Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
178/19.0JAGRD.C1.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: MARGARIDA BLASCO
Descritores: RECURSO DE ACÓRDÃO DA RELAÇÃO
DETENÇÃO DE ARMA PROIBIDA
PENA PARCELAR
DUPLA CONFORME
REJEIÇÃO DE RECURSO
VIOLAÇÃO DE DOMICÍLIO
ACÓRDÃO DO TRIBUNAL COLETIVO
ABSOLVIÇÃO CRIME
CONDENAÇÃO
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
QUEIXA
LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO
CRIME SEMIPÚBLICO
HOMICÍDIO QUALIFICADO
QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
MOTIVO FÚTIL
ARMA DE FOGO
MEIO PARTICULARMENTE PERIGOSO
NULIDADE DE ACÓRDÃO
FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
PENA ÚNICA
MEDIDA CONCRETA DA PENA
Data do Acordão: 07/15/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO.
Sumário :
I- Estatui o art. 400.º, n.º 1, al. f), do CPP, que não é admissível recurso de acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de 1.ª instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos.
O acórdão do TRL foi proferido em recurso, confirmou a pena parcelar de 2 anos aplicada pelo tribunal de 1.ª instância, relativamente ao crime de detenção de arma proibida. Logo inferior a oito anos. Assim, o acórdão, neste segmento, não é suscetível de recurso para o STJ, quanto àquela pena parcelar, porque a decisão condenatória da 1.ª instância foi confirmada em recurso pelo Tribunal da Relação e as penas singulares em causa não são superiores a 8 anos de prisão (art. 400.º, n.º 1, al. f), do CPP). A irrecorribilidade das penas parcelares não significa apenas que a sua medida fica intocada, mas coenvolve a insindicabilidade de todo o juízo decisório – absolvição ou condenação – efetuado incluindo todas questões processuais relativas a essa decisão no tocante às penas singulares. De outro modo não se verificaria a irrecorribilidade.
A cisão entre recorribilidade das penas singulares e da pena única, fora das situações de recurso per saltum para o STJ, caso em que o STJ colhe competência para conhecer sem restrição das questões relativas às penas parcelares, tem respaldo no direito penal positivo (art. 78.º, n.º 1, do CP, art. 403.º, CPP), circunstância que reforça a possibilidade de a recorribilidade que a contrario se infere do art. 400.º, n.º 1, al. f), do CPP, valer quer para a pena parcelar superior a 8 anos de prisão aplicada pela prática de um crime, quer para a pena única superior a 8 anos de prisão, em resultado de cúmulo jurídico de penas de prisão de medida igual ou inferior a oito anos de prisão. Neste último caso, quando apenas a pena única do concurso é superior a oito anos de prisão, somente as operações relativas ao cúmulo jurídico e à pena única são sindicáveis em recurso.
A inadmissibilidade de recurso, quando é total acarreta a rejeição do recurso (art. 420.º, n.º 1, al. b), do CPP); sendo parcial, como é o caso quanto às questões suscitadas, com exceção da medida da pena única, implica o não conhecimento do recurso na parte irrecorrível.
II- Em sede da 1ª instância, foi julgado extinto o procedimento criminal pela prática do crime de violação de domicílio previsto no art. 190.º, n.os 1 e 3, do CP de que ambos os arguidos vinham acusados por ausência de queixa.
Porém, a recurso do Ministério Público junto da 1.ª instância, foram os arguidos condenados no TRC pela prática do crime de violação de domicílio, p. e p. no art. 190.º do CP, na pena parcelar de 2 anos de prisão, para cada um deles.
Perante a procedência do recurso do Ministério Público, o TRC reformulou a pena única do cúmulo jurídico aplicada a cada um dos arguidos, passando de uma pena de 20 anos para uma pena de 21 anos de prisão. Diga-se, neste conspecto que se trata de matéria em relação à qual, atenta a medida concreta da pena - 2 anos-, se poderia questionar a sua recorribilidade para este STJ, atento o disposto nos art. 432.º, n.º 1, al. b) e 400.º, n.º 1, al. e), ambos do CPP. No entanto, dado que na 1.ª instância a decisão foi de arquivamento em relação a este crime com referência a ambos os arguidos, seguindo a jurisprudência do TC, sobre esta matéria (cfr. ac. n.º 399/2014) são de admitir e apreciar os recursos sobre esta questão que ambos os recorrentes apresentam de forma similar.
Assim, perante a inovatória condenação em sede de recurso, por parte do TRC, pela prática do crime de violação de domicílio, p. e p. pelo art. 190.º, n.os 1 e 3, do CP, em pena efetiva de prisão, de 2 anos, nos termos do acórdão do TC n.º 595/2018 (DR de 11-12-2018), é recorrível para o STJ este segmento da decisão do TRC.
III- O recurso interposto pelos arguidos pode ser conhecido pelo STJ, mas tão só, na medida em que se enquadre no âmbito dos respectivos poderes de cognição. Com efeito, por força do disposto nos art.s 432.º, n.º 1, al. b) e 434.º, do CPP, o STJ pode apenas reexaminar a matéria de direito (sem prejuízo do conhecimento oficioso dos vícios previstos nos n.os 2 e 3 do art. 410.º do CPP que sejam evidenciados pela decisão recorrida), tal seja, não pode conhecer das questões inerentes ao julgamento sobre a matéria de facto, nem das questões que concernem à própria formulação da decisão de 1.ª instância (como as nulidades e os vícios de procedimento), que já não estão sob apreciação. Aliás, este regime de recurso para o STJ efectiva, de forma adequada, a garantia do duplo grau de jurisdição, traduzida no direito de reapreciação da questão por um tribunal superior, quer quanto a matéria de facto, quer quanto a matéria de direito, consagrada no art. 32.º, n.º 1, da CRP, enquanto componente do direito de defesa em processo penal, reconhecida em instrumentos internacionais que vigoram na ordem interna e vinculam o Estado Português ao sistema internacional de protecção dos direitos humanos.
IV- Ademais, os arguidos, neste seu recurso perante o STJ vêm reeditar, na motivação, alguns pontos já alegados perante o tribunal da Relação. Nomeadamente que o acórdão recorrido decorreu de uma errada interpretação da matéria de facto e de uma incorrecta aplicação do direito (e que iremos aflorar em cada ponto que entendamos repetido). Ora, como se tem repetidamente afirmado na jurisprudência deste STJ e na doutrina, os recursos judiciais não servem para conhecer de novo da causa. Os recursos constituem meios processuais destinados a garantir o direito de reapreciação de uma decisão de um tribunal por um tribunal superior, havendo que, na sua disciplina, distinguir dimensões diversas, relacionadas com o fundamento do recurso, com o objecto do conhecimento do recurso e com os poderes processuais do tribunal de recurso, a considerar conjuntamente. O que significa que, verificados que se mostrem os fundamentos para recorrer (pressupostos da admissibilidade do recurso), o objecto do conhecimento do recurso delimita-se pelas questões identificadas pelo recorrente que digam respeito a questões que tenham sido conhecidas pelo tribunal recorrido ou que devessem sê-lo, com as necessárias consequências ao nível da validade da própria decisão, assim se circunscrevendo os poderes do tribunal de recurso, sem prejuízo do exercício, neste âmbito, dos poderes de conhecimento oficioso necessários e legalmente conferidos em vista da justa decisão do recurso. Como se tem insistido, o recurso constitui apenas um “remédio processual” que permite a reapreciação, em outra instância, de decisões sobre matérias e questões submetidas a decisão do tribunal de que se recorre.
V- A queixa é válida por parte da assistente nos termos em que esta o fez, nomeadamente ao utilizar a frase “quero ver toda a situação esclarecida e que se faça justiça e se prendam aqueles bandidos”. Perscrutando os autos, tal vontade foi mantida e renovada ao longo do processo, designadamente nas declarações prestadas diante do Ministério Público no dia 10-07-2019 (fls. 155 a 160) e na indemnização cível relativamente aos danos causados pelos arguidos com entrada ilícita e forçada no domicílio da ofendida e família reclamada a fls.1634 a 1643.
É, assim, claro que à luz de todas as regras da experiência comum, que não são exigíveis a um cidadão comum conhecimentos jurídicos especializados – em relação a questões em relação às quais os próprios juristas divergem – que ao apresentar os factos a um órgão de polícia criminal e descrevendo os factos tal como os vivenciou, aquela expressão apenas pode significar a sua manifestação inequívoca como titular do direito de queixa (companheira da vítima), no sentido de pretender desencadear o procedimento criminal. Manifestação inequívoca que, ao contrário do que alegam os recorrentes, se encontra devidamente plasmada nos presentes autos.
Pelo que o Ministério Público tem legitimidade para a dedução de acusação pública referente ao crime de violação de domicílio.
VI- Encontrando-se o tipo legal fundamental dos crimes contra a vida descrito no art. 131.º, do CP, dele parte a lei para a previsão, nos artigos seguintes, das formas agravada e privilegiada de sorte que, relativamente ao tipo-base, faz acrescer as circunstâncias que o qualificam em função da especial censurabilidade ou perversidade de que porventura se revista a conduta do agente, ou que o privilegiam por via da menor exigibilidade que porventura reclame a sua actuação. Tratando-se, pois, a especial censurabilidade ou perversidade, de que fala o n.º 1 do art. 132.º do CP, de conceitos indeterminados, a lei utilizou para a sua representação circunstâncias (exemplos-padrão) que concebidas como concretizações de manifestações do tipo de culpa agravado, encontram-se enunciadas, a título exemplificativo, nas diversas al. do n.º 2, do aludido normativo (o do art. 132.º), o que tem como consequência que, para além das ali mencionadas, outras, valorativamente equivalentes, são também susceptíveis de revelar a referida especial censurabilidade ou perversidade. E, porque a verificação das circunstâncias previstas nas diversas al. do n.º 2 do art. 132.º do CP é meramente indiciária, no sentido em que só relevam para efeitos de qualificação do crime de homicídio voluntário quando revelem uma especial censurabilidade ou perversidade, há que atender à imagem global do facto, por forma a possibilitar a detecção de uma particular forma de culpa agravada, a justificar a qualificação do crime. Dito isto, verifica-se que a especial censurabilidade se prende com a atitude do agente relativamente a formas de cometimento do facto especialmente desvaliosas. A especial perversidade refere-se às condutas que reflectem no facto concreto as qualidades especialmente desvaliosas da personalidade do agente. A matéria da compatibilidade da especial censurabilidade ou perversidade com o dolo eventual, tem sido objecto de desencontros na doutrina e jurisprudência nacionais.
A jurisprudência maioritária do STJ tende a considerar que o crime de homicídio qualificado, sendo punível apenas a título de dolo, compatibiliza-se com este em qualquer das suas formas e, portanto, também com o dolo eventual.
No que concretamente respeita à eleição do "motivo fútil", como índice da especial censurabilidade, importará ter em conta que ele se cifra no facto de o agente ter como móbil da ação uma razão ridícula, face à gravidade do ato. Como é sabido, o qualificativo “fútil” atribui-se a algo insignificante, sem relevo. Para se avaliar se um motivo é fútil tem que se relacionar, como já se referiu, a gravidade do comportamento com o móbil do crime. E então, se nenhum motivo justifica causar a morte de outrem (daí ser crime), a grande desproporção entre o que se elege como motivo da ação e aquilo em que esta se analisa, transforma a conduta, não só em algo intolerável, como também em algo absurdo, sem explicação, à luz das concepções éticas correntes da sociedade. A razão do cometimento do crime surge, pois, com um valor irrisório para o normal dos cidadãos, comparado com o mal que se provoca com este.
Na circunstância de a utilização de uma arma, sendo certo que uma arma é um objecto perigoso e, em princípio, adequado e suficiente ao cometimento do crime em causa, por si só, pode não revelar uma perigosidade muito superior à normal nos meios usados para matar. Assim, utilizar meio particularmente perigoso é servir-se para matar, de um instrumento, de um método, ou de um processo que dificultem significativamente a defesa da vítima (que não se traduzindo na prática de um crime de perigo comum) e seja susceptível de criar perigo para a lesão de outros bens jurídicos. Deve ponderar-se, deste modo, para a boa aplicação da norma, se a generalidade dos meios usados para matar são perigosos e, mesmo, muito perigosos.
Ora, se por um lado, a lei exige que tais meios sejam particularmente perigosos, é necessário que o meio revele uma perigosidade muito superior à normal nos meios usados para matar, pelo que por outro lado, há que associar à sua utilização, o contexto/circunstancialismo em que são utilizados. Assim, meio particularmente perigoso é aquele instrumento, método ou processo que, para além de dificultar de modo exponencial a defesa da vítima, é susceptível de criar perigo para outros bens jurídicos importantes. Tem que ser meio que revele uma perigosidade muito superior à normal, marcadamente diverso e excepcional em relação aos meios mais comuns que, por terem aptidão para provocarem danos físicos, são, já de si, perigosos, ou muito perigosos, sendo que na natureza do meio utilizado se tem de revelar já especial censurabilidade do agente.
Concatenando tudo o que ficou dito, a perigosidade ou a elevada perigosidade depende não só da natureza e das características da arma utilizada para cometer o crime de homicídio, mas também do contexto em que da mesma se faz uso. E é nesta globalidade de conceitos que se determina a especial censurabilidade. As circunstâncias em que os arguidos atuaram, um à frente e o outro mantendo-se na retaguarda para avançar assim que fosse necessário, evidencia tratar-se da utilização de um meio que revela uma perigosidade muito superior à normal. Em suma, a perigosidade depende não só da natureza e das características da arma, mas também do contexto em que da mesma se faz uso. E, é o próprio recorrente que vem assumir o motivo. O que faz, nos seguintes termos: tratando-se de pessoas de ... o recorrente pretendia salvar um casamento entre a menor e um filho do co-arguido, casamento que se efectivara segundo os usos e costumes daquela etnia. E, vem ainda dizer que uma vez cessada (decorrido muito pouco tempo) aquela convivência marital, era de todo imperioso salvar aquele casamento, que é para si um dos sacramentos mais importantes da comunidade .... E, apenas neste contexto, decidiu apoiar o seu co-arguido. Todavia, criou-se um ambiente de exaltação. Foi disparado um tiro. O que levou o recorrente a fazer um tiro. Ao contrário do que pretende, o recorrente vem repetir um argumento que reforça a tese de que a sua conduta se pautou por um motivo fútil, o que revela uma especial perversidade e merece uma especial censurabilidade. Por muito respeito que mereçam todas as etnias, religiões, não há tradição ou usos e costumes de qualquer etnia ou religião que possa justificar ou contornar a lei penal imperativa. Tal motivação, a do recorrente, acaba por conferir argumentos e de colocar em evidência o motivo do crime de homicídio como sendo um acto mesquinho e fútil: o homicídio do pai da criança que a tinha retirado e protegido até com uma necessária (e até longínqua) fuga de toda a família, às ameaças de morte de quem afinal os veio a encontrar e matar em ..., no interior da casa onde habitavam. É que, não se dá como provado que a intenção do recorrente na sua actuação, fosse com o intuito da apontada salvação do dito relacionamento marital.
Do mesmo modo, não merece qualquer censura, a qualificação da utilização de meio particularmente perigoso, nos termos da al. h) do n.º 2 do art. 132.º do CP.
Desde logo, a maneira súbita e violenta como os arguidos entraram na casa de habitação da vítima, cada um na posse de uma arma de fogo, no início da manhã, onde aquela se encontrava com a mulher e os seus filhos menores.
O desenrolar de um ambiente de grande exaltação e nervosismo, disparando cada um deles um tiro em direcção à vítima, estando os restantes elementos do agregado familiar dentro da habitação, que poderiam também eles ter sido alvo de algum tiro.
O circunstancialismo que rodeia os acontecimentos, em que a vítima se encontrava na sua casa de habitação, na presença da sua numerosa família indefesa, em franca inferioridade face aos agressores, tudo a relevar na apreciação desta qualificativa, em que a perigosidade não depende exclusivamente da posse e uso de uma arma de fogo; depende também do contexto em que o arguido fez uso da mesma.
Defende ainda o recorrente que não se prova o dolo na prática do crime de homicídio. Porque não fez mais disparos. Ora, se o recorrente pretende discutir, em matéria de facto, as provas produzidas, tal não é admissível em sede recurso para o STJ.
E, se pretende afirmar que da matéria provada não resulta a existência do elemento subjectivo da infracção, então tal matéria é passível de discussão nesta sede. Para esta hipótese, dir-se-á que não tem qualquer razão o recorrente. Se é indiscutível que o dolo pertence à vida interior de cada um e é, portanto, de natureza subjectiva, insusceptível de directa apreensão, só é possível captar a sua existência através de factos materiais comuns, de que o mesmo se possa concluir, entre os quais surge, com maior representação, o preenchimento dos elementos integrantes da infracção. Pode, de facto, comprovar-se a verificação do dolo por meio de presunções, ligadas ao princípio da normalidade ou da regra geral da experiência. Na maioria dos casos, o dolo, o conhecimento do seu sentido ou significação, acaba por ser dado por provado por presunção do julgador, sem que haja testemunhas - nem as há disso mesmo – isto para além da possibilidade e o próprio arguido a manifestar de viva-voz em audiência. O dolo, em função da sua natureza, e na generalidade dos casos, surge provado como circunstância conatural dos factos que constituem os elementos objectivos do crime. A intenção de matar constitui matéria de facto, a apurar pelo tribunal em função da prova ao seu alcance, e esta, salvo quando a lei dispõe diversamente, é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador; não é por ser um facto psicológico que a intenção deixa de ser um facto, e a conclusão de ter ocorrido intenção de matar deduz-se de factos externos que a revelem.
Quanto a vícios de procedimento, importa deixar expresso que, no caso, mesmo oficiosamente, do texto da decisão revidenda, não se evidencia qualquer dos vícios previstos no art. 410.º, n.º 2, do CPP. Com efeito, investigada que foi a materialidade sob julgamento, não se vê que a matéria de facto provada seja insuficiente para fundar a solução de direito atingida, não se vê que se tenha deixado de investigar toda a matéria de facto com relevo para a decisão final, não se vê qualquer inultrapassável incompatibilidade entre os factos julgados provados ou entre estes e os factos julgados não provados ou entre a fundamentação probatória e a decisão, e, de igual modo, não se detecta na decisão recorrida, por si e com recurso às regras da experiência comum, qualquer omissão de pronúncia/falha ostensiva na análise da prova ou qualquer juízo ilógico ou arbitrário.
Não é, assim, viável a estratégia de invocar nulidades da decisão recorrida com o fito de contornar a limitação dos poderes de cognição deste Supremo Tribunal. E não basta a alegação conclusiva de uma nulidade, da violação de um princípio ou de uma norma constitucional. Na invocação das nulidades, se o recorrente ainda convoca as normas jurídicas violadas, não cumpre a exigência legal de expor o sentido em que, no seu entendimento, o Tribunal da Relação interpretou ou aplicou cada norma e o sentido em que ela devia ter sido interpretada ou aplicada.
E, mais uma vez se diga que a intenção de matar constitui matéria de facto, a apurar pelo tribunal em função da prova ao seu alcance, e esta, salvo quando a lei dispõe diversamente, é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador; não é por ser um facto psicológico que a intenção deixa de ser um facto, e a conclusão de ter ocorrido intenção de matar deduz-se de factos externos que a revelem.
Pelo que em relação à falta de matéria provada que lhe impute a intenção de matar e que nesta matéria existirá nulidade por falta de fundamentação, nos termos do art. 374.º, n.º 2 e 379.º, n.º 1, al. a) e c) e n.º 3, do CPP, não assiste ao recorrente qualquer razão.
VII- Nos termos do art. 40.º, do CP, que dispõe sobre as finalidades das penas, “a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade” e “em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa”, devendo a sua determinação ser feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, de acordo com o disposto no art. 71.º do mesmo diploma.
Como se tem reiteradamente afirmado, encontra este regime os seus fundamentos no art. 18.º, n.º 2, da CRP, segundo o qual “a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos”. A restrição do direito à liberdade, por aplicação de uma pena (art. 27.º, n.º 2, da CRP), submete-se, assim, tal como a sua previsão legal, ao princípio da proporcionalidade ou da proibição do excesso, que se desdobra nos subprincípios da necessidade ou indispensabilidade – segundo o qual a pena privativa da liberdade se há-de revelar necessária aos fins visados, que não podem ser realizados por outros meios menos onerosos –, adequação – que implica que a pena deva ser o meio idóneo e adequado para a obtenção desses fins – e da proporcionalidade em sentido estrito – de acordo com o qual a pena deve ser encontrada na “justa medida”, impedindo-se, deste modo, que possa ser desproporcionada ou excessiva.
A projecção destes princípios no modelo de determinação da pena justifica-se pelas necessidades de protecção dos bens jurídicos tutelados pelas normas incriminadoras violadas (finalidade de prevenção geral) e de ressocialização (finalidade de prevenção especial), em conformidade com um critério de proporcionalidade entre a gravidade da pena e a gravidade do facto praticado, avaliada, em concreto, por factores ou circunstâncias relacionadas com este e com a personalidade do agente, relevantes para avaliar da medida da pena da culpa e da medida da pena preventiva, que, não fazendo parte do tipo de crime (proibição da dupla valoração), deponham a favor do agente ou contra ele (art. 40.º, n.º 1 do 71.º, do CP).
Como se tem reafirmado, para a medida da gravidade da culpa há que, de acordo com o art. 71.º, n.º 2, considerar os factores reveladores da censurabilidade manifestada no facto, nomeadamente os factores capazes de fornecer a medida da gravidade do tipo de ilícito objectivo e subjectivo – indicados na al. a), primeira parte (grau de ilicitude do facto, modo de execução e gravidade das suas consequências), e na al. b) (intensidade do dolo ou da negligência) –, e os factores a que se referem a al. c) (sentimentos manifestados no cometimento do crime e fins ou motivos que o determinaram) e a al. a), parte final (grau de violação dos deveres impostos ao agente), bem como os factores atinentes ao agente, que têm que ver com a sua personalidade – factores indicados na al. d) (condições pessoais e situação económica do agente), na al. e) (conduta anterior e posterior ao facto) e na al. f) (falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto). Na consideração das exigências de prevenção, destacam-se as circunstâncias relevantes por via da prevenção geral, traduzida na necessidade de protecção do bem jurídico ofendido mediante a aplicação de uma pena proporcional à gravidade dos factos, reafirmando a manutenção da confiança da comunidade na norma violada, e de prevenção especial, que permitam fundamentar um juízo de prognose sobre o cometimento de novos crimes no futuro e assim avaliar das necessidades de socialização. Incluem-se aqui o comportamento anterior e posterior ao crime [al. e)], com destaque para os antecedentes criminais) e a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto [al. f)]. O comportamento do agente, a que se referem as circunstâncias das al. e) e f), adquire particular relevo para determinação da medida da pena em vista das exigências de prevenção especial (sobre estes pontos, para melhor aproximação metodológica na determinação do sentido e alcance da previsão do art. 71.º, do CP.
Quanto ao crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos art. 131.º e 132.º, n.os 1 e 2, al. e) e h), ambos do CP, é aplicável a pena de 12 a 25 anos de prisão.
E, quanto ao crime de violação de domicílio, é aplicável uma pena de um mês a 3 anos de prisão, ou com pena de dez dias a trezentos e sessenta dias de multa.
Os arguidos foram condenados, cada um deles: pela prática, em coautoria material e na forma consumada, de um crime de homicídio qualificado, na pena de 19 anos de prisão; pela prática, como autor material, de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art. 86.º, n.º 1, al. c), da Lei n.º 5/2006, de 23-02, na pena de 2 anos de prisão e na pena acessória de interdição temporária de detenção, uso e porte de arma ou armas, pelo período de 15 anos, medida de pena esta irrecorrível; pela prática de um crime de violação do domicílio p. e p. pelo art. 190.º, n.º 1 e 3, do CP na pena de 2 anos de prisão.
Tendo em atenção todas estas circunstâncias já referidas e as molduras penais aplicáveis, não merecem qualquer censura as penas encontradas, respectivamente, para o crime de violação de domicílio (2 anos de prisão) e para o crime de homicídio (19 anos de prisão), porque adequadas e proporcionais à culpa dos Recorrentes e necessária à satisfação das necessidades de reprovação e de reposição social dos bens jurídicos violados. Não se mostram, pois, violados, os princípios da igualdade e da proporcionalidade ou quaisquer outros inscritos na Lei Fundamental, nomeadamente, o art. 18.º, da CRP.
VIII- O art. 77.º, n.º 1, do CP, estabelece que o critério específico a usar na fixação da medida da pena única é o da consideração em conjunto dos factos e da personalidade do agente.
Não tendo o legislador nacional optado pelo sistema de acumulação material (soma das penas com mera limitação do limite máximo) nem pelo da exasperação ou agravação da pena mais grave (elevação da pena mais grave, através da avaliação conjunta da pessoa do agente e dos singulares factos puníveis, elevação que não pode atingir a soma das penas singulares nem o limite absoluto legalmente fixado), é forçoso concluir que, com a fixação da pena conjunta, se pretende sancionar o agente, não só pelos factos individualmente considerados, mas também e especialmente pelo respectivo conjunto, e não como mero somatório de factos criminosos, mas enquanto revelador da dimensão e gravidade global do comportamento delituoso do agente, visto que a lei manda se considere e pondere, em conjunto (e não unitariamente), os factos e a personalidade do agente como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado. O todo não equivale à mera soma das partes e, além disso, os mesmos tipos legais de crime são passíveis de relações existenciais diversíssimas, a reclamar uma valoração que não se repete, de caso para caso.
IX- A este novo ilícito corresponderá uma nova culpa (que continuará a ser culpa pelo facto) mas, agora, culpa pelos factos em relação – afinal, a valoração conjunta dos factos e da personalidade, de que fala o CP. Na avaliação da personalidade– unitária – do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência ou, eventualmente, mesmo a uma “carreira” criminosa, ou tão-só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, não já no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta.
Acresce que importará relevar o efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização).
Realce-se ainda que na determinação da medida das penas parcelar e única não é admissível uma dupla valoração do mesmo factor com o mesmo sentido: assim, se a decisão faz apelo à gravidade objectiva dos crimes está a referir-se a factores de medida da pena que já foram devidamente equacionados na formação das penas parcelares. Será, assim, o conjunto dos factos que fornece a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique.
Um dos critérios fundamentais em sede daquele sentido de culpa, numa perspectiva global dos factos, é o da determinação da intensidade da ofensa e dimensão do bem jurídico ofendido, sendo certo que assume significado profundamente diferente a violação repetida de bens jurídicos ligados à dimensão pessoal, em relação a bens patrimoniais.
Por outro lado, importa determinar os motivos e objectivos do agente no denominador comum dos actos ilícitos praticados e, eventualmente, dos estados de dependência, bem como a tendência para a actividade criminosa expressa pelo número de infracções, pela sua permanência no tempo, pela dependência de vida em relação àquela actividade. Na avaliação da personalidade expressa nos factos é todo um processo de socialização e de inserção, ou de repúdio pelas normas de identificação social e de vivência em comunidade, que deve ser ponderado.
O art. 77.º, n.º 2, do CP, por seu turno, estabelece que pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.
Será, assim, o conjunto dos factos que fornece a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique.
O concurso de crimes tanto pode decorrer de factos praticados na mesma ocasião, como de factos perpetrados em momentos distintos, temporalmente próximos ou distantes. Por outro lado, o concurso tanto pode ser constituído pela repetição do mesmo crime, como pelo cometimento de crimes da mais diversa natureza. Por outro lado, ainda, o concurso tanto pode ser formado por um número reduzido de crimes, como pode englobar inúmeros crimes. Assim, considerando os factos na sua globalidade, as circunstâncias anteriormente referidas e as qualidades de personalidade dos arguidos manifestada na sua prática, em que se destaca a violência de comportamento, devidamente circunstanciado e descrito no acórdão recorrido, e sem necessidade de mais considerandos, tudo ponderado em conjunto, como impõem os art. 40.º e 71.º, do CP, não se encontra fundamento que permita justificar a redução das penas aplicadas, na base da consideração de estas não se mostrarem adequadas e proporcionais à gravidade dos factos e às necessidades de prevenção e de socialização que a sua aplicação visa realizar (art. 40.º, n.os e 2, do CP). Mantem-se, para cada um dos arguidos, a pena única de vinte e um (21) anos de prisão.
Decisão Texto Integral:



Proc.º n.º 178/19.0JAGRD.C1. S1

Recurso penal

(arguidos presos)

Acordam, precedendo audiência, na 5.ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça

I.

1. Por Acórdão proferido em 15 de Julho de 2020, o Colectivo do Juiz … do Juízo Central Cível e Criminal  …., deliberou:

- Nos termos das disposições conjugadas dos artigos 113.º, n.º1, 116.º, n.º1, 117.º, 190.º e 198.º, todos do Código Penal (CP) e artigo 49.º do Código de Processo Penal (CPP), por falta de legitimidade do Ministério Público para dedução de acusação pública, julgar extinto, o procedimento criminal instaurado contra os arguidos, AA e BB, pela prática, em autoria material, de um crime de violação de domicílio, p. e p. no artigo 190.º, nºs 1 e 3, do CP.

Mais deliberou:

- Condenar o arguido AA pela prática, em coautoria material e na forma consumada, de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos artigos 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2, als. e) e h), ambos do CP, na pena de 19 (dezanove) anos de prisão;

- Condenar o arguido AA pela prática, como autor material, de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo artigo e 86.º, n. º 1, al. c), da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro, na pena de 2 (dois) anos de prisão e na pena acessória de interdição temporária de detenção, uso e porte de arma ou armas, pelo período de 15 (quinze) anos.

- Em cúmulo jurídico condenar o arguido AA na pena única de 20 (vinte) anos de prisão efetiva.

  - Condenar o arguido BB pela prática, em coautoria material e na forma consumada, de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos artigos 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2, als. e) e h), ambos do CP, na pena de 19 (dezanove) anos de prisão;

- Condenar o arguido BB pela prática, como autor material, de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelos artigos 86.º, n.º 1, al. c) e 90.º todos da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro, na pena de 2 (dois) anos de prisão e na pena acessória de interdição temporária de detenção, uso e porte de arma ou armas, pelo período de 15 (quinze) anos.

- Em cúmulo jurídico condenar o arguido BB na pena única de 20 (vinte) anos de prisão efetiva.

- Julgar parcialmente procedente o pedido de indemnização civil formulado pelos demandantes CC, DD, EE, FF, GG, HH, e, consequentemente, condenar os demandados AA e BB a, solidariamente, pagar:

- Em conjunto, aos demandantes a quantia de € 50.000,00 (cinquenta mil euros), pela perda do direito à vida, acrescida de juros de mora legais desde a presente data até efetivo e integral pagamento;

- Em conjunto, aos demandantes a quantia de € 40.000,00 (quarenta mil euros), pelos danos sofridos por II com a iminência da morte, acrescida de juros de mora legais desde a presente data até efetivo e integral pagamento;

- À demandante CC a quantia de € 40.000,00 (quarenta mil euros), a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora legais desde a presente data até efetivo e integral pagamento;

- Ao demandante DD a quantia de € 30.000,00 (trinta mil euros), a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora legais desde a presente data até efetivo e integral pagamento;

- À demandante EE a quantia de € 30.000,00 (trinta mil euros), a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora legais desde a presente data até efetivo e integral pagamento;

- À demandante FF a quantia de € 30.000,00 (trinta mil euros), a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora legais desde a presente data até efetivo e integral pagamento;

- À demandante GG a quantia de € 30.000,00 (trinta mil euros), a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora legais desde a presente data até efetivo e integral pagamento;

- À demandante HH a quantia de € 30.000,00 (trinta mil euros), a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora legais desde a presente data até efetivo e integral pagamento;

– No demais, absolvem-se os demandados do peticionado.

2. Inconformados com esta decisão, vieram o Ministério Público e os arguidos BB e AA interpor recurso da mesma para o Tribunal da Relação de Coimbra (TRC), que por acórdão de 17.02.2021:

- Julgou não providos os recursos interpostos por BB e AA do acórdão final;

- Julgou parcialmente provido o recurso do Ministério Público e, em consequência condenou os arguidos BB e AA pela prática de um crime de violação do domicílio p. e p. pelo artigo 190.º, n.º 1 e 3, do CP na pena de dois anos de prisão, cada um deles;

- E condenou os arguidos na pena única de vinte e um anos de prisão, mantendo-se no mais o acórdão recorrido.

3. Deste acórdão vieram os arguidos BB e AA interpôr recurso para este Supremo Tribunal de Justiça, apresentando as seguintes conclusões na sua motivação de recurso que se transcrevem:

3.1. - O arguido BB:

(…)

1. Nos presentes autos a primeira instância decidiu do seguinte modo: i. condenar o recorrente na pena única de 20 anos de prisão: pela prática do crime de homicídio qualificado (19 anos – art. 131.º e 132.º, n. º 1 e 2 als e) e h) do Código Penal); pela prática do crime de detenção de arma proibida (2 anos – art. 86.º, n. º1 c) da Lei 5/2006 de 23 de fevereiro); ii. absolver da prática do crime de violação de domicilio, por falta de legitimidade do Ministério Público para instaurar o processo criminal (cfr. art. 113.º, n.º 1, art. 116.º, n.º 1; art. 117; art. 190 e 198 do CP e art. 49.º do CPP).

2. Tanto o arguido, aqui recorrente, como o Ministério Público interpuseram recurso.

3. Sendo que o recurso do recorrente não mereceu qualquer provimento, já o do Ministério Público foi provido.

4. Em consequência, o recorrente foi condenado na pena de dois anos pela prática do crime de violação de domicílio.

5. O que veio a ter reflexo na pena única: 21 anos de prisão!

6. Em suma, o tribunal a quo veio a considerar que CC é titular do direito de queixa, por óbito do falecido II, que o exercício do direito de queixa se presume, ainda que não tivesse sido confrontada com a possibilidade abstrata da existência da prática do crime, com a expressão “[quero] ver a situação esclarecida e que se faça e prendam aqueles bandidos”. – cfr. fls. 48 a 50 dos autos.

7. Salvo melhor opinião, não podemos concordar com tal raciocínio, na medida em que, verificado o auto, tal expressão corresponde a um desabafo de alguém que viu um familiar morto a tiro.

8. Naturalmente que alguém que seja vítima de um crime quer que a situação fique.

9. No entanto, não será aceitável fazer presunções sobre a vontade dos ofendidos, porquanto o legislador ao fazer uma distinção entre crimes públicos; semipúblicos e particular pretende tratar de forma diferente estes crimes, deixando na mão do ofendido a sua intenção de querer ou não a prossecução da ação penal.

10. Ora, no presente caso, quando a assistente CC foi chamada à Polícia Judiciária nunca, em momento algum, foi confrontada com a possibilidade da existência deste crime.

11. Nem neste momento, nem em momento posterior.

12. É certo que o legislador não estabelece qualquer requisito de forma, no entanto tal não poderá significar um aligeiramento das mais elementares regras processuais.

13. A manter-se o entendimento do tribunal a quo ocorre, o que desde já se invoca, uma inconstitucionalidade material dos artigos 113.º, n.º 1, ; 116.º, n.º 1; 117.º, 190.º 2 198.º, todos do CP e artigo 49.º do CP, quando interpretados no sentido de que basta a mera expressão de “quer ver toda a situação esclarecida e que se faça justiça e se prendam aqueles bandidos” para que se presuma que o titular do direito de queixa, no âmbito de um crime semipúblico, pretende o procedimento criminal, violando-se do principio da proporcionalidade e da razoabilidade e por violação do principio da garantias de defesa do arguido (art. 32.º, n.º 1 da CRP).

Posto isto,

14. No que tange à qualificativa do crime de homicídio, o recorrente foi condenado pela prática de homicídio qualificado previsto na al. e) do n.º 2 do artigo 132.º do CP.

15. Ou seja, o tribunal considerou que o motivo para o homicídio foi fútil.

16. Não concordamos, pois, a análise do motivo para a prática do crime deve ser analisada à luz do caso concreto, não podendo esta qualificativa operar automaticamente.

17. É imperativo compreender e enquadrar toda a conduta do recorrente.

18. Desde já, importa dizer que o recorrente é de... e, como tal, há uma forte ligação e proteção entre todos os membros.

19. Estava em causa a honra do jovem abandonado, e consequente da família que é arrastada.

20. Jovem que de livre mote ceifou um casamento de acordo com os usos e costumes da etnia.

21. Jovem que foi retirada da casa do noivo durante a noite e levada para parte incerta.

22. O recorrente, familiar acedeu a acompanhar o suposto sogro para a resolução da situação.

23. Ainda que o tribunal alicerce a sua convicção retroagindo a um desígnio anterior, ao momento da partida para o local em que se encontrava, entendemos que o facto assente é genérico e pouco rico em fundamento factual, além de uma viagem, nada tem para consubstanciar a deslocação com o propósito morte.

24. De acordo com os valores próprios a honra é um sentimento forte, que mexe com sentimentos de grupo de pertença e de laços afetivos, onde esta toda a estrutura familiar tem uma dinâmica e dialética própria.

25. Em segundo lugar, deve-se referir que entre o coarguido AA e a filha da vítima existiu um casamento que foi rompido pela segunda, sendo o casamento um dos sacramentos mais importantes desta comunidade!

26. Ora, é na tentativa de reatar o casamento que os arguidos se dirigem à casa da vítima, tendo o recorrente a função de apoiar e ajudar o seu amigo e primo AA.

27. Todavia, é na defesa dos valores desta comunidade; num ambiente de exaltação e porque há um prévio disparo, que o recorrente dá o tiro.

28. Pelo que, o motivo fútil não pode existir, visto que não há aqui qualquer escárnio e desprimor pela vida humana.

29. A par do motivo fútil, o arguido também foi condenado pela qualificativa do meio particularmente perigoso.

30. Uma vez mais, não podemos concordar com esta aplicação do direito, visto que o meio utilizado por uma pistola que na hierarquia de perigosidade das pistolas está na sua base.

31. Na verdade, este é o entendimento do tribunal a quo mas, de forma inovadora, veio a considerar que o meio perigoso está preenchido tendo em conta os momentos que antecederam o disparo do recorrente.

32. O que não tem qualquer acolhimento no texto normativo, visto que a norma pretende punir o agente que usa um instrumento muito perigoso, v.g. uma arma que pelas suas características só está disponível ao exercício ou um veneno que foi especialmente produzido para matar e causar um sofrimento atroz na vítima.

33. Aqui, salvo o devido respeito, os momentos que antecedem pouco ou nada importam para esta qualificativa.

34. Seja como for este disparo não foi de imediato: circunscreveu-se num momento de grande tensão; de agressões mútuas e a um prévio disparo, para o qual o recorrente não contribuiu.

35. Foi neste âmbito que surge disparo, numa situação de tensão verbal, e de confronto entre partes...

36. As circunstâncias do crime aparecem num contexto específico em que o tiro fatal foi apenas um só, não houve uma chacina ou uma carnificina, é certo que ocorre uma Morte, produzida por um único disparo uma única bala.

37. Se a intenção fosse a morte da infeliz vítima, na ótica da defesa tinha-se descarregado uma série de balas, para garantir o propósito criminoso o que não foi o caso, quando muito e num esforço desmedido entendemos que no caso se pode apenas e só perspetivar um dolo eventual,

38. Após o disparo verifica-se um abandono do local, das duas umas ou o atirador era exímio, o que não se prova ou então o infeliz atirador concretizou uma ação a qual não era o seu propósito ...

39. Tendo em conta a motivação, tendo em conta o papel menos interventivo do arguido, cujo interesse no desfecho era manifestamente subordinado temos por certo que a sua conduta deve ser ponderada de forma diferente em termos de culpa nos factos assentes, e sobretudo as circunstâncias da ação num quadro de tensão familiar, e sobretudo em que apesar do meio empregue (apto a produzir mais disparos, apenas foi concretizado um que veio a sucumbir a infeliz vítima!

40. O arguido é bastante jovem,

41. A sua escolaridade é básica.

42. Tem retaguarda familiar,

43. Filhos de tenra idade.

44. Inserção social.

45. Quanto às penas, quer as penas parcelares; quer à pena única, o recorrente também não se conforma com tais dosimetrias penais.

46. Pelo que deverão sofrer uma redução, sempre próxima do limite legal.

47. No que diz respeito à pena aplicada pela prática do crime de detenção de arma proibida, há uma violação do princípio da igualdade e da proporcionalidade: o recorrente nunca foi condenado pela prática deste crime, enquanto o arguido AA foi.

48. Significa, portanto, que as necessidades de prevenção geral e especial serão mais elevadas no caso do arguido AA, porquanto a primeira condenação não foi suficiente para evitar a prática de novo crime.

49. Ao demais, a arma que o recorrente tinha, em comparação com a arma do arguido AA, é de calibre manifestamente inferior, o que evidencia uma menor censurabilidade e um menor dolo.

50. Quanto ao crime de homicídio, ainda que se considere como qualificado, sempre será de reduzir a pena a que foi condenado, visto que o caso não manifesta uma censurabilidade acentuada ou um dolo elevado.

51. Por fim, no que tange ao crime de violação de domicílio, a pena é manifestamente desproporcional à culpa do agente, pelo que deverá beneficiar de uma redução para o mínimo legal ou privilegiar-se a aplicação de uma pena de multa.

52. Afinal, importa reter que que a conduta do agente não é merecedora de uma grande censurabilidade, pelo que seu dolo não será tão intenso, visto que toda esta conduta está circunscrita no âmbito de uma discussão intensa e de grande violência.

53. No mais, no que tange às necessidades de prevenção geral e especial, sempre será de afirmar que as mesmas não são tão elevadas quanto o tribunal a quo verteu na decisão.

54. Desde logo, o arguido é pessoa jovem, com 25 de idade.

55. É pai de duas filhas menores.

56. Beneficia de grande apoio familiar que o permitirá viver dentro da legalidade.

57. Pese embora não ter colhido pelo tribunal, o recorrente em julgamento prestou declarações no sentido de contribuir para a descoberta da verdade material.

58. É certo que em seu desabono do recorrente existe uma anterior condenação pela prática de um crime, ainda que na forma tentada, da mesma natureza. Todavia, tal facto não deverá servir apenas e tão só para agravar a pena neste processo.

59. Com efeito, a execução de uma pena visa garantir, não só a punição, mas também que o infrator, no caso o recorrente, findo o período da pena, esteja ressocializado e reintegrado na sociedade.

60. Sendo, quanto a nós, de evitar penas longas, mas eficazes, uma vez que uma pena de prisão é por si só estigmatizadora, pelo que o Estado deverá reverter tal situação.

61. Com efeito, olhando para o percurso do recorrente, constatamos que é um jovem cidadão, o que se traduz numa vantagem, pois ainda está permeável a alterações de comportamentos. Ou seja, não tem os vícios típicos da idade.

62. Ao demais, o arguido é pessoa desempregada e com baixa escolaridade, o que aumenta a sua segregação na sociedade.

63. Assim, a pena será útil se o arguido for valorizado a nível pessoal e profissional.

64. Pois, corre-se o risco de o arguido cumprir o meio da pena; os dois terços ou os cinco sextos e voltar a reincidir na prática criminosa porque não foi devidamente valorizado e “trabalhado”. É sabido que hodiernamente os Estabelecimentos Prisionais, por conta dos cortes orçamentais e dos recursos humanos, não conseguem cumprir as normas que vêm descritas nos vários regulamentos.

65. O que torna a pena meramente retributiva, quando é o inverso que pretendemos!

66. Desta feita, entende-se que deverá ocorrer numa redução das penas parcelares e, consequentemente, da pena única, por forma a que tais penas traduzam a verdadeira culpa e ilicitude do recorrente, mas sobretudo que seja útil à sua reinserção na sociedade.

67. O tribunal ao decidir como decidiu, sem prejuízo da inconstitucionalidade suprarreferida, violou as seguintes disposições legais, a saber: os artigos 40.º; 58.º 70.º, 71.º, 113.º, n. º 1; 116.º, n. º 1; 117.º 131.º e 132.º, n. º 1 e 2, als e) e h); 190.º e 198.º todos do Código Penal; e artigo 49.º do Código do Processo Penal.

Nestes termos e nos melhores de Direito, deverá o presente recurso ser procedente, revogando-se o acórdão recorrido. (…).

Mais veio o recorrente requerer a audiência de julgamento, para debater os pontos: 2.; 3-i, ii; 4, da sua motivação de recurso, o que fez nos termos do disposto nos artigos 423.º e 435.º, do CPP.

3.2. E o arguido AA:

(…)

1.DO CRIME DE VIOLAÇÃO DE DOMÍCILIO - A questão que o recorrente pretende ver sindicada, relativamente, ao crime de violação de domicilio, relativamente ao qual havia sido absolvido pelo Tribunal de Primeira Instância, é a seguinte: Mostra-se validamente exercitado nos autos o direito de queixa da Companheira da vítima, isto enquanto condição de procedibilidade relativamente à indiciada conduta delitiva assacada na acusação pública deduzida contra os arguido relativamente ao crime de violação de domicilio?

2.O exercício do direito de queixa insere-se numa das manifestações processuais do direito constitucional de acesso ao direito e aos tribunais, contemplado no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa [CRP], que constitui uma das vertentes essenciais de um Estado de Direito Democrático.

3.A propósito e na parte que aqui releva estabelece o artigo 49.º, do Código Processo Penal, no seu n.º 1 que “Quando o procedimento criminal depender de queixa, do ofendido ou de outras pessoas, é necessário que essas pessoas dêem conhecimento do facto ao Ministério Público, para que este promova o processo”, acrescentando o seu n.º 2 que “Para o efeito do número anterior, considera-se feita ao Ministério Público a queixa dirigida a qualquer outra entidade que tenha a obrigação legal de a transmitir àquele.”

4.  Por sua vez e segundo o artigo 50.º, “Quando o procedimento criminal depender de acusação particular, do ofendido ou de outras pessoas, é necessário que essas pessoas se queixem, se constituam assistentes e deduzam acusação particular.”

5. Daí que a queixa se caracterize e consista numa manifestação de vontade de perseguição criminal.

6.  Por sua vez, o ofendido é que, em regra, tem legitimidade para apresentar queixa, considerando-se como tal e segundo o preceituado no artigo 113.º, n.º 1, do Código Penal “o titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação”, tendo para o efeito, nos crimes de natureza particular e semi-pública, um prazo de seis meses para o exercício desse direito, sob pena do mesmo se extinguir [115.º Código Penal].

7. O exercício do direito de queixa encontra-se processualmente regulado no instituto da denúncia (241.º e ss.), precisando-se no artigo 246.º, a sua forma e o seu conteúdo do seguinte modo: “A denúncia pode ser feita verbalmente ou por escrito e não está sujeita a formalidades especiais.” (n.º 1); “A denúncia verbal é reduzida a escrito e assinada pela entidade que a receber e pelo denunciante, devidamente identificado. É correspondentemente aplicável o disposto no artigo 95.º, n.º 3.” (n.º 2);

8. “A denúncia contém, na medida possível, a indicação dos elementos referidos nas alíneas do n.º 1 do artigo 243.º.” (n.º 3).

9. O exercício do direito de queixa é uma condição essencial de procedibilidade para os crimes de natureza semi-pública e particular, acrescendo nestes últimos a obrigatoriedade de a denúncia ser acompanhada da declaração de constituição de assistente.

10.Daí que nestes ilícitos a queixa, enquanto condição de procedibilidade, tenha uma função mais delimitadora do que nos crimes de natureza pública, já que se torna necessário saber a quê e a quem se dirige a vontade de perseguição criminal.

11.No que concerne à descrição factual e partindo-se tanto do direito constitucional do acesso ao direito, como dos requisitos legais do exercício do direito de queixa e formais da denúncia, designadamente aqueles que exteriorizam uma vontade de perseguição criminal, somos de crer que haverá correspondência entre a queixa e a acusação, sempre que entre uma e outra haja uma homogeneidade factual, seja descendente ou ascendente.

12. Mas para haver essa homogeneidade não é exigível, designadamente sob o ponto de vista de assegurar as garantias de defesa e o direito a um processo equitativo [32.º, n.º 1 e 20.º, n.º 4, CRP; 6.º, n.ºs 1 e 3, da CEDH], que exista uma identidade total entre o relato fáctico da queixa e da acusação.

13.Tais garantias o que exigem, entre outras dimensões, é que o objecto do processo se mantenha estável a partir da acusação ou da pronúncia, sendo estas, bem como a defesa, que no seu essencial e para além dos poderes oficiosos de investigação [340.º], fixam os poderes de cognição do tribunal, delimitando a sua vinculação temática, assim como a extensão do caso julgado [303.º, 358.º, 359.º, 379.º, n.º 1, al. b].

14.Tendo como assente que a queixa de um crime tem em vista a manifestação de vontade da necessidade constitucional de tutela jurídica efectiva, mediante o exercício da acção penal, o conceito de facto só poderá assentar numa perspectiva naturalístico-normativa, que corresponda à violação e à necessidade de protecção de um certo bem jurídico.

15.Por fim, e em síntese, a ideia essencial de que, na verdade, a validade da queixa não exige uma fórmula especial ou a expressa declaração com utilização do termo «queixa», bastando-se com qualquer manifestação inequívoca do titular do direito de queixa, no sentido de pretender desencadear o procedimento criminal.

16.Manifestação inequívoca que nos presentes autos, não se encontra devidamente plasmada.

17.A Companheira da vítima, prestou declarações perante a Polícia Judiciária, referiu querer justiça e que eles fossem presos.

18.Ora tal manifestação, parece-nos ser inequivocamente relativamente ao crime de homicídio.

19.Não referindo a Companheira da vítima em momento algum desejar que fosse instaurado procedimento criminal referente a qualquer outro crime

20.Entendemos ser de manter a decisão proferida pelo Tribunal de Primeira Instância.

21.No caso dos autos, a companheira da vítima não apresentou qualquer queixa contra os arguidos pelos factos consubstanciadores da prática, pelos mesmo, do crime de violação de domicílio.

22.E quando, a mesma nas suas declarações refere querer justiça, refere-se, naturalmente, à morte do companheiro.

23. A inexistência de queixa consubstancia um pressuposto processual negativo que gera ilegitimidade, tradicionalmente   conhecido   por exceção, cognoscível oficiosamente pelo Tribunal e a todo o tempo.

24.Por todo o exposto, e atento o disposto nos artigos 113º, nº 1, 116º, nº 1, 117º, 190 e 198º, todos do Código Penal, e ainda, ao disposto no artigo 49º do CPP, deverão os arguidos ser absolvidos pela prática do crime de violação de domicílio por falta de legitimidade do Ministério Público para dedução de acusação pública.

25.Face ao exposto, deve este altíssimo Supremo Tribunal de Justiça, julgar extinto, o procedimento criminal instaurado contra os arguidos pela prática, em autoria material, de um crime de violação de domicílio, p. e p. no artigo 190º, nºs 1 e 3 do Código Penal.

26.O ora recorrente entende que dos factos que resultaram como provados relativamente a si, não integram/ consubstanciam a intenção de matar, impondo-se assim a sua Absolvição pelo crime de homicídio pelo qual foi condenado.

27.Se é verdade que a Jurisprudência tem tratado esta questão como de um facto se tratasse, porém, a verdade é que não é líquido que assim seja, pois a doutrina mais actual tem defendido que “a fixação do dolo em sede de decisão judicial penal tem por base regras de experiência comum, critérios de normalidade social, de verosimilhança, que, operando sobre a factualidade dada como provada, permitem atribuir um sentido ao comportamento, sentido esse em que se afirmará ou negará o dolo (...)” .

28.Isto é, “os actos psíquicos não se comprovam em si mesmos, mas mediante ilações, ou seja, os actos psíquicos transcendem a possibilidade de comprovação histórico-empírica, pelo que, do ponto de vista da análise jurídico penal, não são questões de prova, (...) trata-se de significações, apreciações, avaliações, não se trata de factos; por outras palavras, o apuramento do dolo do agente, enquanto acto interior e conceito mentalístico, é uma conclusão, uma ilação e uma atribuição de significado social que o tribunal criminal extrai a partir dos factos esses lidos à luz das regras da experiência da vida, da normalidade social, da experiência comum”.

29.Ou seja, é admissível que a questão da existência ou não de dolo em determinada conduta do agente criminoso, não seja uma questão aferida em termos probatórios, mas uma questão para lá da prova, com contornos jurídico-normativos, cuja conclusão a chegar pelo tribunal deriva dos factos dados como provados (entendam-se factos como pedaços históricos de vida).

30.Aliás, repare-se que na decisão de primeira instância, o tribunal deu como provado que o tiro que vitimou o Ofendido foi desferido pelo arguido BB.

31.E que entre o recorrente e a vítima havia uma distância apenas de cerca de 50 cm, sendo que o recorrente não acertou na vítima por razão alheia à sua vontade.

32.Ora, se o recorrente não acertou, foi apenas porque não quis, porque efetivamente não tinha a intenção de matar.

33.Mais acresce, que dos factos provados, consta ainda que quando o recorrente abandonou o local a vítima ainda se encontrava com vida.

34.E o recorrente nada fez, para se certificar que o mesmo ficaria efetivamente sem vida.

35.O que é claramente demonstrativo não só da dificuldade que o próprio tribunal de primeira instância enfrentou na qualificação do dolo como questão de facto (ainda que tenha dado tal facto como provado), como da inexistência de raciocínio lógico-dedutivo para o seu alcance.

36. O certo é que o tribunal recorrido, confirmou que o arguido actuou dolosamente, na modalidade de dolo directo.

37. E, tal qualificação foi, no entender do arguido, mal realizada, afigurando-se por isso injusta, pois ainda que nesta sede não se possa sindicar matéria de facto, a verdade é que do cotejo e conjugação dos restantes factos provados e não provados, à dinâmica própria que o acórdão de primeira instância fez transparecer (daí se ter referido supra que o facto 13º dado como provado foi “contra a corrente”), bem como da sua fundamentação, salvo o devido respeito, a conclusão a retirar era manifestamente contrária à alcançada, pois como melhor se verá infra o dolo eventual não ficou demonstrado.

38.O Tribunal da Relação de Coimbra, com uma argumentação que não convence, entendeu que o tribunal de primeira instância, não cometeu qualquer erro de julgamento na abrangência do vício previsto no artº. 410º n° 2 do C.P.P e como tal ajuizou bem.

39.Com todo o respeito, pelo Tribunal da Relação de Coimbra, não pode o recorrente conformar-se com a mesma na medida em que, quer dos restantes factos assentes, quer da dinâmica de encadeamento dos mesmos onde as regras de experiência comum têm no caso em apreço enorme importância, retira-se entendimento diverso.

40.Se é certo que ao Supremo Tribunal de Justiça está vedado a apreciação da questão do dolo ex vi matéria de facto, certamente que sobre a mesma se poderá debruçar se se entender que tal questão reveste também natureza jurídica conforme doutrinariamente defendido, e mais ainda se estiver em causa vício do artº. 410º nº 2 do C.P.P. no tocante a erro de julgamento que é de conhecimento oficioso por este Alto Tribunal.

41. Ou seja, não existe, pois, qualquer impedimento para que o Supremo Tribunal de Justiça reaprecie a questão do dolo, quer ela seja configurada como questão de direito, quer a mesma seja apreciada ex vi artº. 410º nº 2 do C.P.P.

42. Como V. Exas. certamente concordarão, a existência do elemento volitivo, isto é, o ter previsto ou admitido como possível a morte da vítima (este sim questionado e sindicado pelo arguido), não é uma consequência automática da verificação do elemento intelectual, isto é, este elemento tem de ser demonstrado, o que, no caso em apreço não aconteceu.

43.É que para a análise do caso concreto e boa decisão da causa, é importante perceber-se toda a dinâmica dos factos tal como estes sucederam no tempo e no espaço e que no entender do arguido estão razoavelmente descritos nos factos dados como provados.

44. Por outras palavras, nos actos desvelados pelo recorrente nada permite afirmar que este previra a morte do ofendido, quando este não defere qualquer disparo com a intenção de lhe acertar.

45. E tanto não tinha tal intenção, que efetivamente, não lhe acertou.

46. Ora, não foi nada disto que se passou, nem é nada disto que os factos dados como provados reproduzem.

47. O   recorrente   não   deu   tiros   em   linha   vertical, aliás, os   disparos efectuados foram para o ar e para o chão.

48.Tudo isto e ignorado no acórdão recorrido pelo Tribunal da Relação de Coimbra, que nem sequer uma palavra aduz para infirmar tal objectividade de análise.

49.Por um lado, já depois do disparo desferido pelo arguido BB e que vitimou o Ofendido II, a vítima ainda de pé conseguiu caminhar cerca de 26 metros, o que claramente indicia que se o recorrente tivesse efetiva intenção de o matar, teria disparado para a zona do tronco, pelo menos nesse momento.

50.Na doutrina, para além de Fernanda Palma, também Teresa Pizarro Beleza afirma que, “num julgamento de homicídio seja vulgar discutir-se se normalmente uma pessoa que pratica uma agressão de uma certa forma tem ou não intenção de matar, isto é sempre necessário que o tribunal se socorra de indícios objectivos para tentar provar a intenção de quem agiu de uma forma ou de outra”.

51.Relembre-se que foi dado como não provado que o arguido tivesse sequer apontado ao tronco da vítima.

DE TODO O MODO, E AINDA QUE NENHUM DESTES ARGUMENTOS PROCEDA, O TRIBUNAL DA RELAÇÃO OLVIDA O MAIS IMPORTANTE POIS O QUE AQUI SE DISCUTE É QUE O ARGUIDO NEM SEQUER QUIS ATINGIR A VÍTIMA (O QUE NÃO SIGNIFICA QUE NÃO PUDESSE PREVER TAL HIPÓTESE), MUITO MENOS TENDO PREVISTO QUALQUER RESULTADO MORTE.

52.Por todo o exposto, o acórdão recorrido padece de nulidade insanável, por violação do art. 374º nº 2, do art. 379º nº 1 a) e c), ambos do CPP, a qual deve ser declarada, com as consequências do nº 3 do art. 379º do CPP.

53.Não integrando os factos provados, relativamente ao recorrente, o conceito jurídico da intenção de matar, deve o arguido ora recorrente ser ABSOLVIDO do crime de homicídio qualificado, pelo qual foi condenado.

54 DA MEDIDA CONCRETA DA PENA APLICADA - O Recorrente não se conforma com as penas que lhe foi aplicada, considerando que a pena parcelar de 19 anos de prisão pela prática do crime de homicídio qualificado manifestamente excessiva.

55.A pena única aplicada é manifestamente excessiva e desproporcional, tendo em conta, as concretas condições de vida do recorrente.

56.A função da culpa, deste modo inscrita na vertente liberal do Estado de Direito, é por outras palavras, a de estabelecer o máximo de pena ainda compatível com as exigências de preservação da dignidade da pessoa e de garantia do livre desenvolvimento da sua personalidade nos quadros próprios de um Estado de Direito democrático.

57.O artigo 71° do Código Penal estabelece o critério da determinação da medida concreta da pena, dispondo que a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.

58.A culpa constitui um limite inultrapassável, de todas e quaisquer considerações preventivas, sejam elas de prevenção geral positiva ou antes negativa, de integração ou antes de intimidação, sejam de prevenção especial positiva ou negativa, de socialização, de segurança ou de neutralização.

59.Com o que se torna indiferente saber se a medida da culpa é dada num ponto fixo da escala penal ou antes como uma moldura de culpa.

60.De qualquer modo, e qualquer que seja a solução encontrada, de uma ou de outra forma, a culpa é o limite máximo da pena adequado à culpa que não pode ser ultrapassado.

61. Uma tal ultrapassagem, mesmo em nome das mais instantes exigências preventivas, poria em causa a dignitas humana do delinquente e seria assim, como é nos presentes autos, por razões Jurídico constitucionais, inadmissível.

62.Face ao supra exposto, o Arguido ora Recorrente, entende que para que lhe seja aplicada uma pena justa, adequada e proporcional, a qual não exceda o seu grau de culpa e participação nos factos ora em apreço, esta não poderá ser em caso algum superior a 14 anos de prisão.

63.Esta medida concreta da pena única que o ora Recorrente pretende que agora lhes seja aplicada por este Alto Tribunal é aquela que lhes parece mais adequada, justa e proporcional tendo em conta os factos provados e as suas concretas condições de vida.

64.Pelo que se entende que o Douto Acórdão recorrido deve ser revogado, devendo ser substituído por outro que condene o ora Recorrente na pena única de 14 anos de prisão, a qual irá realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

65. Assim, e por todo o exposto, e independentemente da pena de prisão que for concretamente aplicada por vós, Venerandos Juízes Conselheiros, a verdade é que a mesma deverá ser, sempre, inferior à pena aplicada.

66. DA VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA IGUALDADE - ARTIGO 13º DA CRP - Nesta medida o Arguido não se conforma com a pena de prisão de 21 anos, a que foi condenado, quando comparada com a pena igualmente aplicada ao seu co-arguido BB.

67. De facto, a medida da pena não pode exceder a medida da culpa, contudo a pena concretamente aplicada ao ora Recorrente excede claramente a medida da sua culpa.

68. Vejamos, o “Homem da frente” in casu o Arguido BB, relativamente ao qual resultou provado, ter sido este a disparar o tiro que vitimou o Ofendido -segundo os factos dados com provados pelo Tribunal de Primeira Instância e confirmados pelo Tribunal da Relação de Coimbra - é condenado numa pena exatamente igual à aplicada ao Recorrente.

69.Tendo resultado como provado relativamente ao ora recorrente, que embora empunhasse uma arma, não disparou qualquer tiro que atingisse a vítima, embora tive os escassos metros deste.

70.Assim, impõe-se a aplicação ao Arguido Recorrente, de uma pena justa e proporcional, tendo em conta a efetiva participação do Arguido nos factos.

71.Face ao supra exposto, o Arguido ora Recorrente, entende que para que lhe seja aplicada uma pena justa, adequada e proporcional, a qual não exceda o seu grau de culpa e participação nos factos ora em apreço, esta não poderá ser em caso algum superior a 14 anos de prisão.

72.Esta medida concreta da pena que a ora Recorrente pretende que agora lhe seja aplicada por este Alto Tribunal é aquela que lhe parece mais adequada, justa e proporcional tendo em conta a sua efetiva participação, nos factos.

73.Por outro lado, e em nome do princípio da Igualdade previsto no artigo 13º da CRP, reclama-se que a pena aplicada ao aqui recorrente seja reduzida se a mesma for comparada com a pena aplicada pelo Tribunal de 1ª Instância ao Arguido BB, cuja participação nos factos foi manifestamente mais ativa que a do Recorrente, tendo sido este quem disparou o tiro mortal.

74.Sem dúvida alguma, resulta dos autos que a participação do recorrente nos factos pelos quais foi condenado, foi bastante inferior em relação à participação do seu coarguido.

75.Pois bem, apesar de essa diferença que ressalta à vista, a verdade é que as penas aplicadas a ambos os arguidos, foram exatamente as mesmas, o que é manifestamente desproporcional tendo em conta o envolvimento de um e de outro no crime de homicídio. Ao aplicar igual medida das penas a ambos os arguidos, foi violado o princípio da igualdade constante do art.º 13º da CRP, e o art.º 71º do CP, quando interpretados no sentido, de deverem ser aplicadas penas iguais a ambos os arguidos, sendo tal interpretação inconstitucional. -INCONSTITUCIONALIDADE QUE DESDE JÁ SE ARGUIU E REQUER PARA OS DEVIDOS EFEITOS LEGAIS.

76.Pelo que se entende que o Douto Acórdão recorrido deve ser revogado, devendo ser substituído por outro que condene o ora Recorrente numa pena de prisão (no nosso humilde entendimento que não deve ultrapassar os 14 anos), irá realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

77.Nestes termos e nos melhores de Direito, deverá ser, sempre, APLICADA PENA INFERIOR À PENA ÚNICA APLICADA DE 21 ANOS DE PRISÃO, não ultrapassando assim a medida da culpa da Recorrente.

DAS NORMAS VIOLADAS:

1.Artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa [CRP]

2.Artigo 49.º, do Código Processo Penal

3.Artigo 50.º, do Código Processo Penal

4.Artigo 113.º, n.º 1, do Código Penal

5.Artigo 115.º do Código Penal

6. Artigo 241. ° e ss do Código Penal

7.Artigos 246. °, artigo 95. °, n.º 3.” (n.º 2) do Código de Processo Penal

8.Artigo 243° n° 1 e n° 3 do Código de Processo Penal

9.Artigos 32. °, n.º 1 e 20. °, n.º 4, CRP

10.Artigo 6. °, n.ºs 1 e 3, da CEDH

11.Artigos 303. °, 358. °, 359. °, 379. °, n.º 1, al. b do Código de Processo Penal

12.Artigo 410° n° 2 do Código de Processo Penal

13.Artigo 71° do Código Penal

14.Artigo 13° da CRP

15.Artigo 190. °, n.º 1 e 3, do Código Penal

16.Artigos 131° e 132° do Código Penal

Nestes termos, e nos mais em Direito consentidos que vós, Venerandos Juízes Conselheiros do Supremo Tribunal de Justiça, muito doutamente suprireis, se requer seja o presente RECURSO JULGADO PROCEDENTE nos, exatos termos, supra expostos, com todas as legais consequências que daí advenham.

(…).

4. Os recursos foram admitidos por despacho de 7.04.2021.

5. O Magistrado do Ministério Público junto do TRC, na sua resposta, pugnou pela improcedência do recurso e a manutenção do acórdão recorrido, apresentando as seguintes conclusões na sua resposta (transcrição):

(…)

1 – Relativamente à impugnada condenação pelo crime de violação de domicílio previsto no art.º 190º do C.P., por ambos os recorrentes, por eventual falta de apresentação de queixa válida o depoimento prestado pela ofendida CC deverá ser considerado, no que se reporta ao crime indicado, como clara apresentação de queixa-crime, embora a referida ofendida não tivesse conhecimentos jurídicos para usar as fórmulas ou expressões que os recorrentes acham que deveria ter usado.

2-De   todo   o   modo, nos   parece   que   a   ponderação   usada   pelo tribunal recorrido para aceitar que foi apresentada queixa que deve ser considerada válida legalmente, não deve merecer censura.

3– Não houve nesta decisão qualquer violação das normas dos artigos 113º, n.º 1, 116º, n.º 1, 117º, 190º, n.º 1 e 3 e 198º todos do C. P.

4–Não há qualquer violação dos princípios da razoabilidade, nem da proporcionalidade, nem das garantias de defesa do arguido que importe a   violação   de   princípios   constitucionais   quando   é   certo   que   sempre   em todas as fases do processo o(s) arguido(s) teve (eram) conhecimento e acesso a todos os factos e respectivas subsunções legais apresentadas pelo Ministério Público.

5- Da matéria provada resulta que os desejos consumados de vingança pelo facto de pretenderem – em co-autoria – consumar as ameaças de morte, munindo-se de armas de fogo, por causa da cessação da relação marital entre a filha menor da vítima de homicídio e o filho do co-arguido, AA, são seguramente fúteis, numa actuação que reflete uma enorme perversidade e que merece uma censurabilidade especial nos termos e para efeitos do disposto no art.º 132º n.º 2 do C. P.

6– A argumentação da motivação do recorrente não apresenta qualquer virtualidade de permitir afastar as razões de direito em que tribunal recorrido assentou a sua fundamentação para a qualificação jurídico-penal de subsumir os factos à circunstância da al. e) do n.º 2 do art.º 132º do C. P., antes pelo contrário, reforça-as.

7– O contexto e as concretas circunstâncias que rodearam os acontecimentos que conduziram à morte do pai da FF integram, com a utilização de duas armas de fogo, uma por cada um dos arguidos, em simultâneo, a qualificativa do n.º 2 al. h) do art.º 132º do C. P.

8– O dolo na prática do crime de homicídio encontra-se perfeitamente demonstrado na matéria de facto provada, nomeadamente, nos pontos 4, 6, 8, 16, 26, 27, 28 e 29, contrariamente ao alegado pelo arguido BB.

9– Não se encontra nenhum fundamento para que o recorrente BB impugne as medidas das penas para pedir a aplicação de penas pelos seus limites legais mínimos.

10– Feita a devida ponderação na decisão recorrida, nos termos do art.º 71º, bem assim do art.º 77º ambos do C. P., não merecem censura as penas fixadas.

Quanto ao demais questionado pelo arguido AA,

11– E relativamente à impugnada intenção de matar, assente que está em termos definitivos a matéria de facto provada, nesta encontra-se perfeitamente demonstrada tal intenção, nomeadamente, nos pontos 4, 6, 8, 16, 26, 27, 28 e 29, contrariamente ao alegado pelo arguido.

12– A impugnada medida da pena parcelar de 19 anos de prisão, também não merece censura quanto a motivação e fixação desta pena no acórdão recorrido, sendo certo que atenta a mesma fundamentação não viola qualquer princípio constitucional, concretamente da igualdade, por comparação que o recorrente estabelece com o co-arguido condenado em igual pena.

13– Com efeito, o tribunal apreciando todas as circunstâncias aplicáveis a partir da matéria de facto provada e atenta a personalidade do arguido, chegou à apontada pena, ainda de acordo com a moldura penal abstrata.

14– Também esta pena parcelar e, por via desta confirmação, a pena única fixada, não deverão ser alteradas.

Nestes termos, deverão ser julgados improcedentes os recursos impugnatórios na sua totalidade, confirmando-se o douto acórdão recorrido.

(…).

6. Subiram os autos ao Supremo Tribunal de Justiça, onde a Sra. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer nos termos do disposto no artigo 416º, n.º 1, do CPP, acompanhando os fundamentos aduzidos na resposta do Ministério Público junto do TRC. Mais foi de Parecer que relativamente à recorribilidade para o STJ da condenação por crime de violação de domicílio, e na procedência do recurso interposto pelo Ministério Público, o TRC veio a condenar cada um dos citados arguidos pela prática de tal crime, na pena de 2 anos, efetiva, e, em cúmulo jurídico, vieram os arguidos a ser condenados na pena única de 21 anos de prisão. Perante a inovatória condenação em sede de recurso, por parte do Tribunal da Relação, em pena efetiva de prisão, de 2 anos, nos termos do Acórdão do TC nº 595/2018 (DR de 11.12.2018), afigura-se igualmente ser recorrível para o STJ tal segmento da decisão do TRC. No entanto, devem os recursos ser improcedentes, quanto a tal segmento do acórdão.

No que tange à pretendida impugnação da condenação pelo crime de detenção de arma proibida, tendo o TRC mantido a medida da pena parcelar de 2 anos de prisão, por ter ocorrido dupla conforme e aplicação de pena não superior a 8 anos de prisão, tal condenação é insusceptível de recurso para o STJ, nos termos dos artigos 400.º, n.º 1, al. f) e 432.º, nº1, al. b), do CPP, pelo que o recurso do arguido BB deverá ser rejeitado em tal segmento.

Em síntese, o Parecer vai no sentido da rejeição do recurso do arguido BB, no segmento em que pretende impugnar a medida da pena parcelar de 2 anos pela prática do crime de detenção de arma proibida, nos termos dos artigos 400.º n. º1, al. f) e 432.º n. º1, al. b) do CPP, e pela improcedência do recurso relativamente às demais questões suscitadas. E pela improcedência global do recurso interposto pelo arguido AA.

7. Cumprido o disposto no n.º 2, do artigo 417.º do CPP, nada foi dito.

8. O recorrente BB veio requerer a audiência de julgamento, pelo que convocada a secção criminal e notificados o Ministério Público e os Ilustres Mandatários dos recorrentes, foi designada data para a realização de audiência, nos termos do artigo 421.º, n.º 4 do CPP.

9. Realizou-se a audiência nos termos do disposto no artigo 423.º, do CPP.

10. Após deliberação nos termos do disposto no artigo 424.º, do CPP, foi proferido o seguinte acórdão.

II.

11. O âmbito do recurso delimita-se pelas conclusões da motivação (artigos 402.º, 403.º e 412.º, do CPP), sem prejuízo dos poderes de conhecimento oficioso quanto a vícios da decisão recorrida – que devem resultar directamente do texto desta, por si só ou em conjugação com as regras da experiência – e a nulidades processuais não sanadas, a que se refere o artigo 410.º, n.ºs 2 e 3, do CPP (acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95, DR-I, de 28.12.1995), bem como quanto a nulidades da sentença (artigo 379.º, n.º 2, do CPP, com a alteração introduzida pela Lei n.º 20/2013, de 21 de Fevereiro).

Tendo em conta as conclusões da motivação de recurso, as questões colocadas são as seguintes:

- Quanto ao recurso do arguido BB, os seguintes temas, levados e discutidos em sede de audiência:

i. Da legitimidade do Ministério Público para a dedução de acusação pública referente ao crime de violação de domicílio;

ii. Da inconstitucionalidade material dos artigos 113.º, n.º 1, 116.º, n.º 1, 117.º, 190.º, n.º 2  e 198.º, todos do CP e artigo 49.º do CP, quando interpretados no sentido de que basta a mera expressão de “quer ver toda a situação esclarecida e que se faça justiça e se prendam aqueles bandidos” para que se presuma que o titular do direito de queixa, no âmbito de um crime semipúblico, pretende o procedimento criminal, violando-se do principio da proporcionalidade e da razoabilidade e por violação do principio da garantias de defesa do arguido (artigo 32.º, n.º 1 da CRP);

iii. Da não verificação das circunstâncias qualificativas previstas nas als. e) e h), do n.º 2, do artigo 132.º, do CP;

iv. Da redução da medida das penas, quer as parcelares e, consequentemente, a pena única;

- Quanto ao recurso do arguido AA:

i. Da absolvição da prática do crime de violação de domicílio por falta de legitimidade do Ministério Público para dedução de acusação pública - artigos 113.º, n. º 1, 116.º, n. º 1, 117.º, 190.º e 198.º, todos do CP, e artigo 49º do CPP – e, em consequência, da extinção do respectivo procedimento criminal;

ii. Da nulidade insanável do acórdão recorrido, por violação dos artigos 374.º, n.º 2, e 379.º, n.º 1, als. a) e c), ambos do CPP, a qual deve ser declarada, com as consequências do n.º 3, do artigo 379.º, do CPP, porquanto:

- os factos que resultaram como provados relativamente ao ora recorrente, não integram a intenção de matar, pelo que na ausência de dolo (directo como se diz no acórdão recorrido), impõe-se a sua absolvição pelo crime de homicídio pelo qual foi condenado; e,

- se é certo que ao STJ está vedada a apreciação da questão do dolo ex vi matéria de facto, certamente que sobre a mesma se poderá debruçar se se entender que tal questão reveste também natureza jurídica conforme doutrinariamente defendido, e mais ainda se estiver em causa vício do artigo 410.º, n. º2, do CPP, no tocante a erro de julgamento que é de conhecimento oficioso.

iii. Da medida das penas, devendo a pena parcelar de 19 anos de prisão pela prática do crime de homicídio qualificado, ser reduzida para 14 anos de prisão;

iv. Da violação do princípio da igualdade constante do artigo 13.º, da CRP, e do artigo 71.º, do CP, quando interpretados no sentido, de deverem ser aplicadas penas iguais aos arguidos.

12.  Das questões prévias. Delimitação da apreciação do objecto dos recursos.

12.1. O Ministério Público suscitou a questão de o recurso dever ser parcialmente rejeitado, à pretendida impugnação da condenação pelo crime de detenção de arma proibida, tendo o TRC mantido a medida da pena parcelar de 2 anos de prisão, por ter ocorrido dupla conforme e aplicação de pena não superior a 8 anos de prisão, tal condenação é insusceptível de recurso para o STJ, nos termos dos artigos 400.º, nº 1, al. f) e 432.º, nº 1, al. b) do CPP, pelo que o recurso do arguido BB deverá ser rejeitado em tal segmento.

O recurso em causa foi interposto do acórdão do TRL que decidiu os recursos dos arguidos interpostos do acórdão do tribunal coletivo de 1.ª instância. Na parte que agora releva, dispõe o artigo 432.º, do CPP:

1 - Recorre-se para o Supremo Tribunal de Justiça:

(…)

b) De decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas relações, em recurso, nos termos do artigo 400.º;

(…)

Estatui o artigo 400.º, n.º 1, al. f) do CPP, que não é admissível recurso de acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de 1.ª instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos.

O acórdão do TRL foi proferido em recurso, confirmou a pena parcelar de 2 anos aplicada pelo tribunal de 1.ª Instância, relativamente ao crime de detenção de arma proibida. Logo inferior a oito anos. Assim, o acórdão, neste segmento, não é suscetível de recurso para o STJ, quanto àquela pena parcelar, porque a decisão condenatória da 1ª instância foi confirmada em recurso pelo Tribunal da Relação e as penas singulares em causa não são superiores a 8 anos de prisão (artigo 400.º, n.º 1, al. f) do CPP).

A irrecorribilidade das penas parcelares não significa apenas que a sua medida fica intocada, mas coenvolve a insindicabilidade de todo o juízo decisório – absolvição ou condenação – efetuado[1]incluindo todas questões processuais relativas a essa decisão no tocante às penas singulares. De outro modo não se verificaria a irrecorribilidade.

A cisão entre recorribilidade das penas singulares e da pena única, fora das situações de recurso per saltum para o STJ, caso em que o STJ colhe competência para conhecer sem restrição das questões relativas às penas parcelares[2] , tem respaldo no direito penal positivo (artigo 78.º, n.º 1, do CP, artigo 403.º, CPP), circunstância que reforça a possibilidade de a recorribilidade que a contrario se infere do artigo 400.º, n.º 1, al. f) do, CPP, valer quer para a pena parcelar superior a 8 anos de prisão aplicada pela prática de um crime, quer para a pena única superior a 8 anos de prisão, em resultado de cúmulo jurídico de penas de prisão de medida igual ou inferior a oito anos de prisão. Neste último caso, quando apenas a pena única do concurso é superior a oito anos de prisão, somente as operações relativas ao cúmulo jurídico e à pena única são sindicáveis em recurso[3].

No caso, em relação às questões postas pelo recorrente BB e atinentes às penas parcelares, foi garantido o duplo grau de jurisdição consagrado no artigo 32.º, n.º 1, da CRP. O que pretendia o recorrente, na parte do recurso relativa às penas parcelares, era um triplo grau de jurisdição e um duplo grau de recurso, garantia que a Constituição não lhe outorga.

A irrecorribilidade das penas parcelares não implica, necessariamente, irrecorribilidade da pena única aplicada ao concurso; a irrecorribilidade afere-se separadamente em relação a cada uma das penas singulares e à pena única aplicada ao concurso[4] . No caso, a pena única é recorrível porque aplicada em medida superior a 8 anos de prisão (artigo 400.º, n.º 1, al. f), do CPP, a contrario).

A inadmissibilidade de recurso, quando é total acarreta a rejeição do recurso (artigo 420.º, n. º1, al. b, do CPP); sendo parcial, como é o caso quanto às questões suscitadas, com exceção da medida da pena única, implica o não conhecimento do recurso na parte irrecorrível[5].

12.2 Do crime de violação de domicílio p. e p no artigo 190.º, n.ºs 1 e 3 do CP.

No entanto, há ainda que decidir o seguinte:

Em sede da 1ª instância foi julgado extinto o procedimento criminal pela prática do crime de violação de domicílio previsto no artigo 190.º, n.ºs 1 e 3, do CP de que ambos os arguidos vinham acusados por ausência de queixa.

Porém, a recurso do Ministério Público junto da 1ª instância, foram os arguidos condenados no TRC pela prática do crime de violação de domicílio, p. e p. no artigo 190º do CP, na pena parcelar de 2 anos de prisão, para cada um deles.

Perante a procedência do recurso do Ministério Público, o TRC reformulou a pena única do cúmulo jurídico aplicada a cada um dos arguidos, passando de uma pena de 20 anos para uma pena de 21 anos de prisão.

Ora, vêm ambos os recorrentes impugnar esta condenação invocando a falta de apresentação de queixa válida.

Diga-se, neste conspecto que se trata de matéria em relação à qual, atenta a medida concreta da pena- 2 anos-, se poderia questionar a sua recorribilidade para este Supremo Tribunal de Justiça, atento o disposto nos artigos 432º, n.º 1, al. b) e 400º, n.º 1, al. e), ambos do CPP.

No entanto, dado que na 1ª instância a decisão foi de arquivamento em relação a este crime com referência a ambos os arguidos, seguindo a jurisprudência do TC, sobre esta matéria (cfr. Ac. n.º 399/2014) são de admitir e apreciar os recursos sobre esta questão que ambos os recorrentes apresentam de forma similar.

Assim, perante a inovatória condenação em sede de recurso, por parte do TRC, pela prática do crime de violação de domicílio, p. e p. pelo artigo 190.º, n.ºs 1 e 3, do CP, em pena efetiva de prisão, de 2 anos, nos termos do Acórdão do TC nº 595/2018 (DR de 11.12.2018), é recorrível para o STJ este segmento da decisão do TRC.

Sobra, deste modo, para conhecimento deste tribunal, a pena parcelar aplicada pela prática do crime de violação de domicílio, pelo crime de homicídio e a pena única aplicada ao concurso de crimes. Este tema será apreciado oportunamente.

12.3. Tendo presente o objecto dos recursos, tal como demarcado pelos recorrentes, importa enquadrar o mesmo processualmente, em vista dos poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça quanto à decisão sobre a matéria de facto levada nas instâncias (artigo 434.º, do CPP).

O recurso interposto pelos arguidos pode ser conhecido pelo Supremo Tribunal de Justiça, mas tão só, na medida em que se enquadre no âmbito dos respectivos poderes de cognição.

Com efeito, por força do disposto nos artigos 432.º, n.º 1, alínea b) e 434.º, do CPP, o Supremo Tribunal de Justiça pode apenas reexaminar a matéria de direito (sem prejuízo do conhecimento oficioso dos vícios previstos nos n.ºs 2 e 3, do artigo 410.º, do CPP que sejam evidenciados pela decisão recorrida), tal seja, não pode conhecer das questões inerentes ao julgamento sobre a matéria de facto, nem das questões que concernem à própria formulação da decisão de 1.ª instância (como as nulidades e os vícios de procedimento), que já não estão sob apreciação.

Aliás, este regime de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça efectiva, de forma adequada, a garantia do duplo grau de jurisdição, traduzida no direito de reapreciação da questão por um tribunal superior, quer quanto a matéria de facto, quer quanto a matéria de direito, consagrada no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição[6], enquanto componente do direito de defesa em processo penal, reconhecida em instrumentos internacionais que vigoram na ordem interna e vinculam o Estado Português ao sistema internacional de protecção dos direitos humanos[7].

Como tem sido repetido pelo TC, em jurisprudência firme, o artigo 32.º, n.º 1, da Constituição “não consagra a garantia de um triplo grau de jurisdição” ou de “um duplo grau de recurso”, “em relação a quaisquer decisões condenatórias[8] .

Os recursos serão conhecidos à luz e com os parâmetros suprarreferidos. E este, de resto, o sentido da jurisprudência contida, entre outros, no Acórdão do STJ, de 16.10 2008[9], e por mais recente, no acórdão, do Supremo Tribunal de Justiça, de 27.11.2019 (Proc. 232/16.0JAGRD.C1. S1).

12.4. Ademais, os arguidos, neste seu recurso perante o Supremo Tribunal de Justiça, vêm reeditar, na motivação, alguns pontos já alegados perante o Tribunal da Relação.

Nomeadamente que o Acórdão recorrido decorreu de uma errada interpretação da matéria de facto e de uma incorrecta aplicação do direito (e que iremos aflorar em cada ponto que entendamos repetido). Ora, como se tem repetidamente afirmado na jurisprudência deste Supremo Tribunal e na doutrina, os recursos judiciais não servem para conhecer de novo da causa. Os recursos constituem meios processuais destinados a garantir o direito de reapreciação de uma decisão de um tribunal por um tribunal superior, havendo que, na sua disciplina, distinguir dimensões diversas, relacionadas com o fundamento do recurso, com o objecto do conhecimento do recurso e com os poderes processuais do tribunal de recurso, a considerar conjuntamente[10]. O que significa que, verificados que se mostrem os fundamentos para recorrer (pressupostos da admissibilidade do recurso), o objecto do conhecimento do recurso delimita-se pelas questões identificadas pelo recorrente que digam respeito a questões que tenham sido conhecidas pelo tribunal recorrido ou que devessem sê-lo, com as necessárias consequências ao nível da validade da própria decisão, assim se circunscrevendo os poderes do tribunal de recurso, sem prejuízo do exercício, neste âmbito, dos poderes de conhecimento oficioso necessários e legalmente conferidos em vista da justa decisão do recurso. Como se tem insistido [11], o recurso constitui apenas um “remédio processual” que permite a reapreciação, em outra instância, de decisões sobre matérias e questões submetidas a decisão do tribunal de que se recorre.

12.5. Em síntese: feito o necessário saneamento e enquadrando as peças recursórias em análise, estas têm por objecto um acórdão proferido em recurso pelo TRC que confirmou a decisão da 1.ª instância “in totum” e aplicou, em cúmulo jurídico, pena de prisão superior a 8 anos, visando exclusivamente o reexame de matéria de direito, da competência deste tribunal (nos termos do disposto nos artigos 432.º, n.º 1, al. b) e c) e 2, 434.º e 400.º, n.º 1, alíneas e) e f), todos do CPP), nos termos supra expostos.           

13. São os seguintes os factos provados nas instâncias, que assim se mostram estabelecidos e assentes:

(…)

FACTOS PROVADOS:

1. As famílias de FF, nascida a …/11/2005, filha do falecido II, e de JJ, nascido em …./09/2001, filho do arguido AA, têm relações de parentesco próximas, sendo visitas habituais das casas umas das outras.

2. Desde finais de março de 2019, a menor FF, com 13 anos de idade, viveu maritalmente com JJ, com 17 anos, na residência do arguido AA, sita em …, …, ....

3. Face às relações familiares e de amizade acima aludidas, este “casamento” era do conhecimento de todos, inclusivamente da família do arguido BB, primo direito do arguido AA.

4. Devido a desavenças familiares que surgiram por interrupção do referido “casamento” entre FF e JJ, por intervenção do falecido II, através de queixa apresentada junto da GNR  …, a família do JJ, descontente e em retaliação face ao facto de a menor FF ter sido levada pelos respetivos progenitores, dirigiu diversas ameaças de morte a membros da família da menor.

5. Devido a tais ameaças, a família da FF, composta pela mesma, seu pai II, mãe CC, irmão DD, cunhada LL, e as irmãs mais novas daquela GG (com 9 anos) e HH (3 anos), viu-se compelida a sair  ..., onde habitava, tendo-se refugiando em ..., desde finais de junho de 2019, localidade onde o patriarca II tinha familiares e se sentia mais seguro, facto este que chegou ao conhecimento dos arguidos.

6. Em concretização de tais ameaças, na madrugada do dia 5 de julho de 2019, os arguidos AA e BB, com residências nas localidades ........…, fazendo-se transportar no veículo automóvel de marca …, modelo …, de cor preta, com a matrícula ...-DN-..., propriedade do arguido BB e por este conduzido, percorreram o percurso das respetivas residências até ..., que dista cerca de 165 quilómetros e demora cerca de duas horas a percorrer, com passagens às 3 horas 56 minutos no Túnel … e às 4 horas e 2 minutos no pórtico “… (km 091+878) O/E” da autoestrada A…, trazendo consigo, cada um dos arguidos, uma arma de fogo tipo pistola com os respetivos carregadores devidamente municiados.

7. Efetivamente, nessas circunstâncias, o arguido AA trazia consigo uma arma de fogo tipo pistola semiautomática, de calibre 7,65mm Browning, de marca … – …, modelo 27, com n.º de série oculto, em regular estado de conservação, lubrificação e limpeza, em condições de realizar disparos, funcionando corretamente em automatismo; enquanto o arguido BB trazia consigo uma arma de fogo tipo pistola de calibre 6,35mm, a qual não chegou a ser recuperada. 

8. Durante esse percurso, os arguidos consolidaram o propósito de tirar a vida ao II e delinearam a forma em como, conjuntamente, o iriam realizar.

9. Em execução do referido plano, delineado entre ambos os arguidos, pelas 8 horas e 30 minutos desse dia 5 de julho de 2019, os referidos arguidos AA e BB estacionaram o veículo de matricula ...-DN-..., em que se tinham feito transportar, junto ao café “A...” sito na ……, perpendicular e a cerca de 100 metros ….…, em ..., e encontravam-se no respetivo interior, a fim de perceberem, ao certo, onde residia a família do II.

10. Nessa altura, cerca das 9 horas, os arguidos avistaram DD, filho de II – que bem conheciam – quando se deslocava de casa, sita na ……, ….…, ..., para o café “A...”, a fim de tomar o pequeno almoço, tendo os arguidos saído da viatura, empunhando, cada um deles, a respetiva arma de fogo, tendo perseguido DD o qual, tendo-se deparado com os arguidos, assustado e temendo pela sua própria vida e dos seus familiares, a correr, regressou à residência onde se encontrava a habitar com a sua família, onde entrou a gritar “eles estão aí” e “ó pai eles estão aí armados para nos matar”, referindo-se aos arguidos, que bem conhecia.

11. Apesar de II, alertado pelo seu filho DD, ter tentado fechar a porta de alumínio da referida residência, não o conseguiu fazer, uma vez que os arguidos AA e BB, que seguiram no encalço do DD, forçaram a entrada e acabaram por se introduzir na identificada residência.

12. Essa residência é composta apenas por rés-do-chão, com uma sala com acesso direto ao exterior, um corredor que dá acesso à casa de banho, cozinha e a outra sala, sendo que as duas referidas salas e a cozinha estavam a ser utilizadas como quartos de dormir, tendo a habitação duas portas de acesso, uma em ferro (do lado esquerdo) e a outra em alumínio (do lado direito). A porta de ferro dá acesso à primeira sala.

13. Nas referidas circunstâncias, primeiro entrou o arguido AA, pela porta de ferro (a do lado esquerdo), seguido do arguido BB, cada um empunhando a respetiva pistola devidamente municiadas e prontas a disparar (pistolas de calibre 7,65mm e 6,35mm, respetivamente).

14. O II, que, para proteger todos os seus familiares, os tinha mandado para uma divisão recuada daquela habitação, pegou numa cadeira de plástico vermelha e, no início do corredor que dá acesso da divisão de entrada ao interior da residência, tentou travar a progressão dos arguidos.

15. Nesse momento, o arguido AA, que se encontrava a cerca de 50cm do II, apenas separado do mesmo por intermédio da referida cadeira vermelha, em execução do plano que previamente havia delineado com o coarguido BB, desferiu um disparo dirigido a II, o qual não o atingiu por factor alheio à vontade do arguido.

16. Imediatamente a seguir, em concretização do referido plano conjunto, o arguido BB, que se encontrava no interior da mesma residência, desferiu um segundo disparo dirigido ao peito do II, que se encontrava caído no chão, tendo-o atingido com o projétil que disparou, como pretendia, na zona superior do tronco à esquerda.

17. De imediato os dois arguidos colocaram-se em fuga, tendo a vítima II saído para rua, onde caiu no chão, a cerca de 26 metros da habitação, tendo sido chamado ao local o INEM, via chamada telefónica efetuada para o n.º 112.

18. Efetivamente, naquela residência veio a ser encontrado um invólucro de munição de calibre 7,65mm, que foi deflagrado nas referidas circunstâncias, pela pistola semiautomática, de calibre 7,65mm, da marca … - …, do arguido AA.

19. Foi, também, ali recolhido um invólucro de munição de calibre 6,35mm, deflagrado na mesma ocasião pelo arguido BB, com a pistola de calibre 6,35mm que empunhava.

20. Apesar do socorro e assistência médica prestados ao II, este acabou por falecer, conforme verificação médica do óbito cerca das 10 horas desse mesmo dia, em consequência direta e necessária dos ferimentos que lhe foram causados pelo projétil disparado pelo arguido BB.

21. Da autópsia realizada ao cadáver de II resulta que a morte do mesmo: «foi devida a rotura/perfuração da artéria aorta ascendente com consequente hemorragia abundante. Esta é causa de morte violenta», sendo que no decurso da autópsia foi recolhido o projétil de arma de fogo de calibre 6,35mm disparado pelo arguido BB, que se encontrava alojado na parede torácica posterior da cavidade pleural, concluindo-se, em tal autópsia, que as referidas lesões foram devidas ao disparo de arma de fogo «em que o projétil descreveu um trajeto de cima para baixo da esquerda para a direita e de diante para trás».

22. Após a prática dos factos, os arguidos empreenderam uma fuga, primeiro para Espanha, depois regressaram a Portugal e, com a ajuda dos seus familiares, refugiaram-se em parte incerta da zona da área metropolitana do Porto, área metropolitana de Lisboa e Alentejo.

23. No dia de 29/07/2019, pelas 13 horas e 25 minutos, o arguido AA, também conhecido por MM, “NN”, OO e ultimamente por PP, foi localizado e detido em …., …..

24. No dia 04/08/2019, pelas 11 horas, o arguido BB foi localizado e detido na localidade de …, na posse da viatura …, modelo … de cor preta com a matrícula ...-DN-....

25. Ambos os arguidos, em execução do plano pelos mesmos delineado, fizeram introduzir-se na identificada residência da vítima, consciente e deliberadamente, por meio de violência e com a utilização de armas de fogo, contra a vontade e sem autorização do falecido e demais membros da família que ali residia.

26. Agiram ambos os arguidos consciente e livremente, em concretização de plano conjunto, com o firme propósito e intenções concretizadas de causar a morte de II, como efetivamente causaram, o que fizeram por vingança por o falecido ter terminado com um suposto “casamento” entre a sua filha menor e o filho do arguido AA.

27. Bem sabiam, os arguidos, que disparar as suprarreferidas armas de fogo, à distância a que o fizeram, sobre o corpo de determinada pessoa, no caso do II, era um meio apto a provocar a morte.

28. Mais agiram, os arguidos consciente e livremente, com intenções e vontades concretizadas de deter e utilizar as referidas armas de fogo e respetivas munições, sem qualquer licenciamento para o efeito, conhecendo perfeitamente as respetivas características e a proibição de as deter e utilizar sem as necessárias licenças.

29. Bem sabiam, os arguidos, serem as condutas que deliberadamente assumiram proibidas e puníveis por lei penal.

Das condições pessoais e de vida do arguido BB:

30. O arguido BB procede de um agregado de ... residente em …, onde cresceu, entregue aos cuidados dos pais. Tem mais três irmãos, a mais velha já autonomizada.

31. Os pais sempre trabalharam como feirantes de vestuário e calçado sendo através dessa atividade que asseguram a subsistência do agregado, por vezes reforçada com a prestação do Rendimento Social de Inserção.

32. Frequentou a escola até ao 7º ano de escolaridade que concluiu aos 16 anos de idade. A partir de então passou a acompanhar os pais de forma regular nos mercados.

33. Em 2017 iniciou relação marital com QQ, uma jovem da mesma etnia, natural da zona do …, com quem foi viver para … – …, no entanto o casal continuou a manter convívio diário com a família do arguido.

34. Os primeiros confrontos com o sistema de justiça por crimes de condução sem habilitação legal, tendo cumprido prestações de interesse público no âmbito de suspensões provisórias do processo em 2014 e 2016, que decorreram adequadamente na junta de freguesia local.

35. À data dos factos, o arguido residia com a companheira, QQ (atualmente com 20 anos de idade) e com a filha mais velha do casal (atualmente com dois anos). Nessa altura a companheira encontrava-se grávida de termo da filha mais nova.

36. O agregado era beneficiário do RSI no valor de 317€ acrescido de 140€ de abono pré-natal, num total de 457€ (dados Junho 2018).

37. À data dos factos, o arguido BB passava o seu tempo livre em casa sem ocupação estruturada ou em locais próximos, na companhia de elementos da família alargada e de outros pares com quem por vezes saía, frequentando espaços…….

38. No Estabelecimento Prisional ……, o arguido tem adotado um comportamento instável registando processos disciplinares, dois deles por infrações graves: o primeiro por factos ocorridos em 18-11-2019 (ofensa e ameaça a enfermeira) no qual lhe foi aplicada a medida disciplinar de permanência obrigatória no alojamento (POA) pelo período de 20 dias; o segundo por factos ocorridos em 03-01-2020  (agressão a recluso) punido com 30 dias de POA, medida que impugnou e que aguarda decisão do TEP.

39. Foi inscrito para frequência escolar, mas desistiu, pelo que se mantém inativo. Recebe visitas frequentes dos pais, companheira e filhas, atualmente suspensas devido à pandemia COVID 19.

40. Aguarda julgamento no proc. 876/19… do Juízo Central Criminal ..., acusado de furto qualificado, roubo, violência após subtração, dano com violência, detenção de arma proibida e burla qualificada.

41. Nos OPC da área de residência o arguido é conhecido, estando referenciado no posto da GNR de … no processo 228/19… por tráfico de menor gravidade; na GNR de ... (zona de residência dos pais) estava indiciado por crimes contra a propriedade no ano 2019 e anteriores.

42. Junto da Equipa da DGRSP ….., onde decorria o acompanhamento do regime de prova no processo 555/16…, com PRS homologado em janeiro 2019, o arguido compareceu quando convocado, embora revelando uma postura de alguma desvalorização face à sua conduta delituosa.

43. A reclusão está a ser vivenciada com alguma penosidade pela companheira e pelos pais do arguido, que consideram injusta a sua atual situação. Os pais reafirmam o seu apoio incondicional ao descendente e respetivo agregado.

44. O processo de socialização de BB decorreu no seio do seu agregado de origem. Mesmo após ter constituído agregado próprio, há cerca de três anos, manteve um quotidiano de proximidade com os progenitores, desenvolvendo com o apoio destes, atividade profissional de feirante. Além dos proventos daqui resultantes, a sua subsistência era assegurada pela prestação social do RSI.

Das condições pessoais e de vida do arguido AA:

45. O processo de desenvolvimento psicossocial e afetivo do arguido AA foi marcado pelo homicídio da figura materna pelo progenitor, acontecimento que motivou a sua integração no agregado familiar da avó materna com cerca de 1 ano de idade, vindo mais a tarde a ser perfilhado por um tio e respetivo cônjuge.

46. O relacionamento intrafamiliar é avaliado como positivo, embora fosse condicionado pela precariedade económica. O progenitor, a quem o arguido nunca desejou conhecer nem se aproximar, veio a cometer suicídio alguns anos mais tarde.

47. O arguido AA concluiu apenas o 3º ano do 1º ciclo do ensino básico, tendo-se iniciado laboralmente por volta dos 12 anos de idade como vendedor ambulante, atividade que sempre desenvolveu, excetuando um período em que, devido à ocorrência de problemas com familiares, se viu impedido da prática laboral, vivenciando problemas financeiros e que refere como decisivos para o início da prática criminal em 2002.

48. No domínio afetivo, o arguido estabeleceu união de facto no ano de 2000, contava então 16 anos de idade, tendo o casal inicialmente permanecido a residir com a avó materna do arguido e, posteriormente, de forma autónoma em apartamento arrendado. Desta relação resultaram três filhos.

49. AA deu entrada em meio prisional em 24/05/2003, para cumprir a pena única de 9 anos de prisão pela autoria dos crimes de tráfico de estupefacientes, detenção ilegal de arma, condução sem habilitação legal e recetação. No decurso da execução da pena e no âmbito de uma licença de saída jurisdicional, constituiu-se em ausência ilegítima de 16/08/2005 a 17/10/2011.

50. Durante este período, o arguido foi residir para a ... com a companheira e os três filhos, dois dos quais nasceram nesse período, e desenvolveu a atividade de feirante e vendedor ambulante, circunscrevendo o seu quotidiano ao convívio familiar.

51. Recapturado em 18/10/2011 deu entrada no Estabelecimento Prisional …, sendo posteriormente transferido para o Estabelecimento Prisional … de onde saiu após concessão da liberdade condicional aos cinco sextos da pena em 28/06/2017, com termo previsto para 28/01/2019.

52. Em meio livre fixou a sua residência em …, junto do seu agregado familiar constituído, tendo posteriormente solicitado a alteração da residência para … – …, … e por último ..., sempre na companhia do respetivo agregado familiar, entretanto ampliado por mais um descendente e pela companheira do filho mais velho, filha da vítima, de março a junho de 2019.

53. À data a que reportam os factos constantes da acusação, AA estava a residir em ... -... com a sua companheira, 31 anos, beneficiária do rendimento social de inserção e quatro filhos, com idades compreendidas entre os 17 anos e os 4 meses de idade.

54. A família residia uma casa arrendada, de tipologia 2 e exígua para o número de habitantes. Vivenciavam condição económica essencialmente suportada em prestações sociais, nomeadamente o rendimento social de inserção (600€) e o abono de família para crianças e jovens (300€). As principais despesas fixas prendiam-se com a gestão da habitação, sendo a mais relevante a renda da habitação no valor de 150€ mensais.

55. À data dos factos, o arguido AA não desenvolvia nenhuma atividade laboral formal, efetuando algumas tarefas de apoio ao sogro na venda ambulante e em feiras.

56. O arguido mantinha um quotidiano centrado naquela atividade, sendo o restante tempo passado em família.

57. O coarguido é seu primo e filho do tio que o perfilhou na infância, mantendo com aquele relacionamento próximo.

58. Após a reclusão de AA, a companheira e descendentes alteraram residência para junto do pai daquela, a residir na ..., onde ainda se mantém.

59. O arguido AA apresenta um projeto de vida centrado na reintegração familiar, não mostrando interesse em regressar a ..., onde ainda residem familiares da vítima.

60. Naquele meio sócio residencial, os factos que deram origem aos autos são do conhecimento geral, embora sem um impacto substantivo a que poderá não ser alheio o facto de o crime ter ocorrido em local distante. Até à data dos factos, sobre o arguido não recaíam, naquela área geográfica, sentimentos de rejeição.

61. O arguido AA deu entrada no Estabelecimento Prisional  … em 06/08/2019 no âmbito da medida de coação de prisão preventiva aplicada nos presentes autos. Tem ainda pendente os processos nº 1414/18…do Juízo Central Criminal  … – Juiz … e nº 876/19… do Juízo Central Criminal ..... – Juiz …, nos quais está acusado dos crimes de roubo, furto qualificado, violência após subtração, dano com violência, detenção de arma proibida e burla qualificada.

62. Em meio prisional, o arguido tem adotado comportamento adequado e esteve inserido no setor escolar e a frequentar o 3º ciclo do ensino básico, vindo a ser excluído por falta de assiduidade.

63. A manutenção dos laços familiares tem sido assegurada através de contactos telefónicos com a companheira, em face da atual suspensão de visitas provocada pela situação epidemiológica COVID-19.

64. O arguido dispõe do apoio do seu agregado familiar constituído, que se mostra apoiante quer em meio livre quer em meio prisional.

Do certificado de registo criminal resulta que o arguido AA já foi julgado e condenado:

65. No processo sumário nº 50/01… do Tribunal Judicial …..., por sentença transitada em julgado a 12.03.2001, pela prática de um crime de condução sem carta, na pena de 100 dias de multa.

66. No processo comum coletivo nº 97/02… do Tribunal Judicial ....., por acórdão transitado em julgado a 11.06.2004, pela prática de um crime de trafico de estupefacientes, um crime detenção ilegal de arma e um crime de condução sem habilitação legal, na pena única de 6 anos de prisão.

67. No processo comum singular nº 5/02… do Tribunal Judicial  ….., por sentença transitada em julgado a 21.03.2012, pela prática de um crime de evasão, na pena de 4 meses de prisão efetiva.

68. No processo comum coletivo nº 823/08… do Tribunal Judicial ……, por acórdão transitado em julgado a 29.11.2012, pela prática de um crime de ameaça agravada e um crime de detenção de arma proibida, na pena única de 2 anos e 9 meses de prisão efetiva.

69. No processo nº 931/13…. do Juízo Central Criminal …... – Juiz …, Tribunal Judicial de ..., por acórdão transitado em julgado a 11.11.2015, pela prática de um crime de falsificação de boletins, atas ou documentos, na pena de 2 anos e 2 meses de prisão efetiva.

70. No processo nº 931/13… do Juízo Central Criminal …... – Juiz …, Tribunal Judicial de ..., foi efetuado o cúmulo jurídico das penas aplicadas no referido processo nº 931/13…. e no processo nº 5/09… do Juízo Central Criminal – Juiz …, do Tribunal Judicial de ..., tendo o arguido sido condenado na pena única de 3 anos e 6 meses de prisão efetiva.

Do certificado de registo criminal resulta que o arguido BB já foi julgado e condenado:

71. No processo comum coletivo nº 555/16… do Juízo Central Criminal – Juiz ……, do Tribunal Judicial da Comarca ..…, por acórdão transitado em julgado a 05.07.2018, pela prática de quatro crimes de homicídio na forma tentada, um crime de ameaça agravada e um crime de detenção de arma proibida, na pena única de 5 anos de prisão, suspensa na sua execução pelo mesmo período, com regime de prova.

Constantes do pedido de indemnização cível, para além dos factos comuns e provados constantes do despacho de acusação, resultou provado que:

72. II partilhava casa, leito e mesa com a demandante CC há mais 20 anos, vivendo como marido e mulher, casados segundo a tradição ....

73. Desta relação amorosa nasceram 5 filhos, de nome, DD, EE, FF, GG, HH.

74. Ao momento da morte, II vivia com a sua companheira e os quatro filhos, DD com 21 anos de idade, FF com 13 anos de idade, GG com 9 anos de idade e HH com 3 anos de idade.

75. II faleceu com 39 anos de idade.

76. Era feliz e mantinha laços familiares fortes com a companheira e filhos, não lhe sendo conhecidos problemas de saúde.

77. Em consequência das desavenças familiares, os demandantes viram-se obrigados a mudar de residência, tendo sido escoltado por autoridades policiais, entre a ... e ..., localidades que distam cerca de 170 km entre si.

78. Vivendo, longe de casa, com receio da concretização das ameaças de morte de que foram alvo.

79. No dia 5 de julho de 2019, pelas 9 horas, II, ao ver o seu filho correr para casa e gritar “ó pai eles estão aí armados para nos matar” e avistar os arguidos tentar entrar em casa sentiu pânico e enorme angústia pelo que lhe podia acontecer e aos seus filhos e companheira.

80. Após o disparo mencionado no artigo 16) da factualidade provada, II manteve-se vivo durante, cerca de uma hora, em que clamou, já com pouco fôlego, por auxílio, demonstrando sofrimento físico e incapacidade de se locomover, tendo tido consciência de ter sido atingido a tiro.

81. Após o disparo mencionado no artigo 16) da factualidade provada, II sentiu dores, angústia e pânico pela sua própria vida.

82. Com exceção da demandante EE, todos os demandantes residiam com o falecido II, com quem mantinham uma forte ligação afetiva.

83. Os demandantes sentem uma enorme tristeza e angústia pela morte do seu pai, tendo vivido momentos de pânico provocado pelo comportamento dos arguidos supra descrito.

84. A demandante EE vivia maritalmente com o companheiro, mantendo uma relação próxima de seu pai, mãe e irmãos.

85. À data dos factos, EE tinha 18 anos.

86. Quando tomou sucedido, no dia 5 de julho 2019, a demandante sentiu uma enorme tristeza e angústia pela morte do seu pai.

FACTOS NÃO PROVADOS:

Não de provaram quaisquer outros factos suscetíveis de influir na decisão da causa, nomeadamente não se provou que:

a. O disparo deferido pelo arguido AA, nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em 15) da factualidade provada, foi dirigido ao peito de II.

b. Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em 16) da factualidade provada, o arguido BB encontrava-se a cerca de um metro da porta da entrada e a cerca de 3 metros do II.

c. Em consequência do falecimento de seu pai, a demandante EE sofre de perturbações de sono e alimentares.

d. O arguido AA não tinha intenção de matar II.

e. Ao deslocar-se a ..., nas circunstâncias de tempo e lugar descritas na factualidade supra provada, AA pretendia apenas e só trazer a menor FF para junto do seu filho.

f. Ao efetuar o disparo mencionado no artigo 15) da factualidade provada, o arguido AA procurou serenar os ânimos de todos, tendo efetuado tal disparo para a altura do joelho de II.

(…).

14. A decisão em matéria de facto encontra-se fundamentada nos seguintes termos:

(…)

Na formação da sua convicção, o tribunal apreciou de forma livre, crítica e conjugada a prova produzida em audiência, bem como a prova documental constante dos autos, de harmonia com o princípio da livre apreciação da prova consagrado no artigo 127º do Código de Processo Penal, o qual impõe uma apreciação de acordo com critérios lógicos e objetivos que determinem uma convicção racional, objetivável e motivável.

Assim, e em primeiro lugar, o Tribunal ancorou-se na prova documental junta nos autos e o que da sua literalidade consta, em especial (…)

Em segundo lugar (…)

Em terceiro lugar, baseou-se aquela convicção, basicamente, numa apreciação livre da prova testemunhal (artigos 127º do C.P.P.), tal qual a mesma se produziu em sede de audiência de discussão e julgamento.

Assim, e quanto às declarações dos arguidos começou o arguido AA por referir ter recebido ameaças de morte provenientes da família do coarguido BB, para o pressionar a assumir a culpa (exclusiva) pelo falecimento de II.

Começando por confirmar a deslocação dos (dois) arguidos a ..., no dia e hora dos factos descritos na decisão de pronuncia, justificou tal viajem com a pretensão de reatar o “casamento” de seu filho AA com a menor FF.

Aí chegados por volta das 8:00 horas, foram ao café onde se encontravam a aguardar a chegada do falecido II, pessoa com quem o arguido pretendia conversar sem a presença da companheira, por ele ser mais compreensivo que ela, segundo referiu.

Passados cerca de 20 minutos, encontrando-se no exterior do referido café aparece o filho do falecido, DD, que se assusta ao ver os arguidos e começa a correr em direção à habitação onde se encontravam a residir.

O arguido seguiu no encalce daquele e ao chegar junto da residência de II, bateu à porta, que foi aberta pela companheira do falecido. Nessa sequência, acedeu ao interior daquela residência e depara-se com o falecido, muito alterado, com uma caçadeira na mão “a tentar colocar um cartucho”, conforme observou;

O arguido disse para ter calma, sendo que, ao invés, II pegou numa cadeira e, por duas vezes, tentou-o agredir o arguido com tal objeto. 

Na sequência de tal tentativa de agressão, o arguido disparou um tiro com a arma que trazia consigo, em direção ao joelho de II, momento em que este deixou cair, ao chão, a cadeira, bem como a caçadeira que segurava com as mãos, sendo que tal disparo não atingiu II.

Acrescentou que, após tal disparo, ambos recuaram e o arguido BB aproximou-se, afastou o arguido AA para o lado esquerdo e, com uma arma de calibre 6,35 mm, que trazia consigo, efetuou um disparo em direção a II, atingindo-o.

Após o BB “pegou em si e levou-o para a rua”, altura em que, com receio de represálias, abandonaram o local, sem que se tivessem apercebido que o disparo efetuado pelo arguido BB tinha dito “tão grave”, conforme observou.

Precisando que a arma com a qual efetuou o disparo era uma pistola Browning de calibre 7,65mm e a arma utilizada pelo arguido BB era uma arma de cor branca de calibre 6,35mm, reconheceu que os dois se faziam acompanhar de armas no dia que se deslocaram à localidade de .... E tal sucedeu, conforme referiu, porque há uns anos atrás, um tio seu matou uma pessoa e tem receio de represálias.

Acrescentou o cunhado do falecido, de nome RR, havia telefonado para si, informando-se de que II já estaria arrependido de ter ido buscar a FF.

Instado, referiu que, no momento em que efetuou o (primeiro) disparo, II estava a segurar, com a mão esquerda, a cadeira (vermelha), evidenciada nas fotografias acima aludidas, e, com a mão direita, segurava uma caçadeira, tendo referido que II também disparou com a mencionada caçadeira.

Ora, tais declarações, pelo menos na sua globalidade não se mostram inteiramente lógicas, coerentes, não tendo, por isso merecido a credibilidade do Tribunal.

Desde logo, porque contraditórias com a demais provas produzidas, maxime com as declarações das testemunhas inquiridas, bem como a prova documental junta nos autos, acima aludida.

Por outro lado, importa notar que tais declarações são, neste último conspecto, contraditórias entre si. Na verdade, o arguido começou por referir que, aquando da entrada dos arguidos na residência, II estaria a tentar colocar um cartucho na caçadeira, sendo que quando os avistou, a vítima também pegou numa cadeira.

Ora, se assim é, a conclusão que, desde logo, podemos retirar é que, dispondo apenas de duas mãos, a vítima não consegue executar em simultâneo todas as tarefas descritas pelo arguido.

Acresce notar que mesmo que, por hipótese, se admita que a vítima estivesse munida de uma caçadeira (de cor preta), o que não resultou minimamente demonstrado, o certo é que II não teve tempo de minuciar a suposta caçadeira, uma vez que, aquando da entrada dos arguidos na sua residência, a vítima também passou a segurar com a mão esquerda a cadeira (vermelha) acima aludida.

Por outro lado, importa referir também que nenhuma das testemunhas inquiridas confirmou a existência da suposta caçadeira, a qual, diga-se também, não foi apreendida à ordem dos autos. E, de igual modo, no local, também não foram encontrados vestígios de disparos da suposta caçadeira, tendo, ao invés, sido encontrados vestígios dos disparos de duas pistolas, uma de calibre 6,35mm (detida pelo arguido BB) e outra de calibre 7,65mm (pertencente ao arguido AA)

Ademais, o arguido esclareceu o modo como ocorreu a retirada da FF de sua casa, o estado anímico em que o seu filho DD ficou; muito triste e cabisbaixo, bem como as circunstâncias que antecederam a viagem dos arguidos à localidade de …; a preparação de tal viagem; o percurso realizado e o horário de saída da localidade de residência dos arguidos. 

Assim, reconhecendo ter conhecimento que II e restante família se encontravam a residir em ..., referiu que, no jantar ocorrido no dia 04 de julho de 2019, em casa do arguido BB, os dois combinaram deslocar-se sozinhos àquela localidade.

Mais referiu ter pedido ao arguido BB o favor de o transportar à localidade a que aludimos, por não ser titular de carta de condução.

Instado precisou que i) não se apercebeu, desde logo, não ter atingido a vítima com o disparo que efetuou em direção aos joelhos de II; ii) o carregador da arma que trazia estava minuciado com cerca de 9 a 10 munições; iii) no interior da residência de II colocou uma munição na câmara; e iv) a arma não tinha o fecho de segurança ativado, estando destrancada.

Precisou ainda terem saído de casa por volta das 00:00 horas, do dia 05 de julho, sendo que, no trajeto combinaram pernoitar em casa de uns familiares, em ..., tendo aí permanecido durante algum tempo, após o que, e ainda de madrugada, viajaram em direção a ....

Mas logo, neste ponto, a versão trazida aos autos pelos arguidos quanto ao acordo para iniciarem a viagem para ... traz-nos sérias dúvidas e até alguma perplexidade. Com efeito, como perceber terem os arguidos saído cerca das 00:00 horas da residência do BB e no trajeto terem decidido pernoitar em casa de familiares, em ...?; Porque os arguidos não ficaram nas suas residências com a respetiva família e saíam sobre a manhã?; Porque não saíram de casa cerca de duas horas antes da hora que pretendiam estar em ...?, sendo que o trajeto entre as duas localidades percorre-se num tempo médio expectável de duas horas; porque razão os arguidos fizeram a viagem de madrugada e saíram com bastante antecedência relativamente à hora que pretendiam estar em ... (por volta das 8:00 horas)?

Ora, tal alegação não faz qualquer sentido: ninguém sai de casa, à noite, com uma antecedência de cerca de oito horas antes da hora almejada para a chegada ao destino, quando necessitaria apenas de duas horas de tempo médio de viagem, se não tiver um propósito.

E, no caso, cremos que os arguidos tinham um móbil para saírem mais cedo. Repare-se, no trajeto, os arguidos “decidiram” desviar caminho e “pernoitar” em lugar mais distante, conforme referiu BB.

Ora, cremos que tal sucedeu para o(s) arguido(s) aí ir(em) buscar alguma coisa de que necessitava (e neste caso seria(m) a(s) arma(s)), sendo de realçar que, de acordo com o exarado nas interceções telefónicas transcritas no Apenso “Transcrições”, o arguido AA tinha muita confiança no seu avô, residente em ..., pessoa a quem aliás confiou a arma apreendida à ordem dos autos até a mesma ser (voluntariamente) entregue às autoridades policiais.

Passando para as declarações do arguido BB, este começou por referir que, por não ser titular de carta de condução, o arguido AA pediu-lhe para o transportar a ..., com a justificação de que precisava de conversar com II para ir buscar a menor FF, dado que o filho não estava bem.

Anuindo ao pedido, entre as 11:00 horas - 00:00 horas, saíram da sua residência, deslocando-se em direção à residência da sua avó, onde chegaram por voltas das 2:00 horas a 3:00 horas, dormitaram aí e por volta das 7:00 horas tendo chegado a ... por volta das 8:00 a 8:30 horas.

Aí chegados, foram tomar o pequeno-almoço a um café próximo da residência do falecido. Quando se encontravam no exterior do dito café, apareceu DD, filho do falecido, que ao ver os arguidos começou a fugir em direção à residência onde se encontrava a família. O arguido AA seguiu no encalço do DD, razão pela qual o arguido foi atrás deles “em passo de corrida”, como referiu, seguindo um pouco mais atrás, precisando, mais adiante, que o tal DD gritava “oh pai, oh pai”. Acrescentou que, quando chegou à residência do falecido, viu a prima SS, companheira do falecido aos gritos, dizendo “chamem a policia”, tendo-se agarrado a si e o arguido disse-lhe “tem calma, tem calma não vão fazer mal ao teu marido”.

Sucede que, de repente, ouviu o barulho de dois ou três disparos, após o que o arguido AA saiu para o exterior da residência com uma arma (de cor cinzenta) na mão e que colocou no casaco. De seguida, abandonaram o local, seguindo para junto do sogro do arguido AA e após fugiram para Espanha, com receio de represálias da família do falecido.

Instado para esclarecer onde se encontrava no momento em que ouviu os disparos, referiu estar juntamente com a prima SS, no exterior da residência, precisando que, no interior, “estava tudo aos gritos”, conforme referiu.

Ademais, nega deter alguma arma consigo, no dia dos factos, sendo que fugiu para Espanha, com receio de “ir preso”, conforme observou.

Confrontado com a fotografia da arma constante de fls. 1140, referiu não saber se tal arma corresponde à arma que o arguido AA detinha na sua posse, no dia do falecimento de II, embora lhe pareça não ser.

Respondendo às instâncias da defesa, acrescentou que, na comunidade ..., a circunstância de o falecido ter retirado a filha da residência do arguido AA era uma fonte de discórdia e desentendimentos entre as duas famílias.

Acrescentou que o veículo em que seguiam é usado por si, mas é propriedade de seu pai.

Ora, tais declarações não se mostram minimamente credíveis, quer no que respeita à alegada inexistência de detenção da arma, quer no que concerne à alegada permanência do arguido BB no exterior da habitação, bem como ao disparo que efetuou sobre II. Com efeito, se atendermos ao conjunto da prova produzida, máxime à prova documental e pericial acima aludida, bem como à prova testemunhal que infra daremos conta constatamos que a versão do arguido BB é inverosímil e insustentada.

No que toca às declarações de coarguido, importa reter que as mesmas são valoráveis nos termos do estatuído no artigo 127.º do Código de Processo Penal.

(…)

A testemunha TT, que aos costumes disse ser inspetora da Polícia Judiciária, que tinha a investigação a seu cargo, explicou as diligências a que procedeu e a forma como recolheu os elementos de prova, precisando que primeiramente se deslocou ao Centro de Saúde e, mais tarde, à habitação onde ocorreram os factos.

Instada, referiu que à volta da mencionada habitação encontrava-se uma faixa, que havia sido colocada pela GNR, para impedir a entrada de pessoas e permitir a preservação dos vestígios.

Ademais referiu que efetuada a análise à habitação a que vimos de aludir, foram encontrados dois invólucros, o que permitiu concluir que tinha havido dois disparos.

Instada, descreveu a composição da habitação em causa, que era muito pequena, composta apenas por uma sala, uma cozinha, uma divisão pequena e uma casa de banho.

Precisou que, não foi possível encontrar o projétil correspondente à munição 7,65, uma vez que havia muita gente na habitação e tal projétil poderia ter desaparecido por essa razão.

Para além do mais, a casa a que aludimos estava muito degradada, apresentando parte do chão partido e algumas paredes danificadas, o que poderá explicar não ter sido possível detetar o ponto de empato da munição 7,65 deflagrada no interior da habitação.

Descreveu a localização dos vestígios encontrados no local, precisando que o invólucro correspondente à munição da pistola 7,65 encontrava-se no corredor da dita habitação; o invólucro da 6,35 encontrava-se espalhado no chão da sala próximo da porta de ferro que dá acesso à mesma e a cadeira vermelha no corredor, que dá acesso à dita sala.

Mais referiu que, dadas as reduzidas dimensões da habitação a que vimos de aludir, a passagem de (muitas) pessoas, como sucedeu no caso, pode justificar a alteração da localização inicial dos vestígios.

Acrescentou que o estado das (seis) munições 6,35 mm, que se encontravam no esquentador da habitação, que apresentavam teias de aranha e muito pó, evidencia que aí haviam sido colocadas há muito tempo, seguramente há muito mais tempo do que aquele que a família do falecido se encontrava aí a residir.

Por fim, corroborou o teor dos relatórios juntos nos autos e acima aludido, precisando que, no corredor da dita habitação, havia uma torneira de água e o respetivo contador que pingavam, parecendo-lhe existir uma fuga de água no contador. Todavia, assegurou que a água encontrada no chão, estava circunscrita a uma zona específica: o corredor, dado que escorria pela parede onde se encontrava o contador de água.

A testemunha UU, casado, empresário de hotelaria, que aos costumes disse nada, referiu ser proprietário do estabelecimento café, sito em ..., referiu não se recordar de aí ter avistado os arguidos, recordando apenas ter-se apercebido das ambulâncias que prestaram auxílio ao falecido.

As declarações de DD, solteiro, desempregado, que aos costumes referiu ser filho do falecido, tiveram o mérito de esclarecer o Tribunal acerca da dinâmica do sucedido, em virtude do conhecimento privilegiado que o assistente tem dos factos, dado que os presenciou desde início. Assim, começou por esclarecer que, no dia 2019/07/05, pela manhã, levantou-se e disse ao pai que ia ao café, que se encontra próximo da habitação.

No trajeto, próximo do dito café, avistou uma carrinha de cor preta que reconheceu como sendo do arguido BB. No interior da mesma, encontravam-se os dois arguidos, estando o BB no lado do condutor e o AA no lado do pendura, sendo que ambos empunhavam cada um uma pistola.

No momento em que os arguidos o viram, o BB efetuou dois tiros para o ar.

De imediato, o depoente fugiu, a correr, para a sua habitação e aqueles foram apeados no seu encalço.

Ao chegar a casa, avisou o pai, o qual ainda tentou fechar a porta de alumínio existente na habitação, e que dá acesso ao corredor e cozinha, mas eles conseguiram entrar pela porta de ferro, que dá acesso à sala, que estava a servir de quarto.

Esclareceu que entraram os dois na habitação, com a arma na mão. O AA, que se encontrava à frente do BB, dirigiu-se para junto de seu pai, estavam “juntinhos, quase pegados”, conforme observou, apontou a arma em direção a seu pai, altura em que II o empurrou para desviar a arma.

Acrescentou que, na mencionada ocasião, II não tinha consigo nenhuma caçadeira, apenas segurava, e com as duas mãos, uma cadeira de plástico (vermelha) para se tentar defender dos arguidos.

Ademais esclareceu que, na altura dos disparos II, encontrava-se no corredor da habitação junto da porta de acesso à sala, precisando que o AA efetuou o primeiro disparo e o BB o segundo, precisando que “os disparos foram quase seguidos”.

Mais referiu que os arguidos não tentaram de algum modo dialogar com seu pai, asseverando não ter ouvido “uma palavra da boca deles”, conforme observou. Ao invés, seu pai implorou aos arguidos “não me matem” e dizia “olhem as crianças, vão se embora, vão-se embora”.

Mais esclareceu que, num primeiro momento, pensou que o disparo que atingiu seu pai havia sido efetuado pelo arguido AA, uma vez que este arguido estava mais próximo de seu pai e à frente do arguido BB, encontrando-se este quase encostado à parede da porta da entrada que dá acesso à sala a que aludimos.

Após os disparos, os arguidos abandonaram o local; seu pai ainda foi em direção a si pensando que o depoente é que havia sido atingido por um disparo, sendo que depois, II saiu para o exterior da residência, começou a ficar muito afrontado, caiu ao chão prostrado e não se levantou mais.

Mais descreveu as pessoas que, no dia dos factos, estavam na habitação: a sua companheira LL, a sua mãe CC, e a sua irmã GG precisando que após a chegada dos arguidos, sua mãe havia saído para o exterior da residência a pedir socorro.

De igual modo, explicou as circunstâncias antecedentes que obrigaram a família a mudar de residência para a localidade de ...; descreveu as ameaças sofridas por seu pai, após a menor FF ter sido retirada de casa do arguido AA e reportou os episódios que obrigaram seu pai a sentir necessidade de pedir escolta policial para a família poder abandonar, em segurança, a localidade onde residiam aquando da retirada da FF ao seu “marido”.

Ademais, reportou o sofrimento sentido por II no momento antecedente ao seu falecimento, asseverando que ele teve a perceção que ia morrer, deitado no chão e com falta de ar ainda disse “já me mataram, já me mataram” e abraçou as suas filhas, como se estivesse a despedir delas.

Acrescentou que II era muito ligado à família e aos filhos.

Por fim, reportou ao Tribunal o estado anímico da família após o falecimento de II, a dor de sofrimento pela perda do pai e companheiro; o choro das filhas, sobretudo da sua irmã GG que “está sempre a chorar”, pelo pai, conforme observou.

Após requerimento da defesa do arguido BB, no sentido do assistente ser confrontado com o depoimento por si prestado no dia 10/07/2019, perante Magistrado do Ministério Público conforme auto junto a fls. 161 a 165 e porquanto existiria discrepância entre as declarações prestadas nesta audiência de julgamento e as prestadas na fase de inquérito, tendo sido deferida a leitura (nos termos da al. b) do  n.º3 do art.º 356º do CPP e que constam da respetiva ata), o seu depoimento alterou-se ligeiramente afirmando desta feita que cada um dos arguidos efetuou um disparo.

Referiu, a este propósito, em inquérito, que o arguido AA efetuou “os dois disparos”.

A respeito das discrepâncias evidenciadas pelo assistente nas declarações prestadas em fase de inquérito e nesta audiência de julgamento, não podemos olvidar que, a tomada de declarações em inquérito, teve lugar cinco dias após os factos. Para além disso, o depoente, filho do falecido, naturalmente que, naquela data, estaria perturbado e fortemente abalado, seja com a ocorrência do falecimento de seu pai, seja com o “filme de terror” que vivenciou, momentos antes do falecimento daquele, circunstância que, aliás, foi corroborada pelas declarações da Inspetora da Polícia Judiciária, VV, a qual salientou o estado de perturbação dos filhos e companheira de II, no dia 05 de julho de 2019.

Tal estado de perturbação, associado à fugacidade com que os factos se desenrolaram; ao pânico sentido naqueles momentos; à localização dos arguidos no interior da residência, sendo que, como acima aludimos, o AA encontrava-se mais próximo do falecido aquando do primeiro disparo, e, apenas e só após o primeiro disparo, é que o arguido BB, se aproximou do falecido e efetuou o (segundo) disparo; bem a inexistência de qualquer elemento que permita concluir, ou sequer suspeitar, que o assistente está a faltar à verdade ou a produzir depoimento com intuito de prejudicar os visados permite-nos concluir em conformidade com as declarações agora prestadas, sendo certo que a justificação avançada na audiência de julgamento é perfeitamente plausível e conforme à demais prova produzida, tendo-se revelado fundada, lógica, coerente e, por isso, credível, logrando, pois, convencer o Tribunal Coletivo.

A este propósito importa ainda, notar, que o estado de pânico foi tal que nem vítima se apercebeu, de imediato, de que havia sido atingida por um disparo. 

Na verdade, II estava convencido de que seu filho DD é que havia sido atingido pelos disparos efetuados. Só se apercebeu que tal não sucedeu dessa forma quando o DD lhe dissera: “Não pai, tu é que foste atingido”, conforme observou.

O Tribunal ancorou-se também nas declarações da demandante cível, CC, que aos costumes referiu ser filha do falecido. Referindo não residir com os pais, não tendo assistido ao fatídico episódio que conduziu se pai à morte, esclareceu ter tomado conhecimento do sucedido pelo telefone. Com interesse, reportou ao Tribunal o estado anímico em que se sentiu após o falecimento de seu pai, a forma como se relacionava com os progenitores e a ligação que tinha com o pai. Atendeu, ainda, o tribunal às declarações de CC, demandante cível, que aos costumes referiu ter sido companheira do falecido.

Instada, começou por explicar as condições em que sua filha FF se juntou com o filho do arguido AA. Ademais, reportou ao Tribunal o episódio em que os arguidos e o filho de AA foram buscar a sua filha a casa e a conduziram a um “hotel” onde esta esteve com o filho do arguido AA, sem conhecimento ou consentimento dos progenitores. Salientou que a menor FF denotava gostar do filho do AA e, por isso, acabaram por concordar com o namoro e o “casamento” deles.

Descreveu as circunstâncias em que a menor FF regressou ao seio familiar dos progenitores, uma semana antes do sucedido; as ameaças que receberam para se ausentarem da localidade onde residiam e que justificaram a mudança de residência da família para ...; a necessidade que sentiram de pedir escolta policial para saírem em segurança.

Ademais, explicou que, na véspera do falecimento, II recebeu um telefonema a dizer que o matavam, ouviam-se vozes e pessoas a rir, precisando não ter dúvidas de que os arguidos, que bem conhece, conforme referiu, tiveram intervenção no mencionado telefonema.

Prosseguindo, a depoente reportou o sucedido na manhã do fatídico dia 05/07/2019, afirmando que ainda estavam deitados, mas, já tinham acordado quando o DD saiu de casa para ir tomar café.

No regresso, o DD entrou na habitação a afirmar “Oh, pai, está ali o AA e o BB”, segundo observou. II, que se encontrava na casa de banho dirigiu-se à porta (alumínio) que dá acesso ao corredor para a fechar, mas, não conseguiu, uma vez que em tal encontrava-se uma mangueira que impediu o fecho da mesma.

Acrescentou de forma pormenorizada a forma como os arguidos acederam à habitação, precisando que tal sucedeu pela porta de ferro, que dá acesso à sala por onde a declarante saiu de casa a pedir socorro.

Assim, esclareceu que os arguidos estavam no exterior a empurrar a porta de alumínio, enquanto a vítima estava do lado de dentro a fazer força para a porta não abrir, precisando que quando a declarante saiu para o exterior pela porta de ferro, os arguidos dirigiram-se a esta porta e, com recurso a um pontapé, o arguido AA conseguiu abrir a porta (ferro) e aceder ao interior da habitação. O AA foi o primeiro a entrar e, logo atrás, entrou o BB.

Instada, asseverou que os arguidos traziam duas armas, “cada um tinha uma arma na mão”, conforme referiu.

Ademais referiu que encontrando-se no exterior, ouviu dois disparos seguidos “foi um atrás do outro” …, foram “segundos, foi tudo muito rápido, parecia um filme de terror”, conforme observou.

Esclareceu que, no interior da habitação, no momento em que os arguidos efetuaram os disparos, encontrava-se o seu filho DD, a LL, companheira deste, e a sua filha GG de 9 anos de idade.

Confrontada com a conversa tida entre o arguido AA e o falecido à chegada deste, afirmou que o “AA não falou nada”, asseverando que a vítima não dispunha de arma de qualquer espécie, naquele momento.

Mais precisou que quando saiu de casa, a declarante joelhou-se perante o arguido BB pedindo-lhe para se irem embora. Nesse momento, o referido arguido empurrou-a para o lado, fazendo-a cair ao chão e caminhou para o interior da habitação.

Acrescentou o estado de consternação e dificuldade em que a família ficou após o falecimento de II; a dor de sofrimento pela perda do companheiro e pai de seus filhos, de quem era muito amigo. Descreveu o falecido como uma pessoa muito alegre e divertida. Para além disso, era o “pilar da casa”, conforme referiu.

Instada precisou que o falecido teve a perceção que ia morrer, tendo passado por um estado de angústia e sofrimento, nos momentos que antecederam a sua morte.

Esclareceu que encontrando-se caí BB do no chão, no exterior da habitação, a vitima conseguiu ainda responder à pergunta formulada pela cunhada XX, companheira do seu irmão HHH: “quem te fez isto?” … “foi o NN”, referindo-se ao arguido AA.

Ora, ainda que o Tribunal duvide da existência e teor da mencionada conversa havida entre a vítima e a referida XX, o certo é que da mesma não se pode extrair a conclusão, como pretende a defesa do arguido BB, de que o arguido AA foi o autor (exclusivo) dos dois disparos efetuados no interior da habitação.

Com efeito, como acima já fizemos notar, a localização dos arguidos no interior da referida habitação, a circunstancia de o arguido AA - (o qual apresenta um corpo mais volumoso que o corpo do arguido BB, que é mais esguio e magro) - se encontrar mais próximo do falecido aquando do primeiro disparo, estando o arguido BB posicionado atrás do AA e mais afastado da vitima, e só se aproximou de II para efetuar, com maior precisão e sem falhar o alvo, o  (segundo) disparo; o estado de pânico vivido pela vitima e seus familiares são circunstancias, que conjugadas entre si, suscetíveis de gerar confusão seja à vitima, seja às pessoas que viveram aquele “filme de terro” acerca do concreto modo de atuação de cada um dos arguidos, sendo, aliás, neste conspecto, de realçar que a vitima não se apercebeu, desde logo, sequer de ter sido alvejada. Com efeito, num primeiro momento, II julgava que o seu filho DD era a pessoa que havia sido atingida pelos disparos efetuados pelos arguidos.

Pelas razões expostas, e, por, tal como já referimos, o Tribunal Coletivo não colocar em causa o teor de tal conversa, não se determinou a inquirição requerida pelo arguido BB. Com efeito, as declarações que pudessem vir a ser prestadas pela mencionada XX, a propósito de tal conversa, nada de relevante acrescentariam à matéria em apreciação nos autos.

Após requerimento da defesa do arguido BB, no sentido da demandante ser confrontada com o depoimento por si prestado no dia 10/07/2019, perante Magistrado do Ministério Público conforme auto junto a fls. 155 a 160 (último parágrafo de fls. 158) porquanto existiria discrepância entre as declarações prestadas nesta audiência de julgamento e as prestadas na fase de inquérito, tendo sido deferida a leitura, atento o acordo de todos os sujeitos processuais.

Referiu, a propósito o modo de acesso à habitação, em inquérito, que “o seu marido tentou fechar a porta do corredor que também dá acesso ao exterior da casa, mas dada a força infligida pelo AA (pai) e pelo BB não conseguiu, tendo aqueles entrado, o AA (pai) na frente e o BB  logo atrás dele”.

A respeito do modo de entrada na habitação, não detetamos discrepâncias de maior suscetível de influir na credibilidade que nos mereceram as declarações de CC.

Com efeito, nesta audiência de julgamento, a demandante esclareceu que os arguidos estavam no exterior a empurrar a porta de alumínio, enquanto a vítima estava do lado de dentro a fazer força para a porta não abrir, tendo agora precisado que quando a declarante saiu para o exterior pela porta de ferro, os arguidos dirigiram-se a esta porta e, com recurso a um pontapé, o arguido AA conseguiu abrir tal porta - (a de ferro) - e aceder ao interior da habitação pela mencionada porta. O AA foi o primeiro a entrar e, logo atrás, entrou o BB.

A descrição detalhada do ora afirmado é de molde a não deixar quaisquer dúvidas quanto à sua declaração. Tal circunstância, associada às demais prova produzida e inexistência de qualquer elemento que permita concluir, ou sequer suspeitar, que a testemunha está a faltar à verdade ou a produzir depoimento com intuito de prejudicar os visados permite-nos concluir em conformidade com as declarações proferidas em audiência de julgamento.

Por fim, esclareceu que a sua família não tinha problemas ou desavenças com o arguido BB e/ou com a família deste que justifiquem seja as ameaças de que a família foi alvo, seja o homicídio de II. Na sua opinião, tal sucedeu os arguidos AA e BB eram muito amigos e este poderá ter assumido as dores do amigo.

Ancorou-se ainda o Tribunal nas declarações de FF, nascida a 14.11.2005, que aos costumes referiu ser filha do falecido.

Instada esclareceu as circunstâncias em que regressou a casa dos seus progenitores após ter estado a residir em casa do arguido AA, por manter um relacionamento amoroso com o filho do arguido a que aludimos.

Instada esclareceu também quem eram as pessoas que se encontravam no interior da habitação aquando do fatídico episódio que vitimou seu pai. Nesta sequência, afirmou que, na dita habitação, encontrava a LL, na cozinha; a sua irmã GG (9 anos de idade), que estava agarrada às penas de seu pai, e seu irmão DD que estava junto do pai, mais próximo da cozinha.

A depoente e sua mãe encontravam-se na rua, no momento em que ocorreram os disparos.

Após requerimento da defesa do arguido BB, no sentido da demandante ser confrontada com o depoimento por si prestado no dia 10/07/2019, perante Magistrado do Ministério Público conforme auto junto a fls. 150 a 153 (penúltimo parágrafo de fls. 152) porquanto existiria discrepância entre as declarações prestadas nesta audiência de julgamento e as prestadas na fase de inquérito, tendo sido deferida a leitura, atento o acordo de todos os sujeitos processuais.

Referiu, a propósito do número de disparos, em inquérito, que “apenas ouviu um disparo”

A respeito das discrepâncias evidenciadas pela demandante cível nas declarações prestadas em fase de inquérito e nesta audiência de julgamento, não podemos olvidar que, conforme resulta das declarações das demais testemunhas inquiridas, a FF, que, note-se, é menor de idade, encontrava-se num estado de perturbação tal que a única coisa que fazia era andar de um lado para o outro, como se estivesse perdida, sem saber o que fazer.

Tal estado de perturbação, associado à fugacidade com que os factos se desenrolaram; ao pânico sentido por toda a família da vítima, permite-nos concluir em conformidade com as declarações prestadas em audiência.

Relevou ainda para a formação da convicção do Tribunal as declarações de LL, que aos costumes referiu ser a companheira do assistente DD.

Inquirida começou por esclarecer em moldes coincidentes com a demais prova produzida as circunstâncias em que o seu companheiro entrou em casa após regressar do café, no dia 05 de julho de 2019, precisando que, quando acederam à habitação, os arguidos traziam cada um uma arma na mão.

Esclareceu o local por onde os arguidos acederam à habitação, bem como o local onde os arguidos e seu “sogro” se encontravam no momento dos disparos. Assim, referiu que o arguido AA pontapeou a porta de ferro, conseguido, desse modo, aceder ao interior da habitação e colocou-se entre a porta da sala e o corredor. A vítima estava no dito corredor juntamente com o filho DD e o arguido BB estava mais atrás do AA.

Já a sua “sogra” e a menor FF encontravam-se na rua, não obstante, a FF, que estava “desesperada”, conforme observou, estar sempre a entrar e sair da habitação.

Prosseguindo, referiu que, nas mencionadas circunstâncias, II segurava com as mãos uma cadeira, tentando, assim, defender-se dos arguidos, não tendo na sua posse qualquer arma ou caçadeira.

Acrescentou que ouviu dois disparos seguidos, não conseguindo, todavia, precisar qual deles acertou na vítima.

Ademais referiu que, no momento imediatamente antecedente aos ditos disparos, o arguido AA deu um pontapé a II, fazendo-o cair ao chão, sendo que, os disparos foram efetuados após tal queda.

E após terem efetuado os dois disparos a que aludimos, os arguidos fugiram do local, a correr.

Mais referiu que II pediu aos arguidos para não o matarem porque tinha os filhos para criar.

Prosseguindo nas suas declarações afirmou que após os disparos, seu “sogro” levantou-se do chão e perguntou ao filho: “és tu DD que tens o tiro:”, conforme observou, e depois saiu para o exterior e caiu ao chão.

Acrescentou que II entrou na ambulância ainda vivo, mas muito aflito e a espumar pela boca.

De igual modo, e em consonância com a demais provas produzidas, corroborou a conversa a que aludimos supra, havida entre a vítima e a tal XX, tendo aquele dito a esta: “foi o NN”, referindo-se ao arguido AA.

Após requerimento da defesa do arguido BB, no sentido da testemunha ser confrontada com o depoimento por si prestado no dia 10/07/2019, perante Magistrado do Ministério Público conforme auto junto a fls. 166 a 170 e porquanto existiria discrepância entre as declarações prestadas nesta audiência de julgamento e as prestadas na fase de inquérito, tendo sido deferida a leitura (nos termos da al. b) do n.º3 do art.º 356º do CPP e que constam da respetiva ata), o seu depoimento alterou-se em alguns aspetos.

Referiu, a propósito da autoria dos disparos, em inquérito, que entraram na “residência o tal AA, que conhece por “NN” e o tal “BB”, empunhando cada um deles uma arma de fogo.

O AA (“NN”) apontou a arma para todos os presentes, quer as mulheres, quer as crianças, ameaçando de morte todos os presentes.

Quando apontava a arma para o seu marido DD, o seu sogro pedindo-lhe para que não fizessem mal a ninguém, colocou-se à frente, tentando proteger os filhos e filhas.

Foi nesse momento que o AA disparou a arma que transportava, atingindo o seu sogro na zona do peito.

Refere que também o “BB” empunhava uma arma de fogo e que ameaçava de morte todos os presentes, mas não se recorda se efetuou algum disparo ou não.

Após o disparo do AA no seu sogro, abandonaram a residência e fugiram para o exterior, desconhecendo a direção que tomaram, qual a viatura em que se deslocavam ou se se existiam outras pessoas no exterior que os aguardavam

Questionada refere que não consegue descrever as armas de fogo que os suspeitos transportavam, parecendo-lhe apenas que eram “pequenas”.

Como estava aterrorizada e a tentar proteger as crianças, não se preocupou em verificar mais pormenores, quer das armas, quer de viaturas ou mesmo de outras eventuais pessoas que acompanhassem este AA e este “BB”. - Recorda-se apenas que o som do disparo da arma de fogo “não foi muito grande”.”

A respeito das discrepâncias evidenciadas pela testemunha LL nas declarações prestadas, em fase de inquérito e nesta audiência de julgamento, o Tribunal não pode, como acima já aludimos, olvidar que, a tomada de declarações em inquérito, teve lugar cinco dias após os factos e que as testemunhas inquiridas, sendo familiares do falecido, estavam perturbadas e fortemente abaladas quer ocorrência do falecimento de II, quer pela situação traumática decorrente do estado de pânico que vivenciaram após terem conhecimento de que os arguidos estavam em ...

Tal estado de perturbação, associado à assaz rapidez em que os disparos ocorreram, o pânico e desespero sentido por toda a família; a localização dos arguidos no interior da residência, nos termos que acima demos conta; bem a inexistência de qualquer elemento que permita concluir, ou sequer suspeitar, que a testemunha está a faltar à verdade ou a produzir depoimento com intuito de prejudicar os visados permite-nos concluir em conformidade com as declarações prestadas, em audiência, sendo certo, que também neste caso, a justificação avançada pela testemunha é perfeitamente plausível e conforme a demais prova produzida, tendo-se revelado fundada, lógica, coerente e, por isso, credível.

As declarações de ZZ, que aos costumes referiu ser vizinha da casa onde a vítima se encontrava à data dos factos, sita em ..., nada de relevante acrescentaram à matéria em discussão nos autos. 

Não tendo presenciado os factos, a depoente referiu que se apercebeu de barulhos estranhos, tendo ido espreitar à janela, que estava com a persiana fechada, e viu dois homens, que não sabe identificar, passar (para o lado esquerdo) em direção à residência da vítima. Mais referiu ter visto uma arma.

Por fim, ancorou-se o Tribunal nas declarações de AAA, FFF e BBB, que aos costumes referiram, o primeiro ser técnico especialista da Polícia Judiciária, a prestar serviço no DIC …, o segundo e terceiro peritos em balística da Polícia Judiciária.

Instados, e no essencial, limitaram-se a confirmar o relatório - de exame ao local e pericial - que subscreveram, acima aludidos, corroborando, na integra, o seu teor. O Tribunal teve ainda em consideração as declarações das testemunhas II e DDD, que aos costumes disseram ser irmãos do falecido. Instados, explicaram a composição do agregado familiar da vítima, bem como contexto em que começaram a surgir as desavenças entre as duas famílias: a de seu irmão e a do arguido AA.

Ademais explicaram o estado de abalo e tristeza em que ficaram os familiares de II, após o falecimento de seu irmão e as dificuldades económicas sentidas pela companheira e filhos, após o sucedido no dia 05 de julho de 2019.

A testemunha CCC que aos costumes disse ser amigo da família do falecido, reportou ao Tribunal as dificuldades económicas sentidas pela companheira e filhos de II, após o falecimento deste, afirmando que passam fome.

As declarações da testemunha GGG, que aos costumes disse ser sogro do arguido AA e primo do falecido, nada de relevante acrescentaram à matéria em discussão nos autos, uma vez que referida testemunha não tem conhecimento direito da matéria em apreciação nos autos, limitando-se a reportar aquilo que lhe foi transmitido por outrem. 

EEE, que aos costumes referiu ser companheira do arguido AA, reportou ao Tribunal o episódio em que a FF lhes disse que não queria ir para a residência dos progenitores. Ademais, referiu as circunstâncias em que, na noite de 04 para 05 de julho de 2019, os arguidos combinaram deslocar-se a …, afirmando que tal sucedeu no intuito de irem buscar a menor FF, circunstância que não resultou minimamente demostrada nos autos, uma vez que os arguidos não tentaram sequer conversar com o falecido ou família deste acerca do suposto regresso da menor para junto do filho do arguido AA.

Ademais confirmou a fuga dos arguidos, alegando que fugiram com receio de vingança por parte dos familiares da vítima.

(…)

Conjugados e relacionados todos os supra elementos de prova entre si, temos como certo e seguro que:

- Os arguidos, sobretudo o arguido AA, tinham um móbil para o homicídio, desentendimentos relacionados com a retirada da menor FF junto do filho de AA;

- O arguido AA tinha consigo uma pistola 6,75 e o arguido BB uma pistola 6,35;

- Para além do arguido AA não foi dito por absolutamente mais ninguém que a vítima possuía uma caçadeira, no momento em que foram efetuados os disparos, tendo sido, ao invés, produzida prova em sentido contrário;

- Chegados a ..., os arguidos não entabularam qualquer diálogo com II e/ou a companheira deste, no sentido de apaziguar os ânimos e, deste modo, conseguirem convencer o(s) progenitores a levar a menor FF para junto do filho do arguido AA;

- No local existem vestígios de dois disparos: um de uma pistola de calibre 7,65 mm e outro de uma arma de calibre 6,35mm

- O tiro que atingiu II é proveniente de uma arma de calibre 6,35mm;

- Os arguidos acederam os dois à residência de II e efetuaram um disparo cada um, sendo que o BB disparou a sua arma, não inadvertidamente ou por acidente, mas de forma livre, deliberada e consciente, em conjugação de esforços e vontade com o arguido AA, de que era muito próximo e amigo, em direção ao peito de II;

- À distância a que foram feitos os disparos, o modo de atuação, o meio empregue, os locais atingidos na vítima, torna clara a conclusão de que os arguidos pretendiam retirar a vida de II.

Tais factos constituem indícios sérios e seguros, com a virtualidade para, através de raciocínios e juízos de experiência comum e do próprio julgador permitirem inferir outro(s) facto(s) que são os sujeitos a julgamento, in casu, homicídio qualificado, nada impedindo que a prova indiciária, por si, na ausência de prova direta, sirva para fundamentar uma séria convicção do Tribunal quanto aos factos dados como provados, com a consequente condenação, o que, acreditamos, acontece com segurança nos autos.

Para a prova da factualidade vertida no pedido de indemnização civil formulado pelo assistente e ofendidos atendeu-se também, desde logo, às regras da experiência e da normalidade; conjugados quer com a prova testemunhal produzida, e acima aludida, quer com os documentos juntos nos autos e supramencionados.

No que concerne à matéria de facto dada como não provada fundou-se o Tribunal na inexistência de prova suficientemente consistente, firme e estruturada sobre os factos em causa, de modo a poder o Tribunal formar um juízo positivo isento de dúvida sobre os mesmos e na prova produzida em sentido contrário nos termos supra aludidos.

(…).

15. Enquadramento dos recursos.

Resulta das questões alinhadas supra em 11. que algumas delas são comuns às duas motivações de recurso. Assim sendo, com o desiderato de uma melhor clareza de exposição na fundamentação do presente acórdão, nomeadamente para se evitarem sucessivas repetições, abordaremos os recursos em conjunto, sem prejuízo de se ter em consideração os específicos fundamentos de cada uma das motivações de recurso.

Atendendo ao supra exposto em 12., alinhemos as questões a conhecer:

- Quanto ao recurso do arguido BB:

i. Da legitimidade do Ministério Público para a dedução de acusação pública referente ao crime de violação de domicílio;

ii. Da inconstitucionalidade material dos artigos 113.º, n.º 1, 116.º, n.º 1, 117.º, 190.º, n.º 2  e 198.º, todos do CP e artigo 49.º do CP, quando interpretados no sentido de que basta a mera expressão de “quer ver toda a situação esclarecida e que se faça justiça e se prendam aqueles bandidos” para que se presuma que o titular do direito de queixa, no âmbito de um crime semipúblico, pretende o procedimento criminal, violando-se do principio da proporcionalidade e da razoabilidade e por violação do principio da garantias de defesa do arguido (artigo 32.º, n.º 1 da CRP);

iii. Da não verificação das circunstâncias qualificativas previstas nas als. e) e h), do n.º 2, do artigo 132.º, do CP;

iv. Da redução da medida das penas, quer as parcelares (aqui tão só as aplicadas pelos crimes de violação de domicílio e de homicídio) e, consequentemente, a pena única;

- Quanto ao recurso do arguido AA:

i. Da absolvição da prática do crime de violação de domicílio por falta de legitimidade do Ministério Público para dedução de acusação pública - artigos 113.º, n. º 1, 116.º, n. º 1, 117.º, 190.º e 198.º, todos do CP, e artigo 49º do CPP – e, em consequência, da extinção do respectivo procedimento criminal;

ii. Da nulidade insanável do acórdão recorrido, por violação dos artigos 374.º, n.º 2, e 379.º, n.º 1, als. a) e c), ambos do CPP, a qual deve ser declarada, com as consequências do n.º 3, do artigo 379.º, do CPP, porquanto:

- os factos que resultaram como provados relativamente ao ora recorrente, não integram a intenção de matar, pelo que na ausência de dolo (directo como se diz no acórdão recorrido), impõe-se a sua absolvição pelo crime de homicídio pelo qual foi condenado; e,

- se é certo que ao STJ está vedada a apreciação da questão do dolo ex vi matéria de facto, certamente que sobre a mesma se poderá debruçar se se entender que tal questão reveste também natureza jurídica conforme doutrinariamente defendido, e mais ainda se estiver em causa vício do artigo 410.º, n. º 2, do CPP, no tocante a erro de julgamento que é de conhecimento oficioso.

iii. Da medida das penas, devendo a pena parcelar de 19 anos de prisão pela prática do crime de homicídio qualificado, ser reduzida para 14 anos de prisão;

iv. Da violação do princípio da igualdade constante do artigo 13.º, da CRP, e do artigo 71.º, do CP, quando interpretados no sentido, de deverem ser aplicadas penas iguais aos arguidos.

Resultam, deste modo, as seguintes questões comuns:

- Da (i) legitimidade do Ministério Público para a dedução de acusação pública referente ao crime de violação de domicílio;

- Do crime de violação de domicílio;

-Do crime de homicídio: da intenção de matar e da não verificação das circunstâncias qualificativas previstas nas als. e) e h), do n.º 2, do artigo 132.º, do CP;

- Da medida das penas, parcelar (quanto aos crimes de violação de domicílio e de homicídio) e única.

Como se disse trataremos estes grandes temas em conjunto, e em cada um deles os específicos fundamentos de cada uma das motivações de recurso.

16. Apreciemos.

16.1. Da (i) legitimidade do Ministério Público para a dedução de acusação pública referente ao crime de violação de domicílio.

Entendem os ora recorrentes que não é aceitável fazer presunções sobre a vontade dos ofendidos, porquanto o legislador ao fazer uma distinção entre crimes públicos; semipúblicos e particulares, pretende tratar de forma diferente estes crimes, deixando na mão do ofendido a sua intenção de querer ou não a prossecução da acção penal, sendo que quando a assistente CC foi chamada à PJ nunca, em momento algum, foi confrontada com a possibilidade da existência deste crime.

Mais alegam que o exercício do direito de queixa insere-se numa das manifestações processuais do direito constitucional de acesso ao direito e aos tribunais, contemplado no artigo 20.º da CRP que constitui uma das vertentes essenciais de um Estado de Direito Democrático. Invocando os artigos 49.º e 50.º, do CPP, entendem que a queixa se caracteriza e consiste numa manifestação de vontade de perseguição criminal. Deve ser o ofendido que, em regra, tem legitimidade para apresentar queixa, considerando-se como tal e segundo o preceituado no artigo 113.º, n.º 1, do CP como o titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação, tendo para o efeito, nos crimes de natureza particular e semi-pública, um prazo de seis meses para o exercício desse direito, sob pena do mesmo se extinguir, nos termos do artigo 115.º CP.

E, ainda que, no que concerne à descrição factual e partindo-se tanto do direito constitucional do acesso ao direito, como dos requisitos legais e formais do exercício do direito de queixa e da denúncia, designadamente aqueles que exteriorizam uma vontade de perseguição criminal, deverá haver correspondência entre a queixa e a acusação, sempre que entre uma e outra haja uma homogeneidade factual, seja descendente ou ascendente.

Só assim o objecto do processo se mantém estável a partir da acusação ou da pronúncia, sendo estas, bem como a defesa, que no seu essencial e para além dos poderes oficiosos de investigação [340.º], fixam os poderes de cognição do tribunal, delimitando a sua vinculação temática, assim como a extensão do caso julgado [303.º, 358.º, 359.º, 379.º, n.º 1, al. b].

Embora a validade da queixa não exija uma fórmula especial ou a expressa declaração com utilização do termo queixa, bastando-se com qualquer manifestação inequívoca do titular do direito de queixa, no sentido de pretender desencadear o procedimento criminal. Manifestação inequívoca que nos presentes autos, não se encontra devidamente plasmada.

16.2. Vejamos o que se diz no acórdão recorrido, quanto a esta matéria, e transcreve-se:

(…)

IV. Recurso Ministério Público

1.  A queixa

Não se questionando que CC é titular do direito de queixa relativamente ao crime violação do domicilio (artigo 190.º, n.ºs 1 e 3 do Código Penal) - por direito próprio (residia com o companheiro e as filhas na habitação) e, com a morte de II, em representação das três filhas que lhe sobrevieram – o Recorrente traz à discussão a questão de saber se o depoimento que prestou no dia 5 de julho de 2019, CC perante a Policia Judiciária, documentadas no auto de inquirição de fls. 48 a 50, equivalem ao exercício do direito de queixa.

Para o Tribunal a quo a ofendida não apresentou queixa contra os arguidos pelos factos integrantes do crime de violação do domicílio.

Já o Recorrente defende que as declarações prestadas pela ofendida, nomeadamente, quando afirma que quer ver a situação esclarecida e que se faça justiça e prendam aqueles bandidos, equivalem ao exercício do direito à queixa.

É este impasse que temos de resolver.

O princípio da oficialidade no exercício da acção penal, segundo o qual incumbe ao Ministério Público investigar todos os crimes de que tenha notícia, sofre restrições de acordo a natureza do crime, conforme estatuído nos artigos 48º a 52º, do Código de Processo Penal.

Um crime é público, quando o procedimento criminal não depende de queixa, nem de acusação, cabendo ao Ministério Público legitimidade para promover o respectivo procedimento criminal, logo que tenha adquirido notícia do crime, por conhecimento próprio, por intermédio dos órgãos de polícia criminal ou mediante denúncia, nos termos dos artigos 48.º, primeira parte e 241.º a 247º, do Código de Processo Penal.

O mesmo não acontece com os crimes semi-públicos – de cujo procedimento criminal depende de queixa (artigo 49º do Código de Processo Penal) – nem com os crimes particulares – de cujo procedimento criminal depende de acusação particular (artigo 50º, nº 1 do mesmo diploma). Nestes casos, o Ministério Público só tem legitimidade para exercer a acção penal – promover o processo criminal – quando seja apresentada queixa ou deduzida acusação particular, conforme as normas que regulam um e outro instituto.

Como defende Figueiredo Dias, [Direito Penal Português - As consequências jurídicas do Crime, 1993, pág. 666 e 667], a exigência da queixa e de acusação particular assumem uma tripla função: a) o significado criminal relativamente ao pequeno crime pode aconselhar, de um puro ponto de vista criminal,  que o procedimento criminal só tenha lugar se e quando corresponder ao interesse vontade do ofendido; b) evitar que o processo penal prosseguido sem ou contra a vontade do ofendido, possa em certas hipóteses, representar uma inconveniente (ou mesmo inadmissível) intromissão na esfera das relações pessoais que entre ele e os outros participantes intercedem e c)  servir a função de especifica protecção da vitima (ofendido) do crime.

No nosso caso, interessa o regime da queixa exigida pelos crimes semi-públicos, como sucede com o crime de violação do domicílio previsto e punido pelo artigo 190º, do Código Penal, que, ora, nos ocupa.

Estatui o artigo 49º, n.º 1 e 2, do Código de Processo Penal, que:

Quando o procedimento criminal depender de queixa, do ofendido ou de outras pessoas, é necessário que essas pessoas deem conhecimento do facto ao Ministério Público, para que este promova o processo, sendo que a queixa se considera feita ao Ministério Público a que for dirigida a qualquer outra entidade que tenha a obrigação legal de a transmitir àquele.

A queixa, diferente da denúncia - uma simples comunicação, através da qual é levada ao conhecimento dos órgãos de perseguição penal a suspeita de que foi cometido um crime -   abrange na sua dimensão dois elementos que se exigem ao titular do direito violado: a) dar conhecimento ao Ministério Público dos factos com relevância penal e b) manifestar vontade na promoção do processo penal.

Ou, nas palavras de Figueiredo Dias, ob. Citada, pág. 665 e 675, a queixa é o requerimento, feito segundo a forma e no prazo prescritos, através do qual o titular do respectivo direito (em regra, o ofendido) exprime a sua vontade de que se verifique procedimento criminal por um crime cometido contra ele ou contra pessoa com ele relacionada.

No que toca à forma da queixa, tanto o CP como o CPP são omissos, devendo por isso entender-se que ela pode ser feita por toda e qualquer forma que dê a perceber a intenção inequívoca do titular de que tenha lugar procedimento criminal por certo facto, o que é reforçado pelo disposto no artigo 49.º, nº 3, do CPP já referido. Não se torna necessário que a queixa seja como tal designada (…). Tão pouco é relevante que os factos nela referidos sejam correctamente qualificados do ponto jurídico-penal. Indispensável é só que o queixoso revele indubitavelmente a sua vontade de que tenha lugar procedimento criminal contra os agentes (eventuais) pelo substrato fáctico que descreve e menciona.».

Manifestar vontade na promoção da acção penal não exige que o ofendido diga expressamente a fórmula sacramental que deseja procedimento criminal contra o arguido; bastando-se com uma declaração clara ao Ministério Público do querer a promoção do processo penal por parte do ofendido. (…). [sublinhados nossos].

Seguidamente o acórdão recorrido cita diversos arestos deste Supremo Tribunal de Justiça[12] e dos Tribunais da Relação[13], para concluir que:

(…) Na esteira do que tem vindo a ser decidido na jurisprudência enunciada, também nós entendemos que a queixa deve considerar-se validamente exercida quando o titular do direito manifesta inequivocamente a vontade de que seja promovida a acção penal.

Por outro lado, também não se mostra necessário que o ofendido faça referência à qualificação jurídico-penal dos factos comunicados e, quando a fizer, não vincula o Ministério Público.

De volta ao caso, mostra-se assente que a ofendida CC não emitiu uma declaração expressa no sentido de que desejava procedimento criminal quanto ao crime de violação de domicílio.

Contudo, no dia factídico da morte do seu companheiro, apesar de visivelmente combalida, aceitou prestar declarações perante a polícia judiciária (fls. 48 a 50), porque queria ver toda a situação esclarecida (o que, naquelas circunstâncias só poderia significar, investigada) e que se faça justiça e se prendam aqueles bandidos, ou seja, que fosse instaurado e desenvolvido o procedimento criminal contra os autores dos factos e fossem submetidos a julgamento.

E, assim, descreveu as circunstâncias em que o companheiro, II foi baleado, esclarecendo, para além do mais, que os arguidos munidos de armas de fogo se deslocaram  à sua residência onde habitava com o companheiro e os filhos e, apesar da vitima e a ofendida se terem esforçado por impedir a entrada, não o conseguiram, porque os arguidos forçaram uma das portas e entraram na habitação contra a vontade dos ali residentes e efectuaram dois disparos com armas de fogo, tendo um atingido o companheiro, o que lhe determinou a morte ocorrida pouco tempo depois.

Com o devido respeito pela opinião contrária, tais declarações, para além de comunicarem os factos ao Ministério Público por intermédio da autoridade policial (artigo 49.º, n.º 2, do Código de Processo Penal), consubstanciam uma manifestação inequívoca de vontade  de perseguir criminalmente os arguidos (fazendo-se justiça, prendendo os bandidos,  no dizer da ofendida), quanto a todos os factos que relatou diante a Policia Judiciária,  também, os respeitantes à forma como o arguidos entraram na sua residência contra a sua vontade e a do falecido.

Aliás, tal vontade foi mantida e renovada ao longo do processo, designadamente nas declarações prestadas diante do Ministério Público no dia 10 de julho de 2019 (fls. 155 a 160) e na indemnização cível relativamente aos danos causados pelos arguidos com entrada ilícita e forçada no domicílio da ofendida e família reclamada a fls.1634 a 1643 (artigos 105 e 106).

Mais entregou à Polícia Judiciária o telemóvel nº ..., com a respectiva autorização para recolha de todos os elementos relevantes existentes, não tendo deduzido qualquer oposição à apreensão de um saco fechado escondido dentro do esquentador, contendo várias munições (fls. 53 a 56).

O Ministério Público e o juiz de instrução, considerando que as declarações prestadas pela ofendida equivaliam a queixa válida, acusaram e pronunciaram os arguidos pelos factos relatados pela ofendida integrantes do crime de violação do domicílio.

O conjunto destes actos trouxe à ofendida uma expectativa séria de ter exercido validamente o direito de queixa em relação aos factos subjacentes ao crime de violação do domicílio, quando diante da Polícia Judiciária e do Ministério Público, afirmou querer ver toda a situação investigada de modo a fazer-se justiça, levando à prisão dos arguidos.

Entender-se o contrário, neste contexto e no final do julgamento constitui violação dos princípios de confiança e da tutela efectiva do estado de direito material.

Tudo para concluir que mal andou o Tribunal recorrido, ao declarar a extinção do procedimento criminal relativamente ao crime de violação do domicílio, por ausência de queixa, devendo, por isso revogar-se tal decisão, com o consequente prosseguimento dos autos. (…). [sublinhados nossos].

16.3. Perante tudo o que ficou exposto, entendemos que bem andou o acórdão recorrido, ao decidir pela validade da queixa por parte da assistente nos termos em que esta o fez, nomeadamente ao utilizar a frase “quero ver toda a situação esclarecida e que se faça justiça e se prendam aqueles bandidos”. Perscrutando os autos, tal vontade foi mantida e renovada ao longo do processo, designadamente nas declarações prestadas diante do Ministério Público no dia 10.07.2019 (fls. 155 a 160) e na indemnização cível relativamente aos danos causados pelos arguidos com entrada ilícita e forçada no domicílio da ofendida e família reclamada a fls.1634 a 1643.

É, assim, claro que à luz de todas as regras da experiência comum, que não são exigíveis a um cidadão comum conhecimentos jurídicos especializados – em relação a questões em relação às quais os próprios juristas divergem – que ao apresentar os factos a um órgão de polícia criminal e descrevendo os factos tal como os vivenciou, aquela expressão apenas pode significar a sua manifestação inequívoca como titular do direito de queixa (companheira da vítima), no sentido de pretender desencadear o procedimento criminal. Manifestação inequívoca que, ao contrário do que alegam os recorrentes, se encontra devidamente plasmada nos presentes autos.

Pelo que aderindo na sua totalidade ao que ficou transcrito sobre esta questão no acórdão recorrido, entendemos que improcede, nesta parte, a pretensão dos recorrentes.

No caso, resulta também claro que em todos os factos que a queixosa/assistente descreve estão incluídos os factos que quem tem que aplicar a lei terá que fazer a sua legal subsunção e que no caso são factos que integram, para além de tudo o mais, o crime de violação de domicílio previsto nos n.ºs 1 e 3, do artigo 190.º, do CP.

16.4. Ainda  sobre esta questão entende o recorrente BB que e transcreve-se: (…) A manter-se o entendimento do tribunal a quo ocorre, o que desde já se invoca, uma inconstitucionalidade material dos artigos 113.º, n.º 1,[titulares do direito de queixa] ; 116.º, n.º 1 [renúncia e desistência da queixa]; 117.º [acusação particular], 190.º 2 [violação de domicilio ou perturbação da vida privada], 198.º[queixa], todos do CP e artigo 49.º do CPP [legitimidade em procedimento dependente do direito de queixa], quando interpretados no sentido de que basta a mera expressão de “quer ver toda a situação esclarecida e que se faça justiça e se prendam aqueles bandidos” para que se presuma que o titular do direito de queixa, no âmbito de um crime semipúblico, pretende o procedimento criminal, violando-se do principio da proporcionalidade e da razoabilidade e por violação do principio da garantias de defesa do arguido (art. 32.º, n.º 1 da CRP)[garantias do processo criminal].(…).

Ora esta alegação não merece provimento.

De tudo o que ficou exposto nos pontos anteriores, ressalta à evidência que a assistente é a titular do direito de queixa, que o demonstrou nos termos supra expostos, e tem legitimidade para apresentar a queixa.

As declarações que prestou, para além de comunicarem os factos ao Ministério Público, por intermédio da autoridade policial, consubstanciam uma manifestação inequívoca de vontade de perseguir criminalmente os arguidos (fazendo-se justiça, prendendo os bandidos, no dizer da ofendida), quanto a todos os factos que relatou diante a PJ, e ainda, os respeitantes à forma como os arguidos entraram na sua residência contra a sua vontade e a do falecido.

Ao descrever o conjunto dos actos praticados pelos arguidos, trouxe à ofendida uma expectativa séria de ter exercido validamente o direito de queixa em relação aos factos subjacentes ao crime de violação do domicílio, quando diante da PJ e do Ministério Público afirmou querer ver toda a situação investigada de modo a fazer-se justiça, levando à prisão dos arguidos.

Entender-se o contrário, neste contexto, é que constitui violação dos princípios de confiança e da tutela efectiva do estado de direito material.

Aliás, não se descortina em que se possa fundamentar a violação dos princípios do processo penal - da proporcionalidade, da razoabilidade e das garantias de defesa nos presentes autos -perante a factualidade assente nos autos, a descrição que dos mesmos foi feita na acusação pública, na legal subsunção que nesta o Ministério Público operou, tendo o ora recorrente tido acesso ao processo, de molde a apresentar a sua defesa, devidamente argumentada, contraditando e pronunciando-se sobre a não autorizada e violenta entrada na casa de habitação das vítimas, contra a vontade destas.

Não se vislumbra, assim, onde exista a mínima violação dos princípios indicados, desde logo, pela chamada à colação dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, perante os factos praticados e os elementos do tipo ínsitos no artigo 190.º, do CP.

Não se verifica, pelo exposto, qualquer razão para se considerar alguma hipótese de existir ofensa de algum princípio normativo que ultrapasse a apreciação do caso concreto, que permita se declarem inconstitucionais todos os citados artigos do CP e do CPP, ou qualquer um desses normativos, na interpretação que foi feita no acórdão recorrido.

Pelo que nesta parte, também improcede a pretensão do recorrente.        

17.  Do crime de violação de domicílio.

Entende o recorrente AA que e revisita-se:

(…)24. Por todo o exposto, e atento o disposto nos artigos 113º, nº 1, 116º, nº 1, 117º, 190 e 198º, todos do Código Penal, e ainda, ao disposto no artigo 49º do CPP, deverão os arguidos ser absolvidos pela prática do crime de violação de domicílio por falta de legitimidade do Ministério Público para dedução de acusação pública.

25.Face ao exposto, deve este altíssimo Supremo Tribunal de Justiça, julgar extinto, o procedimento criminal instaurado contra os arguidos pela prática, em autoria material, de um crime de violação de domicílio, p. e p. no artigo 190º, nºs 1 e 3 do Código Penal. (…).

Recorde-se o que sobre esta matéria se diz no acórdão recorrido(transcrição):

(…)

Sob a epígrafe violação do domicílio ou perturbação da vida privada, dispõe o artigo 190º, do Código Penal:

1. Quem, sem consentimento, se introduzir na habitação de outra pessoa ou nela permanecer depois de intimado a retirar-se é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 240 dias.

2. Na mesma pena incorre quem, com intenção de perturbar a vida privada, a paz e o sossego de outra pessoa, telefonar para a sua habitação ou para o seu telemóvel.

3. Se o crime previsto no n.º 1 for cometido de noite ou em lugar ermo, por meio de violência ou ameaça de violência, com uso de arma ou por meio de arrombamento, escalamento ou chave falsa, ou por três ou mais pessoas, o agente é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.

O bem jurídico protegido por esta norma é a privacidade/intimidade, visando a salvaguarda de uma área de reserva pessoal delimitada: a habitação.

Assim, o objecto da acção é a habitação, entendida esta como um espaço físico fechado efectivamente reservado ao alojamento (permanência, descanso, convívio, alimentação pernoita) de uma ou várias pessoas, nomeadamente a família. A habitação está normalmente associada à casa, mas não se identifica necessariamente com ela. Uma casa fechada e vazia, sem ser ocupada, não será uma habitação para efeitos do artigo 190º, do Código Penal. Por outro lado, e inversamente, nem só a casa integra a noção de habitação. Será habitação tanto um quarto de hotel, um quarto arrendado, uma tenda de campismo, uma caravana, uma roulotte ou mesmos um barco ou um automóvel nos quais se alojem pessoas. [Manuel Costa Andrade, em Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, pág. 702 ed 703).

Tem-se vindo a entender que a acção típica objectiva compreende duas modalidades de conduta: i) a entrada sem consentimento – pressupondo a entrada física ou corporal do agente na habitação, embora não necessariamente a entrada total, sem o consentimento (e não apenas, mais restritamente, contra a vontade) daquele a quem assiste o domínio e a disposição daquele espaço; ii) a permanência depois de ser intimado a retirar-se – pressupondo uma introdução e permanência em princípio lícitas, que se tornam ilícitas a partir da intimação a retirar-se, que tendo que resultar concludente, não tem de ser necessariamente expressa ou sequer provir do portador concreto do bem jurídico.

Por seu turno, o tipo subjectivo é doloso, bastando-se o seu preenchimento com o dolo eventual e reclamando na primeira modalidade o conhecimento pelo agente de que se está a agir sem consentimento e na segunda modalidade o conhecimento da intimação para se retirar.

Se o crime de violação do domicílio for cometido com o uso da violência; com a ameaça de violência; de noite ou em lugar ermo; com uso de arma; por meio de arrombamento, escalamento ou chave falsa; por três ou mais pessoas, integra a previsão do n.º 3 do artigo 190.º do Código Penal, elevando-se a pena de prisão até um ano ou a pena de multa até 240 dias, para a pena de prisão até três anos ou com pena de multa.

In casu, estão assentes os seguintes factos.

« (…)

9. Em execução do referido plano, delineado entre ambos os arguidos, pelas 8 horas e 30 minutos desse dia 5 de julho de 2019, os referidos arguidos AA e BB estacionaram o veículo de matricula ...-DN-..., em que se tinham feito transportar, junto ao café “A...” sito na Rua …., perpendicular e a cerca de 100 metros da Rua …, em ..., e encontravam-se no respetivo interior, a fim de perceberem, ao certo, onde residia a família do II.

10. Nessa altura, cerca das 9 horas, os arguidos avistaram DD, filho de II – que bem conheciam – quando se deslocava de casa, sita na Rua …, n.º …, ..., para o café “A...”, a fim de tomar o pequeno almoço, tendo os arguidos saído da viatura, empunhando, cada um deles, a respetiva arma de fogo, tendo perseguido DD o qual, tendo-se deparado com os arguidos, assustado e temendo pela sua própria vida e dos seus familiares, a correr, regressou à residência onde se encontrava a habitar com a sua família, onde entrou a gritar “eles estão aí” e “ó pai eles estão aí armados para nos matar”, referindo-se aos arguidos, que bem conhecia.

11. Apesar de II, alertado pelo seu filho DD, ter tentado fechar a porta de alumínio da referida residência, não o conseguiu fazer, uma vez que os arguidos AA e BB, que seguiram no encalço do DD, forçaram a entrada e acabaram por se introduzir na identificada residência.

12. Essa residência é composta apenas por rés-do-chão, com uma sala com acesso direto ao

exterior, um corredor que dá acesso à casa de banho, cozinha e a outra sala, sendo que as duas referidas salas e a cozinha estavam a ser utilizadas como quartos de dormir, tendo a habitação duas portas de acesso, uma em ferro (do lado esquerdo) e a outra em alumínio (do lado direito). A porta de ferro dá acesso à primeira sala.”

13. Nas referidas circunstâncias, primeiro entrou o arguido AA, pela porta de ferro (a do lado esquerdo), seguido do arguido BB, cada um empunhando a respetiva pistola devidamente municiadas e prontas a disparar (pistolas de calibre 7,65mm e 6,35mm, respetivamente).

14. O II, que, para proteger todos os seus familiares, os tinha mandado

para uma divisão recuada daquela habitação, pegou numa cadeira de plástico vermelha e, no início do corredor que dá acesso da divisão de entrada ao interior da residência, tentou travar a progressão dos arguidos.

(…)

25. Ambos os arguidos, em execução do plano pelos mesmos delineado, fizeram introduzir-se na identificada residência da vítima, consciente e deliberadamente, por meio de violência e com a utilização de armas de fogo, contra a vontade e sem autorização do falecido e demais membros da família que ali residia.

(…)

29. Bem sabiam, os arguidos, serem as condutas que deliberadamente assumiram proibidas e puníveis por lei penal.».

Desta facticidade sobressai que os arguidos entraram na habitação onde a vítima residia com a sua família, contra a vontade destes e sem o seu consentimento, tendo para o efeito forçado a porta de entrada e munidos de armas de fogo. No interior da habitação dispararam dois tiros, tendo um deles atingido o peito da vítima, o que lhe provocou a morte.

Tendo presente o supra exposto e no seu confronto com a factualidade provada só se pode concluir que a conduta dos arguidos preenche os elementos dos típicos do crime base de violação de domicílio, previsto no n.º 1, praticado por meio de violência, com armas de fogo, preenchendo a agravante do n.º 3, do citado artigo 190.º, do Código Penal, devendo os arguidos por ele serem condenados. (…).

E, mais adiante:

(…) Como e bem anota o Ministério Público Recorrente, está suficientemente demonstrado que, «apesar de a vítima II ter tentado impedir a entrada dos arguidos, estes, agindo forma concertada, conseguiram forçar a porta de entrada e, cada um munido de uma arma de fogo, entraram de rompante na habitação da vítima, determinados a matar a vítima II. No interior da habitação, cada um dos arguidos efetuou um disparo com a respetiva arma de fogo, tudo na presença dos filhos da vítima (três deles menores), que mal acordaram pela manhã assistiram, ao vivo e em direto, ao assassínio do pai, executado por aqueles que, até há pouco tempo eram amigos.

Importa, ainda, ter presente que, cerca de uma semana antes deste episódio, a vítima tinha saído da sua residência, em …., com toda a família, e procurou abrigo em ..., precisamente para fugir da ira dos arguidos.

Os arguidos invadiram de forma brutal a humilde habitação que servia de abrigo à vítima, companheira, quatro filhos e companheira do filho DD, apanhando toda a família de surpresa, numa altura em que as crianças estavam ainda a acordar. Determinados a matar a vítima II, os arguidos entraram de arma em punho na sala que servia de quarto e onde se encontravam ainda a companheira às filhas menores - FF, com 13 anos de idade, GG, com 9 anos de idade e HH, com 3 anos de idade, completamente indiferentes ao direito à tranquilidade e segurança de todas as pessoas que ali pensaram ter encontrado um porto de abrigo.

Os arguidos, ao agir deste modo, ofenderam de forma muito intensa a intimidade, a tranquilidade e segurança que a habitação deveria conferir a todos os que ali se encontravam a residir.

Na verdade, apesar de estar em causa apenas a prática de um crime de violação de domicílio, a conduta de cada um dos arguidos ofendeu todas as pessoas que ali residiam, designadamente a vítima II, a companheira CC e as três filhas menores (FF,GG e HH) – para além do DD e da companheira.

Não podemos deixar de ter também em conta que a vítima ainda tentou, sem sucesso, impedir a entrada dos arguidos e que foi no interior da residência, onde os arguidos entraram contra a vontade das vítimas e com uso da força, que os mesmos atingiram mortalmente a vítima II, na presença da companheira e dos filhos, designadamente de três filhas menores, como já mencionamos.

A culpa dos arguidos apresenta-se muito intensa e o desvalor da ação é igualmente muito elevado.

Não podem deixar de ser tidos em conta os antecedentes criminais dos arguidos descritos na factualidade julgada provada».

Diante de toda a conduta dos arguidos, julgamos adequada e proporcional aplicar a cada um dos arguidos a pena parcelar de dois anos de prisão pela prática do crime de violação de domicílio, previsto e punido no artigo 190º, n.º 1 e 3, do Código Penal.

E, assim, procede parcialmente, o Recurso do Ministério Público. (…).

Entendemos que bem andou o acórdão recorrido, nada havendo a apontar aos elementos objectivos e subjectivos que subsumem a matéria factual assente.

Pelo que improcede esta pretensão do recorrente.

Quanto à medida da pena, retomaremos em lugar próprio a justeza da medida concreta aplicada.

18. Do crime de homicídio qualificado.

Entende o recorrente BB que, quanto a si, não se verificam as circunstâncias qualificativas previstas nas als. e) e h), do n.º 2, do artigo 132.º, do CP;

Por seu turno, o recorrente AA entende que o acórdão recorrido padece de nulidade insanável, por violação dos artigos 374.º, n.º 2, e 379.º, n.º 1, als. a) e c), ambos do CPP, a qual deve ser declarada, com as consequências do n.º 3, do artigo 379.º, do CPP, porquanto os factos que resultaram como provados não integram a intenção de matar, pelo que na ausência de dolo, impõe a sua absolvição pelo crime de homicídio pelo qual foi condenado; e, se é certo que ao STJ está vedada a apreciação da questão do dolo ex vi matéria de facto, certamente que sobre a mesma se poderá debruçar se se entender que tal questão reveste também natureza jurídica conforme doutrinariamente defendido, e mais ainda se estiver em causa vício do artigo 410.º, n. º 2, do CPP, no tocante a erro de julgamento que é de conhecimento oficioso.

18.1. Como se sabe, encontrando-se o tipo legal fundamental dos crimes contra a vida descrito no artigo 131.º, do CP, dele parte a lei para a previsão, nos artigos seguintes, das formas agravada e privilegiada de sorte que, relativamente ao tipo-base, faz acrescer as circunstâncias que o qualificam em função da especial censurabilidade ou perversidade de que porventura se revista a conduta do agente, ou que o privilegiam por via da menor exigibilidade que porventura reclame a sua actuação.

Tratando-se, pois, a especial censurabilidade ou perversidade, de que fala o n.º 1, do artigo 132.º, do CP, de conceitos indeterminados, a lei utilizou para a sua representação circunstâncias (exemplos-padrão) que concebidas como concretizações de manifestações do tipo de culpa agravado, encontram-se enunciadas, a título exemplificativo, nas diversas alíneas do n.º 2, do aludido normativo (o do artigo 132.º), o que tem como consequência que, para além das ali mencionadas, outras, valorativamente equivalentes, são também susceptíveis de revelar a referida especial censurabilidade ou perversidade.

E, porque a verificação das circunstâncias previstas nas diversas alíneas do n.º 2, do artigo 132.º, do CP é meramente indiciária, no sentido em que só relevam para efeitos de qualificação do crime de homicídio voluntário quando revelem uma especial censurabilidade ou perversidade, há que atender à imagem global do facto, por forma a possibilitar a detecção de uma particular forma de culpa agravada, a justificar a qualificação do crime[14] [15].

Dito isto, verifica-se que a especial censurabilidade se prende com a atitude do agente relativamente a formas de cometimento do facto especialmente desvaliosas. A especial perversidade refere-se às condutas que reflectem no facto concreto as qualidades especialmente desvaliosas da personalidade do agente[16].

Sobre o primeiro daqueles conceitos, Teresa Serra[17] produziu as seguintes considerações: “a ideia de censurabilidade constitui o conceito nuclear sobre o qual se funda a concepção normativa da culpa. Culpa é censurabilidade do facto ao agente, isto é, censura-se ao agente o ter podido determinar-se de acordo com a norma e não o ter feito. No art. 132º, trata-se duma censurabilidade especial: as circunstâncias em que a morte foi causada são de tal modo graves que reflectem uma atitude profundamente distanciada do agente em relação a uma determinação normal de acordo com os valores. Nesta medida, pode afirmar-se que a especial censurabilidade se refere às componentes da culpa relativas ao facto, ou seja, funda-se naquelas circunstâncias que podem revelar um maior grau de culpa como consequência de um maior grau de ilicitude.

E na jurisprudência deste STJ assinalamos o seguinte acórdão: Ac. do STJ de 5-12-2007, proc.º n.º 07P3879, rel. Cons.º Oliveira Mendes, “A especial censurabilidade prende-se essencialmente com a atitude interna do agente, traduzida em conduta profundamente distante em relação a determinado quadro valorativo, afastando-se dum padrão normal. O grau de censura aumenta por haver na decisão do agente o vencer de factores que, em princípio, deveriam orientá-lo mais para se abster de actuar; as motivações que o agente revela, ou a forma como realiza o facto, apresentam, não apenas um profundo desrespeito por um normal padrão axiológico, vigente na sociedade, como ainda traduzem situações em que a exigência para não empreender a conduta se revela mais acentuada. Por sua vez, a especial perversidade representa um comportamento que traduz uma acentuada rejeição, por força dos sentimentos manifestados pelo agente que revela um egoísmo abominável. A decisão de matar assenta em pressupostos absolutamente inaceitáveis. O agente toma a decisão sob grande reprovação, atendendo à personalidade manifestada no seu comportamento, deixa-se motivar por factores completamente desproporcionais, aumentando a intolerância perante o seu facto”.

A matéria da compatibilidade da especial censurabilidade ou perversidade com o dolo eventual, tem sido objecto de desencontros na doutrina e jurisprudência nacionais.

Assim, Maria Margarida Silva Pereira[18] entende que as qualidades ou relações especiais do agente, o modo de execução do crime ou os motivos integram o tipo de culpa, concluindo que o dolo eventual quanto à circunstância agravante é incompatível com a qualificação do homicídio. Na tese desta autora a qualificação pressupõe necessariamente dolo directo ou necessário de homicídio e da própria circunstância agravante.

Recorde-se que na 1ª edição do Comentário Conimbricense, o Prof. Figueiredo Dias referia: “O homicídio qualificado é, tal como o homicídio simples, um tipo unicamente punível a título de dolo sob qualquer uma das suas formas inscritas no art. 14.º: intencional, directo ou eventual” (pág. 42, §34).

Para a afirmação do dolo, “o que o aplicador tem de fazer é tão só- como sempre sucede em matéria de dolo - partir da situação tal como ela foi representada pelo agente. E a partir dela perguntar se a situação, tal como foi representada, corresponde a um exemplo-padrão ou a uma situação substancialmente análoga; e se, em caso afirmativo, se comprova uma especial censurabilidade ou perversidade do agente. Nada disto, pois, ocorre já a nível do tipo subjectivo de ilícito (cuja total congruência com o tipo objectivo de ilícito se mantém assim intocada) mas em último termo a nível do tipo de culpa” (idem, pág. 43, §35).

Em 2012, na 2º edição do Comentário Conimbricense, comentário ao artigo 132.º, §51, p. 74, embora  continue a afirmar que “não há justificação para posições que, por princípio e sem mais, afastem ou restrinjam a aplicabilidade do homicídio qualificado logo pela simples razão de o agente actuar com dolo eventual (…), Figueiredo Dias adverte “O que não significa que em relação a determinados exemplos-padrão se não deva reconhecer a sua incompatibilidade com a figura do dolo eventual, como acontecerá, de modo paradigmático, no caso de morte produzida por agente determinado pelo prazer de matar”.

Também Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, 2.ª ed, em comentário ao artigo 132.º, § 28, p. 405, sustenta: “O homicídio qualificado pode ser cometido em qualquer forma de dolo, sendo admissível o seu cometimento na forma de dolo eventual, salvo nos casos de emprego de tortura ou crueldade, persistência na intenção de matar por mais de 24 horas, reflexão sobre os meios utilizados, avidez e prazer de matar ou causar sofrimento”.

Sufragando esta posição podem ver-se os Acs do STJ de 09-04-2015 proc.º n.º 331/12.7JALRA.S, rel. Cons.ª Isabel Pais Martins e de 18-09-2018 359/16.8JAFAR.S1, rel. Cons.º Lopes da Mota.

A jurisprudência maioritária do STJ tende a considerar que o crime de homicídio qualificado, sendo punível apenas a título de dolo, compatibiliza-se com este em qualquer das suas formas e, portanto, também com o dolo eventual.[19]

Também os Acs de17-4-1991, Col de Jur. 1991, tomo 2, pág. 29 e de 11-12-1997, BMJ n. º472, pág. 163 e de 21-01-1998, proc.º n.º 1110/97, consideraram que a circunstância de o arguido ter agido com dolo eventual não é suficiente para afastar a qualificação do homicídio, quando o motivo é fútil.

Finalmente, o Ac. do STJ 23-11-2006, proc.º n. 06P3770, rel. Cons.º Santos Carvalho, sublinha: “Ora, se já não é fácil compatibilizar o dolo eventual com a especial censurabilidade ou perversidade do agente, como já temos explicado em anteriores acórdãos (“Tendo o legislador posto o assento tónico na configuração do homicídio qualificado num tipo especial de culpa, particularmente intenso, dificilmente se pode configurar, embora sem excluir a hipótese, um homicídio qualificado cometido a título de dolo eventual, pois esta é a forma mais mitigada da intenção criminosa” – Ac. 15/05/2003, proc. 856/03-5), muito mais difícil parece ser essa conjugação quando a especial censurabilidade não advém de uma qualquer circunstância facilmente objectivável (v.g., o uso de uma arma com um grande poder destruidor), mas da própria formação de vontade do agente (que decide usar o objecto de agressão de modo inesperado e súbito, para que a vítima não desconfie, mas com dolo eventual quanto ao resultado)”.

Retendo estas considerações e revertendo ao caso concreto aqui em apreciação, importa não perder de vista a matéria de facto que, dada como provada, encontra-se definitivamente assente e, em face da qual, as instâncias consideraram que a conduta havida pelos arguidos integrava o crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos artigos 131.º, e 132.º, n.º 2, alíneas e) e h), do CP.

A questão a decidir é, tão somente, a de saber se, no caso em concreto, a morte foi produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade do agente (artigo 132.º, n. º1 do CP) por se verificar o exemplo- padrão previsto nas alíneas e) e h), do n. º 2 do artigo 132.º do CP.

No que concretamente respeita à eleição do "motivo fútil", como índice da especial censurabilidade, importará ter em conta que ele se cifra no facto de o agente ter como móbil da ação uma razão ridícula, face à gravidade do ato. Como é sabido, o qualificativo “fútil” atribui-se a algo insignificante, sem relevo.

Para Maia Gonçalves é um motivo “que não tem qualquer relevo, que não chega a ser motivo, que não pode sequer razoavelmente explicar (e, portanto, muito menos de algum modo justificar) a conduta. Trata-se de um motivo notoriamente desproporcionado para ser sequer um começo de explicação da conduta[20]. Segundo Figueiredo Dias o motivo torpe ou fútil é um motivo da actuação “avaliado segundo as concepções éticas e morais ancoradas na comunidade que deve ser considerado pesadamente repugnante, baixo ou gratuito (…) de tal modo que o facto surge como produto de um profundo desprezo pela vida humana[21].

Para se avaliar se um motivo é fútil tem que se relacionar, como já se referiu, a gravidade do comportamento com o móbil do crime. E então, se nenhum motivo justifica causar a morte de outrem (daí ser crime), a grande desproporção entre o que se elege como motivo da ação e aquilo em que esta se analisa, transforma a conduta, não só em algo intolerável, como também em algo absurdo, sem explicação, à luz das concepções éticas correntes da sociedade. A razão do cometimento do crime surge, pois, com um valor irrisório para o normal dos cidadãos, comparado com o mal que se provoca com este.

Na circunstância de a utilização de uma arma, sendo certo que uma arma é um objecto perigoso e, em princípio, adequado e suficiente ao cometimento do crime em causa, por si só, pode não revelar uma perigosidade muito superior à normal nos meios usados para matar.

Assim, utilizar meio particularmente perigoso é servir-se para matar, de um instrumento, de um método, ou de um processo que dificultem significativamente a defesa da vítima (que não se traduzindo na prática de um crime de perigo comum) e seja susceptível de criar perigo para a lesão de outros bens jurídicos.

Deve ponderar-se, deste modo, para a boa aplicação da norma, se a generalidade dos meios usados para matar são perigosos e, mesmo, muito perigosos.

Ora, se por um lado, a lei exige que tais meios sejam particularmente perigosos, é necessário que o meio revele uma perigosidade muito superior à normal nos meios usados para matar, pelo que por outro lado, há que associar à sua utilização, o contexto/circunstancialismo em que são utilizados.

Paulo Pinto de Albuquerque in Comentário ao Código Penal, pág. 352, refere que meio particularmente perigoso é aquele que tem uma perigosidade tal que pode atingir terceiros, indiscriminadamente, independentemente, pois, da vontade e do controlo do agente.

Assim, meio particularmente perigoso é aquele instrumento, método ou processo que, para além de dificultar de modo exponencial a defesa da vítima, é susceptível de criar perigo para outros bens jurídicos importantes. Tem que ser meio que revele uma perigosidade muito superior à normal, marcadamente diverso e excepcional em relação aos meios mais comuns que, por terem aptidão para provocarem danos físicos, são, já de si, perigosos, ou muito perigosos, sendo que na natureza do meio utilizado se tem de revelar já especial censurabilidade do agente.

Concatenando tudo o que ficou dito, a perigosidade ou a elevada perigosidade depende não só da natureza e das características da arma utilizada para cometer o crime de homicídio, mas também do contexto em que da mesma se faz uso. E é nesta globalidade de conceitos que se determina a especial censurabilidade.

Como se verá adiante, as circunstâncias em que os arguidos atuaram, um à frente e o outro mantendo-se na retaguarda para avançar assim que fosse necessário, evidencia tratar-se da utilização de um meio que revela uma perigosidade muito superior à normal.

Em suma, a perigosidade depende não só da natureza e das características da arma, mas também do contexto em que da mesma se faz uso.

18.2. Vejamos o que se diz no acórdão recorrido (transcrição):

(…) V. Qualificação jurídico-penal dos factos

No enquadramento jurídico penal, dos factos, os Recorrentes trazem à discussão duas questões: a de saber actuaram por motivo fútil e o uso de meio particularmente perigoso.

Vejamos.

Dispõe o artigo 131.º do Código Penal que “quem matar outra pessoa é punido com pena de prisão de 8 a 16 anos.

Como é consabido, o tipo legal fundamental dos crimes contra a vida está aqui consagrado, protegendo-se o bem jurídico da vida, consistindo o tipo objetivo em matar outra pessoa e sendo no plano do tipo subjetivo, um crime doloso, englobando o dolo em qualquer das suas modalidades.

O artigo 132.º do Código Penal prevê uma forma agravada do homicídio que, na parte que nos interessa, prescreve:

1. Se a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, o agente é punido com pena de prisão de doze a vinte e cinco anos.

2. É susceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o número anterior, entre outras, a circunstância de o agente:

(…)

e) ser determinado por avidez, pelo prazer de matar ou de causar sofrimento, para excitação ou para satisfação do instinto sexual ou por qualquer motivo torpe ou fútil;

(…)

h) praticar o facto juntamente com, pelo menos, mais duas pessoas ou utilizar meio particularmente perigoso ou que se traduza na prática de crime de perigo comum;

No âmbito deste preceito, o funcionamento da qualificação do crime não se basta com o cometimento do crime de homicídio (tipo base) e de uma (ou mais) circunstância (s) prevista nas diversas alíneas do artigo 132.º, sendo ainda necessário que a conduta do agente revele uma censurabilidade acrescida, uma especial censurabilidade ou perversidade passível de decorrer de uma das circunstâncias especialmente previstas no nº 2 do artigo 132º.

O legislador enveredou pela técnica dos exemplos padrão, ou dos exemplos regra, estando em causa, para uma parte significativa da doutrina, circunstâncias atinentes à culpa do agente e não à ilicitude, as quais podem traduzir uma especial censurabilidade ou perversidade do agente, podendo, no entanto, ocorrer outras circunstâncias reveladoras da especial censurabilidade ou perversidade.

Por outro lado, apesar da descrição dos factos considerados provados poder apontar para o preenchimento de uma ou mais alíneas do nº 2 do artigo 132º, a qualificação do crime de homicídio não é automática. Interessa sim que ocorra uma imagem global do facto agravada.  [Assim, Figueiredo Dias, in “Comentário Conimbricense do Código Penal”, tomo I, págs. 26 e 27, e para uma resenha da controvérsia, na doutrina, sobre se as circunstâncias em causa respeitam ao tipo de culpa ou ao tipo de ilícito, vide Teresa Quintela de Brito in “Direito Penal - Parte Especial: Lições, Estudos e Casos”, pág.191 e seg., apud Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça 2 de novembro de 2015, Proc. n.º 20/13.4 GCBNV.E1. S1].

Esta posição não pode perder de vista o facto, de se mostrar ultrapassada uma conceção do crime ancorada num elemento puramente objetivo, correspondente à ilicitude, e outro subjetivo, integrador da culpa, tendo a dogmática penal passado a distinguir, sempre no campo da ilicitude, entre um desvalor da ação e um desvalor do resultado. A ilicitude deixou, pois, de ser só a desaprovação pela ordem jurídica, de uma situação criada com a lesão de certo bem jurídico, e passou a incluir, nessa desaprovação, também, a forma como tal situação surgiu, por obra do agente.

 Ou seja, no desvalor da ação passou a incluir-se um juízo de desaprovação, em abstrato, resultante do modo como o crime foi cometido.

Para além da lesão ou da colocação em perigo do objeto da ação, o que integra o desvalor de resultado, a ilicitude compreende ainda, no desvalor da ação, modalidades externas do comportamento do agente, bem como circunstâncias que radicam na individualidade da sua pessoa. Daí, até, que se tenha passado a falar também, a este propósito, de um desvalor da ação referido ao facto, ao mesmo tempo que de um desvalor da ação referido ao autor (…). Só a partir destes dados poderá, a nosso ver, ser abordada a construção dogmática escolhida pelo legislador para o crime do artigo 132º do CP.

É que, caso as circunstâncias enunciadas no seu nº 2 fossem taxativas e de aplicação automática, estar-se-ia simplesmente perante uma qualificação do homicídio, atenta a ilicitude acrescida. Concretamente por via do desvalor da ação, e não por via de um maior desvalor do resultado, já que, sendo o bem vida um valor absoluto e eminentemente pessoal (para a ordem de valores constitucional e portanto para o direito penal, não pode haver vidas humanas mais valiosas que outras), causar a morte de uma pessoa esgota, só por si, o desvalor do resultado (e tendo em mente, por exemplo, o disposto na al. l) do nº 2 do artigo 132º do CP, o facto da vítima ocupar um cargo especial, traduzir-se-á no aumento do desvalor da ação).

Ora, como a estruturação do preceito recorreu a exemplos padrão, no seu nº 2, meramente ilustrativos da cláusula geral de agravação que está enunciada no nº 1, ficamos afastados da conceção, segundo a qual, a qualificação ficaria a dever-se a um acréscimo de ilicitude. Como se viu, o preenchimento dos exemplos padrão nem é sempre necessário, porque pode a qualificação derivar de um circunstancialismo equivalente também merecedor de especial censurabilidade ou perversidade, nem é suficiente, porque para além do preenchimento de qualquer das alíneas do nº 2 do artigo 132º em foco, sempre importará verificar, no caso, a tal especial censurabilidade ou perversidade do agente. O que tudo nos confronta com uma qualificação por via da culpa acrescida.

Já noutro registo, e como nos diz Teresa Serra, “Sozinha, a cláusula geral é passível de críticas, em sede da função de garantia da lei penal, em virtude da sua grande indeterminação. Por seu turno, a enumeração exemplificativa do nº 2, tomada isoladamente, é suscetível de reparo, ou constituir uma violação à proibição da analogia em direito penal” (…). Mas a salvaguarda da garantia ínsita no princípio da legalidade, e, por essa via, da constitucionalidade do preceito em foco, ver-se-á realizada, se “A admissão de outras circunstâncias reveladoras da especial censurabilidade ou perversidade do agente [estiver] perfeitamente delimitada aos casos em que tais circunstâncias exprimam um grau de gravidade e possuam uma estrutura valorativa correspondente ao Leitbild dos exemplos-padrão enunciados no nº 2”. (…)

Num contexto desta preocupação garantística, os exemplos-padrão, mesmo que não factualmente verificados, têm ainda assim a função de referência, na valoração negativa de circunstâncias não especificamente previstas, mas que autorizam o homicídio qualificado atípico. O não preenchimento de qualquer das alíneas do referido nº 2, e o aproveitamento de outros elementos agravativos, será legítimo, por se situar num espaço de congruência com os exemplos padrão, justificando-se à mesma a especial desaprovação da conduta.

O modo do cometimento do crime, pela motivação que a ele presidiu, a forma ou intensidade como foi executado, ou ainda pelas qualidades pessoais do agente ou da vítima, tornam-no mais grave. E mais grave porque a conduta daquele agente foi mais reprovável, tendo em conta a distância que separa o crime cometido daqueles outros, em relação aos quais se possa dizer que encontra eco “a convicção geral do que são motivos atendíveis ou a que é mais difícil resistir”.

Por outras palavras, a especial censurabilidade ou perversidade do agente não será mais do que a revelação de um desrespeito acrescido, ou de um desprezo extremo, do autor, pelo bem jurídico protegido. Traduz também um modo próprio do agente estar em sociedade, e, por tal via, inclusivamente, uma perigosidade merecedora de particular atenção. [Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça 2 de novembro de 2015, Proc. n.º 20/13.4 GCBNV.E1. S1].

O motivo fútil será o motivo de tal forma irrelevante, frívolo e sem valor que não é sequer compaginável como motivo para homicídio.

Repetidamente se tem escrito que o motivo fútil, não chega sequer a ser motivo – cf. entre outros, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 6 de junho de 1990 (in BMJ 398, 269-279, 275, Proc. n.º 41009); de 24 de novembro de 1998 (in BMJ 482, 144-152, 149, Proc. n.º 1091/98) de 10 de março de 2003, Proc. n.º 05P224; e de 29 de maio de 2013, Proc.  n.º 132/07.4JBLSB.L2. S1, estes dois últimos disponíveis online in: www.dgsi.pt.  -  Uma expressão que, ainda que criticada por Figueiredo Dias - Comentário Conimbricense do Código Penal: Parte Especial, Tomo I, artigo pág. 32 e 33 – tem o mérito de transmitir a ideia de estarmos perante motivos de tal forma levianos e gratuitos que não têm qualquer espécie de explicação. O agente revela o maior desrespeito possível pela vida humana, de tal forma que parece aproximar-se mais da amoralidade que da imoralidade. [Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26 de outubro de 1983, Proc. 37082, disponível in: BMJ 330,396-399].

Nos tempos dos nossos dias, inexistirá justificação para o crime de homicídio, à luz de qualquer motivação cultural, designadamente, na tradição da ..., ainda que para repor a honra ferida, em especial se estiver em causa o fim de um casamento em que um dos nubentes tem 13 anos de idade.

Aqui, a honra, mais do que assumir qualquer relevância compaginável como motivo para homicídio, ofende direitos inerentes à pessoa humana, tal como estes são compreendidos pelos valores éticos-sociais plasmados no ordenamento jurídico nacional e penal.

O direito à cultura, à diversidade e à diferença, corolário do princípio da igualdade, o reconhecimento de medidas que permitam aos indivíduos implementar as aspirações conexas com a própria identidade cultural ou religiosa, positivado em diversos diplomas nacionais e internacionais, sofre alguns limites.

A Convenção Europeia dos Direitos do Homem, nos artigos 8.º a 11º, comtempla as restrições que os Estados aderentes podem normatizar, quando se afigurem necessárias a salvaguardar a segurança pública, a ordem pública, a saúde pública, a moral pública, a prevenção da criminalidade ou a liberdade de terceiros.

Deste modo, são asseguradas as liberdades culturais, com os limites do estado direito e democrata. A liberdade à cultura é a regra, constituindo as restrições a excepção.

Ao lado do principio da igualdade, proibindo a discriminação cultural previsto no artigo 13º da Constituição da República  Portuguesa, contempla-se, no artigo 18º do mesmo diploma,  a possibilidade de restrição aos direitos liberdades e garantias, por lei geral e abstrata, não retroactiva e que não diminua a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais, desde que tais restrições sejam expressa ou implicitamente permitidas constitucionalmente e se limitem ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos. As limitações são então sujeitas a um conjunto de exigências que se aglutinam no princípio do caráter restritivo das restrições (Jorge Miranda e Rui MEDEIROS, Constituição portuguesa anotada, vol. I, anotação ao artigo 28ºº).

Os homicídios em defesa da honra não conformam a possibilidade de um exercício legitimo do direito à cultura, precisamente porque tutela um bem jurídico de valor incomparavelmente inferior ao bem jurídico, vida, posto em causa [Augusto Silva Dias, “Faz sentido punir o ritual do fanado? Reflexões sobre a punibilidade da excisão clitoridiana”, Revista portuguesa de ciência criminal, vol. 16, n.º 2, abril-junho, págs. 215-216].

De volta aos autos, ponderada a matéria de facto assente e, não a impugnada, que foi julgada improcedente, entendemos, como entendeu a Instância Central Criminal da …, pela existência de especial censurabilidade dos arguidos, por motivo torpe ou fútil.

Com efeito,

A existência dos laços familiares e forte ligação e proteção entre a família da vítima e a família do arguido AA aumenta a culpa dos Recorrentes. Os arguidos actuaram contra a vida de um dos seus pares.

Os arguidos e a companheira da vítima eram familiares e até ao momento do ajuntamento da FF com o AA Filho mantinham uma relação de amizade e convívio pessoal, faziam-se acompanhar uns dos outros e visitavam-se reciprocamente nas respetivas casas (factos n.ºs 1 a 4), tornando mais incompreensível e censurável que os arguidos se tenham determinado e concretizado o homicídio de II.

O crime de homicídio surge na sequência das desavenças familiares que surgiram por interrupção do “casamento” entre FF e JJ, por intervenção do falecido II que ficou descontente e em retaliação face ao facto da jovem FF ter sido levada pelos respetivos progenitores (facto n.º 4).

Foi este motivo e não outro que determinou os arguidos a matar II. E, se de um lado, se pode compreender a ofensa à honra desencadeada pelo fim do casamento imposto pela vitima, de outro, é absolutamente reprovável que se pretenda forçar a manutenção de um casamento de uma criança de treze anos de idade, que, de acordo com o artigo 69º, da Constituição da República Portuguesa, tem direito à protecção da sociedade e do Estado, com vista ao seu desenvolvimento integral, especialmente contra todos as formas de abandono de discriminação e de opressão e contra o exercício abusivo da autoridade na família e demais instituições.

O reconhecimento e garantia dos direitos humanos, seja a nível nacional ou internacional torna insustentável a manutenção de um casamento, por meio de violência, seja qual for a idade, sendo, ainda, mais condenável quando se trate de uma criança de treze anos de idade.

Nenhum direito que atente contra a vida ou a dignidade humana pode ser violado ao abrigo de um costume que o afronte, seja ele qual for.

As ameaças de morte perpetradas pelos arguidos na pessoa e na família da vítima levando-os a fugir do local onde viviam e bem assim as realizadas na véspera do homicídio (factos n.ºs 4 5), se encontram razão de ser nos costumes da etnia dos arguidos, são à luz dos direitos humanos uma prática insustentável numa sociedade democrática que, por isso, as criminaliza. 

Toda a motivação que impeliu os arguidos à prática do crime, a retaliação e vingança pela vítima ter ido buscar a filha de 13 anos a casa do marido, pondo termo ao casamento, para além de não merecer réstia de compreensão, viola os mais elementares valores da vida humana e em sociedade, não compagináveis com uma justificação de qualquer tradição ou costume,

O motivo que determinou os arguidos a tirar a vida a II apresenta-se totalmente incompreensível, mesquinho, torpe, fútil, sendo absoluta e manifestamente desproporcionado ao homicídio e, por isso, incompreensível e especialmente censurável.

E, assim sendo, nenhuma censura merece o Acórdão recorrido neste aspecto.

Prosseguem os Recorrentes alegando que as armas utilizadas para matar II não integram o conceito de meio particularmente perigo a que alude a alínea h), do n.º 2, do artigo 132º, do Código Penal, entendimento não acolhido na primeira instância.

Que dizer?

Para fundamentar a condenação dos Recorrentes pela prática do crime de homicídio com especial censurabilidade decorrente do modo como utilizaram as armas de fogo, o Tribunal Recorrido depois de fazer uma abordagem de direito a esta questão, gizou:

«No caso dos autos, provou-se que os arguidos utilizaram, para perpetrar o crime, uma pistola de calibre 6,35 mm e uma e pistola semiautomática, de calibre 7,65mm Browning. As ditas armas são objetos perigosos e, em princípio, adequadas e suficientes ao cometimento do crime em causa, mas, por si só, não revelam uma perigosidade muito superior à normal nos meios usados para matar.

Crimes de perigo comum, por outro lado, são os constantes dos artigos 272.º a 286.º do Código Penal, sendo que, neste caso a culpa do agente é especialmente agravada pela falta de escrúpulos em princípio revelada pela utilização de um meio adequado à criação ou produção de perigo comum.

Assim, utilizar meio particularmente perigoso é servir-se para matar de um instrumento, de um método ou de um processo que dificultem significativamente a defesa da vítima e (que não se traduzindo na prática de um crime de perigo comum) ou sejam suscetíveis de criar perigo para a lesão de outros bens jurídicos importantes. Deve ponderar-se, para a boa aplicação da norma, que a generalidade dos meios usados para matar são perigosos e, mesmo, muito perigosos.

Todavia a lei exige que tais meios sejam particularmente perigosos, pelo que é necessário que o meio revele uma perigosidade muito superior à normal nos meios usados para matar (não cabendo, pois, no exemplo-padrão e na sua estrutura valorativa revólveres, pistolas, facas, ou vulgares instrumentos contundentes).

Paulo Pinto de Albuquerque in Comentário ao Código Penal, pág. 352, refere que meio particularmente perigoso é aquele que tem uma perigosidade tal que pode atingir terceiros, indiscriminadamente, independentemente, pois, da vontade e do controle do agente.

Como se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12.06.2003, in www. dgsi.pt, meio particularmente perigoso é aquele instrumento, método ou processo que, para além de dificultar de modo exponencial a defesa da vítima, é suscetível de criar perigo para outros bens jurídicos importantes. Tem que ser meio que revele uma perigosidade muito superior à normal, marcadamente diverso e excecional em relação aos meios mais comuns que, por terem aptidão para provocarem danos físicos, são, já de si, perigosos, ou muito perigosos, sendo que na natureza do meio utilizado se tem de revelar já especial censurabilidade do agente. Da qualificação estão, assim, afastados os meios, métodos ou instrumentos mais comuns de agressão que, embora perigosos ou muito perigosos “facas, pistolas, instrumentos contundentes”, não cabem na estrutura valorativa, fortemente exigente, do exemplo padrão.

Conforme decidiu o Supremo Tribunal de Justiça no Ac. de 00-09-27, in Col. Jur. III/2000, 179, "a perigosidade depende não só da natureza e das características da arma, mas também do contexto em que da mesma se faz uso". IV- Comete, assim, o crime de homicídio qualificado o agente que emprega arma de fogo com aquelas caraterísticas, e dispara um primeiro tiro que não acerta na vítima - que se escondeu - e, depois, avança na sua direção e, tirando-lhe a possibilidade de defesa, desfere-lhe um segundo tiro, a curta distância (3 metros). V- A «especial censurabilidade» resulta tangível daquela sequência de atos e desígnio criminoso.”

No caso dos autos, afigura-se-nos que a especial perigosidade advém da natureza, finalidade e da forma como, em concreto, os arguidos atuaram e utilizaram as armas de que se muniram. Com efeito, os arguidos deslocaram-se a ..., sem que se tivessem feito anunciar, forçaram a entrada na habitação de II, onde o mesmo se encontrava com a família, tendo sido apanhado de surpresa e, indefeso, tentou travar a progressão dos arguidos munido de uma cadeira de plástico.

Nesse momento, o arguido AA, que se encontrava a cerca de 50cm do II, apenas separado do mesmo por intermédio da referida cadeira, em execução do plano que previamente havia delineado com o coarguido BB, efetuou um disparo dirigido a II, o qual não o atingiu por factor alheio à vontade do arguido.

Imediatamente a seguir, em concretização do referido plano conjunto, o arguido BB, que se encontrava no interior da mesma residência, desferiu um segundo disparo dirigido ao peito do II, tendo-o atingido com o projétil que disparou, como pretendia, na zona superior do tronco à esquerda.

As circunstâncias em que os arguidos atuaram, um à frente e o outro mantendo-se na retaguarda para avançar assim que fosse necessário evidencia tratar-se da utilização de um meio que revela uma perigosidade muito superior à normal.

Por outro lado, não podemos olvidar que II foi pontapeado e atirado para o chão, ficando numa posição de clara inferioridade relativamente aos arguidos.

Ao agir da forma descrita os arguidos manifestam, pois, uma personalidade desprendida, ou alheada, daqueles que são os valores supremos tutelados por um qualquer ordenamento jurídico.

Assim sendo, e por todo o exposto, cremos ser de considerar que a natureza do instrumento utilizado pelos arguidos no caso dos autos é suscetível de poder ser qualificado como meio particularmente perigoso dada a sua natureza, finalidade a que se destinava e forma como, em concreto, os arguidos se encontravam posicionados, como colocaram a vítima e utilizaram as armas de que se muniram.»

A utilização das armas por parte dos arguidos garantiu o sucesso e o êxito do homicídio, não deixando à vítima qualquer hipótese de reacção contra a atitude dos Recorrentes. Os Recorrentes decidiram utilizar as armas de fogo para se introduzirem à força na residência e sem mais, dispararem em direcção de II, na sequência do que pereceu, na presença da mulher, filhos (três deles de menor idade) e nora.

Tudo a revelar especial censurabilidade ou perversidade dos arguidos, enquadrando-se o comportamento destes na previsão do artigo 132º, n.º 2, alínea a), do Código Penal, tal como decidido pelo Tribunal a quo.

Não assistindo razão aos Recorrentes, improcede, também, este segmento dos Recursos. (…). 

18.3. Vejamos cada caso em concreto.

É entendimento do recorrente BB que os factos assentes não integram as qualificativas jurídicas do crime de homicídio previstas nas als. e) e h), do n. º 2, do artigo 132.º, do CP.

Para tal alega, em síntese, que é de ... e, como tal, há uma forte ligação e proteção entre todos os membros. Estando em causa a honra de um jovem abandonado, foi terminado um casamento de acordo com os usos e costumes daquela etnia. A jovem foi retirada da casa do noivo durante a noite e levada para parte incerta. O ora recorrente acedeu a acompanhar o suposto sogro para a resolução da situação. A sua actuação resume-se a uma viagem, sem existir factualmente uma intenção prévia de causar a morte da vítima. Foi apenas na tentativa de reatar o casamento que ele e o seu co- arguido se dirigiram à casa da vítima, tendo o recorrente a função de apoiar e ajudar o seu amigo e primo AA. E é num ambiente de exaltação e porque há um prévio disparo, que o recorrente dá o tiro. Pelo que, o motivo fútil não pode existir, visto que não há aqui qualquer escárnio e desprimor pela vida humana.

Por outro lado, o meio utilizado por uma pistola que na hierarquia de perigosidade das pistolas está na sua base, não concorda o recorrente com o entendimento do tribunal a quo que de forma inovadora, considerou que o meio perigoso estava preenchido tendo em conta os momentos que antecederam o disparo do recorrente. Há que referir que o disparo não foi feito de imediato, circunscrevendo-se a um momento de grande tensão e de agressões mútuas e a um prévio disparo, para o qual o recorrente não contribuiu.

Mais alega que se a sua intenção fosse a morte da vítima, tinha descarregado uma série de balas, para garantir o propósito criminoso. O que não foi o caso.

Quando muito entende que no caso se pode apenas e só perspetivar um dolo eventual.

E o arguido AA entende que o acórdão recorrido padece de nulidade insanável, por violação dos artigos 374.º, n.º 2, e 379.º, n.º 1, als. a) e c), ambos do CPP, a qual deve ser declarada, com as consequências do n.º 3, do artigo 379.º, do CPP, porquanto os factos que resultaram como provados não integram a intenção de matar, pelo que na ausência de dolo, impõe a sua absolvição pelo crime de homicídio pelo qual foi condenado; e, se é certo que ao STJ está vedada a apreciação da questão do dolo ex vi matéria de facto, certamente que sobre a mesma se poderá debruçar se se entender que tal questão reveste também natureza jurídica conforme doutrinariamente defendido, e mais ainda se estiver em causa vício do artigo 410.º, n.º2, do CPP, no tocante a erro de julgamento que é de conhecimento oficioso.

18.4. Apreciemos.

Conforme referido, o recorrente BB insurge-se contra a qualificação do homicídio.

O recorrente pode não concordar com o decidido. Pode divergir do entendimento do tribunal. Mas como passaremos a explicar, não tem razão.

Em 1.º lugar, diga-se, que quanto à impugnação da subsunção jurídica dos factos à qualificativa da al. e) do n.º 2 do artigo 132. ° do CP - motivo fútil- a mesma foi suscitada pelo ora recorrente, em sede de recurso do acórdão da 1ª instância.

Como decorre do que se transcreveu, esta questão foi objecto de cuidada apreciação no acórdão recorrido, tendo sido julgada improcedente.

E bem.

Ora, vista a matéria provada assente, transparece de forma clara a motivação para o homicídio. Importa ainda dizer que nessa apreciação da matéria de facto, se fixou a existência de ameaças anteriores à execução e a posterior concretização das mesmas.

E, é o próprio recorrente que vem assumir o motivo. O que faz, nos seguintes termos: tratando-se de pessoas de ... o recorrente pretendia salvar um casamento entre a menor FF e um filho do co-arguido AA, casamento que se efectivara segundo os usos e costumes daquela etnia.

E, vem ainda dizer que uma vez cessada (decorrido muito pouco tempo) aquela convivência marital, era de todo imperioso salvar aquele casamento, que é para si um dos sacramentos mais importantes da comunidade ....

E, apenas neste contexto, decidiu apoiar o seu amigo e primo AA.

Todavia, criou-se um ambiente de exaltação. Foi disparado um tiro. O que levou o recorrente a fazer um tiro.

Ao contrário do que pretende, o recorrente vem repetir um argumento que reforça a tese de que a sua conduta se pautou por um motivo fútil, o que revela uma especial perversidade e merece uma especial censurabilidade.

Por muito respeito que mereçam todas as etnias, religiões, não há tradição ou usos e costumes de qualquer etnia ou religião que possa justificar ou contornar a lei penal imperativa.

Remete-se, neste conspecto, para o acórdão recorrido onde são lavradas as considerações que tal argumentação impõe. Com as quais concordamos e que damos aqui por inteiramente reproduzidas.

Tal motivação, a do recorrente, acaba por conferir argumentos e de colocar em evidência o motivo do crime de homicídio como sendo um acto mesquinho e fútil: o homicídio do pai da criança que a tinha retirado e protegido até com uma necessária (e até longínqua) fuga de toda a família, às ameaças de morte de quem afinal os, veio a encontrar e matar em ..., no interior da casa onde habitavam.

É que, não se dá como provado que a intenção do recorrente na sua actuação, fosse com o intuito da apontada salvação do dito relacionamento marital.

Até se poderia admitir que pretendia ajudar a retirar pela força a criança – FF – da casa dos pais.  Mas tal não justifica a morte de uma pessoa.

Aliás, a interrupção do dito relacionamento já tinha ocorrido com grandes desavenças e com intervenção da autoridade policial.

Pelo que, da matéria fáctica assente resulta que os desejos consumados de vingança por tal facto – em co-autoria – são seguramente fúteis, numa actuação que reflete uma enorme perversidade e que merece uma censurabilidade especial nos termos e para efeitos do disposto no artigo 132.º, n.º 2, al. e), do CP.

Pelo que não procede esta pretensão do recorrente, verificando-se que o mesmo agiu com motivo fútil, pelo que a sua conduta se subsume à al. e), do n.º 2, do artigo 132.º, do CP.

Do mesmo modo, não merece qualquer censura, a qualificação da utilização de meio particularmente perigoso, nos termos da al. h), do n.º 2, do artigo 132º, do CP.

Desde logo, a maneira súbita e violenta como os arguidos entraram na casa de habitação da vítima, cada um na posse de uma arma de fogo, no início da manhã, onde aquela se encontrava com a mulher e os seus filhos menores.

O desenrolar de um ambiente de grande exaltação e nervosismo, disparando cada um deles um tiro em direcção à vítima, estando os restantes elementos do agregado familiar dentro da habitação, que poderiam também eles ter sido alvo de algum tiro.

O circunstancialismo que rodeia os acontecimentos, em que a vítima se encontrava na sua casa de habitação, na presença da sua numerosa família indefesa, em franca inferioridade face aos agressores, tudo a relevar na apreciação desta qualificativa, em que a perigosidade não depende exclusivamente da posse e uso de uma arma de fogo; depende também do contexto em que o arguido fez uso da mesma.

Recorde-se uma vez mais o que se diz no acórdão recorrido:

(…) No caso dos autos, afigura-se-nos que a especial perigosidade advém da natureza, finalidade e da forma como, em concreto, os arguidos atuaram e utilizaram as armas de que se muniram. Com efeito, os arguidos deslocaram-se a ..., sem que se tivessem feito anunciar, forçaram a entrada na habitação de II, onde o mesmo se encontrava com a família, tendo sido apanhado de surpresa e, indefeso, tentou travar a progressão dos arguidos munido de uma cadeira de plástico. Nesse momento, o arguido AA, que se encontrava a cerca de 50cm do II, apenas separado do mesmo por intermédio da referida cadeira, em execução do plano que previamente havia delineado com o coarguido BB, efetuou um disparo dirigido a II, o qual não o atingiu por factor alheio à vontade do arguido. Imediatamente a seguir, em concretização do referido plano conjunto, o arguido BB, que se encontrava no interior da mesma residência, desferiu um segundo disparo dirigido ao peito do II, tendo-o atingido com o projétil que disparou, como pretendia, na zona superior do tronco à esquerda.

As circunstâncias em que os arguidos atuaram, um à frente e o outro mantendo-se na retaguarda para avançar assim que fosse necessário evidencia tratar-se da utilização de um meio que revela uma perigosidade muito superior à normal. (…).

Para concluir este ponto, entendemos que também se mostra verificada a apontada qualificativa.

Por último,

Defende ainda o recorrente que não se prova o dolo na prática do crime de homicídio. Porque não fez mais disparos.

Ora, se o recorrente pretende discutir, em matéria de facto, as provas produzidas, tal não é admissível em sede recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, como já se referiu.

E, se pretende afirmar que da matéria provada não resulta a existência do elemento subjectivo da infracção, então tal matéria é passível de discussão nesta sede.

Para esta hipótese, dir-se-á que não tem qualquer razão o recorrente.

Se é indiscutível que o dolo pertence à vida interior de cada um e é, portanto, de natureza subjectiva, insusceptível de directa apreensão, só é possível captar a sua existência através de factos materiais comuns, de que o mesmo se possa concluir, entre os quais surge, com maior representação, o preenchimento dos elementos integrantes da infracção. Pode, de facto, comprovar-se a verificação do dolo por meio de presunções, ligadas ao princípio da normalidade ou da regra geral da experiência.

Na maioria dos casos, o dolo, o conhecimento do seu sentido ou significação, acaba por ser dado por provado por presunção do julgador, sem que haja testemunhas - nem as há disso mesmo – isto para além da possibilidade e o próprio arguido a manifestar de viva-voz em audiência. O dolo, em função da sua natureza, e na generalidade dos casos, surge provado como circunstância conatural dos factos que constituem os elementos objectivos do crime.

A intenção de matar constitui matéria de facto, a apurar pelo tribunal em função da prova ao seu alcance, e esta, salvo quando a lei dispõe diversamente, é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador; não é por ser um facto psicológico que a intenção deixa de ser um facto, e a conclusão de ter ocorrido intenção de matar deduz-se de factos externos que a revelem.

Com efeito, basta revisitar, designadamente, os pontos da matéria provada identificados com os n.ºs 4, 6, 8, 16, 26, 27, 28 e 29 para se concluir, sem margem para quaisquer dúvidas, que estão dados como provados todos os elementos que compõem o elemento subjectivo do tipo legal do crime de homicídio qualificado, p. e p. pelo artigo 132.º do CP, tendo o recorrente agido com dolo directo, e não eventual como quer parecer vingar na sua tese.

Pelo que improcede, neste segmento, a pretensão do recorrente BB.

18.5. E o arguido AA entende que o acórdão recorrido padece de nulidade insanável, por falta de fundamentação nos termos dos artigos 374.º, n.º 2, e 379.º, n.º 1, als. a) e c), ambos do CPP, com as consequências do n.º 3, do artigo 379.º, do CPP, porquanto os factos que resultaram como provados não integram a intenção de matar, pelo que na ausência de dolo, impõe a sua absolvição pelo crime de homicídio pelo qual foi condenado; e, se é certo que ao STJ está vedada a apreciação da questão do dolo ex vi matéria de facto, certamente que sobre a mesma se poderá debruçar se se entender que tal questão reveste também natureza jurídica conforme doutrinariamente defendido, e mais ainda se estiver em causa vício do artigo 410.º, n.º2, do CPP, no tocante a erro de julgamento que é de conhecimento oficioso.

Alega para tal que e recorda-se:

 (…) 43.É que para a análise do caso concreto e boa decisão da causa, é importante perceber-se toda a dinâmica dos factos tal como estes sucederam no tempo e no espaço e que no entender do arguido estão razoavelmente descritos nos factos dados como provados.

44. Por outras palavras, nos actos desvelados pelo recorrente nada permite afirmar que este previra a morte do ofendido, quando este não defere qualquer disparo com a intenção de lhe acertar.

45. E tanto não tinha tal intenção, que efetivamente, não lhe acertou.

46. Ora, não foi nada disto que se passou, nem é nada disto que os factos dados como provados reproduzem.

47. O   recorrente   não   deu   tiros   em   linha   vertical, aliás, os   disparos efectuados foram para o ar e para o chão.

48.Tudo isto e ignorado no acórdão recorrido pelo Tribunal da Relação de Coimbra, que nem sequer uma palavra aduz para infirmar tal objectividade de análise.

49.Por um lado, já depois do disparo desferido pelo arguido BB e que vitimou o Ofendido II, a vítima ainda de pé conseguiu caminhar cerca de 26 metros, o que claramente indicia que se o recorrente tivesse efetiva intenção de o matar, teria disparado para a zona do tronco, pelo menos nesse momento. (…).

Em 1.º lugar, quanto à questão retomada neste recurso e já discutida nas Instâncias, em que põe em causa o modo como o tribunal valorou a prova, embora não invoque expressamente os vícios do n.º 2, do artigo 410.º, do CPP, “pretextua” o erro de julgamento.

Por um lado, ressalta-se que os vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2, do CPP não podem ser confundidos com uma divergência entre a convicção pessoal do recorrente sobre a prova produzida em audiência e a convicção que o tribunal firme sobre os factos, no respeito pelo princípio da livre apreciação da prova inscrito no artigo 127.º do CPP.

Por outro lado, em vista do recorte conceitual daquele princípio, tal como sedimentado na doutrina e na jurisprudência, e atenta a factualidade provada e a fundamentação respectiva (supra transcritas), não se divisa que o TRC tenha ficado com qualquer dúvida relativamente à culpabilidade do arguido, relativamente a cada um dos crimes em que foi condenado (a dúvida relevante é, necessariamente, a do Tribunal, que não a do recorrente), e muito menos que tenha resolvido qualquer non liquet em desfavor deste.

Neste particular, o que releva, necessariamente, é a convicção que o tribunal forme perante as provas produzidas em audiência, sendo ineficaz, no âmbito da ponderação exigida pela função do controlo ínsita na identificação dos vícios do artigo 410.º, n.º 2, do CPP, a convicção pessoalmente formada pelo recorrente e que ele próprio alcançou sobre os factos.

Em síntese: quanto a vícios de procedimento, importa deixar expresso que, no caso, mesmo oficiosamente, do texto da decisão revidenda, não se evidencia qualquer dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2, do CPP. Com efeito, investigada que foi a materialidade sob julgamento, não se vê que a matéria de facto provada seja insuficiente para fundar a solução de direito atingida, não se vê que se tenha deixado de investigar toda a matéria de facto com relevo para a decisão final, não se vê qualquer inultrapassável incompatibilidade entre os factos julgados provados ou entre estes e os factos julgados não provados ou entre a fundamentação probatória e a decisão, e, de igual modo, não se detecta na decisão recorrida, por si e com recurso às regras da experiência comum, qualquer omissão de pronúncia/falha ostensiva na análise da prova ou qualquer juízo ilógico ou arbitrário.

Não é, assim, viável a estratégia de invocar nulidades da decisão recorrida com o fito de contornar a limitação dos poderes de cognição deste Supremo Tribunal. E não basta a alegação conclusiva de uma nulidade, da violação de um princípio ou de uma norma constitucional. Na invocação das nulidades, se o recorrente ainda convoca as normas jurídicas violadas, não cumpre a exigência legal de expor o sentido em que, no seu entendimento, o Tribunal da Relação interpretou ou aplicou cada norma e o sentido em que ela devia ter sido interpretada ou aplicada.

E, mais uma vez se diga que a intenção de matar constitui matéria de facto, a apurar pelo tribunal em função da prova ao seu alcance, e esta, salvo quando a lei dispõe diversamente, é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador; não é por ser um facto psicológico que a intenção deixa de ser um facto, e a conclusão de ter ocorrido intenção de matar deduz-se de factos externos que a revelem.

Pelo que em relação à falta de matéria provada que lhe impute a intenção de matar e que nesta matéria existirá nulidade por falta de fundamentação, nos termos do artigo 374º, n.º 2 e 379º, n.º 1, al. a) e c) e n.º 3, do CPP, não assiste ao recorrente qualquer razão.

Senão revisitem-se, nomeadamente, os factos dados como definitivamente assentes nos pontos 4, 6, 7, 8, 16, 26, 27, 28 e 29 da matéria provada.

Pelo que não se verifica qualquer omissão ou insuficiência na fundamentação e na apreciação desta questão que já havia sido suscitada no recurso da 1.ª instância.

E como decorre do ponto 5. Intenção de matar no acórdão recorrido que se deixou transcrito, responde-se de forma circunstanciada e exaustiva a todas as questões colocadas defendendo e mantendo a decisão da 1ª instância neste ponto, em termos que não merecem censura.

Apreciada e discutida a questão em sede de apreciação das provas e de fixação da matéria provada, ficou assente factualidade que não deixa qualquer margem para dúvidas de que está imputada ao recorrente e provada fundadamente uma actuação com intenção de matar o pai da FF o que conseguiu, em co-autoria com o BB.

E fê-lo com dolo. Assim perpassa da matéria de facto assente. E dolo directo como se diz no acórdão recorrido. Recorde-se:

(…) A existência dos laços familiares e forte ligação e proteção entre a família da vítima e a família do arguido AA aumenta a culpa dos Recorrentes. Os arguidos actuaram contra a vida de um dos seus pares.

Os arguidos e a companheira da vítima eram familiares e até ao momento do ajuntamento da FF com o AA Filho mantinham uma relação de amizade e convívio pessoal, faziam-se acompanhar uns dos outros e visitavam-se reciprocamente nas respetivas casas (factos n.ºs 1 a 4), tornando mais incompreensível e censurável que os arguidos se tenham determinado e concretizado o homicídio de II.

O crime de homicídio surge na sequência das desavenças familiares que surgiram por interrupção do “casamento” entre FF e JJ, por intervenção do falecido II que ficou descontente e em retaliação face ao facto da jovem FF ter sido levada pelos respetivos progenitores (facto n.º 4).

Foi este motivo e não outro que determinou os arguidos a matar II.

(…)

Nenhum direito que atente contra a vida ou a dignidade humana pode ser violado ao abrigo de um costume que o afronte, seja ele qual for.

As ameaças de morte perpetradas pelos arguidos na pessoa e na família da vítima levando-os a fugir do local onde viviam e bem assim as realizadas na véspera do homicídio (factos n.ºs 4 5), se encontram razão de ser nos costumes da etnia dos arguidos, são à luz dos direitos humanos uma prática insustentável numa sociedade democrática que, por isso, as criminaliza. 

Toda a motivação que impeliu os arguidos à prática do crime, a retaliação e vingança pela vítima ter ido buscar a filha de 13 anos a casa do marido, pondo termo ao casamento, para além de não merecer réstia de compreensão, viola os mais elementares valores da vida humana e em sociedade, não compagináveis com uma justificação de qualquer tradição ou costume,

O motivo que determinou os arguidos a tirar a vida a II apresenta-se totalmente incompreensível, mesquinho, torpe, fútil, sendo absoluta e manifestamente desproporcionado ao homicídio e, por isso, incompreensível e especialmente censurável.

(…)

No caso dos autos, afigura-se-nos que a especial perigosidade advém da natureza, finalidade e da forma como, em concreto, os arguidos atuaram e utilizaram as armas de que se muniram. Com efeito, os arguidos deslocaram-se a ..., sem que se tivessem feito anunciar, forçaram a entrada na habitação de II, onde o mesmo se encontrava com a família, tendo sido apanhado de surpresa e, indefeso, tentou travar a progressão dos arguidos munido de uma cadeira de plástico.

Nesse momento, o arguido AA, que se encontrava a cerca de 50cm do II, apenas separado do mesmo por intermédio da referida cadeira, em execução do plano que previamente havia delineado com o coarguido BB, efetuou um disparo dirigido a II, o qual não o atingiu por factor alheio à vontade do arguido.

Imediatamente a seguir, em concretização do referido plano conjunto, o arguido BB, que se encontrava no interior da mesma residência, desferiu um segundo disparo dirigido ao peito do II, tendo-o atingido com o projétil que disparou, como pretendia, na zona superior do tronco à esquerda.

As circunstâncias em que os arguidos atuaram, um à frente e o outro mantendo-se na retaguarda para avançar assim que fosse necessário evidencia tratar-se da utilização de um meio que revela uma perigosidade muito superior à normal.

Por outro lado, não podemos olvidar que II foi pontapeado e atirado para o chão, ficando numa posição de clara inferioridade relativamente aos arguidos.

Ao agir da forma descrita os arguidos manifestam, pois, uma personalidade desprendida, ou alheada, daqueles que são os valores supremos tutelados por um qualquer ordenamento jurídico.

(…)

Os Recorrentes decidiram utilizar as armas de fogo para se introduzirem à força na residência e sem mais, dispararem em direcção de II, na sequência do que pereceu, na presença da mulher, filhos (três deles de menor idade) e nora.

Tudo a revelar especial censurabilidade ou perversidade dos arguidos, enquadrando-se o comportamento destes na previsão do artigo 132º, n.º 2, alínea a), do Código Penal, tal como decidido pelo Tribunal a quo. (…).

Pelo que, não procede a ou as pretensões do recorrente, quanto à alegada falta de fundamentação dos factos que consubstanciam a intenção de matar, não podendo o arguido ser absolvido do crime de homicídio qualificado, como pretende, mas sim condenado pela sua prática em co- autoria com o arguido BB, nos termos em que o foi pelo acórdão proferido pelo TRC.

19. Dito isto, passemos a ocupar-nos da apreciação das penas aplicadas.

20. Ora, como bastamente se disse nas instâncias, nos termos do artigo 40.º do CP, que dispõe sobre as finalidades das penas, “a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade” e “em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa”, devendo a sua determinação ser feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, de acordo com o disposto no artigo 71.º do mesmo diploma.

Como se tem reiteradamente afirmado, encontra este regime os seus fundamentos no artigo 18.º, n.º 2, da CRP, segundo o qual “a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos”. A restrição do direito à liberdade, por aplicação de uma pena (artigo 27.º, n.º 2, da CRP), submete-se, assim, tal como a sua previsão legal, ao princípio da proporcionalidade ou da proibição do excesso, que se desdobra nos subprincípios da necessidade ou indispensabilidade – segundo o qual a pena privativa da liberdade se há-de revelar necessária aos fins visados, que não podem ser realizados por outros meios menos onerosos –, adequação – que implica que a pena deva ser o meio idóneo e adequado para a obtenção desses fins – e da proporcionalidade em sentido estrito – de acordo com o qual a pena deve ser encontrada na “justa medida”, impedindo-se, deste modo, que possa ser desproporcionada ou excessiva[22].

21. A projecção destes princípios no modelo de determinação da pena justifica-se pelas necessidades de protecção dos bens jurídicos tutelados pelas normas incriminadoras violadas (finalidade de prevenção geral) e de ressocialização (finalidade de prevenção especial), em conformidade com um critério de proporcionalidade entre a gravidade da pena e a gravidade do facto praticado, avaliada, em concreto, por factores ou circunstâncias relacionadas com este e com a personalidade do agente, relevantes para avaliar da medida da pena da culpa e da medida da pena preventiva, que, não fazendo parte do tipo de crime (proibição da dupla valoração), deponham a favor do agente ou contra ele (artigos 40.º e n.º 1 do 71.º do CP).

Como se tem reafirmado, para a medida da gravidade da culpa há que, de acordo com o artigo 71.º, n.º 2, considerar os factores reveladores da censurabilidade manifestada no facto, nomeadamente os factores capazes de fornecer a medida da gravidade do tipo de ilícito objectivo e subjectivo – indicados na alínea a), primeira parte (grau de ilicitude do facto, modo de execução e gravidade das suas consequências), e na alínea b) (intensidade do dolo ou da negligência) –, e os factores a que se referem a alínea c) (sentimentos manifestados no cometimento do crime e fins ou motivos que o determinaram) e a alínea a), parte final (grau de violação dos deveres impostos ao agente), bem como os factores atinentes ao agente, que têm que ver com a sua personalidade – factores indicados na alínea d) (condições pessoais e situação económica do agente), na alínea e) (conduta anterior e posterior ao facto) e na alínea f) (falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto). Na consideração das exigências de prevenção, destacam-se as circunstâncias relevantes por via da prevenção geral, traduzida na necessidade de protecção do bem jurídico ofendido mediante a aplicação de uma pena proporcional à gravidade dos factos, reafirmando a manutenção da confiança da comunidade na norma violada, e de prevenção especial, que permitam fundamentar um juízo de prognose sobre o cometimento de novos crimes no futuro e assim avaliar das necessidades de socialização. Incluem-se aqui o comportamento anterior e posterior ao crime [alínea e)], com destaque para os antecedentes criminais) e a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto [alínea f)]. O comportamento do agente, a que se referem as circunstâncias das alíneas e) e f), adquire particular relevo para determinação da medida da pena em vista das exigências de prevenção especial (sobre estes pontos, para melhor aproximação metodológica na determinação do sentido e alcance da previsão do artigo 71.º do CP [23].

22.

22.1. O recorrente BB vem pugnar pela redução próxima do limite legal das penas em que foi condenado.

Para tal alega que é bastante jovem (25 anos), a sua escolaridade é básica, tem retaguarda familiar, e Filhos de tenra idade. Está inserido socialmente.

O recorrente em julgamento prestou declarações no sentido de contribuir para a descoberta da verdade material.

Relativamente à pena aplicada pela prática do crime de detenção de arma proibida, há uma violação do princípio da igualdade e da proporcionalidade: o recorrente nunca foi condenado pela prática deste crime, enquanto o arguido AA o foi, pelo que deve ser reduzida. Ao demais, a arma que o recorrente tinha, em comparação com a arma do arguido AA, é de calibre manifestamente inferior, o que evidencia uma menor censurabilidade e um menor dolo. E no que tange ao crime de violação de domicílio, a pena é manifestamente desproporcional à culpa do agente, pelo que deverá beneficiar de uma redução para o mínimo legal ou privilegiar-se a aplicação de uma pena de multa.

22.2. O recorrente AA entende que a sua pena não poderá ser em caso algum superior a 14 anos de prisão.

Por outro lado, e em nome do princípio da igualdade previsto no artigo 13º da CRP, reclama-se que a pena aplicada ao aqui recorrente seja reduzida se a mesma for comparada com a pena aplicada pelo Tribunal de 1ª Instância ao Arguido BB, cuja participação nos factos foi manifestamente mais ativa que a do Recorrente, tendo sido este quem disparou o tiro mortal.

23. Diz-se no acórdão recorrido (transcrição):

(…)

V. Medida da Pena.
1. Penas Parcelares
Os Recorrentes não concordando com a pena de prisão em que foram condenados pela prática do crime de detenção de arma proibida, defendem que a pena de multa satisfaz as necessidades de prevenção geral e especial.
Neste particular, valem as mesmas razões de facto e de direito pelas quais, optamos pela pena de prisão efectiva quanto ao crime de introdução ao domicílio e que, aqui damos por reproduzidas.
Quanto ao demais:
(…)
Descendo aos factos, acolhemos o enquadramento dado na primeira instância, até, porque assenta única e exclusivamente nos factos provados, enquanto a defesa dos arguidos apela a argumentos que estão demonstrados (a falta de intenção de matar e a ausência de um plano conjunto). 
Como e bem se salienta, a necessidade de prevenir o surgimento deste tipo de delitos deve ser exemplar, não no sentido de fazer dos arguidos os bodes expiatórios da culpa de todos os outros crimes, antes de forma clara, segura, firme e veemente, para que a punição seja interiorizada pela sociedade e assim se satisfaça a prevenção geral, factores, que servirão de patamar mínimo à medida concreta das penas. Ou seja, importa dar um sinal claro, em termos de prevenção geral, e sobretudo a nível da comunidade local, de que o sistema penal reage com firmeza a atos da gravidade do presente.
Assim e levando em consideração:
A elevadíssima ilicitude dos factos, o modo de execução desencadeado pelos arguidos para levarem a cabo o homicídio, com os contornos mais marcantes que temos vindo a salientar;
A muito elevada intensidade dolosa, no seu aspeto volitivo, a nível de dolo direto;
A indiferença e o desprezo manifestados pelos arguidos, em relação à vida humana, em relação a um seu semelhante, com violação grosseira e ignóbil da mais elementar regra de convivência social, o respeito pela vida humana;
O período de tempo em que persistiu o dolo, a actuação criminosa e concertada dos arguidos na sua globalidade;
A circunstância de os crimes terem sido cometido na habitação da vítima, onde II se encontrava com a companheira e filhos menores, tendo a família que presenciou e viveu momentos de pânico e desespero;
A atitude dos arguidos em audiência de julgamento, não denotando qualquer interiorização da ilicitude das suas condutas;
Os antecedentes criminais dos arguidos, a revelar uma personalidade desconforme às regras e valores sociais.
A favor dos arguidos, militam a integração familiar, profissional e sociais, nada os diferenciando, até ao momento do cometimento do crime, de qualquer cidadão normal.
São, pois, muito elevadas as exigências de prevenção geral e especial para ambos os arguidos, seja para o crime de detenção de arma de proibida, seja para o crime de homicídio, não se descortinando qualquer circunstância para diferenciar as penas em que foram condenados.
O recorrente AA não tem antecedentes criminais pelo crime de homicídio, mas já sofreu duas condenações pelo crime de detenção ilegal de arma, um crime de ameaças agravadas e as demais enunciadas nos pontos n.ºs 65 a 70 dos factos provados.
Por outro lado, este mesmo Recorrente já foi anteriormente condenado em pena de prisão efetiva, que cumpriu, no entanto, as condenações anteriores não foram suficientes para demover o arguido de continuar a praticar crimes, e agora mais graves, tendo atentado contra a vida humana, o bem jurídico mais valioso do nosso ordenamento jurídico.
Por seu turno, o Recorrente, BB, foi condenado pela prática de quatro crimes de homicídio na forma tentada, um crime de ameaça agravada e um crime de detenção de arma proibida, na pena única de cinco anos de prisão, suspensa na sua execução, reincidindo na prática dos mesmos crimes no período da suspensão da execução da pena (ponto 71 dos factos provados), demonstrando bem a falta de interiorização do desvalor da sua conduta.
Por isso, tendo em atenção todas estas circunstâncias já referidas e as molduras penais aplicáveis, não merecem qualquer censura as penas encontradas, respectivamente, para o crime de detenção de arma proibida (dois anos de prisão) e para o crime de homicídio (19 anos de prisão), porque adequadas e proporcionais à culpa dos Recorrentes e necessária à satisfação das necessidades de reprovação e de reposição social dos bens jurídicos violados.
Não se mostram, pois, violados, os princípios da igualdade e da proporcionalidade ou quaisquer outros inscritos na Constituição da República Portuguesa, nomeadamente, o artigo 18º, da Constituição da República Portuguesa.
Também, aqui, sucumbem os Recursos. (…).
24. Apreciemos.
Quanto ao crime de detenção de arma o recurso é inadmissível, pelas razões constantes em supra 12.2.
Quanto ao crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos artigos 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2, als. e) e h), ambos do CP, é aplicável a pena de 12 a 25 anos de prisão.
E, quanto ao crime de violação de domicílio, é aplicável uma pena de um mês a 3 anos de prisão, ou com pena de dez dias a trezentos e sessenta dias de multa.
Os arguidos BB e AA foram condenados, cada um deles:

- pela prática, em coautoria material e na forma consumada, de um crime de homicídio qualificado, na pena de 19 anos de prisão;
- pela prática, como autor material, de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo artigo e 86.º, n. º 1, al. c), da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro, na pena de 2 anos de prisão e na pena acessória de interdição temporária de detenção, uso e porte de arma ou armas, pelo período de 15 anos, medida de pena esta irrecorrível;
- pela prática de um crime de violação do domicílio p. e p. pelo artigo 190.º, n.º 1 e 3, do CP na pena de 2 anos de prisão.

Da fundamentação do acórdão recorrido ressaltam à evidência os fundamentos da aplicação de cada uma das penas. Fundamentos esses com os quais concordamos na íntegra.

Com efeito, e no que ao crime de violação de domicílio diz respeito, atentas as concretas circunstâncias que rodearam a prática deste crime, em especial a motivação dos arguidos para forçar a entrada na residência da vítima (matar II) impõem que seja afastada a pena de multa, por manifestamente insuficiente para alcançar as finalidades da punição, e que seja aplicada uma pena de prisão.

Como se diz no acórdão recorrido:

(…) Os arguidos invadiram de forma brutal a humilde habitação que servia de abrigo à vítima, companheira, quatro filhos e companheira do filho DD, apanhando toda a família de surpresa, numa altura em que as crianças estavam ainda a acordar. Determinados a matar a vítima II, os arguidos entraram de arma em punho na sala que servia de quarto e onde se encontravam ainda a companheira às filhas menores - FF, com 13 anos de idade, GG , com 9 anos de idade e HH, com 3 anos de idade, completamente indiferentes ao direito à tranquilidade e segurança de todas as pessoas que ali pensaram ter encontrado um porto de abrigo.

Os arguidos, ao agir deste modo, ofenderam de forma muito intensa a intimidade, a tranquilidade e segurança que a habitação deveria conferir a todos os que ali se encontravam a residir.

Na verdade, apesar de estar em causa apenas a prática de um crime de violação de domicílio, a conduta de cada um dos arguidos ofendeu todas as pessoas que ali residiam, designadamente a vítima II, a companheira CC e as três filhas menores (FF,GG e HH) – para além do DD e da companheira.

Não podemos deixar de ter também em conta que a vítima ainda tentou, sem sucesso, impedir a entrada dos arguidos e que foi no interior da residência, onde os arguidos entraram contra a vontade das vítimas e com uso da força, que os mesmos atingiram mortalmente a vítima II, na presença da companheira e dos filhos, designadamente de três filhas menores, como já mencionamos.

A culpa dos arguidos apresenta-se muito intensa e o desvalor da ação é igualmente muito elevado.

Não podem deixar de ser tidos em conta os antecedentes criminais dos arguidos descritos na factualidade julgada provada.

Diante de toda a conduta dos arguidos, julgamos adequada e proporcional aplicar a cada um dos arguidos a pena parcelar de dois anos de prisão pela prática do crime de violação de domicílio, previsto e punido no artigo 190º, n.º 1 e 3, do Código Penal. (…).

Pelo que consideramos justa, adequada e proporcional a aplicação a cada um dos recorrentes a pena de 2 anos de prisão.
Relativamente aos argumentos utilizados pelos recorrentes quanto à pena aplicada pela prática do crime de detenção de arma proibida, em que entendem que há uma violação do princípio da igualdade e da proporcionalidade, como atrás dissemos não é de conhecimento deste Tribunal, face à rejeição deste segmento do recurso.
Finalmente quanto ao crime de homicídio qualificado, em que cada um dos recorrentes foi condenado em 19 anos de prisão.
Há que realçar o seguinte:
- A elevadíssima ilicitude dos factos;
- O modo de execução do homicídio;
- A muito elevada intensidade dolosa, no seu aspeto volitivo, a nível de dolo direto;
- A indiferença e o desprezo manifestados pelos arguidos, em relação à vida humana;
- O período de tempo em que persistiu o dolo, a actuação criminosa e concertada dos arguidos na sua globalidade;
- A circunstância de os crimes terem sido cometidos na habitação da vítima, onde II se encontrava com a companheira e filhos menores, tendo a família presenciado e vivido momentos de pânico e desespero;
- A atitude dos arguidos em audiência de julgamento, não denotando qualquer interiorização da ilicitude das suas condutas;
- Os antecedentes criminais dos arguidos, a revelar uma personalidade desconforme às regras e valores sociais;
- O recorrente AA não tem antecedentes criminais pelo crime de homicídio, mas já sofreu duas condenações pelo crime de detenção ilegal de arma, um crime de ameaças agravadas e as demais enunciadas nos pontos n.ºs 65 a 70 dos factos provados. Foi ainda condenado em pena de prisão efetiva, que cumpriu;
- O Recorrente, BB, foi condenado pela prática de quatro crimes de homicídio na forma tentada, um crime de ameaça agravada e um crime de detenção de arma proibida, na pena única de cinco anos de prisão, suspensa na sua execução, reincidindo na prática dos mesmos crimes no período da suspensão da execução da pena (ponto 71 dos factos provados), demonstrando bem a falta de interiorização do desvalor da sua conduta.
- A favor dos arguidos, militam a integração familiar, profissional e sociais, nada os diferenciando, até ao momento do cometimento do crime, de qualquer cidadão normal.

Como se acaba de expor, na determinação da medida concreta das penas, as instâncias levaram em conta e ponderaram adequada e fundadamente (sublinhado na transcrição feita), todas as circunstâncias concretas em que os crimes foram cometidos, nomeadamente quanto ao elevado grau de ilicitude do facto, considerando o modo de execução, o valor (supremo) do bem jurídico violado – a vida – e as suas consequências, a intensidade do dolo, a conduta dos arguidos anterior e posterior aos crimes, as condições pessoais e económicas dos arguidos e os seus  antecedentes criminais.

Há que, como se acentuou, ponderar as exigências antinómicas de prevenção geral e de prevenção especial, em particular as necessidades de prevenção especial de socialização “que vão determinar, em último termo, a medida da pena”, seu “critério decisivo”, com referência à data da sua aplicação (assim, acentuando estes pontos, Figueiredo Dias, ob. cit., §309, p. 231, §334, p. 244, §344, p. 249), tendo em conta as circunstâncias a que se refere o artigo 71.º do CP, nomeadamente as condições pessoais do agente e a sua situação económica e a conduta anterior e posterior ao facto, especialmente quando esta tenha em vista a reparação das consequências do crime, que relevam por esta via.

Destacam-se, no caso, nestas circunstâncias, as reveladoras de acentuadas exigências de prevenção especial, decorrentes dos trajectos de vida dos arguidos e das suas condições pessoais, de anteriores condenações reveladoras da não sensibilidade às penas, o que não permite a formulação de um juízo razoável de prognose positivo de preparação para manterem uma conduta ilícita.
Por isso, tendo em atenção todas estas circunstâncias já referidas e as molduras penais aplicáveis, não merecem qualquer censura as penas encontradas, respectivamente, para o crime de violação de domicílio (2 anos de prisão) e para o crime de homicídio (19 anos de prisão), porque adequadas e proporcionais à culpa dos Recorrentes e necessária à satisfação das necessidades de reprovação e de reposição social dos bens jurídicos violados.
Não se mostram, pois, violados, os princípios da igualdade e da proporcionalidade ou quaisquer outros inscritos na Lei Fundamental, nomeadamente, o artigo 18.º, da Constituição da República Portuguesa.
25. Da pena única.

O artigo 77.º, n.º 1, do CP, estabelece que o critério específico a usar na fixação da medida da pena única é o da consideração em conjunto dos factos e da personalidade do agente.

Não tendo o legislador nacional optado pelo sistema de acumulação material (soma das penas com mera limitação do limite máximo) nem pelo da exasperação ou agravação da pena mais grave (elevação da pena mais grave, através da avaliação conjunta da pessoa do agente e dos singulares factos puníveis, elevação que não pode atingir a soma das penas singulares nem o limite absoluto legalmente fixado), é forçoso concluir que, com a fixação da pena conjunta, se pretende sancionar o agente, não só pelos factos individualmente considerados, mas também e especialmente pelo respectivo conjunto,  e não como mero somatório de factos criminosos, mas enquanto revelador da dimensão e gravidade global do comportamento delituoso do agente, visto que a lei manda se considere e pondere, em conjunto (e não unitariamente), os factos e a personalidade do agente - Professor Jorge de Figueiredo Dias, em “Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime”, Aequitas, 1993, pp. 290-292, como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado.
O todo não equivale à mera soma das partes e, além disso, os mesmos tipos legais de crime são passíveis de relações existenciais diversíssimas, a reclamar uma valoração que não se repete, de caso para caso.

26. A este novo ilícito corresponderá uma nova culpa (que continuará a ser culpa pelo facto) mas, agora, culpa pelos factos em relação – afinal, a valoração conjunta dos factos e da personalidade, de que fala o Código Penal.

Na avaliação da personalidade– unitária – do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência ou, eventualmente, mesmo a uma “carreira” criminosa, ou tão-só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, não já no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta.

Acresce que importará relevar o efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização).

Realce-se ainda que na determinação da medida das penas parcelar e única não é admissível uma dupla valoração do mesmo factor com o mesmo sentido: assim, se a decisão faz apelo à gravidade objectiva dos crimes está a referir-se a factores de medida da pena que já foram devidamente equacionados na formação das penas parcelares.

Será, assim, o conjunto dos factos que fornece a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique.

Um dos critérios fundamentais em sede daquele sentido de culpa, numa perspectiva global dos factos, é o da determinação da intensidade da ofensa e dimensão do bem jurídico ofendido, sendo certo que assume significado profundamente diferente a violação repetida de bens jurídicos ligados à dimensão pessoal, em relação a bens patrimoniais.

Por outro lado, importa determinar os motivos e objectivos do agente no denominador comum dos actos ilícitos praticados e, eventualmente, dos estados de dependência, bem como a tendência para a actividade criminosa expressa pelo número de infracções, pela sua permanência no tempo, pela dependência de vida em relação àquela actividade.

Na avaliação da personalidade expressa nos factos é todo um processo de socialização e de inserção, ou de repúdio pelas normas de identificação social e de vivência em comunidade, que deve ser ponderado[24].

O artigo 77.º, n.º 2, do CP, por seu turno, estabelece que pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.

Será, assim, o conjunto dos factos que fornece a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique.

O concurso de crimes tanto pode decorrer de factos praticados na mesma ocasião, como de factos perpetrados em momentos distintos, temporalmente próximos ou distantes. Por outro lado, o concurso tanto pode ser constituído pela repetição do mesmo crime, como pelo cometimento de crimes da mais diversa natureza. Por outro lado, ainda, o concurso tanto pode ser formado por um número reduzido de crimes, como pode englobar inúmeros crimes.

27. Revertendo ao caso, não pode deixar de sublinhar-se a elevada gravidade, da conduta dos recorrentes, a justificar pelas penas parcelares concretizadas na instância e relativas ao objecto dos recursos ( de que ressalta a prática do homicídio qualificado).

Quanto à pena do cúmulo, afigura-se que, na ponderação conjunta dos factos e da personalidade dos arguidos recorrentes, se mostra concretizada em medida adequada, justa e proporcionada às circunstâncias de facto apuradas.
Vejamos o que diz o acórdão recorrido:
(…) 2. Pena única
(…)
Transpondo estas considerações para o caso vertente, há que ter em conta, todas as circunstâncias acima analisadas, nomeadamente, o modo de execução dos crimes nos termos sobreditos, o desprezo pelo valor inviolável da vida humana, a persistente intensidade da resolução criminosa, não descurando o passado criminal dos arguidos que faz recear pelo futuro cometimento de factos de idêntica natureza e a inserção familiar dos mesmos.
No caso em apreço, com o provimento do Recurso do Ministério Público e a condenação dos arguidos pela prática do crime de violação do domicílio, na pena de dois anos de prisão, a medida abstracta da pena única, tem como limite mínimo, dezanove anos de prisão e como limite máximo, 24 anos de prisão.
Sopesando em conjunto as circunstâncias referentes à gravidade global dos factos; o comportamento anterior e posterior e personalidade dos Recorrentes, entendemos que a pena única de vinte e um anos de prisão, é adequada à culpa e correspondendo às exigências de protecção dos bens jurídicos, (…).

Assim, considerando os factos na sua globalidade, as circunstâncias anteriormente referidas e as qualidades de personalidade dos arguidos manifestada na sua prática, em que se destaca a violência de comportamento, devidamente circunstanciado e descrito no acórdão recorrido, e sem necessidade de mais considerandos, tudo ponderado em conjunto, como impõem os artigos 40.º e 71.º, do CP, não se encontra fundamento que permita justificar a redução das penas aplicadas, na base da consideração de estas não se mostrarem adequadas e proporcionais à gravidade dos factos e às necessidades de prevenção e de socialização que a sua aplicação visa realizar (artigo 40.º, n.º s e 2, do CP).

Pelo que não se concede provimento ao recurso interposto por:

BB e AA,

Mantendo-se, para cada um deles, a pena única de vinte e um (21) anos de prisão.
28. Atendendo a tudo o que ficou exposto não se verifica qualquer desproporcionalidade ao aplicar igual medida das penas a ambos os arguidos, nomeadamente, porque adequadas e proporcionais à culpa dos Recorrentes e necessária à satisfação das necessidades de reprovação e de reposição social dos bens jurídicos violados. Não se mostram, pois, violados, os princípios da igualdade e da proporcionalidade ou quaisquer outros inscritos na CRP, nomeadamente, os artigos 13.º, 18.º, da CRP e o artigo 71.º do CP, quando interpretados no sentido de deverem ser aplicadas penas iguais a ambos os arguidos.

29. Nos termos do disposto no artigo 513.º do CPP (responsabilidade do arguido por custas), só há lugar ao pagamento da taxa de justiça, que é individual, quando ocorra condenação em 1.ª instância e decaimento total em qualquer recurso. A taxa de justiça é fixada entre 5 e 10 UC, tendo em conta a complexidade do recurso, de acordo com a tabela III anexa ao Regulamento das Custas Processuais.

Nestes termos, considera-se adequada a condenação dos recorrentes em 5 UC, cada um deles.

III.

30. Pelo exposto, acordam os juízes na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em:
a) Rejeitar o recurso nos termos expostos em supra 12.1.;
b) julgar, no mais, improcedente os recursos interpostos pelos arguidos BB e AA,

c) Condenar cada um dos recorrentes em custas, fixando a taxa de justiça em 5 UC - ressalvado apoio judiciário e nos estritos termos de tal benefício.

15 de Julho de 2021

Processado e revisto pela relatora, nos termos do disposto no artigo 94.º, n.º 2 do CPP, e assinado eletronicamente pelos signatários.

Margarida Blasco (Relatora)

Eduardo Loureiro (Adjunto)

António Clemente Lima (Presidente)

_______________________________________________________


[1] ac. STJ 14.03.2018, LOPES DA MOTA, disponível em www.dgsi.pt.
[2] ac. STJ 9.07.2014, SOUTO DE MOURA, disponível em www.dgsi.pt, pois restringir a competência do STJ apenas para o conhecimento da pena conjunta, quando o recurso é de acórdão final proferido pelo tribunal coletivo que aplicou, além de pena conjunta superior a 5 anos de prisão, outras penas, seria negar o direito ao recurso art. 32.º/1, CRP, AFJ n. º5/2017, DR I, n.º 120, 23.06.2017
[3] ac. 186/2013, TC, disponível em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20130186.html
[4] ac. STJ 12.11.2015, MANUEL BRAZ, disponível em http://www.dgsi.pt
[5] ac. STJ 23.04.2015, MANUEL BRAZ, disponível em http://www.dgsi.pt
[6] Gomes Canotilho / Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 4ª edição revista, 2007, Vol. I, p. 516.
[7] Artigo 14.º, n.º 5, do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos – segundo o qual “qualquer pessoa declarada culpada de crime terá o direito de fazer examinar por uma jurisdição superior a declaração de culpabilidade e a sentença, em conformidade com a lei” – e artigo 2.º do Protocolo n.º 7 à Convenção Para a Protecção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais – de acordo com o qual “qualquer pessoa declarada culpada de uma infracção penal por um tribunal tem o direito de fazer examinar por uma jurisdição superior a declaração de culpabilidade ou a condenação. O exercício deste direito, bem como os fundamentos pelos quais ele pode ser exercido, são regulados pela lei”.

[8] Por todos, os acórdãos do TC 64/2006, 659/2011 e 290/2014) – assim, nomeadamente, os acórdãos deste Supremo Tribunal de 14.03.2018, ECLI:PT: STJ:2018:22.08. 3JALRA.E1. S1.48 e de 30-10-2019, Proc. 455/13.3GBCNT.C2. S1, em www.dgsi.pt, bem como o acórdão de 12.12.2018, Proc. 211/13.9GBASL.E1. S1, www.stj.pt/wp-content/uploads/2019/06/criminal_ sumários _ 2018.pdf, e ainda o acórdão de fixação de jurisprudência n.º 14/2013, n.ºs 11 e 12, de 09.10.2013 (DR 1.ª série, de 12.11.2013).

[9] I -Decidido o recurso pela Relação, ficam esgotados os poderes de apreciação da matéria de facto, tomando-se esta definitivamente adquirida, salvo se ocorrer algum dos vícios do art. 410. °, n.º 2, do CPP, de que o STJ deva oficiosamente conhecer. II- O conhecimento desses vícios pelo Supremo Tribunal não constitui mais do que uma válvula de segurança a u/iligar pelo tribunal nas situações em que não seja possível tomar uma decisão sobre a questão de direito, por a matéria de facto se revelar ostensivamente insuficiente, ou se fundar em erro de apreciação, ou estar assente em premissas contraditórias. III- O conhecimento das questões de facto, enquanto tais, encontra-se, assim, subtraído à apreciação do STJ que, sendo um tribunal de revista, apenas conhece de direito - arts. 432.º e 434.º do CPP.
[10] Assim, Castanheira Neves, “A distinção entre a questão-de-facto e a questão-de-direito e a competência do Supremo Tribunal de Justiça como tribunal de revista”, in Digesta, Coimbra Editora, 1995, pp. 523 ss.
[11] cfr., por todos, o acórdão de 09.03.2017 (Raul Borges), ECLI:PT: STJ:2017:582.05. 0TASTR.E2. S1.2B, com exaustiva indicação de jurisprudência.

[12] Acórdãos de 16.05.1996 (Processo 96P165, www.dgsi.pt), de 23.05.1996, [Processo nº 80/96 - 3ª Secção) Sumários STJ 1996], de 05.04.2001 [Proc. n.º 579/01 - 5.ª Secção, Sumários STJ 2001], de 14.03.2002 [Processo n.º 375/02 – 5ª Secção, in sumários do STJ, site PGDL), de 30.03.2002 [Processo n.º 1862/02, in sumários do STJ, site PGDL], de 26.03.2003, [Proc. n.º 4422/02 - 3.ª Secção, in sumários do STJ, site PGDL], de 29.01.2007, proc. n.º 4458/06, relatado pelo Conselheiro Armindo Monteiro, citado no Acórdão do TRC de 22.01.2014, proc. nº 973/12.0PBLRA.C1.
[13] Acórdãos do Tribunal da Relação de Évora (TRE) de 19.12.2006 [processo 218106, CJSTJ, 2006, V, pág. 269], do Tribunal da Relação do Porto (TRP) de 13.10. 2004 [CJ, 2004; IV; pág. 216], do TRC, de 6.03.2013 [Proc. nº 763/09.8T3AVR-A.C2, www.dgsi.pt], do TRC, de 7.06.2017 [Proc. nº 145/14.0TAMGR.C1, www.dgsi.pt], do TRC, de 5.01.2018 [Proc. nº 358/14.4PBVIS.C1, www.dgsi.pt], do TRC, de 5.12.2018 [Proc. nº 417/16.9PBCVL.C1, www.dgsi.pt], do Tribunal da Relação de Lisboa (TRL) de 20.06.2017 [Proc. nº 1/16.7PBSXL.L1-5, www.dgsi.pt], do TRL, de 21.03.2018 [Proc. nº 1087/15.7PBFUN.L1, www.dgsi.pt], do Tribunal da Relação de Guimarães (TRG) de 27.01.2008 [CJ, 2008, I, pág.294], do TRG, de 14.01.2019 [Proc. nº 304/14.5GAVVD.G1, www.dgsi.pt], do TRE, de 17.11. 2006 [BMJ, 481, pág. 561].
[14] Assim, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 15.05.2008, Processo n.º 3979/07, 5ª Secção; de 21.01.2009, Processo n.º 4030/09, 3.ª secção ou de 15.10.2003, Processo n.º 2024/03, 3.ª Secção, Processo n.º 4123/16.6JAPRT.G1. S1, de 15.01.2019.

[15] Ver ainda os trabalhos preparatórios – Eduardo Correia, autor do Anteprojecto, Actas da Comissão Revisora do Código Penal, edição da AAFDL, 1979, p. 21 – e a jurisprudência e doutrina naqueles citadas, incluindo Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense, comentário ao artigo 132.º do Código Penal, Fernanda Palma, O Homicídio Qualificado no Novo Código Penal Português, Revista do Ministério Público, 1983, ano 4, vol. 15, Teresa Serra, Homicídio Qualificado, Tipo de Culpa e Medida da Pena, Almedina, 1998, Augusto Silva Dias, Direito Penal - Parte Especial: Crimes Contra a Vida e a Integridade Física, AAFDL, 2005, Fernando Silva, Direito Penal Especial, Crimes Contra as Pessoas, Quid Juris, 2008.
[16] cfr. Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense do Código Penal, tomo I, Coimbra, 1999, pág. 29, §7.
[17] Homicídio Qualificado. Tipo de Culpa e Medida da Pena, Coimbra, 1990, págs. 63-64.
[18] Direito Penal II - Os Homicídios, apontamentos das aulas teóricas dadas ao 5.º ano 96/97, Lisboa, 1998, p. 71 e 72.

[19] Neste sentido vejam-se, v.g., os Acs do STJ de 5-0-1986, BMJ n.º 354, pág. 275, de 26-11-1986, BMJ n.º 361, pág. 283, de 13-5-1987, BMJ n.º 367, pág. 286, de 17-4-1991, BMJ n.º 396, pág. 222, de 17-4-1991, Col. de Jur. Ano XVI, tomo 2, pág. 23, de 2-12-1992, BMJ n.º 422, pág. 79, de 13-10-1993, proc.º n.º 044997, e de 30-12-1993, proc.º n.º 045792, ambos relatado pelo Cons.º Teixeira do Carmo, de 22-5-1996, proc. nº 96P243, rel. Cons.º Mariano Pereira, de  11-12-1997, proc. n.º 1050/97 - 3ª, rel. Cons. Oliveira Guimarães, de 21-1-1998, proc. n.º 97P1110, rel. Cons.º Flores Ribeiro, de 18-2-1998, proc. nº 97P1086, rel. Cons.º Martins Ramires, de 21-1-1999, Col.de Jur.- Acs STJ, ano VII, tomo 1, pág.198, de 1-3-2000, BMJ n.º495, de 21-4-2005, proc.º n.º 3975/04 - 5ª e de 20-04-2006, proc.º n.º 06P363, ambos relatados pelo Cons.º Rodrigues da Costa, de 18-12-2013, proc.º n.º 137/08.8SWLSB.L1.S1, rel. Cons.º Sotto Mayor, disponíveis em www.gsi.pt.

[20] in “Código Penal Português” pag. 515.
[21] in “Comentário Conimbricense do Código Penal” Tomo I, pag. 32 e 33.
[22] cfr. Canotilho / Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, notas aos artigos 18.º e 27.º.
[23] cfr. Anabela Miranda Rodrigues, A Determinação da Medida da Pena Privativa da Liberdade, Os Critérios da Culpa e da Prevenção, Coimbra Editora, 2014, em particular pp. 475, 481, 547, 563, 566 e 574, e Figueiredo Dias, Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra Editora, 3.ª reimp., 2011, pp. 232-357

[24] Ac. deste STJ de 19-09-2019, Processo n.º 101/17.6GGBJA.E1. S1- 5.ª secção.