade progressiva, e que visam avaliar e medir a existência e a severidade dos sintomas e atitudes, característicos da depressão. Utilizando-se como ponto de corte, para a população portuguesa, considerando-se sintomas depressivos com significado clínico, em valores acima de 26 pontos. A examinanda, obtêm valores associados a sintomatologia depressiva severa, (31 pontos), ressalvando-se desânimo, pessimismo, sentimentos de fracasso, punição, ódio de si mesma, motivação de cariz suicida, distorções da imagem corporal, e problemas de sono. - Escala de Auto-estima de Rosenberg (R.S.E.S.) A RSES, é composta por 10 itens, de resposta tipo Likert, com amplitude entre “0” Discordo Fortemente, e “4”, Concordo Fortemente. A auto-estima, é conceptualizada como uma orientação positiva ou negativa, em relação a si próprio, sendo um dos componentes do autoconceito. O resultado total varia entre “0” e “30”, indicando os valores mais elevados, uma autoestima mais elevada. A examinanda evidencia, uma autoestima negativa, sendo o valor significativamente, inferior ao grupo de referência etária. 6. Conclusões 6.1) No decurso do processo pericial, a arguida, apresentou uma atitude cordial e colaborante com a realização das tarefas proposta, evidenciando humor predominantemente depressivo, pautado por choro fácil, sendo os afetos sintónicos e coerentes com a temática abordada. 6.2) Da recolha em entrevista clínico-forense, destaca-se o processo associado à ocorrência da primeira gravidez, a qual também só foi detetada pelos 5/6 meses, referindo a arguida, acreditar estar grávida de 2 meses, verbalizando, “quando começamos a fazer exames, é que percebi que estava grávida há imenso tempo, nasceu um mês e meio depois” (sic.), referindo ter identificado a gravidez, pelo facto de “deixar de ter o período” (sic.). Fazendo o paralelismo, com a gravidez decorrente das factualidades, que terminou com a morte da bebé, nas primeiras 24 horas de vida, esta denota, “para mim, não vi nenhum sinal óbvio, tudo pareciam sinais, banais, nunca mais tive o período depois de ter o FF, amamentei até aos 15 meses” (sic.) Assumindo “cheguei a pensar que estava grávida, mas já não estava com o HH há tanto tempo, as poucas vezes que pensei nisso, descartei, descartei completamente, a ideia, sentia que era impossível, estar a passar por aquilo tudo outra vez, não fazia sentido” (…) “não era não querer, era achar impossível” (sic.) Afirmando desconhecer a condição de grávida em que se encontrava, e referindo como expectativas face ao desfecho do processo a decorrer “eu sinceramente acho que está encaminhado para ser justo, compreenderam que eu não tive maldade em nada, não espero uma grande pena como foi falado ao início” (…) “tenho esperança, sinto que vai correr bem, acho eu” (sic.) 6.3) Quanto aos indicadores cognitivos, denota uma capacidade intelectual média (52 pontos; entre o percentil 50 e 75), enquadrado na Classe III+, remetendo para capacidades ao nível do pensamento lógico-abstrato, organização visuo-percetiva e mobilização e manutenção dos mecanismos atencionais, que permitem um recurso eficaz ao pensamento dedutivo e indutivo. 6.4) Relativamente ao seu funcionamento mental, destaca-se a existência de uma sensação persistente de ansiedade generalizada (ansiedade traço), pautada por pesadelos e medos e pensamentos de autodestruição, e a perceção de que a vida é demasiado absurda e sem sentido, o que acentua o grau de perturbação, não lhe permitindo vivenciar a vida de forma ”segura e tranquila”, sendo condicionada por um “estado de desorientação, e incapacidade para enfrentar as exigências com que se deparam, estando fartos e desgostosos com a vida, percecionando a morte como o fim dos seus problemas, sentindo-se demasiado inútil, e em baixo, para querer estabelecer relacionamentos interpessoais. Ressalvando-se, a presença de sintomas característicos de ansiedade, e depressão, uma maior tendência para o comportamento de dependência, sendo a sua socialização efetuada de forma controlada pelo superego, regida pelo cumprimento estrito de regras e imposições sociais. 6.5) Conceptualiza-se quanto a características de personalidade, a prevalência de traços Evitantes, Esquizoides, Compulsivos, Dependentes, e Autodestrutivos, que remetem para existência de conflito entre a dependência/independência, e aproximação-afastamento, que sugere, motivação para as relações interpessoais, no entanto, no contexto relacional ficam apreensivos, preocupados, sentindo-se “ à deriva”, suprimindo as emoções, persistindo um sentimento de vazio, de abandono, e desproteção, pautando-se por uma necessidade de aceitação não expressa, com acentuada vulnerabilidade à rejeição, e desaprovação, ficando devastados quando a percebem, e evitam que ocorra a tudo o custo. Resultando desta dinâmica relacional e afetiva, um distanciamento social, e a apresentação de um comportamento rígido, meticuloso, disciplinado e conformista, tendo o intuído de mitigar o receio de desaprovação, face à acentuada reatividade a acontecimentos negativos e desafiantes, e baixa autoestima, associada a uma imagem negativa de si. 6.6) Verifica-se um funcionamento promotor de acentuado desajustamento emocional, que emerge com significado clínico, denotando Sensibilidade Interpessoal (sentimentos de inadequação e inferioridade), Depressão (afecto e humor disfórico, com sinais de isolamento e perda de energia vital), Ansiedade (traço, manifesta em tensão, agitação e nervosismo), Ansiedade Fóbica (medo persistente, irracional, e desproporcionado, com comportamentos de evitamento), e Psicoticismo (indicadores de estilo de vida esquizoide, com isolamento interpessoal). 6.7) Evidenciando-se a nível sintomatológico, a escala Distimia (D), que denota, a presença de sintomas associados a características depressivas de longa duração, mas também situacionais, assinalando-se na atualidade, a presença de sintomatologia depressiva severa, (31 pontos), ressalvando-se o desânimo, pessimismo, sentimentos de fracasso, punição, ódio de si mesma, motivação de cariz suicida, distorções da imagem corporal, e problemas de sono. 6.8) Na integração dos dados recolhidos, emerge, um modo de funcionamento mental, pautado por uma abordagem relacional, ambivalente, que se conceptualiza como fatores de risco individual, associada a traços de personalidade Evitantes, Esquizoides, Compulsivos, Dependentes, e Autodestrutivos, que originam uma dinâmica emocional, promotora de desajustamento psicoafectivo, baixa auto-estima, sentimentos de inferioridade, que se acentua em situações indutoras de stresse e desafio, nomeadamente, aquando da emergência do medo de rejeição percebido, perante a qual, não evidência recursos de enfrentamento adequados e eficazes, originando um estado de desorientação, e incapacidade para enfrentar as exigências com que se deparam. Considerando-se uma maior vulnerabilidade, pela conjuntura sequencial de acontecimentos indutores de stress, vivenciados pela arguida, durante o período da adolescência, nomeadamente, uma primeira gravidez aos 16 anos de idade, num contexto de namoro da adolescência, o falecimento do seu progenitor, bem como a prestação de cuidados ao filho menor, dificuldades relacionais com a progenitora, “tinha mais atrito” (…) “mais espalhafatosa e rígida” (…) “a minha mãe dizia constantemente que aquilo era um peso para ela, que estar a cuidar de todos era um peso, que já não aguentava mais” (sic.) Sugerindo-se, à data, a presença de sintomatologia depressiva e ansiosa, que surge das narrativas da jovem, “eu sentia-me pesada, cansada, eu pensando pelas coisas, era-me impossível, ver o que estava à minha volta, não tinha conseguido lidar se soubesse, estava tão mal com tudo” (...) “sinto que estava sozinha nessa altura, não tinha nada, nem sequer conseguia olhar para mim própria” (sic.) 6.9) Referindo-se como factores protetores, a sua capacidade cognitiva, a capacidade de projeção no futuro, a gratificação com a parentalidade, o apoio familiar, bem como o acompanhamento Psiquiátrico, em articulação com o Psicológico. Devendo este acompanhamento ser mantido com o intuito de promover a estabilidade afetiva, bem como as competências pessoais, e relacionais, mitigando desta forma, os fatores de risco elencados. * 3. Do relatório de perícia psiquiátrica forense, apurou-se que: Exame directo (informação colhida com o(a) Examinando(a)) 1# Relato dos factos que deram origem ao exame, segundo a Examinanda A Examinanda conhece o motivo da presente avaliação, referindo “para apurar se houve alguma malícia...” (sic). Quando interpelada sobre a acusação, esta refere “a bebé teria morrido por não ter tido assistência neonatal e que isso teria sido minha responsabilidade… não chorou… da autópsia disseram que teria nascido com vida…” (sic) Questionada se é acompanhada em consulta de Psiquiatria, a Examinanda confirma “sim, aqui no hospital mesmo...” (sic). A Examinanda terá iniciado um quadro de depressão pós-parto do primeiro filho, FF, de 20 meses “agora mais recentemente foi por causa da depressão pós-parto... entretanto uma depressão... dois meses antes do meu filho nascer, o meu pai faleceu de COVID...” (sic). Após o episódio do segundo parto, a Examinanda refere um novo acompanhamento psiquiátrico e psicológico. Durante o internamento na especialidade de obstetrícia, a Examinanda refere ter sido acompanhada por Psiquiatria, primeiramente pela Dr.ª JJ e, mais tarde, por um outro médico Psiquiatra “o médico era KK...” (sic). Quando questionada acerca do companheiro, a Examinanda refere “Estávamos juntos, entretanto separamos-mos, continuamos a ter uma relação cordial... namorávamos, mas vivia cada um em sua casa... objetivos diferentes” (sic). Inquirida sobre o planeamento e vigilância da segunda gravidez, a Examinada refere nunca se ter apercebido de estar grávida “Eu não sabia que estava grávida… só soube no término… eu não soube que estava grávida desta gravidez… Nunca cheguei a ter período… continuei a amamentar e a tomar medicação… com isso tudo acabei por não me aperceber… foi tudo no próprio dia…”(sic). A Examinanda nega o crescimento da barriga “desde que eu tive o outro filho… fiquei com a barriga muito distendida… tive muitas estrias… muito dilatada… foi uma coisa que teve quase sempre igual…”(sic). Pedindo para descrever o parto, a Examinanda começa por referir queixas de lombalgia “nesse dia fiz o costume… tomei os comprimidos que costumo tomar… comecei a sangrar… comecei a sentir-me super mal… saí do banho para ir para a sanita… aí é que tive a bebe…” (sic). A Examinanda relata vários desmaios, intercalados com pequenos períodos de consciência “Na altura peguei, encostei só a mim eu estava sentada no chão não me conseguia levantar… dei umas palmadinhas e pronto não reagia… e quando me tentei levantar, sinto-me a desmaiar e só tento ter cuidado para não cair em cima da bebe... depois diz que já sei que fiz outras coisas... que meti num saco e outras coisas... mas não me recordo”(sic). Inquirida sobre as “outras coisas” que menciona, a Examinanda refere “não me lembro... disseram que devo ter pegado na bebé e ter levado para o quarto... não me lembro dessa parte. A última coisa que me lembro é de ter poisado no chão para não cair... não me lembro de ter estado no quarto sequer... só me lembro depois de ter estado com a minha mãe” (sic). Confrontada com a forma como terá cortado o cordão umbilical que a unia à recém-nascida, a Examinanda refere “eu puxei o cordão... cortar seria com uma tesoura... era a única coisa que me estava a prender à bebé... eu não cortei... eu puxei só” (sic). Inquirida sobre ter colocado a bebé num saco de plástico, embrulhada numa toalha, a Examinanda refere “eu lembro de estar com uma toalha, mas não me lembro dessa parte” (sic). Indagada sobre alguma interação com a mãe, quando esta chegou a casa, a Examinanda indica que “quando olhei para ela disse que já estava a ligar ao 112... eu disse que não queria ir para o hospital...” (sic). Pedindo para elaborar porque não queria ir para o hospital, refere “porque achava que estava tudo bem... sim, achei que estava a perder sangue mas que ia parar... que ia ficar tudo bem...” (sic). Confrontada com o facto de ter nascido uma criança, se isso não seria uma indicação que deveria ir ao hospital, a Examinanda refere “achava que já não havia nada a fazer sinceramente... já não tinha vida” (sic). Perguntando o que iriam fazer à criança, a Examinanda refere “não era uma coisa que me tinha passado à cabeça naquela altura” (sic). Quando questionada porque não foi a própria a ativar os serviços de urgência, a Examinanda refere “Não pedi assistência porque foi uma coisa 1 minuto… começo a perder sangue e mal me encosto à sanita começa a sair a bebé… e mesmo quando me consegui levantar não encontrava o telemóvel … a minha casa tem dois andares e tinha deixado o telemóvel na parte de baixo…”(sic). Inquirida se tinham ido ambas (a Examinanda e a bebé) para o serviço de urgência, a Examinanda nega “Para o hospital vim só eu… não me sabia explicar… só depois comecei a tomar consciência do que estava a acontecer… chamaram a polícia para ir buscar a bebé…”(sic). Questionada sobre a sua saúde mental à data dos factos, e como a percepcionava antes de iniciar o trabalho de parto, refere “não sei... sentia-me em baixo... estava triste... era o aniversário do falecimento do meu pai duas semanas antes” (sic). Inquirida sobre a manutenção da sua rotina, a Examinanda responde de forma positiva “sim... ia à rua... levava o meu filho à ama... tudo normal” (sic). Não encontra explicação para os factos por si praticados, referindo “não sei sinceramente... ainda não consegui perceber muito bem como é que tudo se desenrolou dessa maneira sinceramente” (sic). Pedindo para desenvolver as suas preocupações, a Examinanda refere “porque acho que isto é difícil de entender... eu não tive culpa disto... mas percebo que quem veja de fora não veja isso” (sic). No seguimento, questionada porque diz que não tem culpa, esta responde “porque não sabia... nunca tive intenção de fazer nada de mal.… não considero que tenha tido culpa..., mas eu percebo o resto” (sic). Nega ter praticado crimes no passado. 2# Doença atual e antecedentes pessoais sumários Mulher, 18 anos, natural de ..., primeira filha de uma fratria de dois. Gravidez, parto e desenvolvimento psicomotor aparentemente dentro da normalidade. Do ponto de vista académico, refere ter frequência do 1º ano de licenciatura em ... na Escola Superior de .... Nega reprovações ou dificuldades de aprendizagem. Questionada sobre a sua atividade profissional, refere nunca ter desempenhado funções laborais. Do ponto de vista matrimonial, refere ser solteira. Terá tido 2 gravidezes do mesmo pai. Tem 1 criança com 3 anos e a criança cujo óbito se encontra em apreciação neste processo. Doente sem antecedentes psiquiátricos até 2021, data em que, de acordo com os relatos, iniciou período de depressão pós-parto. Também nesta altura (dois meses antes do nascimento da criança), o pai da Examinanda faleceu de COVID. Neste contexto, terá iniciado acompanhamento em psiquiatria, cujo registo não foi contemplado nos autos. Nega internamentos prévios em psiquiatria. Atualmente, acompanhada em consulta de psicologia e psiquiatria no Hospital ... “Agora mudou o médico... era Dr.ª JJ... e agora é o Dr. KK...” (sic). Refere que, na atualidade, não cumpre qualquer tratamento farmacológico. A Examinanda nega hábitos toxifílicos, não-fumadora, sem consumo de canabinóides ou outras drogas ilícitas; consumo de álcool social prévio. Após consulta dos elementos processuais remetidos à médica perita, conclui-se que a Examinanda é acompanhada desde o período de internamento em obstetrícia por psicologia e psiquiatria desde março 2023, com sintomatologia ansiosa-depressiva moderada reativa a evento de vida traumático. 3# Observação Vígil, leucodérmica. Pele e mucosas coradas, sem sinais de desidratação. Inicialmente calma e colaborante ao exame psiquiátrico. Com a progressão da entrevista, tornou-se muito chorosa e nervosa. Fácies ligeiramente inexpressiva mas sem características particulares/ sindromáticas. Postura inespecífica. Contacto sintónico. Não se apuram alterações dos movimentos, nomeadamente distonias, discinesias, estereotipias e/ ou maneirismos. Atenção captável e relativamente fixável. Orientada no tempo, no espaço e na situação. Humor subdepressivo, mas com afetos moldáveis. Discurso organizado, não se apurando alterações sintáticas ou semânticas. De momento não se apuram alterações de conteúdo, forma, curso, ritmo ou posse do pensamento bem como dos limites do Eu. Negadas alterações sensóriopercetivas. Não se apura ideação suicida. Memória globalmente preservada. Com crítica para a necessidade de tratamento. DISCUSSÃO E CONCLUSÕES FINAIS De acordo com a avaliação clínica realizada e consulta dos autos, somos da opinião que a Examinanda apresenta sintomatologia compatível com os diagnósticos de Episódio Depressivo (CID-10 : F 32, OMS, 1992) situação clínica que estaria presente à data dos factos. Relativamente à Perturbação Depressiva, nomeadamente os Episódios Depressivos caracterizam-se pela presença de sintomas tais como humor deprimido (tristeza patológica), avolia (falta de vontade de fazer as atividades) e anedonia (falta de prazer). Podem em alguns casos surgir sintomas psicóticos com distorção da realidade e da capacidade de se auto-determinar (i.e., delírios ou alucinações), que não estão presentes, nem nunca estiveram (de acordo com os autos e a descrição da examinanda) no caso em concreto. Assim, no caso da Examinanda, a mesma não representa uma anomalia psíquica grave nos termos do artigo 20.º do C. Penal. Em relação aos eventos descritos, não se apura pelo relato da Examinanda ou pelos registos existentes, nomeadamente do registo de urgência de março 2023, a presença de sintomas abnormes tais como delírios ou alucinações que pudessem ter de algum modo toldado a capacidade de entendimento ou de determinação da examinanda. Pelo exposto, não há evidência que nos permita afirmar que, à data dos factos, a sua conduta tenha sido independente da sua vontade (ou seja acidental) e gerada por fatores psicopatológicos que não podia dominar e/ou que teria dificuldade em controlar, fruto de descompensação abnorme resultante de doença(s). Acresce ainda a este facto, que a Examinanda reconhece que a sua conduta terá sido inadequada, sendo que os eventos constantes dos Autos não serão discordantes da história vital da examinanda. Nesse sentido, da avaliação psiquiátrica forense não se apuraram, no momento que antecede a prática dos factos, quaisquer sintomas ou sinais isolados anormais ou graves, de natureza psicótica como sejam delírios ou alucinações, que possam ter distorcido o sentido da realidade objetiva e que a própria não domine ou sejam independentes do controlo da sua inteligência e vontade, pelo que não se encontram reunidos os pressupostos explanados nem no n.º 1 nem no n.º 2 do 20º Artigo do Código Penal, pelo que, caso sejam provados os factos pelos quais está acusado, integrará pressupostos médico-legais de IMPUTABILIDADE. Admitida que foi a imputabilidade, a perigosidade e o risco de violência dependerá mais de fatores sócio-jurídicos do que clínico psiquiátricos, constituindo, pois, matéria de apreciação judicial, subtraída à perícia. * 4. Da contestação da arguida AA: 4.1 A arguida já é mãe de um menor, FF, desde dia ........2021, filho dela e de HH; e só deu a conhecer à sua família, designadamente aos seus pais (a ambos os pais) que estava grávida, somente em estado avançado da gravidez (dessa primeira gravidez). 4.2 E fê-lo precisamente por temer uma má reacção dos seus pais pelo facto de ser mãe com 16 anos, estudante e dependente economicamente de seus pais, situação não usual nos tempos que correm. 4.3 A arguida dependia – tal como depende, à data presente – da sua família (pais, rectius: só da Mãe, porque, entretanto, o Pai da arguida faleceu): vive em casa de seus pais e depende financeiramente de sua Mãe, II. 4.4 A arguida, à data, teve o apoio da mãe. 4.5 O Pai da arguida faleceu poucas semanas antes do nascimento do neto, FF, não o tendo chegado a conhecer. 4.6 Após a morte de LL e, semanas depois, o nascimento do FF, toda a vida familiar mudou: o falecimento de LL foi determinante para radicais alterações familiares, designadamente, em virtude da perda de rendimentos familiares e da sobrecarga que tal situação trouxe para a mãe da arguida, II: com efeito, II ficou com o encargo de prover ao sustento da arguida, ainda menor à data e estudante; do GG, irmão da arguida, com 9 anos de idade, o FF, filho da arguida e neto de II, que nasceu poucas semanas depois (e, actualmente, com 2 anos e meio de idade). 4.7 II disse à arguida que não queria criar mais filhos. 4.8 A arguida sofreu pela perda do Pai, principal suporte familiar e garantia de estabilidade da família; pelo facto de ser mãe solteira; pelo facto de ter cumulado as suas funções como mãe com os seus estudos (em ...de 2022, a arguida iniciou estudos superiores no curso de ...); pelo facto de ter abdicado de parte da sua juventude para exercer também as funções de mãe (de que a arguida não se arrepende); pelo facto de a sua gravidez (a primeira) ter determinado uma perda total da sua vida social (designadamente, deixou de ter amigos e passou a ser vista, pela família, como uma pessoa diferente) e pelo facto de a relação sentimental com o pai do seu filho ter terminado. 4.9 A arguida na unidade hospitalar que a recebeu no dia ....03.2023, não admitiu, ab initio, a existência da gravidez e do parto. 4.10 A arguida comportou-se como se não estivesse grávida: negou, quando questionada pela sua Mãe, que estivesse grávida; viveu com a mais normal rotina que tinha até então (frequentando as aulas, designadamente); e, uma semana antes do parto ocorrer, visitou inclusive o progenitor do seu 1.º filho, HH, e este não se apercebeu da gravidez. 4.11 Dias antes do parto, a arguida começou a sentir elevadas dores de cabeça, que se agravaram no dia do parto. 4.12 No dia do parto, a arguida ficou em casa (a morada indicada nos autos, que tem 2 pisos); tal era normal, atento o facto de não ter compromissos académicos para esse dia. 4.13 Começou a sentir dores abdominais fortes, e a sentir abundante hemorragia vaginal, além de dores de cabeça elevadas. 4.14 Decidiu então tomar um banho de imersão, quente, tendo em vista acalmar tais dores, pelo que usou o W.C. de sua casa, sito no 2.º piso da moradia, piso onde se situa, igualmente, o seu quarto de dormir. 4.15 A dada altura, conseguiu estancar o sangue, com ajuda de um penso higiénico. 4.16 A arguida, até à pandemia, praticava desporto e era uma jovem elegante; com a pandemia, e o confinamento por ela imposto, aumentou de peso (por ter deixado de praticar exercício físico e permanecido confinada na sua casa); e, no Verão desse ano de 2020, ficou grávida do seu primeiro filho; passou a usar roupas largas – porque, nessa altura com 16 anos, teve receio de contar, pelo menos inicialmente, aos seus pais, que estava grávida e pretendia ocultar a sua silhueta. 4.17 Essa situação (aumento de peso) manteve-se durante essa gravidez. 4.18 A arguida amamentou até aos 15 meses; altura em que, sob prescrição médica, tomou um medicamento para fazer cessar a fase da amamentação. 4.19 As roupas que usava – mercê do aumento de peso que teve durante a pandemia, e que não conseguiu reverter após a gravidez do primeiro filho – ocultavam, de terceiros, esta segunda gravidez. 4.20 Uma semana antes de parir a vítima, a arguida visitou o pai da mesma. 4.21 No dia ....03.2023, quando foi acometida das dores e da perda de sangue, a arguida não se muniu de nada, nem nada preparou, que lhe permitisse realizar o parto em segurança para si. 4.22 A arguida arrancou o cordão umbilical, do seu próprio corpo. 4.23 Quando a arguida colocou a vítima no saco, esta já não respirava. 4.24 A arguida estuda ..., na Escola Superior de ... e, embora se encontre ainda no primeiro ano, tem noção dos enormes riscos, também para a parturiente, que se encontram associados a um parto feito em casa e sem qualquer assistência. 4.25 Os bombeiros que prestaram os primeiros socorros à arguida não viram o saco onde estava a recém-nascida. 4.26 A arguida já tinha sido mãe – em ........2021, quando FF, o seu primeiro filho, nasceu; pelo que, para além saber minimamente os riscos inerentes a uma gravidez não assistida (por ser estudante de um ramo da saúde), também os conhecia, por já ter experienciado as dores de uma gravidez assistida (o nascimento do FF). * 5. Das condições pessoais da arguida AA: 5.1 À data dos factos que levaram ao presente processo, tal como na actualidade, AA residia na morada indicada nos autos, com a mãe (II, 45 anos), o irmão (GG, 10 anos) e o filho (FF, 3 anos). 5.2 A dinâmica intrafamiliar é, segundo a arguida e a mãe, marcada pela proximidade afectiva, constituindo a mãe forte elemento de apoio à arguida, principalmente depois do falecimento do pai desta em 2021, de forma inesperada no contexto da pandemia. 5.3 O agregado familiar reside em moradia própria, de dois pisos, tipologia 4, com boas condições de habitabilidade, inserida numa zona residencial de ..., sem associação a problemáticas sociais. 5.4 A arguida dispõe de espaço próprio, que satisfaz as suas necessidades de conforto e privacidade. 5.5 Dos contactos efectuados no meio envolvente não foram identificados sinais de rejeição à presença da arguida. 5.6 Ao nível pessoal, a arguida estabeleceu uma relação de namoro com HH, pai do seu filho FF, entre Setembro de 2019 e Setembro de 2020, contextualizada pela fase da adolescência em que ambos se encontravam. 5.7 Segundo a própria, esta ligação terminou de forma consensual, na sequência de escolhas diferentes quanto ao percurso escolar e futuro individual. 5.8 A arguida diz que descobriu que estava grávida já depois da separação afectiva; o filho nasce a ...-...-2021. 5.9 Esclarece ter sido apoiada pela mãe e pelo progenitor da criança, pelo que este tem estado presente e participado no processo de desenvolvimento do descendente. 5.10 Na perspectiva de proporcionar uma família tradicional ao filho, a arguida e HH tentaram retomar o relacionamento amoroso, mas concluíram que as diferenças entre ambos persistiam, pelo que optaram pela separação definitiva. 5.11 Foi nessa fase que a arguida ficou de novo grávida, situação de que HH diz ter tido conhecimento apenas à data dos factos que deram origem ao presente processo. 5.12 HH refere que, actualmente, a comunicação com a arguida é limitada a assuntos referentes ao filho comum e que o conteúdo do processo judicial nunca foi abordado entre ambos. 5.13 AA é estudante. 5.14 À data da instauração do presente processo, frequentava as aulas do 1º. ano do curso de cardiopneumologia na Escola Superior de .... 5.15 No presente, e após ter pedido transferência, está integrada no curso de ... na Escola Superior de .... 5.16 Uma vez que se encontra com a medida de coacção de obrigação de permanência na habitação com vigilância electrónica (OPHVE) e não tem autorização para se ausentar por motivos académicos, tem acesso apenas aos materiais didácticos disponíveis em ambiente digital. 5.17 Planeia propor-se a exame de recurso. 5.18 A arguida beneficia de um contexto económico estável; recebe 470 € a título de prestações familiares referentes a si e ao filho, valor que é direccionado para as suas despesas pessoais e do filho. 5.19 O pagamento dos gastos correntes domésticos é assegurado pela mãe da arguida, que indica o montante global de € 800,00 mensais (alimentação, água electricidade, gás, comunicações, ATL do filho); acrescenta que aufere a titulo de vencimento liquido € 1500,00, como consultora ... numa empresa internacional de tecnologias da informação, sedeada em .... 5.20 Ao nível ocupacional, à data dos autos, a arguida tocava ... na banda filarmónica da ... e praticava natação na mesma instituição. 5.21 No contacto telefónico efectuado com um elemento da direcção da ..., a arguida foi descrita como uma jovem com um comportamento adequado, que deixou subitamente as actividades em ... de 2023, sem qualquer explicação. 5.23 A arguida indica também, que tocava ... no coro da igreja paroquial de .... 5.24 AA está com acompanhamento psiquiátrico e psicológico no hospital .... 5.25 Segundo o relatório clínico subscrito pela Dra. MM, psicóloga, a arguida começou a ser acompanhada quando ainda estava internada na obstetrícia, na sequência de uma reacção traumática face a um evento de vida de relevante violência psíquica. 5.26 Mantém seguimento em consulta externa, desde o dia ...-03-2023, com periodicidade semanal a partir de Junho do mesmo ano. 5.27 A psicóloga aponta boa adesão, pontualidade e cumprimento das indicações terapêuticas e a sua evolução considera-se positiva. 5.28 A arguida valoriza esta intervenção por a ajudar a compreender o impacto de acontecimentos passados (falecimento do pai e gravidez não planeada do primeiro filho) no seu comportamento mais recente. 5.29 Fala do processo de luto que ainda está a decorrer em relação ao pai e à vítima deste processo. 5.30 A arguida faz medicação psiquiátrica. * 6. Dos antecedentes criminais da arguida AA: Inexistem. (…). B) Factos não provados A matéria de facto provada que provém das é a seguinte: “(…). 7.1 Da acusação: 7.1.1 A arguida embrulhou a recém-nascida numa toalha. 7.2 Da Contestação: 7.2.1 Quando a arguida divulgou, à sua família, a sua primeira gravidez, LL, o seu Pai, ainda era vivo e prestou, à aqui arguida, todo o seu apoio, designadamente, emocional, moral e económico, pretendendo, assim, proteger a sua filha, aqui arguida, de todos os males e preconceitos que pudessem advir do facto de se tratar de uma gravidez, não só fora do casamento (ou de uma união de facto), mas, mais do que isso: uma gravidez numa adolescente, que ainda nem sequer tinha concluído os seus estudos no secundário. 7.2.2 II disse, à sua filha, aqui arguida, em mais do que uma circunstância, que, se a arguida voltasse a fazer algo idêntico (i.e., se voltasse a engravidar, sem ter vida organizada, designadamente, profissional), a expulsaria de casa – ou seja, que a arguida teria de sair de casa e auto-sustentar-se, a si e ao filho FF (e ao resto da prole), embora sem qualquer saída profissional que lhe permitisse fazê-lo. 7.2.3 Nos meses que se seguiram e até à data dos factos de que vem acusada, essas palavras, que a arguida tomou bem a sério, tiveram um impacto psicológico enorme na sua pessoa e, sobretudo, na sua forma de actuar. 7.2.4 A arguida compreendeu que a mensagem de sua Mãe, II, podia ter ainda o significado de “se, quando engravidaste, o teu Pai já tivesse falecido, eu tinha-te posto fora de casa”. 7.2.5 A arguida tivera o apoio de ambos os Pais; falecendo o progenitor masculino, a posição da Mãe (com quem não mantinha uma relação tão afectuosa ou próxima como a que mantivera com o seu falecido Pai) era, agora, quem punha e dispunha em casa. E a Mãe, pelos vistos, não aceitara a situação da arguida de forma tão calorosa como o falecido Pai aceitara. E o Pai, esse, já cá não se encontrava, para proteger a arguida. 7.2.6 O primeiro parto, em Abril de 2021 (cerca de 5 semanas após perder o seu Pai), foi a causa de uma depressão (depressão pós-parto), que a mergulhou num estado de fragilidade e sensação de falta de protecção, abatimento e cansaço, esbatimento e, depois, dissociação da realidade. 7.2.7 E foi este circunstancialismo (de trauma, de medo, de pânico, de confusão, de falta de apoio) que determinou, por parte da arguida, um estado psicológico de dissociação da realidade, ao ponto de a mesma negar o seu estado de gravidez, negação essa que determinou, da sua parte, a falta de consciência dessa gravidez. 7.2.8 Com efeito, a arguida entrou em total e absoluta negação quanto ao estado de grávida: simplesmente, não o reconhecera – não reconhecera tal estado em si, e não se reconhecera como grávida. Psicologicamente, a arguida considerou que todas as ocorrências verificadas entre o Verão de 2022 e 1 de Março de 2023 (o período da gestação) eram devidas a outros factores, relacionados com outras causas, as quais justificavam a maioria (senão mesmo a totalidade) dos referidos sintomas; mas não com uma gravidez. 7.2.9 À data dos factos, a arguida não tinha consciência do seu estado de gravidez, em virtude do estado psicológico, de negação, em que vivia, em virtude da dissociação da realidade, por força da depressão em que havia mergulhado dois anos antes e nunca diagnosticada ou tratada. 7.2.10 A arguida, com uma idade tão jovem aquando do primeiro parto (tinha 16 anos), não teve, da parte das autoridades públicas competentes, qualquer tipo de apoio (nomeadamente, encaminhamento para apoio psicológico e/ou assistência social); nem a CPCJ interveio, no sentido de se inteirar das reais condições de que mesma dispunha para criar e sustentar o menor (embora, diga-se, tenha tido apoio da sua família, apesar do repto da Mãe). 7.2.11 A arguida não associou as alterações que sentia à gravidez, mas sim a outras causas (não só os efeitos da medicação que havia tomado, mas, também, a preocupação com o seu estado de saúde). 7.2.12. Já no interior da banheira, mantendo as dores, colocou-se de cócoras, com água quente a cair-lhe por cima. 7.2.13. Tendo, nesse seguimento, aumentado as dores na região pélvica, pelo que, quase naturalmente, sentiu uma enorme necessidade de fazer força em tal região pélvica/vaginal, como se estivesse a defecar. 7.2.14 A necessidade de fazer tal força surgiu-lhe naturalmente, como se sentisse necessidade de expulsar algo do seu interior; saiu de imediato da banheira, e, nesse momento, apercebeu-se da realidade, quando pariu a vítima e esta caiu, com o esforço provocado na região pélvica; na queda, o feto bateu no chão, de cabeça (como resulta do relatório da autópsia). 7.2.15 A arguida desmaiou quase de imediato. 7.2.16 A arguida perdeu a noção do tempo decorrido, sendo que, quando acordou, verificou que tinha parido uma criança. 7.2.17 Tendo, a partir de então, duas realidades: as lancinantes dores físicas (acompanhadas por enorme perda de sangue) – , e um recém-nascido aos seus pés; o estado da arguida, até então norteado pela negação e falta de consciência da realidade, passou a estar, de forma intermitente, com intervalos de lucidez; as dores suportadas fizeram com que tivesse vários desmaios (e perdas de consciência), as quais terão ditado a tal “falta de cuidados neonatais” à recém-nascida. 7.2.18 Com efeito, quando a arguida, em alguns laivos de “realidade”, tentou pegar na criança, vítima, apercebeu-se de que a mesma já se encontrava com uma cor arroxeada, sem respiração; tentou realizar uma ou outra manobra de reanimação (tanta quanto aquela que o seu corpo permitia, atendendo às elevadas dores, e à perda abundante de sangue, que nesse momento sofria), mas desmaiou novamente, tendo recuperado os sentidos pouco depois. 7.2.19. Nesse espaço de tempo (que não terá durado mais do que 20/30 minutos), a arguida recorda-se de ter desmaiado, pelo menos, 4 vezes, e de ter recuperado a consciência outras tantas. 7.2.20. Nesse espaço de tempo, tentou, em dois desses fugazes momentos de consciência, aplicar manobras de reanimação na criança (pequenas palmadas, colocação de dedos na boca para evitar obstruções à respiração), mas foram infrutíferas, porque a menor já não apresentava sinais vitais. 7.2.21 Também tentou, em desespero, chamar o INEM, ou pedir ajuda, mas estava totalmente ensanguentada, desorientada e com constante hemorragia; tentou encontrar o telemóvel (que julgava ter levado consigo para o W.C., dentro de uma peça de roupa), mas não o encontrou, em virtude do seu estado de pânico; sabia ter o telefone fixo no andar de baixo da moradia onde reside, mas não teve coragem, nem forças, de descer a escada em caracol que separa os dois pisos – tantas eram as dores corporais que sentia no momento. 7.2.22. Quando tentava colocar-se em pé, cambaleava, com tantas dores e desmaiava a seguir, ou simplesmente, caía. 7.2.23. Tentar reanimar a criança, mas desmaiar de seguida, foram eventos constantes e intermitentes/repetidos, nos momentos que se seguiram ao parto, ao ponto de a arguida estar totalmente desnorteada. Para se colocar em pé, ou caminhar, tinha de se agarrar a algo, com ambas as mãos; para isso, tinha de deixar a menor no chão, frio e pejado de sangue e com vísceras; se agarrasse a menor e tentasse colocar-se de pé, com ela ao colo, não podia agarrar-se a nada, pelo que poderia cair e, com isso, esmagar a menor, ou deixá-la cair. 7.2.24 A arguida nem acreditava no filme de terror que estava a viver e tudo aquilo era- lhe totalmente irreal, mas acredita, actualmente, que os laivos de realidade que lhe surgiram, esporádicos, no meio de todo este episódio (breves momentos de aceitação da realidade, com tentativas de reanimação da menor) decorreram de um qualquer instinto maternal que lhe disse que a realidade era mais “crível” do que a versão irreal que a sua perturbada e doente mente lhe dizia ser. 7.2.25. Desnorte, cansaço, falta de forças, desespero, medo, exaustão e pânico, são as sensações e sentimentos que a arguida, nesses momentos, experienciou. Ora sabia que tinha parido uma criança, ora voltava a negá-lo no seu íntimo, e a negar que tivesse estado grávida; tal negação provinha do seu antecedente psicológico (que se arrastava desde a morte prematura do Pai e do nascimento do FF) e ao cenário tão irreal e perturbador, que tinha a seus pés; em simultâneo, ora desmaiava, ora conseguia acordar. 2.7.26 Recordou-se, em alguns desses momentos, das palavras da Mãe – que se a situação se repetisse, seria expulsa de sua casa; recordou-se da falta que o Pai, falecido, lhe fazia e da protecção que lhe dera e daria se ainda cá estivesse; e verificou que a criança que havia parido cerca de 20/30 minutos antes, se encontrava morta; e que ela, arguida, estava quase exangue, num estado lastimável, rodeada de sangue, e com dores fortíssimas, num cenário de terror. 2.7.27 O aumento de peso manteve-se durante a primeira gravidez e prolongou-se no tempo, mantendo-se até à data presente. 2.7.28 O medicamento passou a ser tomado pela arguida no Verão de 2022 (coincidente com o início da gestação da vítima), e todos os sintomas da gravidez foram associados, por ela e por sua família, a tal medicação (Bromocriptina): vómitos, dores no peito/mama e abdominais, alterações na regularidade da menstruação, obstipação, fadiga e espasmos musculares; e, também, depressão – cumulada com os sintomas depressivos que já trazia do passado. 2.7.29 A arguida colocou a vítima num saco, tal como havia colocado outros resíduos orgânicos, para que o sangue inerente não deixasse marcas no chão do quarto. 2.7.30. Nas manobras de reanimação prestadas pela arguida, em intermitentes momentos de consciência, em simultâneo com as perdas elevadas de sangue e com as excruciantes dores, verificou que a recém-nascida perdera os sinais vitais. 2.7.31 A colocação da recém-nascida no saco ocorreu para evitar que a sua família (mãe, irmão e filho) vissem o aterrador e dantesco cenário que se apresentava no quarto, logo que chegassem – coágulos de sangue, restos de vísceras, material biológico das entranhas do corpo – os chamados lóquios. 2.7.32. Tudo isto ocorreu num estado totalmente anormal, de pânico, medo e confusão, quando a arguida estava totalmente desnorteada, com a “cabeça a andar à roda”, só vendo sangue e vísceras à sua volta. 2.7.33. Se a arguida tivesse o plano criminoso delineado na acusação, ter-se-ia precavido quanto ao local de realização do parto (nunca em casa, e muito menos às horas em que o mesmo se verificou – ao final da tarde, perto da hora de regresso de sua Mãe do trabalho). 2.7.34 Aquando dos socorros prestados pelos bombeiros, a arguida estava apática e totalmente desnorteada, com constantes perdas de lucidez e de consciência, tendo também perdido a noção do tempo decorrido, e do local onde se encontrava; nem se pode afirmar que as declarações que fez tenham sentido algum. 2.7.35 A falta de acompanhamento médico da arguida, durante o período da gestação e até à expulsão do feto, também não se verificou, porque, para a arguida, a realidade é que ela não se encontrava grávida. 2.7.36. As alterações físicas da arguida estavam associadas a efeitos da medicação – medicação essa que lhe havia sido prescrita para terminar o período de aleitamento do menor FF. (…)”. * * * Âmbito do recurso Dispõe o art. 412º, nº 1 do C. Processo Penal que, a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido. As conclusões constituem, pois, o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso. Consistindo as conclusões num resumo do pedido, portanto, numa síntese dos fundamentos do recurso levados ao corpo da motivação, entre aquelas [conclusões] e estes [fundamentos] deve existir congruência. Deste modo, as questões que integram o corpo da motivação só podem ser conhecidas pelo tribunal ad quem se também se encontrarem sumariadas nas respectivas conclusões. Quando tal não acontece deve entender-se que o recorrente restringiu tacitamente o objecto do recurso. Por outro lado, também não deve ser conhecida questão referida nas conclusões, que não tenha sido tratada no corpo da motivação (Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, Vol. 3, 2020, Universidade Católica Editora, pág. 335 e seguintes). Assim, atentas as conclusões formuladas pela recorrente – que de tão extensas e desnecessariamente repetitivas, dificilmente cumprem o papel que a norma, supra, referida lhes atribui –, as questões a decidir no presente recurso, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, são, por ordem de precedência lógica: - A inconstitucionalidade da interpretação do art. 105º, nº 1 do C. Processo Penal, no sentido de ser permitida a redução do prazo aí previsto sem justificação, por violação do princípio do contraditório previsto no art. 36º, nº 5 da Constituição da República Portuguesa; - A nulidade do acórdão recorrido por omissão de pronúncia e por excesso de pronúncia; - A existência dos vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e de erro notório na apreciação da prova; - A incorrecta qualificação jurídica dos factos; - A excessiva medida da pena imposta pelo crime de homicídio. * * * Questões prévias a. Ao ter incluído no objecto do recurso a questão da inconstitucionalidade da interpretação normativa do art. 105º, nº 1 do C. Processo Penal, que entende ter sido sufragada no despacho recorrido da Mma. Juíza presidente do processo nº 185/23.8PBVFX, de 28 de Junho de 2024, confirmado pelo acórdão recorrido da Relação de Lisboa, convoca a arguida a problemática da recorribilidade de tal questão para o Supremo Tribunal de Justiça. Vejamos. Dispõe o art. 432º do C. Processo Penal, com a epígrafe «Recurso para o Supremo Tribunal de Justiça», na parte em que agora releva: 1 – Recorre-se para o Supremo Tribunal de Justiça: a) De decisões das relações proferidas em 1ª instância, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito ou com os fundamentos previstos nos nºs 2 e 3 do art. 410º; b) De decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas relações, em recurso, nos termos do artigo 400º; c) De acórdãos finais proferidos pelo tribunal do júri ou pelo tribunal colectivo que apliquem pena de prisão superior a 5 anos, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito ou com os fundamentos previstos nos nºs 2 e 3 do art. 410º; (…). Por sua vez, estatui o art. 434º do C. Processo Penal, com a epígrafe «Poderes de cognição», que, [o] recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça visa exclusivamente o reexame da matéria de direito, sem prejuízo do disposto nas alíneas a) e c) do nº 1 do artigo 432º. Deste modo, os poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça restringem-se ao reexame da matéria de direito, com excepção das situações, únicas, previstas nas alíneas a) e c) do nº 1 do art. 432º do C. Processo Penal. Finalmente, dispõe o art. 400º do C. Processo Penal, com a epígrafe «Decisões que não admitem recurso», na parte em que, para o caso, interessa: 1 – Não é admissível recurso: (…); c) De acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, que não conheçam, a final, do objecto do processo, excepto nos casos em que, inovadoramente, apliquem medidas de coacção ou de garantia patrimonial, quando em 1ª instância tenha sido decidido não aplicar qualquer medida para além da prevista no artigo 196º; (…); Nos autos, a arguida recorreu de um despacho da Mma. Juíza presidente do processo nº 185/23.8PBVFX, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte [Juízo Central Criminal de ... – Juiz ...] que indeferiu a arguição de nulidade ou irregularidade, por alegada violação do princípio do acusatório, ao não ter sido observado o prazo de 10 dias previsto no nº 1 do art. 105º do C. Processo Penal, para que se pronunciasse sobre dois relatórios de perícia psiquiátrica e perícia psicológica. A Relação de Lisboa, no acórdão recorrido, negou provimento a este recurso interlocutório. Ao submeter esta questão, restrita à vertente da inconstitucionalidade da interpretação normativa do referido art. 105º, nº 1, que afirma ter sido seguida no acórdão recorrido, ao conhecimento do Supremo Tribunal de Justiça, a arguida coloca-nos perante um recurso interposto de um acórdão da relação, proferido em recurso o que, em termos de recorribilidade para este Supremo Tribunal, convoca a alínea b) do nº 1 do art. 432º do C. Processo Penal a qual nos remete para as decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas relações, em recurso, nos termos do artigo 400º. Nos termos da alínea c) do nº 1 do art. 400º do C. Processo Penal, não é admissível recurso, [d]e acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, que não conheçam, a final, do objecto do processo, excepto nos casos em que, inovadoramente, apliquem medidas de coacção ou de garantia patrimonial, quando em 1ª instância tenha sido decidido não aplicar qualquer medida para além da prevista no artigo 196º. Conhecer do objecto do processo é conhecer da viabilidade da acusação e/ou da pronúncia, em ordem ao seu desfecho, seja de condenação, seja de absolvição, consoante o caso (Pereira Madeira, Código de Processo Penal Comentado, obra colectiva, 2014, Almedina, pág. 1251). E assim, podemos seguramente concluir que o acórdão da Relação de Lisboa, ao negar provimento ao recurso interposto do despacho da 1ª instância que julgou improcedente a invocada nulidade/irregularidade, não conheceu, a final, do objecto do processo. Cumpre dizer ainda, para que dúvidas não subsistam, que as decisões de questões interlocutórias ou intermédias, portanto, de questões que não integram no objecto do processo, proferidas pela relação, em recurso interposto da decisão final, não perdem a qualidade de decisões que não conhecem, a final, do objecto do processo, razão pela qual, nos termos do disposto no art. 400º, nº 1, c), 1ª parte, do C. Processo Penal, delas não cabe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça (António Gama, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo V, obra colectiva, 2024, Almedina, pág. 60, e acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 12 de Dezembro de 2024, processo nº 127/16.7GCPTM.E3.S1, de 11 de Outubro de 2023, processo nº 813/22.2JABRG.G1.S1, 30 de Setembro de 2020, processo nº 195/18.7GDMTJ.L1.S1, de 19 de Junho de 2019, processo nº 881/16.6JAPRT-A.P1.S1, de 2 de Março de 2017, processo nº 126/15.6PBSTB.E1.S1, de 29 de Outubro de 2015, processo nº 1584/13.9JAPRT.C1.S1 e de 12 de Março de 2015, processo nº 724/01.5SWLSB.L1, in www.dgsi.pt). Acresce que a irrecorribilidade destas questões para o Supremo Tribunal de Justiça, determina a impossibilidade deste tribunal conhecer de qualquer outra questão fundada no segmento irrecorrível do recurso, v.g., a inconstitucionalidade conexionada com a questão irrecorrível (acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 30 de Setembro de 2020, supra, identificado e de 19 de Junho de 2019, processo nº 881/16.6JAPRT-A.P1.S1, in www.dgsi.pt). Assim, estando o Supremo Tribunal de Justiça, em razão da sua competência material, impedido de conhecer da bondade, ou falta dela, do despacho da Mma. Juíza presidente do processo nº 185/23.8PBVFX, que o acórdão recorrido da Relação de Lisboa confirmou, impedimento que a arguida reconhece, igualmente se encontra impedido de conhecer da questão da inconstitucionalidade decorrente da interpretação que entende ter sido feita do ao art. 105º, nº 1 do C. Processo Penal, no referido despacho. E a circunstância de o recurso ter sido admitido sem restrições não vincula o tribunal superior (art. 414º, nº 3 do C. Processo Penal). Em suma, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 400º, nº 1, c), 414º, nº 3, 420º, nº 1, b), e 432º, nº 1, b), todos do C. Processo Penal, deve ser rejeitado o recurso, na parte em que tem por fundamento a questão da inconstitucionalidade da interpretação normativa do art. 105º, nº 1 do C. Processo Penal. b. Conforme se deixou referido, um dos fundamentos do recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça é o de o acórdão recorrido enfermar dos vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e de erro notório na apreciação da prova. Também aqui se suscita a questão da recorribilidade do acórdão da Relação para o Supremo Tribunal de Justiça com tais fundamentos. Com efeito, o actual regime do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça [redacção da Lei nº 94/2021, de 21 de Dezembro, entrada em vigor em 21 de Março de 2022, dada ao art. 432º do C. Processo Penal] estabelece que os vícios da decisão e as nulidades que não devam considerar-se sanadas, previstos nos nºs 2 e 3 do art. 410º do C. Processo Penal, só podem fundamentar recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, de acórdão da relação proferido em 1ª instância (alínea a) do nº 1 do art. 432º do C. Processo Penal), ou de acórdão, em recurso per saltum, do tribunal de júri ou do tribunal colectivo que tenha aplicado pena de prisão superior a 5 anos (alínea c) do nº 1 do art. 432º do C. Processo Penal). Já o mesmo não acontece nos casos subsumíveis à previsão da alínea b) do nº 1 do art. 432º do C. Processo Penal, pois aqui, estabelece-se a recorribilidade para o Supremo Tribunal de Justiça das decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas relações,, em recurso, nos termos do art. 400º do C. Processo Penal, não se contemplando como fundamento do recurso, os vícios e as nulidades previstas nos nºs 2 e 3 do art. 410º do mesmo código. Concordantemente, o art. 434º do C. Processo Penal [igualmente na redacção da Lei nº 94/2021, de 21 de Dezembro], restringe o recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça ao reexame da matéria de direito, apenas excepcionando da restrição imposta, o disposto nas alíneas a) e c) do nº 1 do art. 432º. Assim, os vícios e as nulidades previstas nos nºs 2 e 3 do art. 410º do C. Processo Penal, não podem, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 432º, nº 1, b) e 434º, ambos do mesmo código, fundamentar recurso de acórdãos da relação, tirados em recurso, sendo este, entendimento pacífico do Supremo Tribunal de Justiça (entre outros, acórdãos de 24 de Abril de 2024, processo nº 2634/17.5T9LSB.L1.S1, de 29 de Fevereiro de 2024, processo nº 9153/21.3T8LSB.L1.S1, de 29 de Fevereiro de 2024, processo nº 864/20.1JABRG.G1.S1, de 15 de Fevereiro de 2024, processo nº 135/22.9JAFUN.L1.S1, de 7 de Dezembro de 2023, processo nº 356/20.9PHLRS.L1.S1, de 8 de Novembro de 2023, processo nº 651/18.7PAMGR.C3.S1, de 1 de Março de 2023, processo nº 589/15.0JABRG.G2.S1 e de 23 de Março de 2022, processo nº 4/17.4SFPRT.P1.S1, todos in www.dgsi.pt). Ressalvado fica, no entanto, o conhecimento oficioso dos vícios previstos no nº 2 do art.410º do C. Processo Penal (Acórdão nº 7/95, de 19 de Outubro, DR I-A, de 28 de Dezembro de 1995), se a correcta decisão de direito a proferir pelo Supremo Tribunal de Justiça for impossibilitada pela sua existência. E como, infra, veremos, é precisamente esta situação que entendemos ocorrer nos autos. * * Da nulidade do acórdão recorrido por excesso de pronúncia e por omissão de pronúncia 1. Alega a arguida – conclusões L, M e N – que, tendo invocado a inconstitucionalidade da interpretação do art. 105, nº 1 do C. Processo Penal que entende ter sido feita no despacho da 1ª instância objecto do recurso interlocutório, no sentido de ser admissível a redução do prazo ali previsto, sem justificação bastante, esta questão não foi conhecida no acórdão da Relação de Lisboa pelo que, é o mesmo nulo, nos termos do art. 379º, nº 1, c) do C. Processo Penal. Alega a arguida – conclusões XXXX a BBBBB – que o acórdão da Relação de Lisboa considerou suficiente para a verificação de uma conduta que conduziu ao resultado morte a expressão “falta de cuidados neonatais que se impunham”, quando a mesma é vaga e indeterminada e por isso, proibida pela lei, vindo o próprio tribunal a quo a explicitá-la, dando-lhe o sentido de cuidados necessários à sobrevivência de um recém-nascido, como, cuidados de agasalho, cuidados de higiene, cuidados de alimentação e cuidados médicos imediatos, o que não é admissível, sendo, em consequência, nulo o acórdão da 1ª instância por falta de fundamentação, e sendo nulo o acórdão da Relação por excesso de pronúncia. Finalmente, alega a arguida – conclusões XXXX a BBBBB – que o preenchimento do tipo de homicídio terá ocorrido por omissão, e o acórdão da Relação, contrariamente ao que lhe era imposto pelo art. 10º, nº 3 do C. Penal, referiu, mas não se pronunciou efectivamente, sobre a possibilidade de aplicação da atenuação especial ali prevista, mais uma vez se verificando a omissão de pronúncia. Tenhamos presente que o objecto do recurso interposto pela arguida para o Supremo Tribunal de Justiça é o acórdão da Relação de 19 de Dezembro de 2024 e não, o acórdão da 1ª instância de 12 de Julho de 2024, pelo que, não haverá que conhecer nulidades a este apontadas, designadamente, a falta de fundamentação. Tenhamos também presente que, nos termos do disposto no nº 4 do art. 425º do C. Processo Penal, aos acórdãos proferidos em recurso é correspondentemente aplicável o disposto nos arts. 379º e 380º do mesmo código. O C. Processo Penal regula o regime específico da nulidade da sentença penal no seu art. 379º. O nº 1 deste artigo prevê as três nulidades da sentença penal, a saber: na alínea a) a falta de fundamentação; na alínea b) a condenação por factos diversos dos descritos na acusação ou a pronúncia, se a houver e; na alínea c) a omissão e o excesso de pronúncia. In casu, a arguida assaca ao acórdão da Relação a nulidade por omissão de pronúncia e a nulidade por excesso de pronúncia. Dispõe o art. 379º do C. Processo Penal, na parte em que agora releva: 1 – É nula a sentença: (…); c) Quando o tribunal deixe pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento. (…). Assim, existe omissão de pronúncia quando o tribunal não conheça de questões que devesse apreciar, nestas se incluindo as de conhecimento oficioso e as que foram submetidas à apreciação do tribunal pelos sujeitos processuais, desde que sobre elas não esteja legalmente impedido de se pronunciar. Por outro lado, é pacificamente entendido que por questão se deve considerar o problema concreto, de facto ou de direito, a decidir, e não também, os motivos, os argumentos, os pontos de vista e as posições doutrinárias convocados pelos sujeitos processuais em abono da pretensão formulada (Oliveira Mendes, Código de Processo Penal Comentado, obra colectiva, 2014, Almedina, pág. 1182, José Mouraz Lopes, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo IV, 2022, Almedina, pág. 801, e acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 6 de Março de 2023, processo nº 3673/21.7JAPRT.P1.S1, de 31 de Janeiro de 2024, processo nº 5037/14.0TDLSB.L1.S1, de 11 de Janeiro de 2024, processo nº 217/22.7PVLSB.L1.S1, 13 de Setembro de 2023, processo nº 257/13.7TCLSB.L1.S1 e de 24 de Janeiro de 2018, processo nº 388/15.9GBABF.S1, todos in www.dgsi.pt). E existe excesso de pronúncia quando o tribunal conheça de questões de que não podia conhecer. Dito isto. a. Conforme já referido, a arguida alega que o acórdão recorrido omitiu pronúncia porque, tendo invocado no recurso interlocutório que interpôs para a Relação a inconstitucionalidade da interpretação que entende ter sido feita pela 1ª instância relativamente ao disposto no nº 1 do art. 105º do C. Processo Penal, dela não conheceu aquele tribunal. Com ressalva do respeito devido, não tem razão. Explicando. Na motivação do recurso intercalar a arguida formulou, além de outras, as seguintes conclusões: WW) A consequência da errada interpretação normativa, pelo Tribunal a quo, dos preceitos legais que a recorrente considera terem sido violados, produziu, em forma sequencial, a violação do princípio do contraditório; a recorrente considera que os prazos processuais são deferidos por lei (e não pelo Tribunal); e que, como tal, tem o direito de exercer a faculdade processual referida, até ao termo do mesmo prazo; o Tribunal a quo considera que os prazos são concedidos pelo Tribunal e que podem ser encurtados quando circunstâncias externas assim o ditarem – e, inclusive, podem ser encurtados de uma forma quase imperceptível (e de forma contrária à clareza que deve nortear a redacção dos actos processuais) e, pasme-se: tal encurtamento pode abranger actos ainda nem sequer notificados! XX) Ora, in claris non fit interpretatio – custa-nos aceitar uma interpretação, feita pelo Tribunal a quo, tão contrária ao que resulta do elemento literal dos preceitos em questão, e tão contrária ao que resulta de jurisprudência pacífica. YY) Com efeito, as referidas interpretações parecem ter sido realizadas com o propósito de tentar justificar a violação do direito de defesa da arguida, materializado no direito ao contraditório – o direito a pretender ver debatida, discutida e esclarecida a matéria constante dos relatórios periciais juntos aos autos. ZZ) Pelo que o Tribunal a quo, ao ter, através do despacho em crise, datado de 28.06.2024, rejeitado a arguição de nulidade ou irregularidade do despacho que designou a data das alegações orais (prolatado em audiência de 21.06.2024), violou os 105.º/1, 113.º/2, 323.º/f, e 327.º/2, todos do CPP, e o art. 32.º/5 da Constituição da República, AAA) Pelo que deve ser anulado ou revogado, e substituído por outro, que, por seu turno, determine verificada a nulidade ou irregularidade do referido despacho e, como tal, o anule, decretando-o desprovido de qualquer efeito jurídico; e que, consequentemente, anule todo o processado a partir de então, a saber, a) as alegações produzidas, b) o douto Acórdão entretanto prolatado pelo Tribunal, datado de 12.07.2024, c) o douto despacho datado de 03.07.2024 (que rejeitou o requerimento da recorrente respeitante à matéria da prova pericial) e ordene ao Tribunal a quo que, reabrindo a audiência, permita o cabal exercício, pela recorrente, do contraditório relativamente aos relatórios periciais juntos autos e notificados à recorrente nos dias 21.06.2024 (em audiência) e 24.06.2024 (via Citius). No acórdão recorrido, o Tribunal da Relação, conhecendo desta questão, concluiu assim: (…). Ora o encurtamento do prazo supletivo de 10 dias pode acontecer em certos casos. Desde logo, quando as partes a isso não se opuserem e ainda que não haja renúncia expressa, mas tem também entendido a jurisprudência que, em situações de urgência, pode haver encurtamento de prazos se essa restrição se afigurar razoável, ou seja, se não resultar alguma constrição dos direitos de defesa, quando estes estão em cotejo com outros como os da celeridade e da prossecução do interesse público em investigar os crimes e punir os seus responsáveis (cfr. o Acórdão do STJ de 25.10.2018, proc. 78/16.5PWLSB-A.S1, citado por António Henriques Gaspar, Código de Processo Penal Comentado, 3ª Edição Revista, p. 299). Tal afigura-se ser o caso dos autos. Estamos no âmbito de um processo urgente, estando a arguida sujeita a medida de coacção de permanência na habitação; a inquirição da prova testemunhal encontrava-se finda; aproximava-se o período de férias judiciais; e o prazo para o exercício do contraditório cifrava-se em 6 dias, o que se afigura razoável para a análise de 2 Relatórios, um dos quais nem sequer tinha conclusões. Relevante é, ainda, a circunstância de a arguida não ter vindo requerer qualquer esclarecimento às Senhoras Peritas antes da realização das alegações orais, mas tendo enviado requerimento, via citius, nesse sentido, no mesmo dia 1.07.2024 (pelas 23.31.32h). Concluindo, não se mostra violado o direito ao exercício do contraditório por se entender razoável, dadas as circunstâncias, o encurtamento do prazo para aquele exercício. Termos em que se decide que a decisão recorrida não merece reparo. Pois bem. Pretende a arguida ter submetido ao conhecimento da Relação de Lisboa a inconstitucionalidade em causa, nos termos que constam do ponto 54 do corpo da motivação e da sua conclusão ZZ). O referido ponto e a referida conclusão têm, exactamente, a mesma redacção. Cremos não ser sustentável, atento o teor da conclusão ZZ), acima transcrita, defender que nela foi invocada a inconstitucionalidade de determinada interpretação normativa do art. 105º, nº 1 do C. Processo Penal, por violação do princípio do contraditório, quando dela consta apenas que o despacho em crise violou o art. 32º, nº 5 da Constituição da República Portuguesa. Não tendo sido invocada, em sentido próprio, a inconstitucionalidade de uma dada interpretação normativa, inexiste questão, a que a Relação de Lisboa tivesse de emitir pronúncia. Ainda que assim não fosse, tendo a Relação de Lisboa decidido que não se mostra violado o direito ao exercício do contraditório por se entender razoável, dadas as circunstâncias, o encurtamento do prazo para aquele exercício, fundando a arguida a invocada inconstitucionalidade na violação deste princípio, evidente se torna que, de forma implícita, dela conheceu o tribunal a quo, não a admitindo, pelo que, também por esta via, não ocorreu omissão de pronúncia. b. Alega também a arguida, conforme dito, que o crime de homicídio qualificado por cuja prática foi condenada, foi cometido por omissão, e que a Relação de Lisboa, contrariamente ao que lhe era imposto pelo art. 10º, nº 3 do C. Penal, referiu, mas não se pronunciou, de forma efectiva, sobre a possibilidade de aplicação da atenuação especial da pena. Vejamos. Dispõe o art. 10º do C. Penal, com a epígrafe «Comissão por acção e por omissão»; 1 – Quando um tipo legal de crime compreender um certo resultado, o facto abrange não só a acção adequada a produzi-lo como a omissão da acção adequada a evitá-lo, salvo se outra for a intenção da lei. 2 – A comissão de um resultado por omissão só é punível quando sobre o omitente recair um dever jurídico que pessoalmente o obrigue a evitar esse resultado. 3 – No caso previsto no número anterior, a pena pode ser especialmente atenuada. Resulta dos factos provados, em síntese, que a arguida entrou em trabalho de parto no dia ... de Março de 2023, a hora não concretamente apurada, mas antes das 17h, na casa de banho, pariu uma criança do sexo feminino de termo e que nasceu com vida, criança que a arguida, imediatamente após o nascimento, colocou num saco plástico fechado, que dissimulou com uma toalha, num canto do quarto, assim a ocultando, pelas 17h/18h, com a chegada da sua mãe a casa, foi prestada à arguida assistência de emergência, e sendo questionada, negou ter tido um parto, assegurando que nenhuma ajuda era prestada à filha recém-nascida, foi conduzida ao hospital onde foi admitida pelas 18h45m e só depois de assistida e de se encontrar estabilizada, admitiu ter tido uma criança, pelo que, só pelas 21h45m a PSP encontrou, no quarto da arguida, o cadáver da recém-nascida, cuja morte se ficou a dever “à falta de cuidados neonatais, que se impunham”, que a arguida não prestou e impediu que lhe fossem prestados, a arguida sabia que a filha tinha nascido com vida e, ao coloca-la no saco de plástico, como colocou, sabia que ela carecia e cuidados básicos neonatais, e que, ao actuar como actuou, lhe provocaria a morte, o que quis, agindo de forma voluntária e consciente, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei. Esta factualidade torna a arguida autora material de um crime de homicídio na pessoa da sua filha recém-nascida, praticado por omissão, resultando a posição de garante da arguida – o dever jurídico que pessoalmente a obrigava a evitar o resultado – da relação de parentesco com a vítima (art. 1874º do C. Civil). A arguida suscitou a questão da aplicação da atenuação especial da pena, nos termos do art. 10º, nº 3 do C. Penal, no recurso que interpôs do acórdão condenatório da 1ª instância [que dela não conheceu] para a Relação de Lisboa [conclusões LLLLLLL a SSSSSSS]. Acontece que, tendo sido notificada [por despacho de 28 de Outubro de 2024] para aperfeiçoar, resumindo as razões do pedido, as conclusões formuladas,, veio a arguida apresentar novas conclusões [em 13 de Novembro de 2024, que passaram de A a NNNNNN], mas nelas nada referiu quanto à questão da eventual atenuação especial da pena, pela via do art. 10º, nº 3 do C. Penal. Já tivemos oportunidade de referir que as questões a conhecer pelo tribunal ad quem, além das de conhecimento oficioso, são as que se encontram sumariadas nas conclusões formuladas pelo que, tendo a arguida deixado ‘cair’ a questão da atenuação especial da pena, com o apontado fundamento, nas novas conclusões formuladas, esta questão deixou de ser questão submetida pela recorrente ao conhecimento da Relação de Lisboa. Logo, o acórdão da Relação não tinha que dela conhecer. Assim, o acórdão recorrido de 19 de Dezembro de 2024 não enferma de nulidade por omissão de pronúncia. c. Por fim, alega a arguida que o acórdão da Relação padece de nulidade por excesso de pronúncia, pois entendeu a expressão “falta de cuidados neonatais que se impunham” como conduta concreta apta a conduzir ao resultado morte, quando se trata de um conceito vago e indeterminado – causador da nulidade do acórdão da 1ª instância por falta de fundamentação – que a própria Relação concretizou, dando-lhe o sentido de cuidados de agasalho, de limpeza, de alimentação e de assistência médica imediata, tendo, por esta via, incorrido em excesso de pronúncia. Vejamos. Com relevo para a questão a decidir, resulta, em síntese, da matéria de facto provada fixada pelas instâncias, em síntese [pontos 1.11 a 1.22] que, a arguida entrou em trabalho de parto no dia ... de Março de 2023, a hora não concretamente apurada, mas antes das 17h, na casa de banho da sua residência, pariu uma criança do sexo feminino de termo e que nasceu com vida, que imediatamente após o nascimento puxou o cordão umbilical que a unia à filha e de seguida, colocou-a num saco de plástico fechado, que dissimulou com uma toalha, e colocou-o num canto do quarto, assim ocultando a recém-nascida, que entre as 17/18h, com a chegada da mãe da arguida a casa, foi-lhe prestada assistência de emergência no quarto onde, questionada, negou ter tido um parto, assegurando que não era prestada assistência à filha, que conduzida a arguida ao hospital onde entrou pelas 18h45, só depois de assistida e estabilizada admitiu ter tido a criança, a qual, já cadáver, foi encontrada no quarto, pelas 21h45 pela PSP, que a morte da recém-nascida se deveu “à falta de cuidados neonatais, que se impunham”, que a arguida não prestou e impediu que fossem prestados. Conforme já referido, esta factualidade preenche o tipo objectivo de um crime de homicídio [sem cuidar da sua qualificação ou não], cometido por omissão. A conduta omissiva da arguida está, obviamente, descrita: depois de colocar a filha num saco, dissimulou-o com uma toalha, colocou-o num canto do chão do quarto e a partir daqui, nada mais fez relativamente à recém-nascida, nem, tão-pouco, informou terceiros, designadamente, da sua presença no quarto, mantendo o seu mutismo sobre o sucedido durante algum tempo. É do conhecimento geral que a um recém-nascido, quer pela sua estrutural fragilidade, quer pelo violência que um parto sempre significa, devem ser prestados, de imediato, cuidados vários de natureza básica, globalmente denominados por cuidados neonatais [porque relativos a recém-nascido], cuidados que a arguida não podia ignorar, quer porque já era mãe de uma anterior criança, quer porque frequentava o ensino superior numa área de saúde. Assim, a Relação de Lisboa ao explicitar, na fundamentação de direito do acórdão de 19 de Dezembro de 2024 [e não, levando-os aos factos provados] o que considerava serem, em tese, esses cuidados [e fê-lo nos seguintes termos: «Os factos provados não são conceitos vagos, imprecisos e indeterminados. Descrevem os factos relativos à ocultação da gravidez, ao dia em que ocorreu o parto, o modo como decorreu o parto e a ocultação da vítima. Quanto à concreta causa de morte, é a que resulta da autópsia médico-legal: a morte ficou a dever-se “à falta de cuidados neonatais, que se impunham” e estes, desde logo, têm que ser entendidos como os cuidados necessários à sobrevivência de um recém-nascido, como agasalhá-lo, limpá-lo, alimentá-lo e providenciar para que seja visto de imediato por um médico. É verdade que os factos provados não imputam à recorrente qualquer acção que tenha conduzido à morte da sua filha recém-nascida, mas é sabido que nos crimes de resultado, o art. 10º do Cód. Penal faz equivaler a omissão à acção (cfr. o nº 1: “Quando um tipo legal de crime compreender um certo resultado, o facto abrange não só a acção adequada a produzi-lo como a omissão da acção adequada a evitá-lo, salvo se outra for a intenção da lei”) ainda que o nº 2 do normativo ressalve que “A comissão de um resultado por omissão só é punível quando sobre o omitente recair um dever jurídico que pessoalmente o obrigue a evitar esse resultado”, ou seja, que o obrigue a agir enquanto garante da não produção do resultado – e é evidente que quando a vítima é um recém-nascido, e a mãe está sozinha na altura do parto, e nos momentos subsequentes até à altura da morte da vítima, que o garante é a mãe, o que resulta dos factos provados. E uma vez que estes factos provados resultavam da acusação, não foi por qualquer forma ofendido o contraditório e o direito de defesa constitucionalmente consagrado.»], mais não fez do que concretizar a situação. Na verdade, consta dos factos provados o que a arguida fez, relativamente à filha e que foi, depois de a encerrar no saco plástico, nada fazer, até ao momento em que, já no hospital, confirmou o parto e o local onde se encontrava a recém-nascida, e é, precisamente, este nada fazer, esta omissão que, de acordo com as conclusões do relatório da autópsia, conduziu ao resultado morte [conclusão 2ª – Tendo em conta a informação disponível, a autópsia e os exames complementares realizados, é possível afirmar que o feto terá “respirado”, mas que, em virtude da sua dependência inerente à condição de recém-nascido, não terá resistido à falta de cuidados neonatais, que se impunham.]. Como cremos ser evidente, a Relação de Lisboa conheceu, não de uma questão de que não podia tomar conhecimento mas, bem pelo contrário, de uma questão que lhe foi expressamente submetida pela arguida no recurso interposto, e em cuja explicação argumentativa, procedeu a uma concretização do que sejam cuidados neonatais. Em suma, não padece o acórdão recorrido de nulidade por excesso de pronúncia. * Da existência dos vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e de erro notório na apreciação da prova 2. Afirma a arguida – entre outras, conclusões BB) a RR), DDD) a LLL), QQQ) a SSS) – que o acórdão recorrido enferma de vícios decisórios, concretamente, de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e de erro notório na apreciação da prova, porque tendo sido levada à matéria de facto provada toda a factualidade descrita no relatório de perícia de psicologia forense que descreveu, de forma detalhada, as suas [da arguida] características psicológicas e de personalidade, dele se distanciou a Relação, como o também tinha feito a 1ª instância, sem o questionar abertamente, mas incumprindo o exigido pelo art. 163º do C. Processo Penal, e não acatando o juízo científico dele constante que, caso tivesse sido acatado, conduziria a um distinto iter processual e substantivo, do que resulta não ser possível proferir a adequada decisão de direito, dado o erro notório verificado face ao teor da prova pericial e a insuficiência da matéria de facto provada, pois constando do relatório pericial que a arguida padece de vários transtornos da personalidade, a sua conduta foi apreciada como se de uma pessoa saudável fosse, sem que tenha ficado apurado se a mesma, na data dos factos, tinha capacidade mental e emocional para gerir a situação e, portanto, estava capaz de prestar os cuidados que se entende terem sido omitidos, se, numa outra perpsectiva, a sua capacidade psíquica era compatível ou não com um juízo de especial censurabilidade, ou mesmo, se não se encontraria sob a influência perturbadora do parto, sendo certo que o acórdão recorrido sustenta a afirmada consciência, discernimento e livre auto-determinação da arguida na dinâmica dos acontecimentos por esta referida na audiência e que entende corresponder à dinâmica por ela relatada na realização do exame pericial de psicologia, com esta justificação afastando o referido relatório. Quanto a esta questão, o Ministério Público, quer na Relação, quer no Supremo Tribunal de Justiça, concordando com a arguida, manifestou o entendimento de que se verificam os vícios decisórios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e de erro notório na apreciação da prova. Vejamos. Já anteriormente dissemos que os vícios e as nulidades previstas nos nºs 2 e 3 do art. 410º do C. Processo Penal, não podem fundamentar recurso de acórdãos da relação, tirados em recurso, sendo este, aliás, entendimento pacífico do Supremo Tribunal de Justiça (arts. 432º, nº 1, b) e 434º do C. Processo Penal). Ressalvámos, contudo, o conhecimento oficioso dos vícios previstos no nº 2 do art.410º do C. Processo Penal (Acórdão nº 7/95, de 19 de Outubro, DR I-A, de 28 de Dezembro de 1995), nos casos em que a correcta decisão de direito a proferir pelo Supremo Tribunal de Justiça se mostre impossível, devido à sua existência. E é esta precisamente a situação que ocorre nos autos, como se passa a demonstrar. Os vícios decisórios previstos no nº 2 dos art. 410º do C. Processo Penal – a) a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, b) a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, e c) o erro notório na apreciação da prova – incorporam defeitos lógicos da decisão penal, rectius, da sentença, e não, do julgamento, que se evidenciam pelo respectivo texto, por si só ou em conjugação com as regras da experiência comum, o que significa que, para a sua comprovação, não é legalmente admissível lançar mão de elementos alheios à decisão, ainda que constem do processo respectivo. Por sua vez, as regras da experiência são definições ou juízos hipotéticos de conteúdo genérico, independentes do caso concreto sub judice, assentes na experiência comum, e por isso independentes dos casos individuais, em cuja observação se alicerçam, mas para além dos quais têm validade (Cavaleiro de Ferreira,, Curso de Processo Penal, II, pág. 30), são as máximas da experiência que todo o homem de formação média conhece (Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, 3, 3ª Reimpressão, 2020, Universidade Católica Editora, pág. 324), são as regras extraídas de casos semelhantes portanto, a inferência que permite afirmar que uma determinada categoria de casos é normalmente acompanhada de uma outra categoria de factos (Santos Cabral, Prova Indiciária e as Novas Formas de Criminalidade, Julgar, Ano 17, 2012, Edição da ASJP, pág. 24), são regras gerais de carácter científico com validade universal ou afirmações do princípio da normalidade, id quod plerumque accidit, segundo o qual, perante a ocorrência ‘normal’ de um facto determinado, se admitem produzidos igualmente todos os factos que o costumam acompanhar (Luís Filipe Pires de Sousa, Prova por Presunção no Direito Civil, 3ª Edição, 2017, pág. 88). Assim, perante um facto assente, o juiz deve presumir e dar como provada a ocorrência de outro facto, que é consequência normal daquele, segundo os conhecimentos colhidos na experiência comum (Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, Teoria da Prova, Volume 2 Tomo 1, 2024, UCP Editora, pág. 125). Brevitatis causa, diremos que se verifica o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (art. 410º, nº 2, a) do C. Processo Penal) quando a factualidade provada não permite, por ser escassa, a decisão de direito proferida ou, dito de outro modo, quando a matéria de facto provada não é apta a fundamentar a solução de direito adoptada designadamente, porque o tribunal, desrespeitando o princípio da investigação ou da descoberta da verdade material, não averiguou toda a matéria contida no objecto do processo, relevante para a decisão, e cujo apuramento conduziria à solução legal (Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 9ª Edição, 2020, Rei dos Livros, pág. 74 e seguintes e Luís Lemos Triunfante, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, obra colectiva, Tomo V, 2024, Almedina, pág. 192 e seguintes). Trata-se de um vício que se encontra directamente relacionado com a delimitação do objecto do processo, tal como este emerge da acusação ou da pronúncia, da contestação e da discussão da causa (art. 339º, nº 4 do C. Processo Penal). Com efeito, só depois de determinado o objecto do processo, e cotejado o mesmo com a decisão de facto – portanto, com os factos provados e os factos não provados – será possível apurar se algum facto escapou à apreciação do tribunal, deste modo fazendo nascer o vício. O vício de contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão (art. 410º, nº 2, b) do C. Processo Penal), pode apresentar-se sob distintas vestes, designadamente corporizando uma oposição lógica, reciprocamente excludente, entre factos provados, entre factos provados e factos não provados, entre a matéria de facto e a respectiva motivação de facto, entre os argumentos da própria motivação de facto, ou mesmo entre a fundamentação e a decisão. Por fim, ocorre o vício de erro notório na apreciação da prova (art. 410º, nº 2, c) do C. Processo Penal) quando o tribunal a valorou contra as regras da experiência comum, contra critérios legalmente fixados ou contra as leges artis, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de o erro não passar despercebido ao homem médio, ao cidadão comum, por ser evidente, grosseiro, ostensivo. Dizendo de outro modo, trata-se de um vício de raciocínio na apreciação das provas, que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste, basicamente, em dar-se como provado o que não pode ter acontecido, mediante a formulação de juízos ilógicos e/ou arbitrários (Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, 3, 3ª Reimpressão, 2020, Universidade Católica Editora, pág. 326 e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 9ª Edição, 2020, Rei dos Livros, pág. 81). Dito isto. 3. A decisão de facto da 1ª instância, mantida pela Relação de Lisboa, no que respeita ao desenrolar do parto, à acção exercida sobre a recém-nascida e à assistência de emergência e hospitalar prestadas à arguida, até esta ter reconhecido que tivera uma criança, e à detecção desta pela PSP, na residência [pontos 1.11 a 1.24 dos factos provados] coincide, com ligeiras excepções de pormenor, com a matéria que consta dos pontos 11 a 24 da acusação, ressalvando-se, no entanto, o segmento «…tal como aliás, já havia decidido fazer, desde que teve conhecimento que se encontrava novamente grávida.» que consta da parte final do ponto 22 da acusação [em linha, aliás, com a parte final do ponto 5 da mesma peça processual] e que não tem reflexo no ponto 1.22 dos factos provados [nem, tão-pouco, nos factos não provados]. Sintetizando a matéria de facto provada, temos que a arguida, que havia logrado dissimular a sua gravidez até ao parto [ponto 1.9 dos factos provados], entrou em trabalho de parto no dia ... de Março de 2023, a hora não apurada, mas antes das 17h, quando se encontrava, só, na sua residência. Pariu, na casa-de-banho, uma criança do sexo feminino, que nasceu com vida, tendo respirado. Imediatamente após o nascimento da filha, puxou de si, com a mão, o cordão umbilical que à unia à recém-nascida, e de seguida, colocou-a num saco de plástico, fechado, e colocou-a, dissimulada com uma toalha, num canto do quarto, assim a ocultando. Tendo a mãe da arguida chegado à residência entre as 17h e as 18h do mesmo dia, e porque esta mantinha fortes hemorragias, foram accionados os meios de socorro de emergência, que foram prestados no quarto onde, a um canto, se encontrava a recém-nascida, e apesar de ter sido questionada, a arguida negou ter tido um parto, assegurando que nenhum socorro era prestado à filha. Só no hospital, onde deu entrada pelas 18h45 do mesmo dia, e depois de assistida e estabilizada, confrontada com as evidências médicas, admitiu ter dado à luz uma criança, vindo a PSP, nesta decorrência, pelas 21h45 do mesmo dia, a encontrar no quarto da residência, no saco de plástico, o cadáver da recém-nascida. A morte desta ficou a dever-se à falta de cuidados neonatais que se impunham, e que a arguida não prestou e impediu que fossem prestados. A arguida sabia que a filha havia nascido com vida e que, colocando-a no interior do saco de plástico, sabendo que a mesma carecia da prestação de cuidados básicos neonatais para sobreviver, lhe provocaria a morte, resultado que quis, tendo agido de forma deliberada, livre e consciente, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei. A indeterminação do momento em que a arguida iniciou o trabalho de parto e do desconhecimento da hora aproximada do nascimento da criança [quando os intervalos fixados poderiam, sem dificuldades de maior, ter sido significativamente estreitados, como resulta da leitura da motivação de facto do acórdão da 1ª instância, quando menciona a hora da ultima mensagem enviada pela arguida à mãe e a hora a que esta solicitou a ajuda dos meios de emergência], suscitam, em si mesmas, algumas dificuldades de harmonização, na medida em que, tendo a morte ocorrido pela falta de prestação de cuidados neonatais à recém-nascida, no caso, omitidos pela arguida, sua progenitora, fica por saber, por um lado, se esta teve tempo para os prestar e, por outro lado, se estava em condições físicas e mentais para os prestar. A questão complica-se ainda mais, se atentarmos no teor do ponto 4.23 [referido como proveniente da contestação da arguida] dos factos provados, que é o seguinte: - Quando a arguida colocou a vítima no saco, esta já não respirava. É do conhecimento comum que um ser humano que deixou de respirar, está morto. Da síntese de facto, supra feita, resulta que a arguida, logo após o nascimento da filha, rompeu o cordão umbilical que as unia e de seguida, colocou-a no saco de plástico, que dissimulou com a toalha, depositando-a no canto do quarto. Se a esta rápida sucessão de acontecimentos juntarmos o teor do ponto 4.23 e, portanto, se a recém-nascida já não respirava quando foi colocada pela arguida no saco de plástico, estando, pois, já morta, parece-nos evidente que, nesta sequência cronológica, nenhuns cuidados neonatais lhe poderia ter a arguida prestado, porque não teria disposto sequer de tempo útil para tal. Acresce que também o elemento subjectivo do tipo do crime por cuja prática foi condenada a arguida, pressupõe que esta colocou a filha, ainda com vida, no saco de plástico, o que choca frontalmente com o teor do referido ponto 4.23. Em conclusão, existe uma incompatibilidade lógica e reciprocamente excludente, entre a globalidade da matéria dos pontos 1.11 a 1.24 dos factos provados [muito particularmente, os pontos 1.13, 1.14, 1.15, parte final e 1.21, parte final], por um lado, e a matéria do ponto 4.23 dos factos provados, por outro, incompatibilidade esta que consubstancia o vício de contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, previsto no art. 410º, nº 2, b) do C. Processo Penal. 4. A narração de factos constante da acusação pública é concordante com a imputação à arguida, além do mais, da prática de um crime de homicídio qualificado. Na contestação apresentada, a arguida alertou para a circunstância de a sua condição psicológica não ser narrada na acusação, condição essa determinada pela sua primeira gravidez, pela morte do pai e pelo receio da reacção da mãe, que a conduziu à negação da sua segunda gravidez, comportando-se como se ela não existisse, vindo o parto a decorrer com enorme sofrimento e perda de sangue, com intermitência do estado de consciência e desorientação, tendo entrado no hospital em choque hipovolémico, e requereu a realização de exame psicológico e psiquiátrico para verificação de patologia do foro psíquico, compatível com a perda de consciência da realidade e de estado dissociativo da realidade. Por despacho de 2 de Fevereiro de 2024, a Mma. Juíza titular do processo ordenou a realização da requerida prova pericial. No acórdão da 1ª instância de 12 de Julho de 2024, a arguida foi condenado, além do mais, pela prática do imputado crime de homicídio qualificado, sem que o tribunal colectivo tenha colocado, ainda que por mera hipótese de raciocínio, qualquer outra possibilidade de qualificação da conduta, no âmbito dos crimes contra a vida, que não, a qualificação proveniente da acusação. Já o acórdão de 19 de Dezembro de 2024 do Tribunal da Relação de Lisboa fez uma abordagem à possibilidade de distinta qualificação jurídica, nos seguintes termos: “(…). Ainda que não de forma assertiva, a recorrente vai dizendo que se deveria degradar “a qualificação dos factos para infanticídio, p.p. no art. 136.º do CP, ou, caso assim se não entenda, para homicídio simples, p.p. no art. 131.º CP”. Nos termos do art. 136º do Cód. Penal “a mãe que matar o filho durante ou logo após o parto e estando ainda sob a sua influência perturbadora, é punida com pena de prisão de 1 a 5 anos”. Ensina Jorge Figueiredo Dias (Comentário Conimbricense ao Código Penal, Tomo I, pág. 101) que o “fundamento do privilegiamento do homicídio da criança é, pois, no nosso direito positivo actual, o estado de perturbação em que se encontra a mãe durante ou logo após o parto. E estes são simultaneamente os elementos constitutivos do tipo objectivo de ilícito. O estado de perturbação pode ser condicionado tanto endogenamente (v.g. por força de uma tendência ou mesmo de uma crise depressiva da mulher) como exogenamente (pelo particular peso que no psiquismo da mulher assume uma situação de necessidade que a atinge, seja esta situação moralmente, socialmente – v.g., a supra aludida “desonra” – ou economicamente fundada)”. No caso em análise é certo que a morte da vítima ocorre logo após o parto, mas nada nos autos revela que a recorrente tenha agido sob a influência perturbadora do parto. Sendo verdade que a recorrente deu à luz a filha sozinha, também é verdade que ela deliberadamente quis ter o filho sozinha, tendo ocultado a gravidez para o poder fazer. E mesmo na altura do parto, em que começou a sofrer dores fortes, não solicitou ajuda (nem após). Também é verdade que a recorrente sofria de depressão, mas todo o percurso da gravidez e da sua ocultação é demonstrativo que a intenção de não cuidar do bebé tinha ocorrido muito antes do parto e não sob a influência perturbadora deste. E mesmo que se possa dizer que a premeditação do homicídio não exclui a possibilidade de uma influência perturbadora do parto que possa também ter induzido ao homicídio, no caso concreto esta possibilidade está afastada, sem qualquer dúvida, pelo Relatório de Psiquiatria Forense e pelos factos ocorridos após o parto. Quem age perturbada não tenta depois esconder a vítima. Pelo exposto, entendemos que a conduta da recorrente não configura a prática de um crime de infanticídio. Quanto à subsunção da conduta da recorrente ao crime de homicídio previsto pelo art. 131º do Cód. Penal… Afigura-se claro que um crime de homicídio só pode ser simples se não houver circunstâncias que o privilegiem ou que o qualifiquem. Não foram alegadas, nem existem, circunstâncias privilegiantes. E relativamente a circunstâncias qualificativas, não há dúvida, desde logo, que pelo menos as qualificativas previstas nas alíneas a) e c) do nº 2 do art. 132º do Cód. Penal se mostram preenchidas. Com efeito, a vítima é filha da arguida e, dada a sua tenra idade (recém-nascida), era especialmente vulnerável, pois que incapaz de qualquer tipo de defesa. É certo, porém, que o homicídio não pode ser qualificado se a conduta da arguida/ recorrente não revelar especial censurabilidade ou perversidade (aquele especial tipo de culpa necessário para qualificar o homicídio). Caberá desde já aqui esclarecer que os conceitos “censurabilidade” e “perversidade” não são equivalentes. Por “especial censurabilidade” deve entender-se a forma especialmente desvaliosa como o acto criminoso é cometido, enquanto por “especial perversidade” deve entender-se as qualidades especialmente desvaliosas da personalidade do agente. No caso concreto, as circunstâncias do crime revestem “especial censurabilidade”: estamos perante uma mãe, que oculta a gravidez e que, não obstante a sua juventude, sabe que a sua própria mãe a apoia, tal como a apoiaria o pai da filha, e ainda assim desinteressa-se totalmente pela sorte da recém-nascida, indiferente à sua morte, que previu e quis, agindo com vontade livremente determinada e sabendo ser proibida a sua conduta. Pelo que forçoso é concluir que a recorrente cometeu um crime de homicídio qualificado, e não um crime de homicídio simples. (…)”. Pois bem. Face aos factos provados fixados pelas instâncias, é inquestionável que a conduta nuclear, digamos assim, da arguida demonstra que a mesma causou a morte da filha recém-nascida, logo após o parto, por omissão da prestação dos cuidados neonatais que se impunham. Esta constatação convoca, de imediato, a possibilidade de a arguida assim ter actuado, por se encontrar ainda sob a influência perturbadora do parto, em ordem a comprovar, ou não, a existência de um crime de infanticídio (art. 136º do C. Penal). Numa opção que, sempre com ressalva do devido respeito, se nos afigura de duvidosa correcção técnica, a 1ª instância levou aos factos provados, todo o relatório pericial de psicologia e todo o relatório pericial de psiquiatria, em vez de explicitar os concretos factos, neles suportados, que para si resultaram provados. Havendo que trabalhar, pois, com estes elementos, resulta do relatório pericial de psicologia forense [ponto 2 dos factos provados] que: - A arguida, a nível cognitivo, tem capacidade intelectual média (52 pontos, integrando o percentil 50/75), tendo capacidades ao nível do pensamento lógico-abstrato, organização visuo-percetiva e mobilização e manutenção dos mecanismos atencionais, que permitem um recurso eficaz ao pensamento dedutivo e indutivo; - A arguida, ao nível do funcionamento mental, apresenta sensação persistente de ansiedade generalizada, com pesadelos, medos e pensamentos de autodestruição; - A arguida apresenta, como características de personalidade, prevalência de traços evitantes, esquizoides, compulsivos, dependentes e autodestrutivos, pautando-se por uma necessidade de aceitação não expressa, com acentuada vulnerabilidade à rejeição, e desaprovação; - A arguida apresenta um funcionamento promotor de acentuado desajustamento emocional, que emerge com significado clínico, denotando sensibilidade interpessoal (sentimentos de inadequação e inferioridade), depressão (afecto e humor disfórico, com sinais de isolamento e perda de energia vital), ansiedade (traço, manifesta em tensão, agitação e nervosismo), ansiedade fóbica (medo persistente, irracional, e desproporcionado, com comportamentos de evitamento), e psicoticismo (indicadores de estilo de vida esquizoide, com isolamento interpessoal); - A arguida apresenta sintomas associados a características depressivas de longa duração, mas também situacionais, assinalando-se na atualidade, a presença de sintomatologia depressiva severa, (31 pontos), ressalvando-se o desânimo, pessimismo, sentimentos de fracasso, punição, ódio de si mesma, motivação de cariz suicida, distorções da imagem corporal, e problemas de sono; - A arguida apresenta , um modo de funcionamento mental, pautado por uma abordagem relacional, ambivalente, que se conceptualiza como fatores de risco individual, associada a traços de personalidade Evitantes, Esquizoides, Compulsivos, Dependentes, e Autodestrutivos, que originam uma dinâmica emocional, promotora de desajustamento psicoafectivo, baixa auto-estima, sentimentos de inferioridade, que se acentua em situações indutoras de stresse e desafio, nomeadamente, aquando da emergência do medo de rejeição percebido, perante a qual, não evidência recursos de enfrentamento adequados e eficazes, originando um estado de desorientação, e incapacidade para enfrentar as exigências com que se deparam. Por sua vez, resulta do relatório da perícia médico-legal de psiquiatria [ponto 3 dos factos provados] que: - A arguida apresenta sintomatologia compatível com os diagnósticos de Episódio Depressivo (CID-10 : F 32, OMS, 1992) situação clínica que estaria presente à data dos factos, que se caracterizam pela presença de sintomas tais como humor deprimido (tristeza patológica), avolia (falta de vontade de fazer as atividades) e anedonia (falta de prazer); - A arguida não apresenta sintomas psicóticos com distorção da realidade e da capacidade de se auto-determinar (i.e., delírios ou alucinações); - A arguida não apresenta anomalia psíquica grave (para efeitos do art. 20º do C. Penal); - Relativamente aos factos, não se apura a presença de sintomas abnormes tais como delírios ou alucinações que pudessem ter de algum modo toldado a capacidade de entendimento ou de determinação da arguida; - Não há evidência que permita afirmar que, à data dos factos, a sua conduta tenha sido independente da sua vontade (ou seja acidental) e gerada por fatores psicopatológicos que não podia dominar e/ou que teria dificuldade em controlar, fruto de descompensação abnorme resultante de doença(s); - Não se encontram reunidos os pressupostos explanados nem no n.º 1 nem no n.º 2 do 20º Artigo do Código Penal, pelo que, caso sejam provados os factos, a arguida integrará pressupostos médico-legais de imputabilidade. Há lugar à prova pericial quando a percepção ou apreciação dos factos exigirem especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos (art. 151º do C. Processo Penal). A perícia é realizada, por regra, em estabelecimento, laboratório ou serviço oficial apropriado (art. 152º, nº 1 do C. Processo Penal), optando o legislador por um sistema de perícia oficial, sendo as perícias médico-legais e forenses da competência do Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses, IP (art. 3º, nºs 1 e 2, b), do Dec. Lei nº 166/2012, de 31 de Julho – Lei Orgânica do INMLCF, IP), e com regime previsto nos arts. 14º a 19º da Lei nº 45/2004, de 19 de Agosto. Os relatórios supra referidos integram-se numa perícia médico-legal e como tal, o juízo técnico- científico que encerram tem o especial valor probatório que lhe é conferido pelo art. 163º, nº 1 do C. Processo Penal. Por esta razão, a prova pericial é incluída no conjunto comummente designado de prova tarifada, cuja inobservância origina a existência do vício de erro notório na apreciação da prova. Tendo sido levado à matéria de facto provada, definitivamente fixada pelas instâncias, o teor do relatório da perícia psicológica e o teor do relatório da perícia psiquiátrica, não podemos dizer que as instâncias divergiram do juízo científico expresso (art. 163º, nº 2 do C. Processo Penal). Na verdade, as instâncias acataram, desde logo, o juízo médico-legal de imputabilidade da arguida. Contudo, não obstante ter o teor dos relatórios integrado a matéria de facto provada, acontece que o quadro mental e psicológico por eles desenhado, relativamente à arguida, não mereceu a devida ponderação, nem pela 1ª instância, nem pela Relação de Lisboa, no que respeita à problemática da influência perturbadora do parto, referida ao crime de infanticídio, sendo indiscutível, como é, que a morte da recém-nascida ocorreu logo após o parto. Assegurando o relatório psicológico, além do mais, que a arguida apresenta, como características de personalidade, prevalência de traços evitantes, esquizoides, compulsivos, dependentes e autodestrutivos, pautando-se por uma necessidade de aceitação não expressa, com acentuada vulnerabilidade à rejeição, e desaprovação e sintomas associados a características depressivas de longa duração e assegurando o relatório psiquiátrico que a arguida apresenta sintomatologia compatível com os diagnósticos de Episódio Depressivo (CID-10 : F 32, OMS, 1992) situação clínica que estaria presente à data dos factos, que se caracterizam pela presença de sintomas tais como humor deprimido (tristeza patológica), avolia (falta de vontade de fazer as atividades) e anedonia (falta de prazer), era imperativo que este quadro psicológico fosse conjugado com outros elementos de facto, v.g., as condições físicas e de saúde da arguida durante e após o parto, a fim de indagar a existência, ou não, de factos capazes de preencherem a referida influência perturbadora do parto, com a consequente alteração, ou não, da qualificação da conduta da arguida. Dissemos já, que a 1ª instância não equacionou sequer a questão, enquanto a Relação se limitou, para além do que, supra se transcreveu, a argumentar: «Mais, não há qualquer indício de que a arguida, no momento do parto, mesmo sentindo fortíssimas dores, tenha entrado em pânico, ou ficado desnorteada e incapaz de tomar decisões racionais (aliás, este não foi o seu primeiro parto).». Em suma, analisada a factualidade provada assente, no que respeita à dinâmica dos acontecimentos, torna-se seguro faltarem elementos que, podendo e devendo ser averiguados, não o foram, elementos que são indispensáveis, em razão da sua comprovação ou não, para a correcta decisão de direito, isto é, para a correcta qualificação jurídico-penal da conduta da arguida. Deste modo, enferma o acórdão recorrido [bem como, o acórdão da 1ª instância] do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (art. 410º, nº 2, a) do C. Processo Penal. 5. Resulta do que se deixou dito em 3 e 4 que antecedem, que o acórdão recorrido [e o acórdão da 1ª instância] padece de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e de contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, vícios estes previstos nas alíneas a) e b) do nº 2 do art. 410º do C. Processo Penal, não sanáveis pelo Supremo Tribunal de Justiça. Assim, atento o disposto no art. 426º, nºs 1 e 2 do C. Processo Penal, deve ser determinado o reenvio do processo para novo julgamento, relativamente à totalidade do seu objecto, para o Tribunal da Relação de Lisboa, que procederá nos termos previstos no referido nº 2. 6. A decisão de reenvio prejudica o conhecimento das restantes questões suscitadas no recurso. * * * * III. DECISÃO Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes que constituem este coletivo da 5.ª Secção Criminal, em conceder parcial provimento ao recurso e, em consequência, decidem: A) Rejeitar o recurso, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 400º, nº 1, c), 414º, nº 3, 420º, nº 1, b), e 432º, nº 1, b), todos do C. Processo Penal, na parte em que tem por fundamento a questão da inconstitucionalidade da interpretação normativa do art. 105º, nº 1 do C. Processo Penal. * B) 1. Julgar improcedente a invocada nulidade do acórdão recorrido, por omissão de pronúncia, relativamente ao não conhecimento da inconstitucionalidade invocada no recurso interlocutório, tendo por objecto a interpretação feita pela 1ª instância, relativamente ao art. 105º do C. Processo Penal. 2. Julgar improcedente a invocada nulidade do acórdão recorrido, por omissão de pronúncia, relativamente ao não conhecimento da aplicação da atenuação especial da pena resultante do disposto no art. 10º, nºs 2 e 3 do C. Penal. 3. Julgar improcedente a invocada nulidade do acórdão recorrido, por excesso de pronúncia. * C) 1. Julgar verificados os vícios decisórios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto no art. 410º, nº 2, a) do C. Processo Penal) e de contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, previsto no art. 410º, nº 2, b) do C. Processo Penal. 2. Determinar, nos termos do disposto no art. 426º, nºs 1 e 2 do C. Processo Penal, o reenvio do processo para novo julgamento, relativamente à totalidade do seu objecto, para o Tribunal da Relação de Lisboa. * D) Recurso sem tributação, atenta a parcial procedência (art. 513º, nº 1 do C. Processo Penal, a contrario). * * (O acórdão foi processado em computador pelo relator e integralmente revisto e assinado pelos signatários, nos termos do art. 94º, nº 2 do C. Processo Penal). * * Lisboa, 9 de Julho de 2025 Vasques Osório (Relator) José Piedade (1º Adjunto) Jorge Jacob (2º Adjunto) |