Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
756/13.0TVPRT.P2.S2
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: MARIA DA GRAÇA TRIGO
Descritores: CAPACIDADE TESTAMENTÁRIA
ÓNUS DA PROVA
AMEAÇA
COAÇÃO MORAL
INCAPACIDADE ACIDENTAL
ANULAÇÃO DE TESTAMENTO
DIREITO PROBATÓRIO MATERIAL
TESTAMENTO
BONS COSTUMES
BOA FÉ
VONTADE DO TESTADOR
INCAPACIDADE
VÍCIOS DA VONTADE
INCONSTITUCIONALIDADE
PRINCÍPIO DA CONFIANÇA
Data do Acordão: 03/31/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I. A prova dos factos essenciais, demonstrativos do estado psíquico da testadora aquando da outorga do testamento impugnado, não se limita a revelar uma situação de vulnerabilidade, antes demonstra que a forma autoritária e impositiva como a filha, ora ré, se relacionava com a dita testadora se repercutiu na mente desta, de molde a nela gerar verdadeiro temor de vir a sofrer consequências negativas caso desagradasse à filha; tendo, por isso, como ficou provado, outorgado «o testamento só para obedecer à Ré», isto é, para «cumprir e observar a vontade da Ré».

II. Estabilizada a matéria de facto dos autos, ficou provada a índole autoritária da ré no relacionamento com a testadora; não ficou, porém, provado que a ré a tenha ameaçado da ocorrência de um mal, pelo que se encontra afastada a aplicabilidade do regime de anulabilidade do testamento com base em coacção moral.

III. Afigura-se também que a factualidade provada não permite concluir que a atitude da ré no relacionamento com a testadora tenha atingido o limiar da ofensa aos bons costumes normativamente relevante, razão pela qual é de afastar a aplicabilidade do regime do art. 280.º do CC.

IV. Tanto pela estrutura da norma, como pelo significado dos termos utilizados, apenas na primeira previsão do art. 2199.º do CC («testamento feito por quem se encontrava incapacitado de entender o sentido da sua declaração») se poderá falar, com rigor, de incapacidade; sendo que, na segunda previsão («testamento feito por quem (...) não tinha o livre exercício da sua vontade por qualquer causa»), estará antes em causa a impossibilidade de decidir de forma diferente.

V. É de acolher a orientação interpretativa da segunda parte do art. 2199.º do CC, segundo a qual, não sendo de atribuir relevância anulatória a toda e qualquer influência externa sobre a vontade do testador, se considera que, numa situação como a dos autos, não poderá deixar de se sufragar o juízo das instâncias no sentido de subsumir o caso àquela previsão normativa.

VI. Conclui-se assim que: (i) estando em causa a interpretação e aplicação de regime legal que visa assegurar o respeito pela vontade do testador; (ii) estando em causa uma norma que difere do regime geral previsto no art. 257.º do CC, uma vez que, sendo o testamento um negócio unilateral não receptício, não se exige que a situação de incapacidade ou de falta de vontade seja notória ou conhecida do declaratário; (iii) e, sobretudo, estando provado que a vontade da testadora foi intensamente viciada a ponto de já não se poder considerar ser a sua vontade; (iv) é de manter a decisão das instâncias de anular o testamento dos autos.

VII. Os factos provados relativos ao período posterior à outorga do testamento impugnado não só não permitem concluir que a testadora dispunha do livre exercício da vontade, necessário para revogar o testamento dos autos, como, no seu conjunto, são reveladores daquilo a que a ré estava disposta para, ainda em vida, assegurar o controlo do património da sua mãe.

VIII. Encontrando-se verificados os pressupostos legais de que depende a anulação do testamento, considera-se que tal decisão não padece de inconstitucionalidade por violação do princípio da confiança, uma vez que este princípio não se opõe ao reconhecimento das causas de invalidade dos negócios jurídicos, com as inerentes consequências.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



I – Relatório


1. AA instaurou a presente acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra BB e a herança indivisa de CC, pedindo a anulação do testamento outorgado por CC, em 27.08.1999, lavrado no ... Cartório Notarial do ..., pelo qual aquela legou, no âmbito da quota disponível, à sua filha e irmã da A., a R. BB, “a sua propriedade denominada Quinta..., situada na freguesia ..., concelho ..., com todos os seus pertences”.

Como fundamento do pedido alega que a testadora, falecida em 05.10.2012, se encontrava “incapacitada de entender o sentido da sua declaração e sem o livre exercício da sua vontade” aquando da realização daquele testamento.

Contestou a R. BB, por excepção, invocando a ilegitimidade passiva da herança indivisa da falecida testadora e, por impugnação; concluindo pela absolvição da instância quanto à R. herança indivisa e, no mais, pela improcedência da acção contra si instaurada.

Na audiência prévia, foi a R. herança indivisa da testadora absolvida da instância por despacho entretanto transitado em julgado.

Realizou-se o julgamento, vindo a ser proferida sentença, em 08.02.2016, que julgou a acção improcedente e absolveu a R. BB do pedido.

Desta sentença interpôs a A. recurso para o Tribunal da Relação ..., vindo a ser proferido acórdão, em 26.06.2017, que confirmou a decisão.

Tendo a A. interposto recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, foi proferido acórdão, em 08.02.2018, que decidiu:

a) Mandar baixar os autos ao tribunal de primeira instância para, com base nos meios de prova já produzidos ou a produzir, eliminar a contradição assinalada entre os factos provados 47 e 48 e o facto não provado nn), no sentido de compatibilizar as respostas dadas, deixando claro em que medida a dependência da testadora em relação à 2ª R e/ou o autoritarismo desta determinaram a decisão de outorga do testamento nos termos em que a mesma foi feita;

b) Julgar em conformidade». [negrito nosso]

Dando cumprimento à decisão do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, foi reaberta a audiência de julgamento na 1.ª instância, com reinquirição de testemunhas e produção de declarações de parte.

Findo o julgamento, foi proferida sentença, em 27.06.2018, que julgou a acção procedente e, em consequência, anulou o testamento.

Desta sentença, apelou a R. BB, vindo a ser proferido acórdão, em 08.03.2019, o qual, com voto de vencido, julgou a apelação procedente e, em consequência, revogou a decisão recorrida, absolvendo a R. BB do pedido.

Inconformada com esta decisão, interpôs a A. recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, o qual, por acórdão de 17.12.2019, julgou o recurso parcialmente procedente, anulando o acórdão recorrido e decidindo o seguinte:

a) «Manter, como enunciados de facto, os pontos 46, 47, 47-A e 48 da factualidade dada como provada pela 1ª instância;

b) Mandar baixar os autos à Relação para:

i. Conhecer da impugnação da matéria de facto deduzida pela R. em sede de apelação, circunscrita à impugnação dos referidos pontos 47, 47-A e 48;

ii. Após estabilização da decisão relativa à matéria de facto, proferir decisão de direito, apreciando a invalidade do testamento com fundamento em incapacidade acidental por falta de liberdade da testadora no exercício da vontade, em coacção moral e em ofensa aos bons costumes». [negrito nosso]

2. Retornados os autos ao Tribunal da Relação, veio a ser proferido acórdão, em 05.11.2020, que manteve a decisão de facto e julgou o recurso improcedente, mantendo a decisão recorrida (sentença de 27.06.2018).

3. Veio a R. interpor recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, por via excepcional, o qual, em 10.11.2021, foi admitido por acórdão da Formação prevista no art. 672.º, n.º 3, do Código de Processo Civil.

4. Formulou a Recorrente as seguintes conclusões:

[excluem-se as conclusões respeitantes à admissibilidade da revista por via excepcional]

«VI - A interpretação de que o testamento, ao abrigo do artigo 2199.º do Código Civil pode ser anulado por um alegado medo da testadora, unilateral, sem qualquer prova de factos que o justifiquem, é contrária à disposição normativa e não pode vingar.

VII - A testadora que em 1999 ao abrigo, legítimo, da sua quota disponível, dispõe em testamento um bem a favor de uma filha, respeitando todas as imposições legais, sendo a filha que vive, e que em 2005 outorga uma procuração com poderes gerais de disposição patrimonial a ambas as filhas demonstra atos concludentes da sua vontade e a inexistência de qualquer causa que implique a anulação do testamento.

VIII - Não tendo a testadora, que praticou atos concludentes de gestão devida patrimonial e de livre vontade durante a sua vida, revogado o testamento (sendo conhecedora da vontade e possibilidade de testar), não pode ver, pós morte, o mesmo ser anulado.

IX - O testamento público que é redigido por notário tem uma força probatória cabal, porquanto existe uma qualificada garantia de que o testador gozava de vontade, livre e esclarecida.

X - Não existindo prova  em contrário, existe uma presunção de que a testadora cumpria aquilo que o 2199.º do Código Civil afasta.

XI - Além de que, ao considerar dado como não provado a incapacidade (conforme factos cc), dd), gg), hh), ii) dados  como não provados) o Tribunal afasta, cabalmente, a possibilidade de anulação do testamento.

XII - Ora o testamento é um simples negócio unilateral, em cuja estrutura se não levanta, a propósito dos problemas da falta de vícios da vontade, o conflito sistemático de interesses, entre uma e outra das partes, que são próprios do contrato” (neste sentido cf. Pires de Lima e Antunes Varela, Cód. Civil Anotado, volume 6º, pág. 323).Por outro lado dispõe o artigo 2199º do Código Civil, que é anulável o testamento feito por quem se encontrava incapacitado. Como antes já deixamos dito o momento decisivo para se aferir da incapacidade é a data do mesmo.

XIII - Não é especial vulnerabilidade o medo de alguém ficar sozinho.

XIV - O medo é um sentimento comum, sendo que os cidadãos têm medos diversos e não pode o simples medo, injustificado, sem constatação, ser tido como um juízo de especial vulnerabilidade.

XV - A especial vulnerabilidade não se encontra prevista no fundamento de anulação de um testamento nos termos previstos no artigo 2199.º do Código Civil.

XVI - O artigo 2199.º do Código Civil é pensado para casos comprovados de incapacidade e por perdas da vontade.

XVII - As causas exógenas não se encontram no artigo 2199.º do Código Civil sendo que, ainda que se considerassem, teriam que ser causas que comprometessem a liberdade da vontade.

XVIII - O ter medo, o gostar de alguém, são da esfera do sentimento e não da vulnerabilidade que o artigo 2199.º do Código Civil quis afastar dos negócios jurídicos testamentários.

XIX - Sabe-se que a incapacidade tanto pode significar a falta de aptidão natural para entender o sentido de declaração, como a falta do livre exercício do poder de dispor, “mortis causa”, dos próprios bens, ou por qualquer causa verificada no momento em que a disposição teve lugar.

 XX - Ora no caso concreto e conforme resulta da análise da matéria de facto dada como provada, temos também nos que concluir que à data em que o testamento foi outorgado a testadora não estava incapacitada.

XXI - Como ali também se refere, importa ter em conta as duas declarações médicas juntas aos autos e que são contemporâneas do testamento, subscritas após a realização de exame ao estado mental da testadora e das quais se retira a conclusão de que em 26.8.1999, a mesma se encontrava em pleno uso das suas capacidades psíquicas as quais se podiam considerar dentro dos limites normais para a sua idade.

XXII - O que não se compreende é a razão pela qual uma situação de vulnerabilidade do testador constitui causa exógena relevante, para efeitos de considerar não se encontrar o mesmo no livre exercício da sua vontade. Trata-se de uma interpretação da norma diametral-mente oposta ao entendimento que dela tem a nossa doutrina.

XXIII - E que conduziria, para além do mais, a um resultado iníquo, que seria o de poder um testamento ser anulado, com total desrespeito pela vontade do testador, sempre que este se encontrasse numa situação de vulnerabilidade, fruto, por ex., da sua idade, ou da sua condição física.

XXIV - Não é, de facto, essa a interpretação que o legislador pretendeu do artigo 2199.º do Código Civil.

XXV - O Tribunal ad quem com todo o devido respeito violou a lei substantiva, designadamente o artigo 2199.º do Código Civil, bem como interpretou erradamente e aplicou ainda de modo pior o direito.

XXVI - Com todo o devido respeito a Relação ... excedeu, em muito, os seus poderes de cognição, ultrapassando o limite estipulado pelo Supremo Tribunal de Justiça e acabando por não apreciar a validade do testamento com base nos quatro vértices estipulados e delimitando.

XXVII - Excedendo a sua pronúncia, não lhe sendo admissível, e, além disso, omitindo a sua pronúncia quanto ao que era expectável ao nível do recurso.

XXVIII - Nessa medida, por inexistência de pronúncia quanto ao estipulado pelo Supremo Tribunal de Justiça, bem como pelo excesso de pronúncia, deverá ser conhecida a nulidade do acórdão proferido, porquanto existia uma vinculação ao poder-dever previsto no art. 590.º n.º 4 do Código de Processo Civil.

XXIX - O artigo 152.º do Código de Processo Civil prevê que os tribunais, em particular os julgadores, têm que cumprir as decisões dos tribunais superiores, sendo que o Tribunal da Relação, com todo o devido respeito, não cumpriu, inquinando a decisão com omissão de pronúncia e, lateralmente, excesso de pronúncia.

XXX - Existe uma contradição insanável nos factos porquanto foram mantidos, integralmente, os mesmos factos que ditaram a manutenção do testamento num outro momento e que ficam em contradição com a decisão proferida porquanto foi dado como não provada a incapacidade (que inexiste) da testadora.

XXXI - Ao dar-se como não provada a incapacidade não pode anular-se o testamento nos termos do artigo 2199.º do Código Civil.

XXXII - Conforme o art. 682.º n.º 3 do Código de Processo Civil, ocorrendo contradição na decisão da matéria de facto que inviabiliza a decisão jurídica da causa, deve o processo baixar para, com base nos meios de prova já produzidos ou a produzir, eliminar a contradição assinalada no sentido de compatibilizar as respostas dadas.

XXXIII - O acórdão que omite pronúncia, se contradiz entre os factos dados como provados e não provados e a decisão e, ainda, excede a sua pronúncia fica inquinado no vício da nulidade.

XXXIV - Ao omitir na indagação do seu conhecimento e a considerar que, muitíssimo maldiga-se, existe fundamento de anulação do testamento, estando dados como não provados os factos cc), dd), gg), hh), ii), jj), kk), que, em todos eles, se dá como não provada a falta de capacidade da de cujus no momento da outorga do testamento, incorre o Tribunal ad quem em erro de interpretação e de julgamento.

XXXV - O Tribunal ad quem, com as consequências já supra explanadas, relativamente ao artigo 2199.º do Código Civil realizou uma interpretação completamente lunática (com todo o devido respeito) e reveladora de uma insegurança jurídica, destrutiva de todo o princípio da confiança do referido normativo.

XXXVI - Relembre-se que estamos a falar da quota disponível e que o interesse da Recorrida aqui é meramente monetário (e é um interesse abusivo nos termos do direito, sindicável pelo artigo 334.º do Código Civil dado que quando, em 2005, a de cujus outorgou um mandato a favor de AMBAS, aí já não existia nenhum factor externo que comprometesse a sua vontade...).

XXXVII - O acórdão ao classificar     a situação de vulnerabilidade como um cenário de medo aparente, sem causa fundamentadora, assente em juízos meramente conclusivos do que seria o sentimento da testadora (e não assente naquilo que motivou esse sentimento), leva a que exista uma  indevida interpretação do artigo 2199.º do Código Civil pelo que, independentemente da matéria de facto, não se vislumbra qualquer possibilidade de anular o testamento!

XXXVIII - Temos assim que concluir por não verificado o requisito objectivo da usura, até porque, por natureza, o testamento é apto a atribuir benefícios que excedem, total ou parcialmente, os merecimentos de quem os recebe e da própria natureza dos negócios gratuitos resulta que as vantagens atribuídas ao beneficiário podem ser “excessivas” e não ter, total ou parcialmente, justificação (Neste sentido, Acórdão do STJ de 23.06.2016, em www.dgsi.pt).

XXXIX - Assim, não verificados os pressupostos da usura e inexistindo a alegada coacção moral, soçobra a tese da apelante, pelo que tem necessariamente este Tribunal que concluir pela validade do testamento impugnado, porquanto consiste o mesmo numa declaração de vontade livre, ponderada e esclarecida e sem quaisquer vícios de formação que a inquinem.

XL - O regime do negócio usurário,   aplicado ao testamento, na esteira na jurisprudência mais recente emanada do Supremo Tribunal de Justiça, prescreve o artigo 282.º, n.º 1, do Código Civil que “é anulável, por usura, o negócio jurídico, quando alguém, explorando a situação de necessidade, inexperiência, ligeireza, dependência, estado mental ou fraqueza de carácter de outrem, obtiver deste, para si ou para terceiro, a promessa ou a concessão de benefícios excessivos ou injustificados.”

XLI - Nos autos não estando provado qualquer situação de necessidade, nem benefícios excessivos ou injustificados, nem sequer ameaça, jamais se poderia sequer conceder uma anulação por esta via.

XLII - O facto de um pai depender     de um filho (dependência essa não financeira) não invalida que os testamentos sejam outorgados em pressuposto de vulnerabilidade.

XLIII -A dependência, não financeira, do pai a favor do filho é algo natural com o evoluir da idade e não se vislumbra suficiente, nem sequer preenchedor, da subsunção jurídica p. no artigo 2199.º do Código Civil.

XLIV - Para que um testamento seja anulável é necessário que a incapacidade acidental que padeça o testador origine uma falta de entendimento, não entendendo o que declara ou emitindo a declaração sem o livre exercício da sua vontade, sendo certo que em condições normais, não queria a mesma coisa.

XLV - O artigo 2199.º Código Civil prevê a anulação por incapacidade da testadora em entender o sentido da declaração ou porque a testadora não tivesse o livre exercício da sua vontade.

XLVI - Estando provado que a incapacidade não existe, e, ainda, que o exercício da vontade era livre, bem como existiam condições normais, não se preenche, de modo algum, muito menos por interpretação extensiva (e lunática, com todo o devido respeito) o artigo 2199.º do Código Civil.

XLVII - É verdade que normalmente a intenção dos pais é de tratar os filhos igualmente, também não é bem menos verdade que a vida vai ensinando que é normal e habitual que os pais beneficiem (na partilha) um dos filhos, tendo o legislador possibilitado isso ao criar a quota disponível.

XLVIII - O testamento data de 27 de Agosto de 1999 e, em 19 de Setembro de 2005 a de cujus outorgou procuração com plenos poderes a AMBAS Recorrente e Recorrida, para que regessem todo o seu património, praticando todos os actos, efetuando todos os negócios e outorgando contratos para o efeito necessários.

XLIX - Ao poder revogar o testamento (aliás, sendo este o sétimo da mesma) e não o tendo feito, pese embora a celebração de outros negócios que, aliás, esses, envolviam as duas filhas, demonstra uma plena consciência e sem medos.

L - A testadora poderia, na procuração outorgada, ter excluído uma das filhas e reservado apenas o mandato à Recorrida e não o fez, pelo que se tivesse o dito medo fundado da Recorrida, tê-lo-ia feito.

LI - Com o avançar da idade, é claro que as relações de dependência entre familiares se destaque. Mas dependência não significa ameaça, falta de liberdade. Aliás, a natureza intrínseca dos receios de um declarante não se basta sem as atitudes, atos e convicções manifestadas, de modo concludente, por quem será o beneficiário.

LII - Ao não se demonstrar, como não demonstra, a incapacidade da testadora em entender o sentido da sua declaração e, além disso, não existe prova de que a testadora não tivesse o exercício livre da sua vontade, tendo que, naturalmente, ser revogada esta última decisão e absolver, de modo cabal e definitivo a Recorrida.

LIII - Seguindo-se o entendimento perfilhado por Anabela Gonçalves, em comentário ao art. 2199.º, in Código Civil Anotado, Livro V (Direito das Sucessões), sob coordenação de Cristina Araújo Dias, Almedina, 2018, pp. 298-229: O art. 2199º estabelece a anulabilidade do testamento celebrado com incapacidade acidental, por quem não estava incapacitado de entender e querer o sentido da declaração efetuada ou que, por qualquer causa, ainda que transitória, não tinha o livre exercício da sua vontade para poder dispor dos seus bens para depois da morte, no momento em que a declaração negocial é prestada. Tal como para efeitos do art. 257º, estarão em causa episódios que afetam a compreensão e a vontade do testador, como situações de embriaguez, situações de consumo de estupefacientes, surtos psicóticos provocados por anomalias psíquicas, estados de delírio, ou demência permanentes que não tenham gerado ainda uma decisão de interdição do testador. Assim sendo, esta norma pode abranger situações acidentais, esporádicas e transitórias, como surtos psicóticos momentâneos, que diminuam momentaneamente o discernimento e o livre exercício da vontade de dispor. Pode abarcar ainda situações permanentes, como por exemplo, uma "doença que, no plano   clínico, é comprovada e cientificamente suscetível de afetar a sua capacidade de perceção, compreensão, discernimento e entendimento, e passível de disturbar e comprometer qualquer ato de vontade que pretenda levar a cabo, na sua vivência quotidiana e corrente" (Ac. de 11/4/2013 (1565/10.4TJVNF.P1.S1), www.dgsi.pt [consultado em 16-12-2016], podendo justificar uma ação de interdição que não existe. Ainda assim, é necessário que essa incapacidade se verifique no momento da feitura do testamento. Nestes casos, considera-se que a pessoa não está em condições mentais de entender e querer o conteúdo da sua declaração no momento em que lavrou o seu testamento. Assim, a incapacidade acidental deve ser aferida no momento da outorga do testamento. Esta é a noção adotada pela jurisprudência nacional: v., entre outros, Ac. STJ 03/05/1974, BMJ n.º 237, 1974, p.176; STJ 13/01/2009(08A3809), www.dgsi.pt [consultado em 15-12-2016].

LIV - Note-se, porém, que a pessoa pode ter alguma lesão cerebral ou doença mental, e esta não afetar o discernimento da pessoa para querer e entender o alcance do ato que está a praticar (assim decidido pelo Ac. STJ 26/05/1964 (SJ196405260593071 www.dgsi.pt [consultado em 16-12-2016]), ou seja, a incapacidade acidental não será um efeito automático de qualquer doença mental, sendo necessário ter em conta as circunstâncias do caso concreto e que a doença em causa tenha toldado a capacidade do testador de compreender o alcance da disposição testamentária que fez (…). Até porque a mesma pessoa pode fazer o testamento num intervalo lúcido, sendo este testamento válido. Da mesma forma, o facto de o testador ter um vício, como o abuso de bebidas alcoólicas ou de estupefacientes, que lhe cause uma situação de dependência, não é prova suficiente para demonstrar que no momento da outorga do testamento, o autor do mesmo se encontrava numa situação de discernimento reduzido que não lhe permitia compreender    e querer     o     alcance     das disposições testamentárias feitas (assim decidido pelo Ac. STJ 02-05-2012        (2712/05.3TBPVZ.Pl.S1), www.dgsi.pt [consultado em 16-12-2016]), sendo necessário demonstrar a existência desse discernimento reduzido aquando da elaboração do testamento.

LV - No art. 257º estabelece-se a anulabilidade dos negócios celebrados, desde que estejam reunidos dois requisitos: do lado do declarante é necessário que este se encontre acidentalmente incapacitado de compreender o sentido da declaração ou que não tenha o livre exercício da sua vontade; do lado do declaratário exige-se que o facto seja notório ou conhecido. Ou seja, há dois requisitos a preencher: a incapacidade acidentaI por parte do declarante; e a cognoscibilidade ou conhecimento dessa incapacidade do lado do declaratário. Por um lado, o regime do art. 257º pretende proteger o declarante que não compreende o sentido da sua declaração e os efeitos da mesma. Mas, por outro lado,ao exigir que o facto seja notório ou conhecido do declaratário, o regime do art. 257º procura salvaguardar os interesses do declaratário que negoceia com quem tem capacidade de exercício e, assim, tutelar a segurança do tráfego jurídico geral. (…).

LVI - Por contraposição, o art. 2199º, tendo em conta que estamos perante um negócio unilateral de natureza pessoal (art. 2182º), que produzirá efeitos após a morte do testador, em que é necessário garantir que a pessoa tem discernimento para a prática daquele ato e que compreende os efeitos que dele resultam, estabelece apenas requisitos do lado do declarante: ou seja, este está incapacitado de entender a sua declaração ou não tem o livre exercício da sua vontade e isso coloca-o numa situação de inferioridade que necessita de proteção do legislador. Há, pois, uma proteção unilateral da vontade real e livre do testador, até porque não existem interesses do tráfico jurídico geral a proteger. Por esta razão, Pereira Coelho apelida o testamento como um negócio estranho ao comércio jurídico, pois "(…) não surge aquela oposição entre os interesses do declarante, por um lado, e, por outro lado, os interesses do declaratário e os interesses gerais da contratação" (COELHO, Pereira, ob. cit., p. 334).»

LVII - Os fatores exógenos visam momentos e situações como a alcoolémia, a dependência de estupefacientes, não sentimentos de “medo” que são unilaterais (e sem causa originada pela parte que beneficia do testamento).

LVIII - A interpretação correta do artigo 2199.º do Código Civil implica que, nos presentes autos, o testamento seja válido e, por isso, seja revogado o acórdão recorrido.

LIX - Note-se que a matéria de facto dada como provado não se subsume à aplicação do artigo 2199.º CC (coacção moral), uma vez que nenhum dos respectivos enunciados de facto se refere a ter a R./Recorrente dirigiu à mãe qualquer tipo de ameaça, mal, vantagem, com vista à obtenção do testamento, pelo que a testadora estava livre, consciente e ciente, não podendo ser o testamento anulado.

LX - Ao contrariar o entendimento dos diversos acórdãos, designadamente, Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 20.12.2018, Proc. 4331/16.0T8LSB.L1-7 (José Capacete), Ac. do STJ de 19.01.2016, Proc. n.º 893/05.5TBPCV.C1.L1 (Fonseca Ramos), Ac. do STJ de 24.05.2011, Proc. n.º 4936/04.1TCLRS.L1.S1 (Manuel Pereira), Ac. do Tribunal da Relação do Porto por Acórdão datado de 07.10.2004, relatado por Pinto de Almeida, Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, datado de 27.05.2010, cujo relator é Conceição Bucho e, ainda, Ac. STJ 02-05-2012 (2712/05.3TBPVZ.Pl.S1), Ac. STJ 26/05/1964 (SJ196405260593071, STJ 03/05/1974, BMJ n.º 237, 1974, p.176; STJ 13/01/2009 (08A3809), Acórdão do STJ de 25.2.2003 (CJ STJ XI, 1, 109) e Ac. de 11/4/2013 (1565/10.4TJVNF.Pl.S1), todos disponíveis em www.dgsi.pt, reveste a decisão uma instabilidade jurídica que dita os poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça.

LXI - O Acórdão proferido viola a garantia da uniformidade jurisprudencial e da certeza na aplicação do direito.

LXII - Ao entender-se um sentimento, unilateral, de medo da testadora, como uma especial vulnerabilidade que motiva

LXIII - Ao colocar, como coloca, em causa a segurança jurídica no vértice do Princípio da Confiança, o acórdão proferido é inconstitucional.

LXIV - O princípio constitucional da segurança jurídica e da protecção da confiança, expresso na não violação de direitos adquiridos ou frustração de expectativas legítimas, está assim violado ao produzir-se uma decisão totalmente desfasada do disposto no artigo 2199.º do Código Civil.

LXV - Com a decisão recorrida violaram-se, novamente, os artigos 2199.º do Código Civil e 152.º, 590.º n.º4, 618.º e 682.º n.º3 do Código de Processo Civil, bem como a Segurança Jurídica dos Negócios   Jurídicos e a Confiança, o que releva no sentido do Acórdão proferido violar a Constituição da República Portuguesa.».

Termina pedindo a revogação do acórdão recorrido e a absolvição da R. do pedido.

5. A Recorrida contra-alegou, concluindo nos termos seguintes:

[excluem-se as conclusões relativas à questão da admissibilidade do recurso]

«9º. Tendo ambas as instâncias declarado nulo o testamento outorgado pela mãe das Recorrente e Recorrida, em 27/08/1999 no ... Cartório Notarial do ..., com base na incapacidade da testadora entender o sentido da sua declaração e a circunstância de a mesma não ter então o livre exercício da sua vontade, desnecessário seria continuar a apreciação dos restantes fundamentos de invalidade do mesmo testamento – leia-se, a coacção moral e a ofensa aos bons costumes. Diríamos mais, se o fizesse, aí sim, tratar-se-ia da prática de um ato inútil, nos termos do artigo 130.º do CPC...

10º. Tendo a ação sido julgada procedente, por provada, com base na incapacidade de a decessa outorgar o aludido testamento, o conhecimento das outras questões de invalidade do mesmo negócio encontram-se, assim, prejudicadas – nos termos e para os efeitos dos aludidos artigos 130.º e 608.º, n.º 2, ambos do CPC! Não se pode tratar aqui, então, como erradamente refere a Recorrente, à situação prevista no artigo 590.º, n.º 4 do CPC – norma esta destinada ao suprimento de vícios (insuficiências ou imprecisões) de alegação das partes e, prevista, como a própria inserção sistemática o induz, para a gestão inicial do processo...

11º. Não se percebe, nem a Recorrente o adianta (...), onde é que existe a tal contradição insanável.... Note-se que, a existir, a contradição tem que se verificar ao nível da matéria de facto dada como provada e não provada. De todo o modo, parece-nos resultar com meridiana clareza, também aqui, que não existe qualquer contradição insanável ou o que quer que seja que, de qualquer forma, possa inquinar a decisão sobre a matéria de facto.

12º. Em suma: (i) não existe qualquer nulidade do acórdão por omissão e/ou excesso de pronúncia; (ii) não existe qualquer contradição que fira o acórdão de nulidade.

13º. O Tribunal quando aprecia os efeitos jurídicos dos factos alegados ou provados, não está adstrito à qualificação jurídica enunciada pela parte. Mesmo tratando-se de questão ou de exceção que não seja de conhecimento oficioso, o importante é que sejam alegados os respetivos factos essenciais com o objetivo de alcançar o correspondente efeito jurídico, cabendo ao tribunal exercer os poderes (e deveres) oficiosos atinentes à sua correta integração jurídica.

14º. A interpretação do pedido não deve, assim, cingir-se aos estritos dizeres da formulação do petitório, devendo antes ser conjugada com o sentido e alcance resultantes dos fundamentos da pretensão, que deve ser identificada como o fim último visado pelo Autor (no sentido de parte processual legítima, do lado ativo).

15º. O que interessa é que seja intentada a acção concreta em que se alegue factos necessários e suficientes à procedência do pedido de anulação do testamento, pedido esse que até pode ter mais que um fundamento (como é o caso), não ficando o tribunal vinculado ao concreto fundamento jurídico invocado, pois a causa de pedir nas acções de anulação não é só a nulidade específica que se invoca para obter o efeito pretendido, pois o legislador estabeleceu também como alternativa a circunstância da causa de pedir se poder estribar num facto concreto, independentemente da invocação dessa nulidade específica – 581.º, n.º 3 do CPC.

16º. A hipótese alternativa ínsita na parte final do comando do artigo 2199.º do CC tinha sido sobejamente desprezada até aqui, focando-se doutrina e jurisprudência mais na evidência de uma incapacidade transitória que impede sequer a formação de uma vontade (incapacidade de entender) e olvidando por completo que a lei também engloba na previsão do artigo os casos em que a vontade é mal formada, por ausência de livre arbítrio (incapacidade de querer).

17º. No presente caso somos do mesmo entendimento de ambas as instâncias porquanto o que está em causa é manifestamente uma incapacidade da testadora em querer aquela vontade que expressou e isso revela-se naqueles pontos da matéria de facto provada (leia-se, os 46, 47, 47-A e 48) em que é evidente que a vontade da decessa não foi formada de uma forma livre, mas sim instrumentalizada ao serviço da vontade e dos caprichos da Recorrida. E corroborando com o que vem de ser dito está o facto de o aresto sob censura ter tido o cuidado de – o que, aliás, veio no sentido orientador do douto Acórdão do STJ que o precedeu – esclarecer “...que da prova produzida e antes melhor referida, o que resultou foi que as expressões “para obedecer à Ré” e “por obedecer à 2ª R.” têm o significado de “cumprir e observar a vontade da Ré”!

18º. Destarte, a anulação decretada no aludido artigo 2199.º do CC assentará, neste caso, na comprovada incapacidade da de cujus dispor, com a necessária liberdade de decisão, dos bens que lhe pertenciam.

19º. O artigo 282.º da CRP pretende precisar os efeitos da declaração de inconstitucionalida-de e de legalidade feita pelo Tribunal Constitucional em processo de fiscalização abstrata sucessiva! Sendo que os efeitos gerais normais da declaração de inconstitucionalidade estão referidos nos n.ºs 1 e 2 e os efeitos com alcance mais restrito estão no n.º 4, todos do mesmo preceito. O que sucede no n.º 4 daquele preceito, que a Recorrente invoca (não se percebe o motivo...), é uma limitação de efeitos (retroativos, n.º 1; repristinatórios, n.º 2) da declaração de inconstitucionalidade ou de ilegalidade.

20º. Tal norma não tem a ver com qualquer tipo de inconstitucionalidade derivada da interpretação (conforme ou disforme) à constituição, tal como quer fazer parecer crer a Recorrente, sendo bom de ver que esta norma não tem qualquer aplicabilidade e/ou relevância para o caso concreto, não devendo, por isso, ser atendida.

21º. A alegação da Recorrida na acção prendeu-se também com a circunstância de a testadora não ter o livre exercício da sua vontade, quando testou, por estar sujeita à coacção moral da Recorrente. Em suma, sustentou a Recorrida que a sua Mãe sofreu uma perturbação no processo formativo da sua vontade (que foi exarada no testamento em crise), de tal forma que a mesma não se formou de um “modo julgado normal e são”.

22º. Prescreve o artigo 2201.º do CC que “é também anulável a disposição testamentária determinada por erro, dolo ou coação.”. Tal preceito faz a remissão legal para o disposto no artigo 255.º do CC, que diz que é feita “sob coação moral a declaração negocial determinada pelo receio de um mal de que o declarante foi ilicitamente ameaçado com o fim de obter dele a declaração”. Este preceito dá assento ao medo, enquanto vício na formação da vontade. Mas, o que é certo é que, quem age por medo quer a conduta adoptada (por isso há vontade de acção). Apenas oque sucede é que, essa pessoa não quereria essa conduta se não fosse o receio de se considerar o mal dirigido ao declarante.

23º. Em suma, para efeito da verificação da existência ou não do vício de coação moral não interessa se a testadora apenas produziu (ou não) a declaração para obedecer à Recorrente, o que interessa é que essa declaração tenha sido determinada por uma ameaça ilícita da Recorrente!

24º. Dos factos 46) a 48) resulta evidente que a testadora tinha receio de ser abandonada pela sua filha, aqui Recorrente, e que foi isso que determinou a sua vontade. Podemos ainda retirar do ponto 47-A do elenco dos factos provados, a circunstância do móbil exclusivo da testadora para fazer o testamento ter sido o de apenas obedecer à Recorrente.

25º. Em suma, diremos que num testamento o mais importante não é que alguém tenha ameaçado o testador... O mais importante (e que há que proteger e acautelar) é que o testador se tenha sentido ameaçado e isso tenha determinado a sua vontade de testar! Mas, ainda que assim não fosse, diz-nos a experiência comum que a existência de um tal receio de abandono é normalmente reflexo de uma ameaça, ameaça essa que pode muito bem ser latente e até não verbalizada, mas que se sente e infere de um conjunto de outros dados e factos... E isso mesmo resulta da compaginação do facto n.º 53 com os factos provados n.ºs 12 a 17.

26º. Uma ameaça de abandono, por parte da Recorrente é ademais ilícita, atendendo às obrigações legais dos artigos 2003.º e 2009.º, n.º 1, alínea b), ambos do CC. Acrescentando-se ainda que resulta claro o móbil da ameaça e a intenção da Recorrente ao fazê-la sentir à testadora, que era, ao fim e ao cabo, conseguir a Quinta... em deixa testamentária, por conta da quota disponível, conforme conseguiu...Resultando também evidente que, se não fosse essa ameaça, essa dependência da testadora face à Recorrente e esse autoritarismo e ascendência desta face àquela, e tal testamento não teria sido outorgado na forma como o foi! Assim, é para a Recorrida evidente que o testamento teria que ser, ainda, declarado anulado, por via da coação moral que a Recorrente exerceu sobre a testadora.

27º. Terá, ainda, este venerando Tribunal que apreciar se o testamento e o contexto que presidiu à sua elaboração não inquinam o negócio de nulidade, por se tratar de um negócio contrário aos bons costumes. De facto, analisando toda a matéria suprarreferida, parece-nos evidente que a Recorrente se aproveitou do medo que a sua Mãe tinha de ser abandonada na sua velhice, para conseguir que esta prejudicasse a sua irmã, pela forma como o fez, no testamento que outorgou, em que lhe legou a Quinta..., por conta da quota disponível.

28º. Ainda que se entenda que a Recorrente não ameaçou que abandonava a sua Mãe, sobre ela incidia um imperativo dever moral de auxílio, que desmistificasse essa ideia e confortasse a sua Mãe. Porém, ao invés de assim agir, a Recorrente contribuiu activamente para que essa ideias e sedimentasse no espírito da testadora, como forma e contrapartida de lhe proporcionar o benefício por si almejado. Esta actuação da Recorrente – nitidamente contrária aos bons costumes – feriu de nulidade o testamento aqui em crise, nos termos do artigo 280.º, n.º 2 do CC, o que deve ser declarado.

29º. Tal conduta eticamente censurável, na medida em que foi determinante para a elaboração do testamento, acaba por ferir de nulidade o testamento, tornando o seu objecto contrário aos bons costumes.».

6. A Recorrente apresentou resposta, na qual alegou essencialmente o seguinte:

- O pedido de ampliação do objecto do recurso apresentado pela Recorrida, para apreciação da invalidade do testamento com base em coacção moral ou em ofensa aos costumes, viola o caso julgado formado no processo;

- Da factualidade dada como provada (pontos 46. a 48.) não resulta qualquer ameaça ilícita dirigida pela R. à testadora com o intuito de a levar a emitir uma declaração negocial contrária à sua vontade;

- Pois, ainda que CC se sentisse dependente da R., a filha com quem passou a viver após a morte do marido, e receasse que esta a abandonasse caso não lhe fizesse a vontade de lhe deixar a Quinta..., sita em ..., não resulta provado que alguma vez a dita filha tivesse ameaçado de abandono a sua mãe se esta não outorgasse o testamento nos moldes em que o fez;

- É certo que CC outorgou o aludido testamento naqueles termos porque se sentia dependente física e psicologicamente da R. e não a queria contrariar e que CC fazia sempre por obedecer à R. e cumpria a vontade desta, mas nada resulta dos autos que esse estado de espírito temeroso e submisso tenha sido provocado por uma ameaça de abandono por parte da filha em relação à sua mãe;

- Nos arestos invocados pela Recorrida, nos quais se afirmou a existência de coacção moral, estavam em causa situações muito diferentes da situação provada nos presentes autos;

- Tampouco se verificam os pressupostos da usura (art. 282.º do CC), ainda que, em abstracto, se admitindo a aplicação deste regime ao testamento;

- Falta designadamente, o requisito objectivo – a promessa ou concessão de benefícios excessivos ou injustificados para o usurário ou terceiro – uma vez que, não tendo sido feita prova do valor do património da falecida CC, não se pode qualificar o benefício da deixa testamentária como excessivo nem como injustificado;

- Não estando verificados os pressupostos da usura e inexistindo a alegada coacção moral, soçobra a tese da Recorrida, pelo que tem necessariamente este Tribunal que concluir pela validade do testamento impugnado, porquanto consiste o mesmo numa declaração de vontade livre, ponderada e esclarecida e sem quaisquer vícios de formação que a inquinem;

- Por último, não há qualquer base factual para a aplicação do instituto da ofensa aos bons costumes, nos termos consignados no n.º 2 do art. 280.º do CC;

- Os bons costumes consubstanciam um conceito indeterminado, de difícil e exigente preenchimento valorativo, que reflectem os ditames da moral social vigente num determinado momento;

- É manifestamente deslocado imputar-se à Recorrente qualquer conduta reprovável, contrária à eticidade da vida social ou à moral dominante;

- Aliás, a factualidade assente permite, desde logo, inferir o contrário: a testadora residia com a Recorrente, e sempre manifestava vontade de regressar para junto desta aquando das temporadas que passava junto da A, ora Recorrida;

- Ademais, nunca a Recorrente praticou qualquer acto que infundisse medo ou perturbasse a testadora e do qual resultasse o negócio celebrado;

- Compulsada a factualidade assente, dela não resulta qualquer facto chocante, susceptível de causar repulsa ou indignação face aos imperativos de uma consciência sã e íntegra.

Termina, no que ora importa, pugnando pela não admissão da ampliação do objecto do recurso e, subsidiariamente, pela improcedência da pretensão das questões nele suscitadas.

II – Objecto do recurso


1. Tendo em conta o disposto no n.º 4 do art. 635.º do Código de Processo Civil, o objecto do recurso delimita-se pelas respectivas conclusões, sem prejuízo da apreciação das questões de conhecimento oficioso.

Assim, e não obstante a Recorrente ter apresentado conclusões prolixas e repetitivas, nelas se identificam as seguintes questões recursórias:

- Nulidade do acórdão recorrido tanto por excesso como por omissão de pronúncia (conclusões XXVI a XXIX e XXXIII);

- Nulidade do acórdão recorrido por contradição insanável entre factos dados como provados, devendo aplicar-se ao caso o regime do art. 682.º, n.º 3, do Código de Processo Civil (conclusões XXX, XXXII e XXXIII);

- Erro de julgamento do acórdão recorrido ao anular o testamento com fundamento na aplicação da segunda parte da previsão do art. 2199.º do Código Civil: (incapacidade por) falta de liberdade da testadora no exercício da sua vontade (conclusões VI a XXV, XXXIV a XXXVII, XLII a LVIII);

- Inconstitucionalidade do acórdão recorrido por violação do princípio da confiança, ao anular o testamento dos autos (conclusões LX a LXIV).

Requereu a Recorrida a ampliação do objecto do recurso, ao abrigo do art. 636.º do CPC, para apreciação das seguintes questões:

- Anulabilidade do testamento por verificação dos requisitos da coacção moral (art. 255.º do Código Civil, aplicável ex vi art. 2201.º do mesmo Código) (conclusões 21. a 26);

- Nulidade do testamento por contrariedade aos bons costumes (art. 280.º, n.º 2, do CC) (conclusões 27 a 29).


2. Pugna a Recorrente pela não admissão do pedido de ampliação do objecto do recurso por violação do caso julgado formado nos autos.

Quid iuris?

Importa ter presente a decisão proferida pelo acórdão deste Supremo Tribunal de 17 de Dezembro de 2019:

«Pelo exposto, julga-se o recurso parcialmente procedente, revogando-se o acórdão recorrido e decide-se:

a) Manter, como enunciados de facto, os pontos 46, 47, 47-A e 48 da factualidade dada como provada pela 1ª instância;

b) Mandar baixar os autos à Relação para:

i. Conhecer da impugnação da matéria de facto deduzida pela R. em sede de apelação, circunscrita à impugnação dos referidos pontos 47, 47-A e 48;

ii. Após estabilização da decisão relativa à matéria de facto, proferir decisão de direito, apreciando a invalidade do testamento com fundamento em incapacidade acidental por falta de liberdade da testadora no exercício da vontade, em coacção moral e em ofensa aos bons costumes.». [negrito nosso]

Com a seguinte fundamentação, na parte que ora releva:

«8. Aqui chegados, constata-se que só após a estabilização da decisão relativa à matéria de facto será possível tomar posição quanto à solução de direito, o que deverá ser feito, em primeira linha, pela Relação.

Porém, tendo no presente recurso de revista sido retomados, na totalidade, os fundamentos de invalidade do testamento considerados pelo acórdão recorrido (incapacidade acidental por falta de liberdade da testadora no exercício da vontade; coacção moral; usura; ofensa aos bons costumes) importa tomar posição acerca da questão de saber se todos e cada um destes fundamentos deverá ser apreciados pela Relação.

A resposta é naturalmente afirmativa no que se refere à apreciação do fundamento da alegada incapacidade acidental por falta de liberdade da testadora no exercício da vontade (segunda parte do art. 2199º do CC), uma vez que integra a causa de pedir da presente acção.

No que se refere ao fundamento da ofensa aos bons costumes (nº 2 do art. 280º do CC) a resposta é também afirmativa, na medida em que, sendo gerador de nulidade, é de conhecimento oficioso.

Porém, no que respeita aos fundamentos da coacção moral (arts. 255º e 256º do CC, ex vi art. 2201º do mesmo Código) e da usura (art. 282º do CC), recorde-se que o acórdão recorrido considerou que, tendo a acção sido interposta com fundamento em anulabilidade por incapacidade da testadora, não podia ser apreciada a anulabilidade com fundamento no vício de coacção moral ou na aplicação do regime da usura, por tal configurar uma alteração da causa de pedir.

  Importa, assim, tomar posição sobre a questão da determinação da causa de pedir da presente acção cuja resolução condiciona os termos em que a decisão de mérito deverá ser reapreciada pela Relação, após a necessária consolidação da decisão de facto.

 Para o efeito, socorremo-nos do teor da fundamentação – a todos os títulos paradigmática – do acórdão deste Supremo Tribunal de 18/09/2018 (proc. nº 21852/15.4T8PRT.S1), votado como adjunta pela aqui relatora e disponível em www.dgsi.pt:

“[A] causa de pedir, legalmente definida (art.º 581.º, n.º 4, do CPC) como facto jurídico de que procede a pretensão deduzida, consubstancia-se numa factualidade alegada como fundamento do efeito prático-jurídico pretendido, factualidade esta que não deve ser destituída de qualquer valoração jurídica, mas sim relevante no quadro das soluções de direito plausíveis a que o tribunal deva atender ao abrigo do art.º 5.º, n.º 3, e nos limites do art.º 609.º, n.º 1, do CPC, independentemente da coloração jurídica dada pelo autor . É o que se designa por princípio da causa de pedir aberta.   

Nessa conformidade, a causa de pedir pode ser, analiticamente, configurada por dois vetores complementares: 

a) – o seu perfil normativo, que a doutrina designa por causa de pedir próxima [nota 3: Vide, MILTON PAULO DE CARVALHO, Do Pedido no Processo Civil, FIEO – Fundação Instituto de Ensino para Osasco, Porto Alegre, 1992, p. 93], traçado não em função da qualificação jurídica dada pelo autor, mas à luz do quadro das soluções de direito plausíveis que ao tribunal cumpre, a final, convocar, em função do efeito prático-jurídico pretendido

b) – o seu substrato factológico, também designado por causa de pedir remota [nota 4: MILTON PAULO DE CARVALHO, ob. cit. p. 93], o qual é preenchido, segundo um critério empírico-normativo, em função do tipo de factualidade desenhada, em abstrato, na factis species aplicável, tendo ainda em conta os critérios de repartição do ónus da prova formulados a partir do sobredito efeito prático-jurídico.

Sem necessidade de nos embrenharmos aqui nas conhecidas teorias da substanciação, da individuação e até da mais recente teoria da individuação aperfeiçoada [nota 5: Para uma análise desenvolvida sobre as diversas orientações doutrinárias, vide a Professora Doutora MARIANA FRANÇA GOUVEIA, A causa de Pedir na Acção Declarativa, Colecção Teses, Almedina, 2004, pp. 37-96], a orientação corrente vai no sentido de que o artigo 581.º, n.º 4, do CPC acolhe a doutrina da substanciação, segundo a qual a causa de pedir deve ser preenchida com os factos essenciais causantes do efeito jurídico pretendido.  

Sintetizando tal orientação Abrantes Geraldes [nota 6: In Temas da Reforma de Processo Civil, Vol. I, Almedina, 2.ª Edição, Coimbra, 1998, pp. 192-193], escreve o seguinte: 

«No art.º 498.º [atual art.º 581.º, n.º 4, do CPC] o legislador fez uma opção clara ente dois sistemas possíveis: o da individualização ou o da substanciação da causa de pedir. Ao primeiro bastaria a indicação do pedido, devendo a sentença esgotar todas as possíveis causas de pedir da situação jurídica enunciada pelo autor, impedindo-se, após a sentença, a alegação de factos anteriores e que, porventura, não tivessem sido alegados ou apreciados. Já a opção pela teoria da substanciação implica para o autor a necessidade de articular os factos de onde deriva a sua pretensão, formando-se o objecto do processo e, por arrastamento, o caso julgado, apenas relativamente aos factos integradores da causa de pedir invocada. Foi esta a opção a que aderiu o legislador (…)»

Assim, a densificação da causa de pedir requer uma substanciação adequada à individualização da relação material controvertida, como singularidade ontológica, que, para além de oferecer garantia de base do contraditório, sirva de ulterior delimitação objetiva do caso julgado.

Todavia, importa distinguir, por um lado, os factos essenciais nucleares, estruturantes ou identificativos da causa de pedir; por outro lado, os factos complementares que, embora essenciais à procedência da pretensão deduzida, não relevam para identificação ou inteligibilidade daquela.

A par disso, tem-se entendido que, para delimitar determinada causa de pedir, não basta a mera identidade naturalística da factualidade alegada, havendo sempre que considerar a sua relevância em face do quadro normativo aplicável e em função da espécie de tutela jurídica pretendida.

Segundo Lebre de Freitas [nota 7: Caso julgado e causa de pedir, O enriquecimento sem causa perante o artigo 1229.º do Código Civil” Comentário ao Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18 de Maio de 2006, in ROA 2006, Ano 66, Vol. III, acessível na Internet https://portal.oa.pt./publicacoes/revista/ano-2006/ano-66-vol-iii-dez-2006, p. 8]:

«(…) embora a causa de pedir seja integrada por factos concretos, está hoje abandonada a ideia de que ela se possa delimitar segundo critérios meramente naturalísticos, o que a conduziria à impossibilidade de a circunscrever em termos jurídicos. Fora o caso de concurso de normas meramente aparente, dois complexos de factos, cada um dos quais integre a previsão duma norma jurídica constitutiva de direitos, só constituirão a mesma causa de pedir se o núcleo essencial das duas normas for o mesmo»   

Também Teixeira de Sousa [nota 8. Algumas questões sobre o ónus de alegação e de impugnação em processo civil, in Scientia Iuridica, Tomo LXII, n.º 332, 2013, pp. 395 e ss. (395, 401-402)] elucida que: 

 «A causa de pedir é constituída pelos factos necessários para individualizar a pretensão material alegada. O critério para delimitar a causa de pedir é necessariamente jurídico. É a previsão de uma regra jurídica que fornece os elementos para a construção de uma causa de pedir.

 (…)

 Os factos que constituem a causa de pedir devem preencher uma determinada previsão legal, isto é, devem ser subsumíveis a uma regra jurídica: eles não são factos “brutos”, mas factos “institucionais”, isto é, factos construídos como tal por uma regra jurídica. Isto demonstra que o recorte da causa de pedir é realizado pelo direito material: são as previsões das regras materiais que delimitam as causas de pedir, pelo que, em abstracto, há tantas causas de pedir quantas as previsões legais.»    

Assim, embora a diferenciação de causas de pedir seja feita, em regra, por via da conjugação da concreta factualidade alegada com o aludido quadro normativo aplicável, casos há em que a mesma factualidade empírica é suscetível de preencher quadros normativos distintos com estatuição de modos de tutela jurídica qualitativamente diversos. Nestes casos, tal diferenciação será feita, basicamente, em função do vetor normativo da causa de pedir

Em suma, sendo o pedido e a causa de pedir conceitos de matriz e função processual, a sua densificação ou concretização, em termos de determinar em concreto cada causa de pedir, só poderá ser feita com base nas normas substantivas aplicáveis à situação litigiosa singular.” [sublinhados nossos]

Aplicando ao caso dos autos esta orientação jurisprudencial (cujo alcance não se afigura ter sido inteiramente apreendido pela Recorrida ao convocar em abono da sua posição, a fundamentação do acórdão que acabamos de reproduzir), temos que, tendo sido peticionada a anulação do testamento, há que ponderar se a factualidade empírica na qual o pedido se funda será ou não susceptível de preencher quadros normativos distintos, o que – assinale-se – não se confunde com a apreciação da viabilidade de procedência da pretensão da A.

Compulsada a petição inicial, verifica-se que os factos alegados (“78. Foi a 2ª R. quem deu instruções sobre o sentido em que o testamento iria ser lavrado, 82. Porém, o que ficou expresso nesse documento não era o que a CC queria, 114. A CC apenas outorgou o Testamento e efectuou a simulada compra e venda da Quinta... nos moldes em que o fez, porque estava na dependência FÍSICA, PSICOLÓGICA e de ACÇÃO da 2ª R., 115. Sentindo-se compelida (e isso a 2ª R. lhe fazendo notar) de que dependia em absoluto da 2ª R. e que esta a abandonaria, caso a decessa não lhe fizesse a vontade, 116. A CC apenas obedecia à 2ª R. e cumpria a vontade desta, 117. A CC limitava-se a fazer o que a 2ª R. lhe dizia para fazer”), tanto são susceptíveis de preencher o regime da incapacidade acidental por falta de liberdade no exercício da vontade de testar (segunda parte do art. 2199º do CC), como de se subsumirem ao vício da coacção moral (art. 257º do CC, aplicável ao testamento ex vi art. 2201º do CC). O que aliás foi, até certo ponto, reconhecido pelo acórdão recorrido que, não obstante ter excluído a qualificação da causa de pedir como coacção moral, admitiu, a final, apreciar da verificação dos respectivos pressupostos, concluindo em sentido negativo.

A possibilidade de subsunção dos factos alegados ao vício de coacção moral não desrespeita o princípio do contraditório, enquanto princípio estruturante do processo civil e enquanto garantia processual fundamental, tanto porque – como decorre da leitura dos factos alegados, aqui transcritos, à luz da previsão do quadro normativo do nº 1 do art. 255º do CC (é “feita sob coacção moral a declaração negocial determinada pelo receio de um mal de que o declarante foi ilicitamente ameaçado com o fim de obter dele a declaração”) – tal subsunção é perfeitamente apreensível pela contraparte como porque, ao longo do processado, teve a mesma contraparte oportunidade de, por diversas vezes, se pronunciar acerca da referida qualificação alternativa, tendo-se efectivamente pronunciado.

Diversamente, no que ao quadro normativo da usura respeita, definido pelo nº 1 do art. 282º do CC, – e independentemente da posição assumida acerca da questão da aplicabilidade de tal regime ao testamento – constata-se que, ainda que tenham sido alegados factos susceptíveis de integrar os pressupostos da existência de uma situação de inferioridade do declarante e da exploração da situação de inferioridade pelo usurário (o que, repita-se, não se confunde com a tomada de posição acerca do efectivo preenchimento de tais pressupostos), não foi alegado qualquer facto que possa integrar o pressuposto da promessa ou concessão de benefícios excessivos ou injustificados para o usurário ou terceiro, não podendo relevar as considerações a este respeito tecidas pela A. em sede recursória. Tanto basta para afastar a possibilidade de se qualificar a causa de pedir no domínio da usura.

Em conformidade com o exposto, conclui-se que, após consolidação da factualidade dada como provada, deverá a Relação proceder à apreciação do pedido de anulação do testamento dos autos não apenas com fundamento em incapacidade acidental por falta de liberdade da testadora no exercício da vontade, mas também com fundamento em coacção moral. Assim como deverá proceder à reapreciação da invocada nulidade por ofensa aos bons costumes.». [negritos parcialmente nossos]

Temos assim que, com a prolação do acórdão do Supremo Tribunal de 17 de Dezembro de 2019: (i) formou-se caso julgado em relação à não verificação dos requisitos da usura; (ii) foi determinado que, uma vez estabilizada a decisão de facto, se reapreciasse a questão da alegada invalidade do testamento com fundamento na segunda parte do art. 2199.º do CC [(incapacidade por) falta de liberdade da testadora no exercício da vontade], com fundamento em coacção moral e em ofensa aos bons costumes.

Com a baixa dos autos à Relação e com a estabilização da decisão de facto, procedeu o acórdão ora recorrido à reapreciação da decisão de direito. Dando como reunidos os requisitos da anulabilidade do testamento por aplicação da segunda parte do art. 2199.º do CC, entendeu – o que não merece censura – ficar prejudicada a apreciação dos demais fundamentos possíveis de invalidade, a saber, a coacção moral e a ofensa aos bons costumes.

Pelo exposto, conclui-se que o pedido de ampliação do objecto do recurso, formulado pela Recorrida, para ser apreciado o preenchimento dos pressupostos da coacção moral e da ofensa aos bons costumes, não viola o caso julgado formado nos autos. Assinale-se, aliás, que, em sede de alegações de recurso (ver conclusões XXXVIII a XLI e conclusões LVIII e LIX), a própria Recorrente, que se veio opor à admissibilidade da ampliação do objecto do recurso pedida pela Recorrida, tecera, por antecipação, diversas considerações relativamente ao alegado não preenchimento dos pressupostos da usura, da coacção moral e da ofensa aos bons costumes.

Assim, e conforme previsto pelo n.º 1 do art. 636.º do CPC («No caso de pluralidade de fundamentos da ação ou da defesa, o tribunal de recurso conhece do fundamento em que a parte vencedora decaiu, desde que esta o requeira, mesmo a título subsidiário, na respetiva alegação, prevenindo a necessidade da sua apreciação.»), admite-se a ampliação do objecto do recurso.

 

3. Enunciam-se, em seguida, as questões recursórias a apreciar, salvo se o conhecimento de alguma ou algumas dessas questões ficar prejudicado pela resolução de questão precedente:

- Nulidade do acórdão recorrido por excesso e por omissão de pronúncia;

- Nulidade do acórdão recorrido por contradição insanável entre factos dados como provados, devendo aplicar-se ao caso o regime do art. 682.º, n.º 3, do Código de Processo Civil;

- Erro de julgamento do acórdão recorrido ao anular o testamento com fundamento na aplicação da segunda parte da previsão do art. 2199.º do Código Civil: (incapacidade por) falta de liberdade da testadora no exercício da sua vontade;

- Anulabilidade do testamento por verificação dos requisitos da coacção moral (art. 255.º do Código Civil, aplicável ex vi art. 2201.º do mesmo Código);

- Nulidade do testamento por contrariedade aos bons costumes (art. 280.º, n.º 2, do CC);

- Inconstitucionalidade do acórdão recorrido por violação do princípio da confiança.

III – Fundamentação de facto

1 - CC nasceu no dia .../.../1920 e faleceu em 05 de Outubro de 2012, com 92 (noventa e dois) anos de idade no estado de viúva de DD;

2 - A A e a Ré BB são as únicas filhas de CC e suas únicas herdeiras;

3 - DD, pai da A e da R faleceu em 09 de Janeiro de 1999;

4 - Em 27 de Agosto de 1999 a decessa CC outorgou testamento no ... Cartório Notarial do ... onde, por força da sua quota disponível, legou à 2ª R., sua filha - BB - "a sua propriedade denominada Quinta..., situada na freguesia ..., concelho ..., com todos os seus pertences."

5 - Mais então ficou consignado que "este é o segundo testamento que faz e que, por ele, revoga inteiramente o anteriormente feito em data e cartório que não se recorda ";

6 - A decessa CC outorgou em 19 de Setembro de 2005, procuração dando plenos poderes para que as suas filhas (aqui A. e R.) "SEMPRE EM COMUM E CONJUNTAMENTE" regessem todo o seu património, praticando todos os atos, efetuando todos os negócios e outorgando contratos para o efeito necessários, conforme enumeração exaustiva constante do documento n° 5 junto com a p.i;

7 - A partir da data da morte do seu marido a referida CC, não mais quis ficar sozinha à noite na casa que era de ambos;

8 - CC ficou acamada desde 19 de Fevereiro de 2007 altura em que foi internada na Casa de Saúde ...;

9 - Tendo vivido desde Julho de 2009 e até á sua morte (05/10/2012) nas Residências de 3ª idade do ..., nesta cidade;

10 - O casal DD e CC construíram um prédio na esquina da Rua ..., ..., com a Rua ..., ..., do qual reverteram 3 fracções para cada um dos filhos da A. (EE, FF e GG) e 3 idênticas fracções para a estirpe da 2ª R. (a saber, uma fracção para a própria, uma fracção para a sua filha HH e uma fracção para a sua filha II).

11 - E nas ocasiões festivas, quando os pais de A. e da R. agraciavam alguma das filhas com qualquer quantia em dinheiro, tinham sempre o cuidado de presentear a outra com igual quantia;

12 - No dia 04 de Agosto de 2005, a decessa CC outorgou escritura pública de compra e venda mediante a qual declarou vender a Quinta... (que havia legado à 2ª Ré no testamento supra referido em 4) e ainda o prédio rústico denominado Campos ..., o prédio rústico Campo ... e prédio rústico denominado lameiro ..., (todos melhor identificados na escritura pública junta a fls. 84 e ss) a JJ (que era caseiro da mesma), pelo preço global de € 165.000,00 (cento e sessenta e cinco mil euros);

13 - Isto, quando é certo que a referida quinta valia, na altura, mais de € 1.000.000,00 (um milhão de euros);

14 - No mesmo dia, o referido JJ prometeu vender e a 2ª Ré prometeu comprar a referida Quinta..., pelo preço declarado integralmente pago nessa data de € 190.000,00 (cento e noventa mil euros);

15 - E, nesse mesmo dia, o referido JJ e mulher habilitaram a Ré com Procuração bastante que lhe permitia celebrar o negócio prometido quando esta bem entendesse;

16 - Tal qual consta da decisão proferida no processo 3856/07.... do ... Juízo Cível ... (e integralmente confirmada pela Relação em acórdão já transitado em julgado), em processo judicial para o efeito intentado pela aqui A. “dúvidas não restam, em face da matéria de facto dada como provada e acabada de referir, que as declarações de compra e venda constantes da escritura pública aludida no ponto 7 não correspondem à vontade real das partes, pois que a 1ª Ré não quis fazer qualquer venda ao 2º R., nem este lhe quis efectuar qualquer compra. O que se verifica é que a 1ª R. quis criar a aparência de que tais prédios já não faziam parte do seu património, para que estes não fossem tidos em conta em sede de futura partilha pelo seu falecimento, podendo reverter apenas para a sua filha BB, sem colação ou redução por inoficiosidade, em detrimento da sua outra filha, a ora A., e o 2º R. acedeu a participar na criação de tal aparência, porque tal assim lhe foi pedido pela 1ª R. e pela filha BB e atentas as relações de amizade e de trabalho que os unem”;

17 - Conforme certidão predial junta a fls. 850 e ss referente ao imóvel descrito na Competente Conservatória do Registo Predial sob o n° ..., denominado prédio rústico situado no Lugar ..., da freguesia ..., encontra-se registada através da AP ... de 2013/10/17 o seguinte: “Declarado nulo o negócio jurídico de compra e venda titulado por escritura outorgado em 4 de Agosto de 2005, de fls. 87 a 89 do Livro de Escrituras diversas n° 17-A do Cartório ..., em ... e consequentemente ordenado o cancelamento do registo predial de aquisição a favor de JJ e mulher KK, constante da inscrição G-l, emergente da Ap ...6 de 2005/11/24”;

18 - Conforme escritura pública de compra e venda e mútuo com hipoteca celebrada em 29.5.2002, no ..., a aqui 2ª Ré BB declarou comprar pelo preço de 274338,84 cêntimos, o prédio urbano composto de cave e rés-do-chão, andar e quintal sito na Rua ... da freguesia ..., concelho do ...;

19 - Dá-se aqui por reproduzida a decisão proferida no âmbito do processo 18082/05.... do Círculo Judicial ..., junta a fls. 557 e ss e do Tribunal da Relação ... de fls. 906 e ss;

20 - O súbito falecimento do marido de CC, DD, ocorrido em 09 de Janeiro de em 1999, abalou profundamente CC, que se viu despojada do seu companheiro de uma vida;

21 - Essa perda, aos seus 79 anos de idade fez com que CC sofresse um grande choque e ficasse deprimida;

22 - Sofreu, em consequência uma quebra na sua condição física e psíquica;

23 - CC após a morte do marido passava a maior parte do dia sentada no sofá;

24 - CC deixou de fazer as compras necessárias à sua vida corrente e de gerir a vida da casa e de dar ordens para a compra das coisas necessárias;

25 - Por vezes confundia datas, ou confundia eventos do presente com eventos do passado;

26 - Confundia, por vezes, nomes e pessoas;

27 - Falava no seu marido como se ele ainda estivesse vivo;

28 - Esquecia-se das coisas com facilidade;

29 - CC perdia facilmente a atenção do que lhe era dito.

30 - Por vezes não retinha aquilo que lhe era dito.

31 - Confundia, por vezes, os dias da semana;

32 - Tinha dificuldade em saber o valor do dinheiro e o que o mesmo permitia ou não comprar;

33 - Tinha alterações de humor;

34 - Estava muitas vezes triste, deprimida e chorosa;

35 - Após a morte do marido CC continuou a gozar férias em família, instalando-se para o efeito, quer em ..., juntamente com familiares, quer com a 2ª Ré no ...;

36 - Continuou a ir ao cabeleireiro, como fazia habitualmente;

37 - A partir do falecimento do marido, passou a viver em casa da 2ª R., que era a filha cuja residência ficava mais próxima da casa do casal, tendo alguns meses depois passado a viver num apartamento duplex (que era já de sua propriedade) situado em frente ao apartamento da 2ª R, no mesmo prédio, onde vivia sozinha com uma empregada de dia e outra que aí com ela pernoitava;

38 - Após a aquisição pela 2ª R da casa sita na Rua ..., no ..., em 29.5.2002, CC passou a viver com a filha, aqui R, na referida casa;

39 - Em 19.7.2005 veio a ser diagnosticado a CC "Alzheimer";

40 - A doença de "Alzheimer" é uma demência degenerativa, progressiva e irreversível que provoca uma deterioração global das funções cognitivas, designadamente da memória, atenção, concentração, linguagem e pensamento;

41 - Por força dessa doença, o estado de saúde de CC foi-se progressivamente agravando, com alterações da sua função cognitiva;

42 - Vindo a ficar incapaz de reger a sua pessoa e bens;

43 - Em 2006, a CC estava já perfeita e permanentemente alheada de tudo e de todos;

44 - Em 19 de Fevereiro de 2007 a CC foi internada na Casa de Saúde ... e operada a uma "Tromboflebite";

45 - Contrariamente ao afirmado por CC, no testamento outorgado em 27.8.1999, esse não era o seu segundo testamento, mas sim o seu sétimo testamento, pois outorgara anteriormente 6 testamentos, respectivamente em 17.4.1972; 19.5.1988; 14.2.1989; 7.6.1991; 24.11.1992 e 26.10.1994;

46 - CC sentia-se dependente da 2ª R., a filha com quem passou a viver após a morte do marido e receava que esta a abandonasse caso não lhe fizesse a vontade de lhe deixar a Quinta..., sita em ...;

47 - CC outorgou o aludido testamento, nos moldes em que o fez, porque se sentia dependente física e psicologicamente da 2ª R e não a queria contrariar, com medo da sua reacção;

47- a) - CC só outorgou o testamento para obedecer à Ré [sendo que, de acordo com o esclarecimento da Relação “para obedecer à Ré” tem o significado de “cumprir e observar a vontade da Ré”];

48 - CC fazia sempre por obedecer à 2ª R. e cumpria sempre a vontade desta [sendo que, de acordo com o esclarecimento da Relação “por obedecer à Ré” tem o significado de “cumprir e observar a vontade da Ré”];

49 - A 2ª R. dificultou, chegando mesmo a impedir algumas vezes o acesso da A. à Mãe, reduzindo-lhe a possibilidade de visitas em sua casa ou até mesmo proibindo as mesmas.

50 - E chamou a si toda a gestão do património da mãe;

51 - Apresentando os factos consumados, sem que à A. lhe fosse dada qualquer hipótese de decidir o que quer que seja;

52 - Como sucedeu com a venda da Quinta..., em que a A. apenas soube do negócio depois do mesmo estar concluído;

Mais se provou o seguinte facto instrumental resultante da instrução da causa:

53 - A aqui A, em Julho de 2005 chegou a confrontar directamente a sua mãe CC, com o conteúdo do testamento supra referido em 4 e com o facto de se se sentir injustamente prejudicada em favor da irmã, mais informando a mãe que sempre poderia revogar aquele testamento.

Foram dados como não provados os seguintes factos:

a) que o marido tivesse ascendência sobre a CC,

b) que, em consequência da morte do marido, CC tenha ficado apática e sem reacção;

c) que tenha sofrido uma quebra abruta de lucidez;

d) que tenha havido agravamento exponencial de sintomas que já se vinham fazendo notar e que todos atribuíam à idade;

e) que passasse a maior parte do tempo deitada na cama;

f) que, poucos meses volvidos da morte do marido, a CC já não se vestia sozinha;

g) que já não se lavava a não ser com a ajuda de terceiros,

h) que tinha muitas dificuldades em andar,

i) que andava apoiada em terceiros ou com a ajuda de uma bengala;

j) que se desequilibrasse com facilidade;

k) que se cansasse muito;

l) que se repetisse no seu discurso;

m) que tivesse, após a morte do marido, dificuldades em coordenar os seus movimentos;

n) que, quando frequentava festas e convívios com familiares ou com pessoas, não esboçasse qualquer reacção ao humor que lhe dirigiam para que se animasse;

o) que pouco falava e notava-se que preferia não o fazer;

p) que quando falava, o que raramente sucedia, a CC era incapaz de manter uma conversação com nexo e princípio, meio e fim;

q) que quando porventura o conseguia fazer, faltavam-lhe as palavras e tinha dificuldade em articulá-las;

r) que não reconhecia as pessoas próximas;

s) que ficasse completamente apática e distante;

t) que perdesse muitas vezes a noção do sítio onde estava;

u) que já não conhecesse o dinheiro;

v) que não sabia dizer o que ainda tinha e o que já tinha vendido ou doado.

w) que não conhecia o seu património;

x)  nem por ele se interessava.

y) que não tivesse vontade própria;

z) que tivesse um discurso à base de frases soltas;

aa) que nessa altura CC sofresse de ALZHEIMER;

bb) que o agravado estado de saúde mental da CC em 27 de Agosto de 1999 não lhe permitisse recordar todos aqueles outros seis testamentos anteriores;

cc) que em 27 de Agosto de 1999, a CC estava incapacitada de entender o sentido da declaração que prestou naquele seu testamento;

dd) que nessa data CC se encontrasse incapacitada de entender o sentido da sua declaração;

gg) CC limitou-se a anuir ao que lhe foi lido e explicado, sem porém compreender e atentar no que lhe era dito;

hh) que tenha sido a 2ª R. quem marcou a realização do testamento no notário;

ii) que tenha sido a 2ª R. quem forneceu os documentos para as mesmas;

jj) que tenha sido a 2ª R. quem deu instruções sobre o sentido em que o testamento iria ser lavrado;

kk) que tenha sido a 2ª R. quem arranjou as testemunhas e quem lhes solicitou que testemunhassem nesse ato;

ll) que tenha sido a 2ª R. quem conduziu todos ao Cartório;

mm -que tenha sido a 2ª R. quem pagou os emolumentos devidos pelos atos notariais;

nn) que a decessa CC, sempre tenha feito saber à A. e a todos com quem se relacionavam, que à sua morte, as partilhas entre ambas as suas filhas fossem feitas irmãmente e em partes iguais, para que nenhuma ficasse favorecida em relação à outra;

oo) que quando ainda lúcida, a CC sentia e dizia que a 2ª R. não gostava da Mãe, gostava antes do património da Mãe;

pp) que a Mãe da Autora e Ré não se coibia, perante quem quer que fosse, de manifestar a sua gratidão perante a sua filha BB, a aqui contestante, expressando também o seu agravo perante a ausência e abandono da sua filha AA, seus netos e genro;

qq) que a A jamais tenha acompanhado os pais, abandonando-os;

rr) que durante o referido internamento, na Casa de Saúde ... tenha recebido visitas diárias da 2ª R e que só esporadicamente fosse visitada pela A;

ss) que a 2ª Ré só tenha tido conhecimento do testamento, muito posteriormente à elaboração do mesmo, por intermédio de um casal amigo.

IV – Fundamentação de direito

1. Recorde-se serem as seguintes as questões a apreciar no presente recurso, salvo se o conhecimento de alguma ou algumas destas questões vier a ficar prejudicado pela resolução de questão precedente:

- Nulidade do acórdão recorrido por excesso e por omissão de pronúncia;

- Nulidade do acórdão recorrido por contradição insanável entre factos dados como provados, devendo aplicar-se ao caso o regime do art. 682.º, n.º 3, do Código de Processo Civil;

- Erro de julgamento do acórdão recorrido ao anular o testamento com fundamento na aplicação da segunda parte da previsão do art. 2199.º do Código Civil: (incapacidade por) falta de liberdade da testadora no exercício da sua vontade;

- Anulabilidade do testamento por verificação dos requisitos da coacção moral (art. 255.º do Código Civil, aplicável ex vi art. 2201.º do mesmo Código);

- Nulidade do testamento por contrariedade aos bons costumes (art. 280.º, n.º 2, do CC);

- Inconstitucionalidade do acórdão recorrido por violação do princípio da confiança.


2. No que se refere à questão da invocada nulidade do acórdão recorrido tanto por excesso como por omissão de pronúncia, alega a Recorrente o seguinte:

- «a Relação ... excedeu, em muito, os seus poderes de cognição, ultrapassando o limite estipulado pelo Supremo Tribunal de Justiça e acabando por não apreciar a validade do testamento com base nos quatro vértices estipulados e delimitando.

- Excedendo a sua pronúncia, não lhe sendo admissível, e, além disso, omitindo a sua pronúncia quanto ao que era expectável ao nível do recurso.

- Nessa medida, por inexistência de pronúncia quanto ao estipulado pelo Supremo Tribunal de Justiça, bem como pelo excesso de pronúncia, deverá ser conhecida a nulidade do acórdão proferido, porquanto existia uma vinculação ao poder-dever previsto no art. 590.º n.º 4 do Código de Processo Civil».

Recordemos o que ficou dito supra, a respeito da admissibilidade do pedido de ampliação do objecto do presente recurso de revista.

Como resulta da decisão do acórdão deste Supremo Tribunal de 17 de Dezembro de 2019, com a prolação deste: (i) decidiu-se não se encontrarem verificados os requisitos da usura, formando-se caso julgado a este respeito; (ii) foi determinado que, uma vez estabilizada a decisão de facto pela Relação, se reapreciasse a questão da alegada invalidade do testamento com fundamento na segunda parte do art. 2199.º do CC (anulabilidade por falta de liberdade da testadora no exercício da sua vontade), em coacção moral e em ofensa aos bons costumes.

Com a baixa dos autos à Relação e com a estabilização da decisão de facto, procedeu o acórdão recorrido à reapreciação da decisão de direito. Dando como reunidos os requisitos da anulabilidade do testamento por aplicação da segunda parte do art. 2199.º do CC, entendeu – o que não merece censura – ficar prejudicada a apreciação dos demais fundamentos possíveis de invalidade, a saber, a coacção moral e a ofensa aos bons costumes.

Temos, assim, que:

- Ao apreciar a questão da invalidade do testamento dos autos com fundamento na segunda parte do art. 2199.º do CC [(incapacidade por) falta de liberdade da testadora no exercício da sua vontade] respeitou o acórdão recorrido o determinado pelo acórdão deste Supremo Tribunal de 17 de Dezembro de 2019, não incorrendo em excesso de pronúncia;

- Ao não apreciar a questão da invalidade do dito testamento com fundamento em coacção moral e em ofensa aos bons costumes – por considerar, correctamente, que a apreciação de tais fundamentos se encontrava prejudicada pela decisão de anulação com fundamento em (incapacidade por) falta de liberdade da testadora no exercício da vontade – não incorreu o tribunal a quo em omissão de pronúncia.

Conclui-se, assim, pela não verificação das invocadas nulidades por excesso e por omissão de pronúncia.


3. Invoca ainda a Recorrente padecer o acórdão recorrido de nulidade por contradição insanável entre factos dados como provados, devendo aplicar-se ao caso o regime do art. 682.º, n.º 3, do Código de Processo Civil.

Vejamos.

Diversamente do que a Recorrente parece entender, as causas de nulidade da decisão judicial encontram-se tipificadas no n.º 1 do art. 615.º do CPC. Entre essas causas conta-se a contradição entre a decisão e a fundamentação (primeira parte da alínea c)), mas não a invocada contradição entre factos dados como provados ou entre estes e factos dados como não provados. Este último tipo de contradição apenas releva se, no juízo a realizar pelo próprio tribunal, se entender que essa contradição existe e que inviabiliza a decisão de direito.

No caso sub judice em que, como se sabe, os autos subiram por duas vezes a este Supremo Tribunal – o qual proferiu um primeiro acórdão, determinando a repetição da prova respeitante a certos factos essenciais, e um segundo acórdão, determinando a apreciação da impugnação da matéria de facto realizada em sede de apelação –, analisada a factualidade dada como provada e como não provada, constata-se não padecer a mesma da invocada contradição.

Improcede, assim, nesta parte, a pretensão da Recorrente.


4. Aqui chegados, passa-se, a conhecer das questões de mérito objecto do presente recurso, a saber:

- Erro de julgamento do acórdão recorrido ao anular o testamento com fundamento na aplicação da segunda parte da previsão do art. 2199.º do Código Civil: (incapacidade por) falta de liberdade da testadora no exercício da sua vontade;

- Anulabilidade do testamento por verificação dos requisitos da coacção moral (art. 255.º do Código Civil, aplicável ex vi art. 2201.º do mesmo Código);

- Nulidade do testamento por contrariedade aos bons costumes (art. 280.º, n.º 2, do CC);

- Inconstitucionalidade do acórdão recorrido por violação do princípio da confiança.

Recorde-se que o tribunal a quo confirmou a decisão da 1.ª instância de anular o testamento dos autos com base na aplicação do regime da segunda parte do art. 2199.º do CC, isto é, com base em (incapacidade por) falta de liberdade da testadora no exercício da sua vontade.

A Recorrente impugna esta decisão e a respectiva fundamentação, invocando também a inconstitucionalidade da mesma. A Recorrida requer a apreciação dos demais fundamentos de invalidade do testamento não apreciados pela Relação.

Vejamos.

Relevam especialmente os seguintes factos provados:

1 - CC nasceu no dia .../.../1920 e faleceu em 05 de Outubro de 2012, com 92 (noventa e dois) anos de idade no estado de viúva de DD;

2 - A A e a Ré BB são as únicas filhas de CC e suas únicas herdeiras;

3 - DD, pai da A e da R faleceu em 09 de Janeiro de 1999;

4 - Em 27 de Agosto de 1999 a decessa CC outorgou testamento no ... Cartório Notarial do ... onde, por força da sua quota disponível, legou à 2ª R., sua filha - BB - "a sua propriedade denominada Quinta..., situada na freguesia ..., concelho ..., com todos os seus pertences."

5 - Mais então ficou consignado que "este é o segundo testamento que faz e que, por ele, revoga inteiramente o anteriormente feito em data e cartório que não se recorda ";

20 - O súbito falecimento do marido de CC, DD, ocorrido em 09 de Janeiro de em 1999, abalou profundamente CC, que se viu despojada do seu companheiro de uma vida;

21 - Essa perda, aos seus 79 anos de idade fez com que CC sofresse um grande choque e ficasse deprimida;

22 - Sofreu, em consequência uma quebra na sua condição física e psíquica;

23 - CC após a morte do marido passava a maior parte do dia sentada no sofá;

24 - CC deixou de fazer as compras necessárias à sua vida corrente e de gerir a vida da casa e de dar ordens para a compra das coisas necessárias;

25 - Por vezes confundia datas, ou confundia eventos do presente com eventos do passado;

26 - Confundia, por vezes, nomes e pessoas;

27 - Falava no seu marido como se ele ainda estivesse vivo;

28 - Esquecia-se das coisas com facilidade;

29 - CC perdia facilmente a atenção do que lhe era dito.

30 - Por vezes não retinha aquilo que lhe era dito.

31 - Confundia, por vezes, os dias da semana;

32 - Tinha dificuldade em saber o valor do dinheiro e o que o mesmo permitia ou não comprar;

33 - Tinha alterações de humor;

34 - Estava muitas vezes triste, deprimida e chorosa;

35 - Após a morte do marido CC continuou a gozar férias em família, instalando-se para o efeito, quer em ..., juntamente com familiares, quer com a 2ª Ré no ...;

36 - Continuou a ir ao cabeleireiro, como fazia habitualmente;

37 - A partir do falecimento do marido, passou a viver em casa da 2ª R., que era a filha cuja residência ficava mais próxima da casa do casal, tendo alguns meses depois passado a viver num apartamento duplex (que era já de sua propriedade) situado em frente ao apartamento da 2ª R, no mesmo prédio, onde vivia sozinha com uma empregada de dia e outra que aí com ela pernoitava;

38 - Após a aquisição pela 2ª R da casa sita na Rua ..., no ..., em 29.5.2002, CC passou a viver com a filha, aqui R, na referida casa;

39 - Em 19.7.2005 veio a ser diagnosticado a CC "Alzheimer";

45 - Contrariamente ao afirmado por CC, no testamento outorgado em 27.8.1999, esse não era o seu segundo testamento, mas sim o seu sétimo testamento, pois outorgara anteriormente 6 testamentos, respectivamente em 17.4.1972; 19.5.1988; 14.2.1989; 7.6.1991; 24.11.1992 e 26.10.1994;

46 - CC sentia-se dependente da 2ª R., a filha com quem passou a viver após a morte do marido e receava que esta a abandonasse caso não lhe fizesse a vontade de lhe deixar a Quinta..., sita em ...;

47-CC outorgou o aludido testamento, nos moldes em que o fez, porque se sentia dependente física e psicologicamente da 2ª R e não a queria contrariar, com medo da sua reacção;

47 - a) - CC só outorgou o testamento para obedecer à Ré [sendo que, de acordo com o esclarecimento da Relação “para obedecer à Ré” tem o significado de “cumprir e observar a vontade da Ré”];

48 - CC fazia sempre por obedecer à 2ª R. e cumpria sempre a vontade desta [sendo que, de acordo com o esclarecimento da Relação “por obedecer à Ré” tem o significado de “cumprir e observar a vontade da Ré”];

49 - A 2ª R. dificultou, chegando mesmo a impedir algumas vezes o acesso da A. à Mãe, reduzindo-lhe a possibilidade de visitas em sua casa ou até mesmo proibindo as mesmas.

50 - E chamou a si toda a gestão do património da mãe;

51 - Apresentando os factos consumados, sem que à A. lhe fosse dada qualquer hipótese de decidir o que quer que seja;

52 - Como sucedeu com a venda da Quinta..., em que a A. apenas soube do negócio depois do mesmo estar concluído;

53 - A aqui A, em Julho de 2005 chegou a confrontar directamente a sua mãe CC, com o conteúdo do testamento supra referido em 4 e com o facto de se se sentir injustamente prejudicada em favor da irmã, mais informando a mãe que sempre poderia revogar aquele testamento.

Importando também ter presente que foi dado como não provado:

cc) que em 27 de Agosto de 1999, a CC estava incapacitada de entender o sentido da declaração que prestou naquele seu testamento;

dd) que nessa data CC se encontrasse incapacitada de entender o sentido da sua declaração;

gg) CC limitou-se a anuir ao que lhe foi lido e explicado, sem porém compreender e atentar no que lhe era dito;

jj) que tenha sido a 2ª R. quem deu instruções sobre o sentido em que o testamento iria ser lavrado.


Dispõe o art. 2199.º do Código Civil:

«É anulável o testamento feito por quem se encontrava incapacitado de entender o sentido da sua declaração ou não tinha o livre exercício da sua vontade por qualquer causa, ainda que transitória.».

Esta norma, e a respectiva epígrafe (Incapacidade acidental), suscitam as seguintes observações de ordem terminológica.

A primeira observação (cfr. Jorge Duarte Pinheiro, O Direito das Sucessões Contemporâneo, 4.ª ed., AAFDL, Lisboa, 2020, pág. 114, e Pedro Pitta e Cunha Nunes de Carvalho, Direito das Sucessões, 2ª ed., Almedina, Coimbra, 2021, pág. 199) respeitante ao facto de o regime legal em causa abranger não apenas situações de incapacidade transitória ou acidental como também situações de incapacidade permanente (sem que, com ou sem recurso ao regime do maior acompanhado, tenham sido estabelecidos limites à capacidade de testar). No mesmo sentido, mas pronunciando-se ainda na vigência do regime, entretanto revogado, da interdição, ver José de Oliveira Ascensão, Direito Civil - Sucessões, 5.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2000, pág. 81.

A segunda observação, mais raramente assinalada, mas igualmente relevante, para a imprecisão da inclusão, na categoria da incapacidade, de ambas as hipóteses descritas no art, 2199.º do CC. Na verdade, tanto pela estrutura da norma, como pelo significado dos termos utilizados, apenas na primeira previsão («testamento feito por quem se encontrava incapacitado de entender o sentido da sua declaração») se poderá falar, com rigor, de incapacidade; sendo que, na segunda previsão («testamento feito por quem (...) não tinha o livre exercício da sua vontade por qualquer causa (...).») estará em causa antes a impossibilidade de decidir de forma diferente (cfr. Gonçalves Proença, Direito das Sucessões, 3.ª ed., Quid iuris, Lisboa, 2009, pág. 164, nota 29). A manter-se a qualificação de incapacidade para esta segunda situação, deve ter-se presente que a mesma se reporta a uma incapacidade volitiva e não a uma incapacidade de entendimento.

Ora, a respeito da aplicabilidade da primeira parte deste regime normativo (incapacidade de entender ou incapacidade stricto sensu), perante a factualidade dada como provada e não provada, pronunciou-se o acórdão recorrido nos seguintes termos:

«No caso concreto e conforme resulta da análise da matéria de facto dada como provada, temos também nos que concluir que à data em que o testamento foi outorgado a testadora não estava incapacitada.

Assim e como se faz notar na sentença recorrida, não obstante o quadro depressivo que revelava e a fragilidade emocional que se encontrava, após a morte do seu marido, a testadora CC revelava, não ficou provado que a mesma estivesse incapacitada de querer e de entender o significado da declaração que fez no dia 27.08.1999 no ... Cartório Notarial do ....

Como ali também se refere, importa ter em conta as duas declarações médicas juntas aos autos e que são contemporâneas do testamento, subscritas após a realização de exame ao estado mental da testadora e das quais se retira a conclusão de que em 26.8.1999, a mesma se encontrava em pleno uso das suas capacidades psíquicas as quais se podiam considerar dentro dos limites normais para a sua idade.

Para corroborar tal entendimento, valem ainda todas as restantes considerações consignadas na sentença recorrida, as quais por serem já sobejamente conhecidas de todos, nos dispensamos de voltar aqui a reproduzir.

Em conclusão, é de subscrever inteiramente a ideia de que por não estarem verificados os respectivos pressupostos legais, ficou e fica afastada a incapacidade acidental da testadora CC.». [negritos nossos]

Esta conclusão afigura-se inteiramente correcta e, de resto, não foi posta em causa por qualquer das partes. Com efeito, da factualidade dada como provada, resulta que, à data da outorga do testamento dos autos (27.08.1999), a testadora, CC, não se encontrava em situação de incapacidade permanente ou acidental.

Razão pela qual a Relação passou a apreciar da verificação da situação prevista na segunda parte do art. 2199.º do CC («É anulável o testamento feito por quem (...) não tinha o livre exercício da sua vontade por qualquer causa, ainda que transitória.»).

Decidindo da seguinte forma:

«[N]a sentença recorrida, entendeu-se que no caso a testadora não tinha o livre exercício da sua vontade, por qualquer causa, ainda que transitória, aplicando-se assim o regime previsto na última parte do art.º 2199º do Código Civil.

E podemos desde já dizer que tal entendimento merece a nossa total adesão.

Vejamos, pois.

Como sabemos, o referido art.º 2199º, sob a epígrafe “incapacidade acidental”, prescreve que “é anulável o testamento feito por quem se encontra incapacitado de entender o sentido da sua declaração ou não tinha o livre exercício da sua vontade por qualquer causa, ainda que transitória.”

Ora, deve considerar-se que o disposto neste artigo não compreende os casos de simulação (art.º 2200º do CC), erro, dolo e coacção (art.º 2201º do CC), erro sobre os motivos (art.2202º do CC), ou erro na indicação da pessoa ou dos bens (art.º 2203º do CC).

Ou seja, o entendimento correcto é o de que os fundamentos da incapacidade acidental testamentária são distintos dos requisitos das hipóteses acabadas de referir.

No sentido de que tal norma tem o propósito de preservar a liberdade e a vontade real do testador de modo a proteger o seu acto de vontade unilateral, cf. o Acórdão do STJ de 19.01.2016, no processo 893/05.5TBPCV.C1.S1, em wwww.dgsi.pt, onde se consignou o seguinte:

A incapacidade acidental, a que se refere o art.º 2199º do Código Civil, afectando ou obnubilando a vontade do testador, constitui vício volitivo que determina a anulabilidade do acto; o normativo quer proteger o testador, o seu acto de vontade unilateral, ao passo que o art.º 257º do Código Civil, que também versa sobre a incapacidade acidental, mas em actos contratuais e tem o seu campo de aplicação nos negócios jurídicos bilaterais visa proteger, sobretudo, o declaratário desde logo exigindo como requisito de anulabilidade da declaração que o facto determinante da incapacitação acidental de entender o sentido da declaração de vontade seja notório, ou conhecido do declaratário.

No citado normativo prescinde-se dos requisitos notoriedade ou cognoscibilidade do vício que afecta a vontade do declarante, desde logo, por se tratar de um acto unilateral, um negócio jurídico não recipiendo, que não carece de aceitação para produzir os seus efeitos.

Em comentário ao art.º 2199º do Código Civil, Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, vol. VI, pág. 323, ensinam:

“A primeira destas regras específicas, constante do artigo 2199.°, refere-se à incapacidade (tomada a expressão no sentido rigoroso próprio da falta de aptidão natural para entender o sentido da declaração ou da falta do livre exercício do poder de dispor mortis causa dos próprios bens, por qualquer causa verificada no momento em que a disposição é lavrada.

A disposição legal refere-se expressamente ao carácter transitório que pode ter a falta de discernimento ou de livre exercício da vontade de dispor, por parte do testador, para significar que o vício contemplado nesta norma é a deficiências psicológica que comprovadamente se verifica no preciso momento em que a disposição é lavrada.

E por conseguinte o mesmo tipo de deficiência psicológica que o artigo 257º considera em relação aos actos entre vivos em geral.

Na área das disposições testamentárias, trata-se de uma situação de crise essencialmente distinta da abrangida na alínea b) do artigo 2189º (incapacidade de testar baseada na interdição por anomalia psíquica).

A nulidade do testamento feito pelo interdito baseia-se na presunção do estado ou situação de incapacidade, juris et de jure, criada pela sentença, desde que é proferida até ao momento em que a interdição é levantada.

A anulação decretada, a requerimento do interessado, com base no artigo 2199º, assenta pelo contrário na falta alegada e comprovada de capacidade do testador, no preciso momento em que lavrou o testamento, fosse para entender o sentido e alcance da sua declaração, fosse para dispor, com a necessária liberdade de decisão, dos bens que lhe pertenciam.”

O estado de incapacidade acidental do testador deve existir no momento da feitura do testamento, incumbindo ao interessado na invalidade o ónus da prova dos factos reveladores de incapacidade acidental – art.º 342º, nº 1, do Código Civil.”.

Podemos, pois, afirmar que não detém o livre exercício da vontade de testar todo aquele que, por qualquer causa exógena relevante, esteja condicionado na sua capacidade volitiva, nomeadamente aqueles que se encontrem numa posição de vulnerabilidade.

Ora é precisamente o que se verifica nos autos.

E tal conclusão resulta, nomeadamente, do que ficou e continua provado nos pontos 46, 47, 47-a), 48, 49, 50, 51 e 52, cujo teor aqui recordamos:

CC sentia-se dependente da 2ª R., a filha com quem passou a viver após a morte do marido e receava que esta a abandonasse caso não lhe fizesse a vontade de lhe deixar a Quinta..., sita em ...;

CC outorgou o aludido testamento, nos moldes em que o fez, porque se sentia dependente física e psicologicamente da 2ª R e não a queria contrariar, com medo da sua reacção;

CC só outorgou o testamento para obedecer á Ré;

CC fazia sempre por obedecer à 2ª R. e cumpria sempre a vontade desta;

A 2ª R. dificultou, chegando mesmo a impedir algumas vezes o acesso da A. à Mãe, reduzindo-lhe a possibilidade de visitas em sua casa ou até mesmo proibindo as mesmas.

E chamou a si toda a gestão do património da mãe;

Apresentando os factos consumados, sem que à A. lhe fosse dada qualquer hipótese de decidir o que quer que seja;

Como sucedeu com a venda da Quinta..., em que a Autora apenas soube do negócio depois do mesmo estar concluído.

Assim, bem entendeu o Tribunal “a quo”, quando perante todo este conjunto de factos, concluiu que a testadora só outorgou o testamento aqui impugnado, porque a tanto foi obrigada pela Ré, e em execução da vontade desta última e não já da sua.

Mais, também, quando afirmou que a testadora CC ao fazer as declarações plasmadas no identificado testamento não tinha o livre exercício da sua vontade, tendo-se limitado a obedecer ao que lhe tinha sido determinado pela Ré.

Teve igualmente razão quando referiu que essa falta de liberdade que afectou a vontade da testadora, não se esgotou no momento da feitura do testamento, tendo-se prolongado durante vários anos.

Por fim, quando faz notar que durante o período em que viveu próxima da filha BB, a mesma foi impedida por esta última, de alterar o que antes havia ficado exarado no testamento aqui em discussão.

Subscrevendo tais considerações, podemos também nós concluir que estão verificados os pressupostos de facto e de direito que permitiram e permitem a aplicação ao caso das regras previstas no artigo 2199º, última parte, do Código Civil.». [negritos nossos]

Insurge-se a Recorrente contra esta decisão, invocando, essencialmente, os seguintes argumentos:

- O testamento dos autos, sendo um testamento redigido por notário, tem força probatória plena, porquanto existe uma qualificada garantia de que o testador gozava de vontade livre e esclarecida;

- Os factos dados como provados permitem concluir pela existência de uma situação de vulnerabilidade da testadora, mas não que, no momento da outorga do testamento, a mesma não tivesse o livre exercício da sua vontade;

- Em todo o caso, a previsão do art. 2199.º do Código Civil não pode ser interpretada de forma a abranger uma causa endógena como a dos autos;

- Tendo a testadora a possibilidade de revogar o testamento (como se comprova por não ter sido este o primeiro testamento por ela outorgado e por ter celebrado outros negócios que envolviam ambas as filhas e não apenas a filha BB, aqui R.), tal é suficiente para demonstrar encontrar-se a mesma no livre exercício da sua vontade.

Vejamos.

5. No que se refere à questão da alegada força probatória plena do testamento lavrado por notário para certificar a capacidade e o livre exercício da vontade da testadora no momento da sua outorga, importa ter presente o que dispõe o n.º 1 do art. 371.º do Código Civil:

«Os documentos autênticos fazem prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respectivo, assim como dos factos que neles são atestados com base nas percepções da entidade documentadora; os meros juízos pessoais do documentador só valem como elementos sujeitos à livre apreciação do julgador.».

Ora, na interpretação desta norma, é entendimento pacífico que:

«Não é sempre a mesma a força material de um documento autêntico: depende da razão de ciência invocada. Assim, ficam plenamente provados os factos que nele se referem como tendo sido praticados pela entidade documentadora, autora do documento (que conferiu a identidade das partes, ou que lhes leu o documento…), ou que nele são atestados com base nas suas percepções (por ex., as declarações que ouviu ou os actos que viu serem praticados); mas os meros juízos pessoais do documentador (que a parte se encontrava no pleno uso das faculdades mentais ou semelhante) ficam sujeitos à regra da livre apreciação pelo julgador.» (Maria dos Prazeres Pizarro Beleza, anotação ao artigo 371.º, in Comentário ao Código Civil - Parte Geral, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2014, págs. 852-853).

Neste sentido, ver, por exemplo, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 19.01.2016 (proc. n.º 893/05.5TBPCV.C1.S1), de 08.03.2018 (proc. nº 2170/13.9TVLSB.L1.S1) e de 17.10.2019 (proc. n.º 1146/17.1T8BGC.G1.S2), consultáveis em www.dgsi.pt.

Conclui-se, assim, que as instâncias não desrespeitaram as normas de direito probatório ao darem como verificado o fundamento de anulação do testamento dos autos com base na previsão da segunda parte do art. 2199.º do Código Civil.

6. Como fundamento para a sua impugnação, alega ainda a Recorrente que os factos provados permitem concluir pela existência de uma situação de vulnerabilidade da testadora, mas não que, aquando da outorga do testamento, a mesma não tivesse o livre exercício da sua vontade.

Importa retomar o núcleo essencial dos factos provados, no que se reporta ao estado psíquico da testadora:

- CC sentia-se dependente da 2ª R., a filha com quem passou a viver após a morte do marido e receava que esta a abandonasse caso não lhe fizesse a vontade de lhe deixar a Quinta..., sita em ...;

- CC outorgou o aludido testamento, nos moldes em que o fez, porque se sentia dependente física e psicologicamente da 2ª R e não a queria contrariar, com medo da sua reacção;

- CC só outorgou o testamento para obedecer à Ré [sendo que, de acordo com o esclarecimento da Relação “para obedecer à Ré” tem o significado de “cumprir e observar a vontade da Ré”];

- CC fazia sempre por obedecer à 2ª R. e cumpria sempre a vontade desta [sendo que, de acordo com o esclarecimento da Relação “por obedecer à Ré” tem o significado de “cumprir e observar a vontade da Ré”]

Justificando-se retomar aqui a motivação de facto constante da sentença, motivação esta que integra um primeiro momento (correspondente à produção de prova na audiência de julgamento inicial) e um segundo momento (correspondente à produção de prova na reabertura da audiência de julgamento):

«Quanto aos factos 46, 47, 47 a) e 48 o tribunal formou convicção quanto à prova dos mesmos com base no depoimento da testemunha LL, tendo ainda relevado na formação da convicção do tribunal as declarações prestadas por ambas as partes, na audiência que foi reaberta.

Como referimos, esta testemunha acompanhou diariamente a sua patroa, a testadora CC até á morte desta, cerca de 40 anos.

Continuou a ser empregada de CC, mesmo quando CC ficou a viver na casa da filha, continuando a aí se deslocar para lhe prestar os habituais serviços como empregada doméstica.

Não só convivia diariamente com a testadora o que lhe permitia falar com ela sobre vários assuntos, como teve oportunidade de falarem sobre o testamento dos autos, como referiu.

Também se encontrava numa situação privilegiada para se aperceber do relacionamento entre mãe e filha, a aqui Ré, uma vez que a testadora, após a morte do marido, passou a viver junto daquela filha.

Resulta do depoimento desta testemunha que o relacionamento da Ré para a com a sua mãe era autoritário, dizendo-lhe muitas vezes que "está na minha casa, eu aqui é que mando". A testemunha apercebeu-se igualmente que a Ré tinha uma personalidade forte e autoritária que fazia com que a mãe cumprisse sempre a sua vontade, nunca a contrariando, com medo, sendo que por vezes levantava a voz e ofendia-a verbalmente.

A testemunha declarou o seguinte: "A D. BB é que mandava." Se a Ré dizia à mãe "temos de vender", a testadora dizia que tinha de se vender, que tinha de ser.

E a testemunha LL referiu até, mais do que uma vez, de forma espontânea que CC tinha medo da sua mãe. A testadora tinha medo de contrariar a filha. "Havia ali medo da mãe pela filha". Que a patroa preferia contrariar a filha aqui A, que a filha aqui Ré.

Disse também, ter-se apercebido que o assunto do testamento, cuja existência se veio a saber, após a sua realização, fazia sofrer e angustiava a testadora. Referiu mesmo, que daquilo que se apercebia, sentia que a mesma estava arrependida, tendo mesmo dito que achava que a sua patroa "morreu arrependida com o testamento que fez". Que aquela também lhe dizia "mas agora está feito, está feito".

Esta testemunha afirmou porém que a sua patroa nunca lhe disse que foi a Ré quem a obrigou a fazer o testamento e que nunca se apercebera de tal, dizendo não saber quais as razões que levaram a patroa a fazer esse testamento.

Que a sua patroa lhe contou que tinha feito o "testamento da quinta à filha BB" porque era com ela que queria ficar e que ela tinha ficado prejudicada, porque estava divorciada e precisava mais dos pais.

Re-inquirida esta testemunha, tendo sido re-aberta a audiência de julgamento, na sequência do douto acórdão do STJ, a mesma num registo mais "relaxado" (é patente na mera audição do depoimento prestado por esta testemunha na sessão de julgamento de anterior, na parte final do depoimento, um enorme cansaço e um grande esforço em responder ás perguntas, face ao interrogatório "cerrado" a que foi sujeita (não só por parte dos senhores advogados, mas também do tribunal, face á importância do seu depoimento), a mesma voltou a espontânea e insistentemente a referir a palavra "medo" (recorrente, aliás quer no seu depoimento prestado então, quer agora), que a testadora sentia relativamente á filha BB, relativamente a quem nunca se "atrevia" a contrariar.

E se, por causa das últimas respostas dadas por esta testemunha na primeira sessão de julgamento, (precisamente já no final da sua inquirição), que deixaram este tribunal com algumas dúvidas, relativamente à questão de saber se o testamento fora apenas feito unicamente por imposição de vontade da aqui Ré, que determinaram a resposta negativa a este facto (porque se admitiu que poderia ter concorrido por exemplo uma vontade da testadora de agraciar a filha BB, pela maior proximidade na sua vida  -sem prejuízo do facto da outra filha a visitar diariamente - já que, por exemplo, quando foi perguntado á testemunha, a propósito da eventualidade da testadora poder ter revogado o testamento, se a filha BB, lhe respondesse "faça o que quiser", a testemunha respondeu, "era capaz de desfazer", mas logo a seguir dizer, ou não porque "o que esta feito está feito", deixando a possibilidade de se poder daqui retirar uma "pequenina margem", um resquício de vontade da própria da testadora em querer beneficiar esta sua filha, tais "dúvidas" mostram-se hoje dissipadas, em face do depoimento esclarecedor ora prestado por esta testemunha e a sua conjugação com as declarações prestadas pelas partes perante o tribunal, concretamente as declarações prestadas pela Ré BB.

A testemunha em causa, mantendo o seu depoimento anterior, solicitada a esclarecer tal resposta, foi agora bastante mais assertiva e de uma forma natural respondeu que, mesmo assim a sua patroa teria medo... (de a contrariar).

Por sua vez, ouvidas as partes, a aqui A, AA e a R, BB, o tribunal pôde constatar a diferença de personalidade das duas irmãs e melhor compreender a "dinâmica" familiar relatada pelas testemunhas.

Assim a R demonstrou uma personalidade autoritária e controladora, pretendendo fazer crer ao tribunal que nada teve a ver com a feitura do testamento pela mãe, o qual, segundo referiu, foi feito espontaneamente por aquela, não porque a quis beneficiar por qualquer motivo, mas sim porque o seu "sobrinho" (neto da testadora e filho da aqui A) "roubou", ainda em vida do avô, um terreno, pelo que a deixa da quinta seria para "compensar" esse "roubo". Ora, se atentarmos que o testamento é feito cerca de 7/8 meses após o falecimento do seu marido, que deixou a testadora num estado de depressão, melhor descrito supra nos factos 20 a 34 e que nunca este "motivo" foi alguma vez verbalizada pela testadora junto da sua empregada de 40 anos, a quem fazia confidências e com quem falou deste assunto (a testemunha LL), a que acresce a declaração da Ré, dizendo que nunca quis a quinta para si, (quando é a beneficiária do negocio simulado de compra e venda da quinta supra referido nos factos 12 a 15), é manifesta a falta de razão da Ré, reforçando a veracidade dos factos trazidos a juízo pela parte contrária.

Acresce que após a renovação da prova efectuada ficou também claro ao tribunal as razões que terão levado a aqui Ré a simular a venda da quinta nos termos em que o fez, (e que a R, nas declarações que prestou insistiu em dizer que ocorreu apenas por vontade e iniciativa da mãe), quando esta, note-se, já havia sido diagnosticada com "Alzheimer", sendo muito difícil de acreditar ter aquela "gizado" tal negócio.

E que tendo vindo a ser conhecido público o teor do testamento e que o mesmo a favorecia, sabendo não ser essa a vontade livre e esclarecida da mãe, a R temeu que, eventualmente com ajuda de familiares, a testadora pudesse vir a alterar o testamento, sendo por isso necessário assegurar a propriedade da quinta doutra forma, que foi a de "manipular" a mãe, com vista á celebração de um negócio simulado que culminava com a possibilidade de transmissão da propriedade da quinta para a aqui R (ver factos supra 12 a 15).

A testemunha EE, neto da testadora referiu também que a Ré sempre teve uma atitude autoritária, mesmo quando o seu avô era vivo e que o próprio avô tudo fazia para "não desagradar a BB" e que isto só assim acontecia porque a sua mãe ao contrário tem uma personalidade de "calar" para evitar conflitos.

Ora estas características da personalidade da Ré, apontadas por estas duas testemunhas, explicam de alguma forma a intervenção de CC nos negócios de compra e venda quer da Quinta..., sita em ..., que veio a ser declarada simulada pelo tribunal, na decisão proferida no processo 3856/07.... do ... Juízo Cível ... (e integralmente confirmada pela Relação em acórdão já transitado em julgado), onde se declara [que] a aqui testadora atuou a pedido da aqui Ré ou no caso mediático da venda da Quinta..., conforme decorre da decisão proferida no âmbito do processo 18082/05.... do Círculo Judicial ..., junta a fls. 557 e ss e do Tribunal da Relação ... de fls. 906 e ss, donde decorre que é a própria Ré quem se apresentou na Câmara Municipal ... a declarar pretender vender a Quinta... pertencente á sua octogenária mãe.». [negritos nossos]

Temos, assim, que a prova dos factos essenciais, demonstrativos do estado psíquico da testadora aquando da outorga do testamento impugnado, não se limita a revelar uma situação de vulnerabilidade da dita testadora, antes revela que a forma autoritária e impositiva como a filha BB, ora R., se relacionava com a dita testadora se repercutiu na mente desta, de molde a nela gerar autêntico medo ou temor de vir a sofrer consequências negativas caso desagradasse à dita filha. Tendo, por isso, conforme ficou provado, outorgado «o testamento só para obedecer à Ré», isto é, para «cumprir e observar a vontade da Ré».

Deste modo, e diversamente do alegado pela Recorrente, não está exclusivamente em causa a relevância a atribuir a uma situação de vulnerabilidade da testadora, mas antes a relevância a atribuir à formação viciada da vontade desta.

O que nos conduz a apreciar a questão nuclear do presente recurso, que consiste em apurar se o acórdão recorrido padece ou não de erro de julgamento ao decidir anular o testamento com base na subsunção do caso à segunda parte do regime do art. 2199.º do CC.

Questão que – e ainda que o percurso metodológico seguido no acórdão recorrido não mereça censura – se entende que, em razão da especificidade da situação fáctica subjacente e da inerente dificuldade do respectivo enquadramento no âmbito do sistema dos vícios da vontade do testador, se justifica que seja apreciada, de forma integrada, com a apreciação dos demais fundamentos de invalidade a considerar em sede de ampliação do objecto do recurso, a coacção moral e a ofensa aos bons costumes.

7. Nos termos do art. 2201.º do Código Civil o testamento é anulável por coacção moral, o que, por sua vez, nos remete para o n.º 1 do art. 255.º do Código Civil:

«Diz-se feita sob coacção moral a declaração negocial determinada pelo receio de um mal de que o declarante foi ilicitamente ameaçado com o fim de obter dele a declaração.».

De acordo com o entendimento comum, traduzido na síntese de Joana Vasconcelos (anotação ao artigo 255.º, in Comentário ao Código Civil – Parte Geral, ob. cit., pág. 615):

«A delimitação do conceito jurídico de coacção moral assenta em três elementos, enunciados no n.º 1 deste artigo 255.º, a saber: a ameaça de um mal, a ilicitude desta e o seu carácter intencional ou cominatório (...)»

«A ameaça é intencional ou cominatória quando visa obter do coagido a declaração negocial (...)».

Estabilizada a matéria de facto dos autos, ficou provada, como se viu, a índole autoritária da R. no seu relacionamento com a testadora; contrariamente ao invocado pela Recorrida (concls. 25.º e 26.º das contra-alegações), não ficou, porém, provado que a dita R. tenha ameaçado a testadora da ocorrência de um mal. Encontra-se, deste modo, afastada a aplicabilidade do regime de anulabilidade do testamento com base em coacção moral.

Afigura-se poderem ser aqui convocadas as interessantes considerações de Fernando Oliveira e Sá («Testamento, usura e bons costumes», in Cadernos de Direito Privado, n.º 63, págs. 44-45), a respeito de um outro caso apreciado por este Supremo Tribunal:

«Parece (...) que se lida com uma hipótese rebelde, um caso que fica aquém do limite de relevância da coação moral (art. 255.º e 2201.º) porque, ainda que exista um processo de perturbação da formação, não se topa, de acordo com a prova lograda, com a ameaça ilícita de um mal dirigida à extorsão de uma declaração negocial. (...)».

Continua este autor:

«Tal lacuna, valha a verdade, já foi há muito detetada nos sistemas de raiz romano-germânica que desconhecem o instituto da undue influence, seja na sua feição contratual geral, seja na sua restritiva feição sucessória, esta com importantes especificidades em relação à figura aplicável aos contratos.

(...)

No quadro do direito sucessório [...], a undue influence, tão generosa no plano contratual, tem sido entendida de forma muito restritiva, equiparada à coação, facto que tem levado a doutrina a debater-se com as insuficiências de tal regra na proteção de categorias de testadores especialmente vulneráveis. Exceção feita ao direito norte-americano, jurisdição onde os tribunais utilizam presunções de undue influence sempre que existam indícios como: a existência de uma relação de confiança com o beneficiário, idade e debilidade física e mental do testador e disposições anormais.».

Entre outras considerações, defende este autor que, em determinados casos, a tutela da vontade do testador pode ser alcançada com recurso à figura da ofensa aos bons costumes. Possibilidade que corresponde à segunda questão que integra a ampliação do objecto do presente recurso, da qual passamos a conhecer.

8. Nas palavras do acórdão deste Supremo Tribunal de 30.04.2019 (proc. n.º 261/14.8TBVCD.P1.S1), disponível em www.dgsi.pt:

«O conceito de bons costumes, para que remete o art. 280.º, corresponde sensivelmente ao conceito de moral pública para que remetia o art. 671.º do antigo Código Civil [10: Cf. designadamente Carlos Alberto da Mota Pinto / António Pinto Monteiro / Paulo Mota Pinto, Teoria geral do direito civil, 4.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2005, pág. 558: “O sentido desta exigência (ou seja, da exigência de que o acto não seja ofensivo dos bons costumes) é o mesmo da fórmula ‘não contrariedade à moral pública do Código de Seabra”]; designa o conjunto das regras morais aceites pela consciência social [11: Cf. Manuel de Andrade, Teoria geral da relação jurídica, vol. II - Facto jurídico, em especial negócio jurídico, Livraria Almedina, Coimbra, 1974 (reimpressão), pág. 341], ou o conjunto de regras éticas aceites pelas pessoas honestas, correctas, de boa fé, num dado ambiente e num certo momento [12: Cf. Carlos Alberto da Mota Pinto / António Pinto Monteiro / Paulo Mota Pinto, Teoria geral do direito civil, cit., pág. 559].». [negritos nossos]

No caso dos autos, e ainda que a atitude da R. no relacionamento com a testadora possa, porventura, ser moralmente criticável, afigura-se que, do prisma estritamente jurídico, que ora nos ocupa, a factualidade provada não permite concluir que essa atitude tenha atingido o limiar da ofensa aos bons costumes normativamente relevante. Razão pela qual é de afastar a aplicabilidade do regime do art. 280.º do Código Civil.


9. Aqui chegados, impõe-se, pois, apreciar da correcção da via seguida pelas instâncias, isto é, da correcção do entendimento adoptado de acordo com o qual a segunda parte do art. 2199.º do CC («É anulável o testamento feito por quem (...) não tinha o livre exercício da sua vontade por qualquer causa, ainda que transitória.») permite atribuir relevância anulatória ao facto de ter sido provado que a testadora outorgou «o testamento só para obedecer à Ré», isto é, para «cumprir e observar a vontade» desta e não por sua própria vontade.

A interpretação normativa realizada pelas instâncias é defendida, designadamente, por Rabindranath Capelo de Sousa (Lições de Direito das Sucessões, Vol. I, 4.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2000, pág. 183, nota 407), ao afirmar:

O «medo de incorrer no desagrado de outrem, a quem se deve respeito ou gratidão (Mota Pinto, ob. cit., pág. 530), não constitui obviamente coacção moral (art. 255.º, n.º 3, in fine), porque não há da parte do reverenciado qualquer ameaça ou intimidação. Todavia, quando o temor reverencial se processar relativamente à figura do beneficiário e assumir tais proporções que seja essencial ou determinante da feitura da disposição testamentária, já nos parece possível a anulabilidade por via do erro sobre as qualidades da pessoa do beneficiário, que vimos supra, ou por força da 2.ª parte do art. 2199.º (de que falaremos adiante).».

E, mais à frente (ob. cit., pág. 185, nota 414), a respeito da segunda parte do art. 2199.º do CC, continua o mesmo autor:

«Este enfraquecimento da vontade, esta incapacidade natural de querer testar pode resultar de doença (...), de temor reverencial (...) ou de circunstâncias externas que não constituam coacção mas que retirem o livre exercício da vontade ao testador.».

Afigura-se que, sem prejuízo de futuros e eventuais desenvolvimentos dogmáticos do sistema dos vícios da vontade do testador, que não cabe aqui antecipar, é de acolher esta orientação interpretativa da segunda parte do art. 2199.º do CC. Com efeito, não sendo de atribuir relevância anulatória a toda e qualquer influência externa sobre a vontade do testador, considera-se que, numa situação como a dos autos, em que foi provado – de forma cabal – que o temor reverencial da testadora em relação à filha R. era de tal forma elevado que constitui a causa determinante da outorga do testamento em benefício da dita filha, não poderá deixar de se sufragar o juízo das instâncias no sentido de subsumir o caso à previsão da segunda parte do art. 2199.º do CC.

Entende-se que, para efeitos da aplicação deste regime legal, não cabe distinguir, como pretende a Recorrente (cfr. concl. recursória LVII e teor da resposta ao pedido de ampliação do objecto) entre causas endógenas e causas exógenas da falta de vontade do testador. Ou, mais precisamente, ao prescrever ser «anulável o testamento feito por quem (...) não tinha o livre exercício da sua vontade por qualquer causa (...)», a lei faz depender o dito efeito anulatório da prova da falta de vontade do testador e não da natureza da causa que a originou nem da prova da existência de instruções directas quanto ao conteúdo do testamento (cfr. ponto jj) dos factos não provados). Além disso, e na medida em que a dita previsão normativa é, como vimos supra, distinta da figura da coacção moral, a sua aplicabilidade não se encontra dependente da prova da ameaça de um mal (abandono ou outro mal) à testadora.

Conclui-se assim que: (i) estando em causa a interpretação e aplicação de regime legal que visa assegurar o respeito pela vontade do testador; (ii) estando em causa uma norma de direito positivo que – como é justamente assinalado pela doutrina (cfr., entre outros, Oliveira Ascensão, ob. cit., pág. 81, Carvalho Fernandes, Lições de Direito das Sucessões, 4.ª ed., Quid iuris, Lisboa, 2012, pág. 487, Menezes Leitão, Direito das Sucessões, Almedina, Coimbra, 2021, pág. 221) – difere do regime geral previsto no art. 257.º do Código Civil, uma vez que, sendo o testamento um negócio unilateral não receptício, não se exige que a situação de incapacidade ou de falta de vontade seja notória ou conhecida do declaratário; (iii) e, sobretudo, estando provado que a vontade da testadora foi intensamente viciada a ponto de já não se poder considerar ser a sua vontade; (iv) é de manter a decisão das instâncias de anular o testamento dos autos.


10. Quanto ao argumento da Recorrente segundo o qual o livre exercício da vontade de testar estaria demonstrado pela possibilidade de a testadora vir, posteriormente, revogar o testamento dos autos, decai pela seguinte ordem de considerações.

Como resulta da factualidade provada (cfr. pontos 37. a 43.), decorreram apenas alguns anos entre o momento da outorga do testamento e o momento em que foi diagnosticada à testadora a doença de Alzheimer, anos esses em que a sua dependência e submissão em relação à filha ré não parou de aumentar.

Alega a Recorrente que a possibilidade de a testadora revogar o testamento em causa estaria demonstrada tanto pelo facto de não ser este o primeiro testamento por ela outorgado como pelo facto de, após a realização do dito testamento, ter realizado outros “negócios jurídicos que envolviam as duas filhas” e não apenas a filha ré.

Vejamos.

Encontra-se provado (facto 45.) que, contrariamente ao que consta do teor do testamento cuja validade foi impugnada na presente acção, esse testamento não foi o segundo outorgado pela falecida CC, mas o sétimo. Contudo, estando também provado que os demais testamentos foram outorgados em datas anteriores (17.4.1972; 19.5.1988; 14.2.1989; 7.6.1991; 24.11.1992 e 26.10.1994) à data do falecimento do marido da testadora (que ocorreu em 09.01.1999 – facto provado 3.) e que a situação de debilidade da testadora e a sua dependência em relação à filha BB, aqui R., surgiu apenas após o dito falecimento ter ocorrido (cfr. factos 20. a 38. e facto 46.), a primeira parte da argumentação da Recorrente perde qualquer pertinência.

Quanto à alegação de que a testadora realizou outros actos jurídicos que envolviam ambas as filhas e não apenas a filha ora R., reporta-se certamente a Recorrente à procuração outorgada em 19.09.2005 (facto 6.). Deste facto, porém, não é possível extrair qualquer conclusão, uma vez que nessa data tinha já sido diagnosticado que a testadora padecia da doença de Alzheimer (facto 39.).

Dos factos provados relativos aos anos posteriores à outorga do testamento, ora impugnado, aqueles a que, justificadamente, a sentença da 1.ª instância, confirmada pelo acórdão da Relação, atribuiu relevância em sentido desfavorável à posição da R., ora Recorrente, foram aqueles (pontos 12. a 17.) relativos à venda simulada da Quinta..., precisamente o bem legado à R. pelo testamento dos autos, que redundaria a final, na sua apropriação pela mesma R., assim como aquele outro facto (ponto 19.) relativo à venda de outra propriedade da testadora, a Quinta..., por iniciativa da R.. Consideremos, de novo, a fundamentação da sentença, na parte relevante:

«[...] após a renovação da prova efectuada ficou também claro ao tribunal as razões que terão levado a aqui Ré a simular a venda da quinta nos termos em que o fez, (e que a R, nas declarações que prestou insistiu em dizer que ocorreu apenas por vontade e iniciativa da mãe), quando esta, note-se, já havia sido diagnosticada com "Alzheimer", sendo muito difícil de acreditar ter aquela "gizado" tal negócio.

E que tendo vindo a ser conhecido público o teor do testamento e que o mesmo a favorecia, sabendo não ser essa a vontade livre e esclarecida da mãe, a R temeu que, eventualmente com ajuda de familiares, a testadora pudesse vir a alterar o testamento, sendo por isso necessário assegurar a propriedade da quinta doutra forma, que foi a de "manipular" a mãe, com vista á celebração de um negócio simulado que culminava com a possibilidade de transmissão da propriedade da quinta para a aqui R (ver factos supra 12 a 15).

(...)

Ora estas características da personalidade da Ré, apontadas por estas duas testemunhas, explicam de alguma forma a intervenção de CC nos negócios de compra e venda quer da Quinta..., sita em ..., que veio a ser declarada simulada pelo tribunal, na decisão proferida no processo 3856/07.... do ... Juízo Cível ... (e integralmente confirmada pela Relação em acórdão já transitado em julgado), onde se declara [que] a aqui testadora atuou a pedido da aqui Ré ou no caso mediático da venda da Quinta..., conforme decorre da decisão proferida no âmbito do processo 18082/05.... do Círculo Judicial ..., junta a fls. 557 e ss e do Tribunal da Relação ... de fls. 906 e ss, donde decorre que é a própria Ré quem se apresentou na Câmara Municipal ... a declarar pretender vender a Quinta... pertencente à sua octogenária mãe.». [negritos nossos]

Temos, pois, que, diversamente do alegado pela Recorrente, os factos provados relativos ao período posterior à outorga do testamento impugnado não só não permitem concluir que a testadora dispunha do livre exercício da vontade, necessário para revogar o testamento dos autos, como, juntamente como os factos provados 49. («A 2ª R. dificultou, chegando mesmo a impedir algumas vezes o acesso da A. à Mãe, reduzindo-lhe a possibilidade de visitas em sua casa ou até mesmo proibindo as mesmas»), 50. («E chamou a si toda a gestão do património da mãe») e 51. («Apresentando os factos consumados, sem que à A. lhe fosse dada qualquer hipótese de decidir o que quer que seja»), são reveladores daquilo a que a filha BB, ora R., estava disposta para, ainda em vida, assegurar o controlo do património da sua mãe.

Por tudo o que fica dito, é de manter a decisão das instâncias de anular do testamento dos autos com base na aplicação do regime da segunda parte do art. 2199.º do Código Civil.

11. Encontrando-se verificados os pressupostos legais de que depende a anulação do testamento, considera-se que tal decisão não padece de inconstitucionalidade por violação do princípio da confiança, uma vez que este princípio não se opõe ao reconhecimento das causas de invalidade dos negócios jurídicos, com as inerentes consequências.

12. Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente, confirmando-se a decisão do acórdão recorrido.

Custas pela Recorrente.

Lisboa, 31 de Março de 2022

Maria da Graça Trigo (relatora)

Maria Rosa Tching

Catarina Serra