Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
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| Nº Convencional: | 1.ª SECÇÃO | ||
| Relator: | MARIA CLARA SOTTOMAYOR | ||
| Descritores: | REMIÇÃO AÇÃO EXECUTIVA HABILITAÇÃO DE HERDEIROS EXECUTADO DESCENDENTE FALECIMENTO DE PARTE VENDA JUDICIAL TERCEIRO INTERPRETAÇÃO DA LEI ABUSO DO DIREITO VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM BOA FÉ | ||
| Data do Acordão: | 06/21/2022 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | REVISTA | ||
| Decisão: | NEGADA A REVISTA | ||
| Indicações Eventuais: | TRANSITADO EM JULGADO | ||
| Sumário : | I - O direito de remição confere a certos parentes ou familiares próximos do executado (Cônjuge, descendentes e ascendentes), o direito potestativo de adquirirem, tanto por tanto, os bens vendidos ou adjudicados. O que o define é a sua função como um direito funcionalmente direcionado para a tutela do património familiar, obstando à sua transmissão a terceiros, adjudicatários ou compradores em processos de natureza executiva. II – O co-executado, filho dos executados originários, que intervém no processo executivo na qualidade de herdeiro habilitado dos seus pais, falecidos na pendência da execução, apesar de ser parte na execução, para o efeito de substituir os executados falecidos no processo, é terceiro em relação ao objeto da execução, na medida em que, enquanto herdeiro, a dívida exequenda lhe é alheia e não responde com os seus bens por ela, mantendo assim o seu interesse, tutelado pela lei no artigo 842.º do CPC, em preservar os bens penhorados na família. III - A noção de terceiro não é uma noção rígida e com um único sentido. Constitui antes uma noção plurissignificativa, que tem uma extensão variável, mais ampla ou mais restrita, consoante o contexto jurídico em que é aplicável, atendendo à composição de interesses de cada situação. IV - A mera circunstância do exercício do direito de remição se ter verificado decorridos cerca de sete anos após ter sido ordenada a venda por meio de negociação particular, só por si, não significa qualquer comportamento contraditório suscetível de constituir um abuso do direito, na modalidade de venire contra factum proprium, suscetível de paralisar o exercício do direito. | ||
| Decisão Texto Integral: | Acordam no Supremo Tribunal de Justiça I - Relatório 1. “Banco Espírito Santo, S.A., Sociedade Aberta” instaurou, em 7 de fevereiro de 2006, processo executivo para pagamento de quantia certa contra AA; BB; CC e DD, sendo título executivo uma livrança subscrita pelos executados. 2. Da consulta eletrónica dos autos e respetivos apensos resulta que na pendência dos mesmos faleceram os executados, tendo ocorrido a habilitação dos respetivos herdeiros que nessa qualidade assumiram a posição dos iniciais demandados. Entre os herdeiros habilitados estão EE, filho de AA e de DD. 3. O exequente nomeou à penhora o prédio urbano sito em ... e sobre o qual foi constituída hipoteca a seu favor. 4. Após penhora, foi oportunamente decidida a venda do imóvel por meio de propostas em carta fechada (vide decisão do AE de 28/12/2011). Frustrada a venda por esta modalidade foi ordenada a venda por meio de negociação particular (vide auto de 28/05/2012). Por despacho de 28/05/2015 foi fixado o valor mínimo de venda do imóvel em € 840.285,00. 5. De entre várias vicissitudes processuais, decorrem do processo de execução as seguintes ocorrências que se entende relevante discriminar, para a apreciação do mérito do recurso interposto: 5.1. Em 10/09/2019, o herdeiro habilitado (HH) EE, notificado da apresentação de proposta de aquisição do imóvel nos autos penhorado, veio declarar: “A proposta apresentada fica muito aquém do valor real do imóvel, cujo valor patrimonial tributário é de 778.180,00€ conforme já consta de documento junto aos autos em requerimento apresentado por FF. Também é do conhecimento do aqui exponente de que existem mais interessados na aquisição do imóvel, e de que existe, inclusive, já uma proposta de valor superior apresentada ao encarregado de venda. Pelo que, não deve a proposta apresentada de 575,000,00€, ser aceite, porquanto a mesma é demasiada baixa em relação ao valor do real do imóvel, o que causaria um sério prejuízo a todos os interessados (herdeiros da herança indivisa da qual faz parte este imóvel).” Idêntica oposição tendo deduzido em 05/12/2019, em resposta a posterior oferta de € 845.000,00 apresentada por “Dublin Polis, SA”, alegando entre o mais ter o imóvel sido “avaliado recentemente em valor superior a € 900.000,00” (vide notificações e requerimento da AE de 20/11/2019 e 21/11/2019). 5.2. - Em 12/12/2019 é junta aos autos comunicação enviada à AE por este mesmo HH EE, na qual, e invocando a qualidade de filho do executado originário (AA), manifestou a “sua intenção de exercer direito de remição sobre o imóvel (…)” penhorado. Requerendo então e por estar em causa venda por negociação particular que o impede de tomar conhecimento da proposta mais alta apresentada, que oportunamente fosse informado desse valor, bem como conta bancária para efetuar o depósito integral. Então juntou certidão de nascimento de onde resulta a sua qualidade de descendente de AA e DD, ambos primitivos executados e nessa qualidade habilitado como herdeiro. 5.3.- Em 15/01/2020, a AE notifica os interessados de que foi designada a data de 21/01/2020 para apresentação e licitação de propostas por todos os interessados, “conforme comunicação do Sr. Encarregado de Venda que junto se anexa.” Mais informa: “As propostas deverão ser apresentadas a partir do valor de 855.000,00€. A melhor proposta formalizada junto do Sr. Encarregado de Venda, no dia, hora e local indicados, será aceite pela Agente de Execução, sendo tal decisão devidamente notificada às partes. Para o efeito, deverá informar e comunicar a todos os interessados conhecidos por V. Exa, na aquisição do imóvel penhorado nos autos para comparecerem no dia, hora e local designados, a fim de formalizarem e apresentarem a sua proposta. Após a realização desta licitação, não serão aceites novas propostas.” 5.4. – Em 28/01/2020 é junto aos autos informação prestada à AE pelo encarregado de venda por negociação particular, informando que a melhor proposta obtida foi apresentada por “Dublin Polis, SA, no valor de € 900.000,00”. 5.5. - Em 29/01/2020 o interessado EE apresenta nos autos o seguinte requerimento: “O aqui exponente esteve presente na diligência de licitação entre interessados, realizada no escritório do encarregado de venda, no dia 21/01/2020, pela 11.30, conforme consta da comunicação efetuada pelo senhor encarregado de venda à Exma. Senhora Agente de execução e que foi junto a estes autos, pela mesma, com o seu requerimento datado de 28/02/2020. Contudo não ficou a constar da mesma comunicação, que o aqui exponente, após a apresentação da melhor proposta que se registou no valor de 900,000.00€, manifestou desde logo, a sua intenção de exercer o seu direito de remição, enquanto filho do executado originário. O que agora se pretende corrigir. Pelo que, caso a última proposta registada seja aceite, vem, o aqui exponente, mais uma vez, nos termos e para os efeitos constantes dos artigos 842º e 843º do Código Processo Civil, manifestar a sua intenção de exercer direito de remição sobre o imóvel infra melhor identificado: - Prédio urbano constituído por ... e logradouro, destinado a indústria, sito na Rua ..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...67 e descrito na competente Conservatória do Registo Predial sob o nº ...39, Assim, requer-se que em caso de aceitação da proposta supra mencionada, seja indicado pela Exma. Sra. Agente de Execução e/ou o Exmo. Sr. Encarregado de Venda a conta bancária para onde deve ser efetuado o depósito do preço integral, para que seja possível ao aqui requerente concluir o exercício do seu direito, depositando o valor da proposta mais alta apresentada e aceite.” 5.6. - Por despacho de 04/03/2020 é ordenada a notificação da “proposta direito de remição” às partes. 5.7. - Em 08/07/2020 e na sequência de requerimento apresentado por FF é determinado: “Notifique todas as partes para que tomem posição sobre a requerida alteração da modalidade da venda para leilão eletrónico, subjacente na reclamação apresentada a 17 de Janeiro pela executada, com a advertência de que nada dizendo se considera que as partes anuem na alteração da modalidade da venda como requerido.” 5.8. - Em 14/08/2020 veio requerer de novo EE: “notificado para se pronunciar sobre a requerida alteração da modalidade de venda para leilão eletrónico, em 17/01/2020, pela executada FF, vem dizer o seguinte: Conforme já foi exposto em diversos requerimentos por outras partes, a presente execução data de 2006, tendo sido já várias as tentativas de venda do imóvel penhorado ao longo dos anos. A melhor proposta obtida para venda do imóvel penhorado cifra-se em 900,000,00€, valor esse já superior ao mínimo de venda proposto pela executada reclamante de 855,000,00€. Os credores notificados, já tinham manifestado de que não se opunham à venda por tal montante. Atualmente, vislumbra-se que os preços de mercado do imobiliário após o surgimento do novo coronavírus, sofrerão uma estagnação ou até um afrouxamento. Ademais, o prolongar da venda no presente processo com a alteração da modalidade, não parece acarretar qualquer vantagem para as partes, bem pelo contrário, poderá correr-se o risco de ver-se reduzido o valor já proposto. Face ao exposto, entende o aqui exponente que deve ser indeferido o requerido pela executada FF e aceite a proposta de 900,000,00€ apresentada em Janeiro de 2020 ordenando-se o prosseguimento dos autos nesse sentido.” 5.9. -Em 21/09/2020 é proferido o seguinte despacho: “Notifique a Sr. AE para notificar as partes das propostas para exercerem o direito que lhes assiste e caso não haja oposição nada tem o Tribunal a opor que seja exercido o direito de remição.” E em 28/09/2020 a AE informa nos autos: “GG, Agente de Execução nos presentes autos, vem, na sequência da notificação do despacho com a referência ...31, e dando cumprimento ao mesmo, procedemos á notificação da proposta de aquisição apresentada por Dublin Polis – Sociedade Imobiliária, SA, titular do NIPC 509 238 815, com sede na Rua 8, nº 381-2º Esq.- 4500-395 Espinho, no valor de 900.000,00€ (novecentos mil euros). Assim, face ao exposto, encontra-se em curso as notificações às partes da proposta apresentada para, no prazo de dez dias, querendo se pronunciarem (cfr, notificações juntas aos autos em 25 e 28-09-20).” 5.10. - Em 06/10/2020 a interessada FF manifesta a intenção de exercer o seu direito de remição na qualidade de filha dos primitivos executados AA e DD 5.11. - Em 07/10/2020 o Herdeiro Habilitado EE, na qualidade de filho do executado primitivo, declarou nada ter a opor à proposta de aquisição apresentada no valor de € 900.000,00 e reiterou o seu requerimento já antes apresentado em 29/01/2020 de pretender “exercer o seu direito de remição sobre o imóvel” em menção – inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...67 e descrito na CRP sob o nº ...39. Mais tendo declarado aguardar indicação de “conta bancária para onde deve ser efetuado o depósito do preço integral de 900.000,00€ (novecentos mil euros) para que seja possível ao requerente concluir o exercício do seu direito, depositando o valor da proposta aceite”; 5.12. - Em 30/10/2020 a AE notifica ter agendado para “18/11/2020, pelas 11:00 Horas, no escritório do Encarregado de Venda nomeado, Sr. HH, sito na ..., ..., em ..., para abertura de licitação de entre os remidores, referindo-se o que oferecer melhor preço, acima de 900.000,00 €, de acordo com o disposto no artigo 845º, nº 2 do Código do Processo Civil.” 5.13. - Em 13/11/2020 a proponente “Dublin” junta aos autos requerimento onde entre o mais requer informação, por o desconhecer, se a proposta por si apresentada em 21/01/2020 foi aceite. 5.14. - Em 16/11/2020 a interessada FF declara nos autos desistir da sua intenção anteriormente manifestada de exercer o direito de remição, renunciando irrevogavelmente ao exercício de tal direito. 5.15. - Em 17/11/2020 a AE notifica o requerente remidor EE para proceder ao pagamento do valor de € 900.000,00 correspondente à totalidade do preço do bem nos termos do disposto no artigo 843º nº 2 do CPC. Para o efeito indicando os dados para efetuar esse mesmo pagamento - com indicação do prazo de pagamento até 20/11/2020; 5.16. - Em 18/11/2020 o Herdeiro Habilitado EE e remidor, notificado do requerimento de 17/11/20 da AE, invocando a inesperada desistência da outra requerente de remição que levou a ficar sem efeito a licitação que entre ambos o requerente de remição havia sido agendada para 18/11 pela AE, requereu a concessão do prazo de 10 dias para efetuar tal depósito. Mais expressamente declarando manter o referido propósito de remir, apenas “requerendo unicamente para o efeito, e atento o valor em causa, a concessão do prazo de 10 dias”. 5.17. - Na mesma data de 18/11/20 a AE indefere a requerida “prorrogação do prazo para depósito do preço, assim como do respetivo exercício do direito de remição, por não se encontrar preenchido o pressuposto do depósito integral do preço pelo remidor” e decide “notificar o proponente Dublin Polis – Sociedade Imobiliária, S.A., titular do NIPC 509 238 815, com sede na Rua 8, n.º 38, 2.º Esquerdo, 4500-395 Espinho, para proceder ao depósito do preço, no valor de 900.000,00 € (novecentos mil euros), cuja proposta que se considera aceite em 15/10/2020.” Notificação que efetua na mesma data de 18/11/2020; 5.18. - Por requerimento de 19/11/2020 dirigido ao juiz do processo e à AE o Herdeiro Habilitado EE declara “que em momento algum o aqui requerente referiu que não pretendia exercer a remição e depositar o preço no prazo que lhe foi estabelecido para o efeito, requereu unicamente uma prorrogação do prazo, tendo em conta as circunstâncias processuais que foram ocorrendo, que não tornava expectável um desfecho tão apressado, pelo que o despacho deveria ser unicamente no sentido de conceder a prorrogação ou não conceder a prorrogação, nada mais… O despacho proferido enferma de uma manifesta nulidade por excesso de pronúncia e configura uma violação das mais elementares normas de direito e de boa-fé. O aqui requerente reitera o exercício do direito de remição referindo que até ao termo do prazo concedido, 20 de Novembro de 2020, irá proceder ao depósito do preço.” Terminando requerendo “que de imediato proceda à correção do despacho proferido com as demais consequências legais.” 5.19. - Na mesma data de 19/11/2020 apresentou ainda o requerente remidor, perante o juiz do processo, reclamação do despacho da AE, declarando nunca ter referido que não pretendia exercer a remição e depositar o preço no prazo estabelecido, tendo apenas requerido “uma prorrogação do prazo para o efeito, pelo que o despacho deveria ser unicamente no sentido de conceder a prorrogação ou não conceder a prorrogação, nada mais…” Terminando requerendo ao tribunal se “digne ordenar a imediata revogação do despacho proferido pela Exma. Sra. Agente de Execução, designadamente no que concerne ao indeferimento do exercício do direito de remição e à notificação do proponente Dublin -polis-sociedade imobiliária, S.A.., atendendo a que tal decisão é manifestamente nula, ordenando-se ainda que a Agente de Execução se abstenha de praticar qualquer ato subsequente com as consequências daí decorrentes.” 5.20. - E com data de 20/11/2020 “à cautela” junta o requerente remidor comprovativo do depósito do preço - € 900.000,00. Mais declarando pretender exercer o direito de remição por estar ainda em tempo para tal nos termos do artigo 843º do CPC, já que “tendo-se tratado como se tratou de uma venda por outra modalidade que não a de venda por carta fechada, a remição pode ser exercida até ao momento da entrega dos bens ou da assinatura do título que a documenta, o qual ainda não se verificou.” 6. Apreciando o requerido, foi decidido pelo tribunal a quo: “Como relata a SR. AE no seu requerimento de 23.11 que aqui se reitera vieram os Srs. FF e EE, arrogando-se filhos dos executados, exercer o direito de remição, em 06-10-2020 e 07-10-2020, respetivamente; Sucede que, a Sra. FF veio desistir da intenção manifestada de exercer o direito de remição, assim como, renunciar irrevogavelmente ao exercício de tal direito e, ainda, prescindir do anteriormente requerido no que concerne ao leilão eletrónico, desistindo de tal pretensão e manifestando a concordância com a venda realizada; Procedeu a Sr.AE à emissão de guia, com entidade e referência, em 17-11-2020, para o remidor, Sr. EE, proceder ao depósito do preço. Nesse seguimento, veio de imediato, o remidor requerer a prorrogação do prazo para proceder ao pagamento; A SR.AE indeferiu a prorrogação do prazo referindo que: “• Salvo o devido respeito por melhor opinião em contrário, não decorre da lei que exista prazo para o remidor proceder ao depósito do preço; Pelo que, foi proferida decisão pela aqui Agente de Execução a indeferir aquela prorrogação, assim como, o direito de remição exercido, por falta do pressuposto basilar, isto é, o depósito integral do preço, taxativamente previsto na lei;” A 20-11-2020 veio o remidor juntar aos autos o comprovativo de depósito do preço, no montante de 900.000,00 €, encontrando-se o valor disponível na conta do processo; Acontece que o proponente veio, através de comunicação à Agente de Execução e em requerimento que fez juntar aos autos e que antecede, colocar em causa o exercício do direito de remição e nas palavras do mandatário do proponente, “temem que o exercício de remição in casu não teve como objetivo a preservação do bem na família, mas sim a proteção de interesses de terceiros”; Refere, ainda, o proponente, que tal é imprescindível para evitar um eventual requerimento posterior a requerer a nulidade da venda por fraude à lei. No requerimento que antecede veio o proponente pedir seja proferido despacho sobre A POSSIBILIDADE DE O CO-EXECUTADO PODER OU NÃO EXERCER O DIREITO DE REMIÇÃO.
O Exequente, credor reclamante e demais executados pronunciam-se no sentido de ser aceite o pedido de remição tanto que a verba já se encontra depositada nos autos. Vejamos pois:
O direito de remição encontrava-se previsto no art. 912º, do C.P.Civil (na redação anterior ao C.P.Civil introduzido pela Lei nº 41/2013, de 26 de Junho que é aplicável ao caso vertente face à regra prevista no art. 6º, nº 3, dessa lei) nos seguintes termos: “Ao cônjuge que não esteja separado judicialmente de pessoas e bens e aos descendentes ou ascendentes do executado é reconhecido o direito de remir todos os bens adjudicados ou vendidos, ou parte deles, pelo preço que tiver sido feita a adjudicação ou a venda”. Conforme referem Lebre de Freitas e Armindo Ribeiro Mendes (in “Código de Processo Civil Anotado, volume 3º, pág. 621), «o direito de remição constitui um direito de preferência legal de formação processual que, tendo por finalidade a proteção do património familiar, evita, quando exercido, a saída dos bens penhorados do âmbito da família do executado». Por outro lado, como é evidente, este mecanismo da remição só pode ser exercido por um terceiro, por quem não é parte (mormente executado) no processo. Isto é, tem que ser requerido por quem é terceiro relativamente à execução em causa. Ora, por lapso, no caso vertente não se constatou que no momento em que o requerente do direito de remição o solicitou já era parte nos autos, na medida em que foi habilitado na qualidade de sucessor do falecido AA, executado enquanto seu filho. Sendo esta decisão de 15.5.2009 (apenso C), a partir dessa data o mesmo assumiu a qualidade de co executado – deixando, pois, de ser um terceiro relativamente à execução.
Tendo em conta que o direito de remição foi exercido após essa data, não pode ser admitido a exercer tal direito de remição pela circunstância de ser parte nos autos, deixando de ser um terceiro face à presente execução. Assim sendo, está o co executado e remissor impedido legalmente de exercer o pedido de remissão o que ora se declara. Tal decisão implica ainda, como é evidente, a devolução ao referido co executado, após o trânsito em julgado desta decisão, do preço depositado pelo mesmo ao abrigo do direito de remição. Decisão Destarte, declaro a impossibilidade do co-executado EE poder exercer o direito de remissão.
Transitada em julgado a presente decisão, deverá o Sr. SE proceder à devolução ao co-executado do preço pago pelo mesmo ao abrigo do direito de remição.”
7. Notificado o requerente remidor e HH EE do assim decidido e com o mesmo não se conformando, interpôs recurso de apelação, em que peticionou que: 1) o recurso de apelação fosse declarado totalmente procedente e nessa conformidade revogado o Despacho recorrido, considerando-o nulo, por violação do caso julgado formal; ou, caso assim não se entendesse, 2) que o recurso seja declarado totalmente procedente e nessa conformidade revogado o despacho recorrido, substituindo-o por Despacho a confirmar o direito do recorrente a exercer a remição do bem.
8. O Tribunal da Relação decidiu o seguinte: «Pelo exposto, acordam os Juízes do Tribunal da Relação do Porto em julgar procedente o recurso interposto, consequentemente e revogando a decisão, reconhecendo ao recorrente o direito de remir o bem em venda pelo preço da aceite proposta de € 900.000,00 e que o mesmo já depositou nos autos. Custas pela recorrida».
10. Inconformada, DUBLIN POLIS, SOC. IMOBILIÁRIA, S.A, veio interpor recurso de revista do acórdão do Tribunal das Relação, que revogou a decisão proferida pela 1.ª instância e reconheceu ao aqui Recorrido o direito de remir, ao abrigo do artigo 671.º, n.º 1, do CPC, subindo nos próprios autos (artigo 675.º, n.º 1, do CPC). A recorrente veio requerer que fosse atribuído um efeito suspensivo ao recurso, de revista, nos termos do artigo 676.º, n.º 2, do CPC, por entender que o efeito meramente devolutivo levará à prática de atos que se podem revelar manifestamente inúteis, contrariando o Princípio da Economia Processual e o Princípio da Utilidade dos Atos Processuais.
11. Na sua alegação de recurso, a recorrente formulou as seguintes conclusões: «1.ª- O Acórdão de que se recorre entendeu que o ora Recorrido sendo co-Executado habilitado nos autos por falecimento do devedor/executado originário não assume a qualidade de executado o que implica continuar a poder exercer o direito de remição. 2.ª A premissa em que assenta o Venerando Tribunal da Relação está manifestamente incorreta, na medida em que o herdeiro habilitado ao assumir a posição do falecido nessa qualidade, passa a ser também executado, deixa de ser um terceiro em relação à execução. 3.ª- Mais concretamente passa a ocupar a posição processual do executado originário ficando com os direitos que o executado primitivo detinha e, se ao executado era e é-lhe vedado a possibilidade de remir, consequentemente também ao executado habilitado é-lhe vedada essa possibilidade. 4.ª- Por outro lado, como refere o Acórdão recorrido o “herdeiro habilitado apenas tem direito a uma quota ideal e abstrata do acervo hereditário”, ou por outras palavras, não pode ser considerado proprietário ou comproprietário de nenhum bem, mas esquece-se que esse direito do herdeiro habilitado é penhorável nos termos do art.º 781.º do CPC. 5.ª- Razão pela qual refere mal o Acórdão recorrido, quando refere que o Recorrido não tem dever de proceder ao pagamento da dívida exequenda. Tem esse dever para não ver o seu direito à herança indivisa atingido coativamente. 6.ª – Quando o Venerando Tribunal da Relação refere que o poder de dispor dos bens da herança só pode ser exercido conjuntamente por todos os herdeiros nos termos do art.º 2091.º do CC), é irrelevante porque, com a habilitação de herdeiros, todos os herdeiros passaram a estar em juízo. 7.ª- Pagando à quantia exequenda – bem inferior aos €900.000,00 pelo qual pretende exercer o direito de remição - o Recorrido sempre poderia reclamar esse crédito no competente processo de inventário não ficando o Recorrido minimamente prejudicado. 8.ª- Refere ainda o Acórdão Recorrido que “(…) como se exercer o direito de remição sobre o bem vendido da herança, adquire tal bem para o seu património pessoal que enquanto tal não poderá ser de novo penhorado para essa mesma execução por dívidas do falecido familiar, por não ficar a pertencer ao acervo hereditário.” 9.ª – Esse argumento utilizado pelo Venerando Tribunal da Relação constitui uma deturpação do direito de remição, isto porque o escopo do direito de remição é permitir que o se mantenha na esfera patrimonial da família e não que o bem, passe para o Herdeiro A, B ou C deixando as dívidas do executado originário por pagar. 10.ª- A Recorrente citou diversos Acórdãos e a Doutrina Dominante que defendem precisamente a impossibilidade do executado habilitado exercer o direito de remição. 11.ª – Relativamente aos Acórdão citados pela Recorrente os mesmos foram todos “chutados” para uma nota de rodapé no acórdão recorrido (vide nota de rodapé 10); Relativamente à Doutrina Dominante existente sobre esta questão a mesma foi completamente ignorada pelo Tribunal da Relação. 12.ª- Em sentido completamente contrário ao Acórdão Recorrido, Acórdão Tribunal da Relação do Porto de 11.09.2006, Processo n.º 0653650 em que é relator Abílio Costa, disponível em www.dgsi.pt: “O filho do executado, habilitado como herdeiro daquele por morte, em ação executiva que contra aquele pendia, não goza do direito de remição, por, em consequência da habilitação, deter, agora, a qualidade de executado.” 13.ª Na sua fundamentação diz: “O executado não goza do direito de remição. E não goza porque não fazia sentido concedê-lo. Pela razão simples de que está na sua disponibilidade ficar com o bem: paga ao credor. Se tem dinheiro para ficar com o bem, também tem dinheiro para pagar ao credor. É isto que faz quem pretende remir. Ora os habilitados ficam na posição processual do primitivo executado. Sucedem-lhe. Vão ocupar o seu lugar. Se assim é, só podem ficar com os direitos que o primitivo executado tinha. E já vimos que não tinha o direito de remir. Logo, não lhes foi transmitido tal direito. Por outro lado, se o requerente tinha, antes, o direito de remir, por ser descendente do executado, perdeu-o. Perdeu-o porque não se justifica, como vimos, que ao executado seja concedido tal direito. Como escreve Lebre de Freitas, ob. cit., 621 “deverá tratar-se de terceiro relativamente à execução.” Porquê? Pelas razões já expostas. (…) Pronunciando-se também concretamente sobre esta questão, e neste sentido, conferir igualmente Eurico Lopes Cardoso in Manual da Acão Executiva, 659.” 14.ª Em segundo lugar o Venerando Tribunal da Relação do Porto entendeu que nenhuma factualidade foi demonstrada da qual se possa inferir que a atuação do Recorrente (ora Recorrido) foi abusiva. 15.ª A aqui Recorrente implicitamente, explicitamente, faticamente, expressamente, formalmente, objetivamente (e, se fosse preciso, supletivamente) alegou factualidade mais que suficiente para que o Venerando Tribunal da Relação pudesse concluir pela conduta abusiva. 16.ª Aqui a Recorrente acredita que o cerne da questão é que o próprio exercício do direito de remição constitui um manifesto abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium. 17.ª – Curiosamente o Tribunal da Relação apenas decidiu “sinalizar” como matéria relevante a ocorrida desde 10/09/2019, mas relativamente à toda a conduta anterior a 2019 nem uma palavra… 18.ª - A aqui Recorrente alegou que a execução é de 2006, que 15.05.2009. que o aqui Recorrido assumiu a qualidade de co executado, que em 2012 foi ordenada a venda por negociação particular onde o mesmo assistiu à mesma durante mais de sete anos silenciando em toda e qualquer proposta… 19.º - A aqui Recorrente alegou e demonstrou que o Recorrido esteve inerte, assistindo passivamente ao desenrolar de toda a ação executiva durante 10 anos, durante 120 meses, deixando os credores à espera esses anos todos por um pagamento que poderia ter chegado a qualquer momento o que não aconteceu porque o Remidor não quis. 20.ª A aqui Recorrente também alegou que esse comportamento, tacitamente conformativo e aceitador da ação executiva é completamente contraditório com o comportamento que, o agora Recorrido assume, tentando fazer valer o direito de remição. 21.ª A pessoa é só uma. Os comportamentos é que são dois, e antagónicos um do outro. Repita-se: - os comportamentos não são só diferentes; eles são absolutamente contraditórios entre si. 22.ª - Quando o Venerando Tribunal da Relação decidiu aplaudir atuação do Recorrido no excerto do Acórdão que se transcreve: “Ademais, a pretensão de o bem em venda ser vendido por um valor superior – que o recorrente e a outra interessada entendiam como justo, face ao valor de mercado – e que mereceu o assentimento do tribunal nos termos que resultam da tramitação processual, nunca poderá ser interpretado como uma atuação censurável, bem ao contrário.” 23.ª- Esqueceu-se que, a outra Executada (no excerto transcrito identificado como interessada) e o Recorrente (aqui Recorrido) são exatamente os mesmos intervenientes que: 1) apresentou proposta de compra para adquirir o imóvel por € 251.000,00 (a Executada), 2) ele que silenciou (Recorrido) – vide notificação da Agente de Execução de 05.10.2023 que subiu com o Recurso e com a referência n.º ...93. 24.ª O Executado Recorrido foi notificado para se pronunciar sobre a modalidade de venda, sobre a decisão de venda, sobre várias propostas apresentadas e nada disse... isto, durante anos a fio, quando poderia cessado o processo executivo a qualquer momento. 25.ª Se tinha € 900.000,00 para exercer o direito de remição por maioria de razão também tinha para liquidar a quantia exequenda até porque não sendo proprietário ou comproprietário, é titular de um direito, direito esse penhorável como se disse. 26.ª - Ainda alegou o Recorrente que a segurança e a certeza jurídicas, bem como a solidez das decisões emanadas do exercício da função jurisdicional não se compadecem com alterações supervenientes, ao sabor das partes que, inertes foram em determinado momento, ativistas pretendam ser em momentos históricos posteriores. 27.ª - Mais se referiu que a presente ação constituía um manifesto retrocesso, um antagonismo total com a noção de processo, colocando-se em causa a estabilidade, a credibilidade e as seguranças jurídica e judicial. 28.ª – Referiu-se ainda que o Recorrido jogou à Roleta Russa com o direito de Remir e. que com a sua conduta durante largos anos, frustrou um dos fins da ação executiva. 29ª- Foi, assim, alegada factualidade mais que suficiente e suscitado, de forma clara, a questão do abuso de direito, e para que não restassem dúvidas, invocou-se expressamente a figura do abuso de direito, previsto no art. 334.º do CC e que ele era patente nos casos de venire contra factum proprium. 30.ª- É por isso que não se compreende que o Venerando Tribunal da Relação do Porto tenha concluído para ausência de factualidade nos autos… a não, com o devido respeito, que o processo se iniciou em 2019. 30.ª- O comportamento, tacitamente conformativo e aceitador da ação executiva é completamente contraditório com o comportamento que o Recorrido agora assumiu ao exercer o direito de remição. 31.ª- Por isso, é patente que o Recorrido abusou de um direito, e tal abuso é manifestamente ilegítimo, nos termos do art. 334.º do CC. 32.ª- É assim antijurídico, injusto, imoral, atentatório da boa fé, dos bons costumes e do fim social e económico do direito, um comportamento contraditório tão manifesto como aquele que, nesta ação, o Recorrido adotou 33.ª- O abuso do direito equivale à falta de direito, gerando as mesmas consequências jurídicas que se produzem quando uma pessoa pratica um ato que não tem o direito de realizar. 34.ª- E isto sucede porque será sempre ilegítimo o exercício de um direito quando o seu titular exceda os limites impostos pela boa-fé, como seja nos casos (como o dos presentes autos) em que há contradição, real e não aparente, entre a conduta de uma das partes que se vincula a dada situação futura, criando confiança na contraparte, e a conduta posterior a frustrar a confiança criada. 35.ª- E é justamente esta contradição (entre a confiança criada e a atuação posterior) que é reveladora da ausência de boa-fé e dos bons costumes, porque o Recorrido abusou do direito, violando os mais basilares princípios da boa-fé e negando de forma chocante todo o passado. 36.ª- Foram violados o art.º 842.º do CPC e art.º 334º do CC.
TERMOS EM QUE: A) DEVE O SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA REVOGAR O ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO, DECLARANDO-SE A IMPOSSIBILIDADE DO RECORRRIDO DE EXERCER O DIREITO DE REMIÇÃO.
B) DEVE O SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA REVOGAR O ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO, DECLARANDO-SE QUE O EXERCÍCIO DE REMIÇÃO POR PARTE DO RECORRIDO CONSTITUI UM AUTÊNTICO ABUSO DE DIREITO, FICANDO, TAMBÉM POR ESSE MOTIVO, IMPEDIDO DE EXERCER O DIREITO DE REMIÇÃO».
12. O co-executado, herdeiro habilitado dos executados originários, apresentou contra-alegações que concluiu do seguinte modo: «DO EFEITO DO RECURSO A- O efeito do recurso de revista apresentado pelo recorrente é, nos termos do artigo 676.º do Código Processo Civil (doravante CPC), meramente devolutivo. B- Estabelece o artigo mencionado que, “O recurso de revista só tem efeito suspensivo em questões sobre o estado de pessoas”, como bem sabe o recorrente, a presente ação não verte sobre questões sobre o estado das pessoas. C- Inexiste sequer base legal que permite ao recorrente requerer efeito suspensivo mediante prestação de caução tal como acontece no recurso de apelação ordinário. D- Desta forma, e apesar da esforçada tentativa do recorrente em alegar à saciedade à possível prática de atos inúteis, de acordo com os princípios de economia processual e utilidade dos atos processuais, na remota hipótese de a presente revista ser julgada procedente, não poderá lograr. E- Inventa o recorrente uma previsão legal nova para si próprio, contrariando totalmente os normativos legais em vigor. F- Como ensina António Santos Abrantes Geraldes, in Recursos no Novo Código Processo Civil, 2017, 4ª Edição, Almedina, pág. 413 a 415, em nota ao artigo 676.º do CPC, “1. O preceituado no n.º 1 não apresenta especiais dificuldades de interpretação. A regra é a de que o recurso de revista tem sempre efeito meramente devolutivo, com o claro significado de que a sua interposição não colide com a produção imediata de efeitos decorrentes do Acórdão da Relação.”. G- E, de seguida, o mesmo Autor faz a conclusão óbvia da possível atribuição de efeito suspensivo SÓ nas ações sobre o estado das pessoas: “Assim acontece com o decretamento do divórcio, o estabelecimento de paternidade ou da maternidade ou com a apreciação da interdição ou de inabilitação”. H- Posto isto, o efeito é meramente devolutivo, desde já se requer determinação expressa nesse sentido, de forma que o aqui Recorrido possa dar cumprimento do doutamente decidido no Acórdão do Tribunal da Relação, em consonância também com o previsto no n.º 3 do artigo 676.º do CPC, de forma a que se promova todos os efeitos jurídicos daí decorrentes.
QUESTÃO PRÉVIA I - Na esteira de uma postura processual, que haverá de considerar-se menos como coerente do que como obstinada, o recurso interposto pelo Recorrente não detém qualquer fundamento que evidencie razão para a interposição do recurso de revista da decisão proferida em segunda instância, pela Veneranda Relação do Porto. J - Os Venerandos Desembargadores julgaram com pleno acerto e perfeita observância da lei aplicável ao presente caso, forma que não pode tal decisão coletiva merecer qualquer reparo e os argumentos do recorrente, que se tratam de uma reutilização das contra-alegações já apresentadas, já foram atendidos e tidos em consideração na decisão recorrida não podem, em consciência, conhecer outro desfecho, que não o da sua improcedência, evidencia-se assim a falta de razão da Recorrente. K - Em bom rigor, assenta a Revista não só em matéria de Direito, quanto à possibilidade de exercer o direito de remição, mas também procurar verter sobre matéria de facto mais concretamente numa tentativa impotente de enquadrar matéria de facto num abuso de direito (o que foi manifestamente improcedente na decisão recorrida) – o que não se aceita, devendo tal parte do recurso de revista ser totalmente desconsiderada uma vez que não verte sobre factualidade de Direito. L - No que ao restante teor concerne, quer pela sua caracterização objetiva, quer pela caracterização subjetiva, não consente outra solução que não seja aquela a que chegou o Tribunal da Relação, que veio alterar a decisão da Primeira Instância, que na apreciação da causa atendeu, na sua essência, à letra da lei, à intenção do legislador e diretamente a todos os institutos jurídicos aqui chamados à colação, perfeitamente e com uma interpretação totalmente atual e vanguardista, sendo manifestamente impossível e contrário ao âmago da justiça que se verificasse naquele Acórdão outra qualquer solução. M - O Recorrente procura lançar a confusão na invocação de questões que foram claramente apresentadas e esclarecidas pelo aqui Recorrido e ainda perfeitamente interpretado pelos Venerandos Desembargadores; mais, o Recorrente procura lançar a confusão na invocação de Jurisprudência, por este apelidada como contrária à Decisão da Relação, mas que, analisando-a com rigor, verte sobre temas diferentes do dos presentes autos; ademais, o Recorrente ignora a Jurisprudência mais recente e atual, invocando Jurisprudência já ultrapassada sempre na tentativa de causar essa confusão; e, por fim, ferido de base legal e de base lógica que satisfaçam as suas pretensões, procura enquadrar a conduta do aqui recorrido num abuso de direito, quando nada de abusivo se tem a apontar a este. N - Sendo certo que o Recorrido não pode deixar de manifestar a sua total estupefação perante tal Recurso, desabafando até, que, salvo o devido respeito, e ao contrário do que faz crer o Recorrente quando à saturação invoca que a 2ª Instância decidiu mal, não iria o Tribunal da Relação do Porto, não iriam os Venerandos Desembargadores, de ânimo leve, de forma leviana, revogar uma decisão da primeira instância, pelo que parece ser imperativo que a decisão se deverá manter in totum. DAS ALEGAÇÕES DO RECORRENTE O - A pretensão do Recorrente, efetivamente, está lá, apenas não se encontra acompanhada de uma fundamentação de Direito robusta e, muito menos, acompanhada das razões (lógicas ou ilógicas) pelas quais o Tribunal de Segunda Instância errou na sua decisão, isto é, o recorrente procura reverter a decisão de um Tribunal Superior, através de rebuscadas interpretações da lei e com fundamentação em Acórdãos que vertem sobre temas diferentes do dos presentes autos. P - Entende o Recorrente que a Veneranda Relação enfermou em erro de julgamento ao considerar que o aqui Recorrido é um verdadeiro terceiro relativamente à execução e, concluindo depois, na sua opinião que por este motivo por “não ser um terceiro” não poderia exercer o direito de remição – Ora, está errada o recorrente. Q - Alega também que se o recorrente tinha dinheiro para exercer o direito de remição também teria para pagar a quantia exequenda -, como bem se sabe este argumento é totalmente falacioso, porque os bens pessoais do Recorrido em nada têm que ver com o pagamento da quantia exequenda, à qual apenas respondem os bens resultantes da sua quota do acervo hereditário… além do mais, e sendo o mesmo detentor deste direito, não sendo este executado, não sendo este responsável pelo pagamento da quantia exequenda está desprovido de sentido este mesquinho e falacioso silogismo. R - Em suma, pretende o recorrente nas suas alegações que o Acórdão recorrido seja revogado pois, no seu entender, o Recorrido não é um terceiro em relação à execução (entendimento errado); entende também, erradamente, que o recorrido ao substituir o de cujus, executado originário, na lide fica com os direitos e deveres que a este assistia (mas quid iuris para os direitos que o recorrido tinha antes da habilitação? O recorrente apenas alega o que lhe convém); ademais teoriza este sobre a possibilidade de os bens do recorrido decorrentes da herança serem penhoráveis (mas qual a relevância deste ponto para o exercício do direito de remição através de bens próprios do recorrido?); Por fim, e mais uma falácia pretensiosa, quando este vem dizer que o escopo do direito de remição é que o bem fique na família de forma abstrata e não na posse de um familiar… Salvo o devido respeito, é até de má-fé tal estupefacto argumento. S - Por fim, requer ainda que o exercício do direito de remição seja considerado abuso de direito – invocando para tal uma alteração das factualidades consideradas – o que deverá ser liminarmente desconsiderado uma vez que o Supremo Tribunal de Justiça só conhece de matéria de Direito. T - Esta é a pretensão do Recorrente, ou seja, totalmente oposta às considerações tecidas, e manifestamente bem, no Acórdão recorrido, sucede que, tal pretensão jamais poderá lograr. DA ALEGADA IMPOSSIBILIDADE DO RECORRRIDO DE EXERCER O DIREITODE REMIÇÃO U - O Direito de Remição encontra-se previsto no artigo 842º do Código Processo Civil, e compete ao cônjuge que não esteja separado judicialmente de pessoas e bens e aos descendentes ou ascendentes do executado. É-lhes reconhecido o direito de remir todos os bens adjudicados ou vendidos, ou parte deles, pelo preço por que tiver sido feita a adjudicação ou a venda V - O direito de remição visa evitar a saída dos bens penhorados do âmbito da família do executado e com vista a tal desiderato reconhece aos seus familiares - cônjuge, descendentes ou ascendentes - o direito de se substituir ao comprador mediante o pagamento do preço por que tiver sido feita a adjudicação ou venda – cfr. artigos 839º nº 2 e 842º do CPC W - O aqui recorrido, surge nos autos, como co executado, na qualidade de herdeiro habilitado do primitivo executado e terá de ser óbvia a conclusão de que o próprio executado se encontra vedado de exercer este direito de remição, como bem concluiu o próprio Acórdão recorrido, uma vez que este, sendo devedor da quantia exequenda da sua totalidade, tem a obrigação de proceder ao pagamento da quantia exequenda por via da liquidação e esgotamento do seu património –sendo contrassenso se lhe permitisse exercer este direito. X - Contudo, conforme referiu o Acórdão Recorrido, “A situação não se apresenta a nosso ver tão linear se em causa está a pretensão de exercer o direito de remição por parte de um dos familiares identificados no artigo 842º do CPC quando tenham intervenção na execução, não enquanto executados originários, mas antes e apenas como herdeiros habilitados do originário executado, falecido na pendência da execução. O sucessor da parte falecida na pendência da causa é habilitado para prosseguir os termos da demanda nessa qualidade de herdeiro, para quem a posição jurídica litigiosa do de cujus foi transmitida por sucessão e que assim substitui, repete-se, nessa qualidade (cfr. artigo 351º nº 1 do CPC).”. Y - E este é o único entendimento plausível interpretando a Lei e a intenção do legislador na previsão deste instituto – pelo que, uma vez mais, em continua falácia incorre o Recorrente ao tentar equiparar o aqui Recorrido, que apenas assumiu a qualidade de co Executado em virtude do incidente de habilitação. Z - Com esta esta alteração modificativa da instância, este(s) apenas vai ocupar a posição do falecido e, com isso, e exerce os direitos e obrigações destes, contudo, O HERDEIRO HABILITADO NÃO PASSA A SER ELE PRÓPRIO EXECUTADO e, concomitantemente com esta ÓBVIA conclusão, e aliás decorre de lei, nos termos do artigo 2068.º do Código Civil, o seu património pessoal não responde pela dívida exequenda, mas antes e só os bens da herança. AA - Também não se lhe encontra vedado este direito, uma vez que sendo o Recorrido herdeiro, apenas lhe vai ser atribuída uma quota abstrata do acervo hereditário e não a propriedade sobre todos os bens, mormente sobre certo e determinado bem, mais especificamente sobre o imóvel objeto da remição – e tratando-se de uma herança o poder de dispor dos seus bens só pode ser exercido conjuntamente por todos os herdeiros (vide artigo 2091º do CC). BB - Como conclui perentoriamente a Relação, o Recorrido não assume assim uma posição processual idêntica à do executado; não tem o dever de pagara divida exequenda com o seu património pessoal (a contrário do que faz crer o Recorrente); pelo que, “não obstante enquanto herdeiro habilitado substituir na execução o falecido e originário executado/devedor, não passa ele mesmo a título pessoal a ser executado, implicando continuar a poder exercer o direito de remição na qualidade de descendente”. CC - E como já se refletira em sede de apelação, esta habilitação por parte do recorrido, acrescenta-lhe direitos processuais, mas não lhe retira direitos que antes possuía, como descendente do executado, como é o direito deremir o bem vendido ou adjudicado, nos termos do art. 842.º a 845.º do CPC. DD - Este entendimento foi o entendimento do Tribunal da Relação de Coimbra, em Acórdão de 22-05-2007, processo 212-E/1997.C1. E não é único, existe um Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 26 de março de 1963 que decidiu no sentido de que o filho de um dos executados, mesmo habilitado por óbito de um dos seus pais, poderia exercer o direito de remição. EE - Ademais, crê-se que o Acórdão recorrido, caracterizado por ser mais recente, adotando uma postura mais atualista e vanguardista, será ainda mais ponderado uma vez que – e como se refere no próprio – atendeu às diversas divergências doutrinais e jurisprudenciais e de forma clara, fundamentada inequívoca pautou pela óbvia decisão do recorrido poder exercer o direito de remição. FF - Por tudo exposto, andou bem o Tribunal da Relação do Porto na forma como decidiu e em ter concluído que assiste ao aqui Recorrido direito de remição sobre o bem penhorado e que hoje faz parte do acervo hereditário da herança aberta por óbito do(s) primitivo(s) executado(s) enquanto descendente deste(s). GG - Apenas uma breve menção ao facto de o recorrente referir no seu recurso que o direito à herança do recorrido pode ser penhorável, isto é a quota abstrata do acervo hereditário que lhe viesse a ser atribuída. HH - Ora, sucede que, tal menção é absolutamente irrelevante para “contestar” o exercício do direito de remição exercido pelo aqui recorrido, pois, como já se disse, este apenas é responsável pelo pagamento da divida exequenda na quota do que lhe vier a ser atribuído enquanto herdeiro – e sim, essa parte pode ser penhorada. II - Agora, o aqui recorrido exercendo o direito de remição sobre o imóvel em questão – tal como pretende – e recorrendo, para tal, para proceder ao pagamento do bem com património pessoal, em nada conflitua com a quota que este vier a receber da herança ser penhorável, o primitivo Executado não tivesse falecido, o Recorrido poderia exercer o direito de remição; logo, não deve ser pela circunstância de este ter habilitado o devedor originário por uma dívida alheia que deve perder esse direito e é por esta razão que não podem ser penhorados os seus bens, mas apenas o acervo hereditário. JJ - O critério material tem de prevalecer, a remição tem de ser admissível, pois o Recorrido cumpre os requisitos do artigo 842º do CPC, e o bem em questão que este pretende remir, não se encontra em posição de responder por uma divida do Recorrido, mas sim por uma divida do Executado originário, agora falecido. KK - Como esta divida não é do Recorrido, não deve, nem faz sentido, ser vedado o Direito de Remição ao mesmo. Até porque, o dinheiro utilizado para comprar o bem, por meio do Direito de Remição, irá, como é óbvio, ser utilizado para pagar a divida exequenda (veja-se, o princípio da instrumentalidade da venda executiva, cf. art. 813.º, n.º 1, CPC. LL - Por tudo o exposto, deverá manter-se in totum o Acórdão recorrido, tendo sido já declarado que assiste ao recorrido o direito de remição sobre o bem penhorado, devendo prosseguir-se com a venda do bem objeto de remição, tendo o recorrido para o efeito já procedido tempestivamente ao depósito do valor da proposta aceite de € 900.000,00, nos termos legais. ´
DO ALEGADO ABUSO DE DIREITO MM - Vem a Recorrente agora alegar, “a plenos pulmões” um abuso de direito do Recorrido, em ter vindo, em sede de apelação, exercer os seus direitos e procurar uma tutela jurídica dos seus interesses –legitimamente –esta invocação surgiu pela primeira vez e de forma inovadora por parte da recorrente nas suas contra-alegações à apelação do recorrido. NN - Salvo o devido e maior respeito, não colhe tal tentativa. OO - Em primeiro lugar, deverá toda esta alegação de abuso de direito ser absolutamente desconsiderada uma vez que requer a Suas Excelências, Venerandos Conselheiros, a análise de considerações e matéria de facto que já foi atendida de forma irrepreensível pela Relação do Porto. PP - Desta feita e segundo jurisprudência corrente do Supremo Tribunal de Justiça, apoiada pela doutrina e pela lei, a fixação da matéria de facto é da competência das instâncias, conhecendo o Supremo Tribunal de Justiça só da matéria de direito – pelo que terá de improceder esta irrisória tentativa de enquadrar o exercício do direito de remição em abuso de direito. QQ - Ainda assim, e por mera cautela, da factualidade invocada pelo Recorrente, nada leva a crer que o aqui Recorrido tenha atuado de forma abusiva ou tenha criado qualquer tipo de expectativa de uma omissão de comportamento perante outros, o direito de remição só pode ser validamente exercido a partir do momento em que o valor da venda se encontra definido e existe uma proposta aceite – pois só aí é que o remidor saberia o valor a depositar. RR - Pelo contrário do que o Recorrente invoca, sempre o aqui Recorrido demonstrou cabal interesse em exercer o direito de remição, mas como decorre da própria natureza do instituto, só o poderia fazer/concretizar após se verificarem vários aspetos processuais nomeadamente a definição do valor da venda, pelo que em momento algum escondeu os seus interesses e causou a criação de expectativas de não exercício desse direito a outros. SS-Por tudo o exposto se concluí que em momento algum o aqui recorrido atuou ou exerceu o seu direito excedendo manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito TT - Pelo que, muito bem decidiu o Tribunal de Segunda Instância ao declarar totalmente improcedente o invocado abuso de direito, decisão que se deverá manter inalterável. UU - Concluindo, de tudo o exposto ficou amplamente demonstrado que efetivamente o herdeiro habilitado ao assumir a posição do falecido nessa qualidade, não passa a ser ele próprio a título pessoal a ser executado, não respondendo o seu património pessoal pela divida exequenda, pelo que não haveria outra decisão mais adequada e justa ao caso concreto que aqui se discute que não o reconhecimento do direito de remição ao aqui recorrido. VV - Assim deve o recurso de revista interposto pelo Recorrente ser julgado totalmente improcedente mantendo-se a decisão do Venerando Tribunal da Relação do Porto na integra, nos exatos termos em que foi proferida
Pelo exposto e pelo mais que V.Exas. não deixarão de, proficientemente, suprir, deve o Acórdão recorrido ser mantido in totum, porque está elaborada de harmonia com as soluções legais para o caso em litígio e de harmonia com a Doutrina que nos é ensinada pelos melhores mestres de Direito, bem como da jurisprudência dominante, que não têm qualquer ilegalidade, contradição ou vício que a invalide, negando-se por isso provimento ao recurso. Só assim será feita, em rigor, inteira e sã justiça!»
13. A Relatora notificou a recorrente, para que, no prazo de dez dias, indicasse qual dos vários acórdãos, que cita nas alegações, invoca como fundamento do recurso de revista, por oposição de julgados, dado que, sendo o presente processo de natureza executiva, não seria em princípio admissível o recurso de revista, a não ser nos casos em que o recurso é sempre admissível (interpretação conjugada dos artigos 854.º e 629.º, n.º 2, al. d), todos do CPC). A recorrente respondeu, invocando o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 11.09.2006, Processo n.º 0653650, e juntando a certidão comprovativa do trânsito em julgado. Verificada a contradição jurisprudencial entre o acórdão recorrido e o acórdão cuja certidão de trânsito a recorrente juntou, admitiu-se o recurso de revista, com efeitos devolutivos, e não com efeitos suspensivos, como peticionou a recorrente, dado que esta hipótese só é admissível para as ações relativas ao estado das pessoas, nos termos do artigo 676.º, n.º 1, do CPC. E, nas causas de natureza patrimonial, o efeito da interposição do recurso de revista é meramente devolutivo,
14. Objeto do recurso Sabido que, ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, é pelas conclusões que se delimita o objeto do recurso, as questões a decidir são as seguintes: I – Saber se o co-executado, herdeiro do executado originário, preenche os requisitos legais para exercer o direito de remição; II – Saber se o exercício do direito, por parte do co-executado, constitui um abuso do direito, nos termos do artigo 334.º do Código Civil.
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
I - Do direito de remição do co-executado, herdeiro do executado originário 1. As instâncias divergiram quanto à questão de direito objeto do presente recurso de revista. O tribunal de 1.ª instância recusou ao co-executado, herdeiro do executado originário, o direito de remição, com a fundamentação de que o herdeiro, no momento do exercício do direito, não era já um terceiro em relação ao processo executivo, mas uma parte (mormente executado) do mesmo processo, pois, enquanto filho do executado originário, foi habilitado na qualidade de sucessor do falecido AA, assumindo a partir da decisão de 15.5.2009 (apenso C), a qualidade de co-executado. Diferentemente, o acórdão recorrido revogou a decisão do tribunal de 1.ª instância, com o seguinte fundamento sintetizado no respetivo sumário, nos seguintes termos: «III - O direito de remição visa evitar a saída dos bens penhorados do âmbito da família do executado e com vista a tal desiderato reconhece aos seus familiares -cônjuge, descendentes ou ascendentes - o direito de se substituir ao comprador mediante o pagamento do preço por que tiver sido feita a adjudicação ou venda – cfr. artigos 839º nº 2 e 842º do CPC. IV - O herdeiro habilitado ao assumir a posição do falecido nessa qualidade, não passa a ser ele próprio executado. Não é o seu património pessoal que responde pela dívida exequenda, mas antes e só os bens da herança (cfr. artigo 2068º do CC). V - Não obstante enquanto herdeiro habilitado substituir na execução o falecido e originário executado/devedor, não passa ele mesmo a título pessoal a ser executado, implicando continuar a poder exercer o direito de remição na qualidade de descendente».
2. No caso dos autos, o co-executado, herdeiro do executado primitivo, pretende exercer o direito de remição e adquirir uma casa que era propriedade dos seus pais, por 900.000,00 euros, o valor pelo qual, em negociação particular através de proposta em carta fechada, também a agora recorrente o pretende adquirir. Quid Iuris?
Dispõe o artigo 842.º do Código de Processo Civil (CPC), o seguinte: Ao cônjuge que não esteja separado judicialmente de pessoas e bens e aos descendentes ou ascendentes do executado é reconhecido o direito de remir todos os bens adjudicados ou vendidos, ou parte deles, pelo preço por que tiver sido feita a adjudicação ou a venda.
A finalidade do preceito reside, precisamente, em permitir à família do executado a manutenção dos bens penhorados dentro da família, facultando ao cônjuge, descendentes ou ascendentes o direito de se substituírem ao comprador mediante o pagamento do preço, por que tiver sido feita a adjudicação ou venda – cfr. artigos 839º nº 2 e 842º do CPC. Destes preceitos resulta também que a lei veda ao próprio executado o direito de remir, na medida em que, cabendo a este a obrigação de proceder ao pagamento da quantia exequenda, por via da liquidação do seu património (artigo 812.º do CPC), se os bens retornassem ao seu património poderiam ser novamente penhorados na mesma execução, caso ainda não estivesse extinta por pagamento (cfr. Eurico Lopes Cardoso Manual da Ação Executiva, 3ª edição, p. 617). Entende-se, também, que, se o executado tem liquidez para comprar o bem, também terá para pagar a dívida ou parte dela, evitando o prosseguimento da execução, pelo que também por este motivo não seria lógico nem adequado aos interesses dos credores exequentes reconhecer o direito de remição ao executado. É deste modo que Alberto dos Reis (cfr. Processo de Execução, vol. 2º, p. 480) justifica o afastamento do direito de remição ao executado: a este cabe fazer cessar a ação executiva pelo pagamento. A jurisprudência tem qualificado o direito de remição como «(…) uma faculdade reconhecida a determinados familiares do executado (o cônjuge não separado judicialmente de pessoas e bens, os descendentes e os ascendentes) “de adquirir, tanto por tanto, ou seja, em relação de tanteio, os bens vendidos ou adjudicados na ação executiva” e fundamenta-se numa relação de carácter familiar, visando fundamentalmente a defesa do património familiar, obstando a que os “bens saiam da família do executado para as mãos de pessoas estranhas” (cfr. Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 14-12-2016, Revista n.º 577/10.2TBSJM-B.P1.S1) ou como um direito privilegiado ou de um direito de preferência reforçado, de caráter excecional, concedido em relação à venda coativa, não sendo lícito estender este privilégio a pessoas diferentes das que estão elencadas na lei (Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 01-03-2001, Agravo n.º 92/01). Nas palavras do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 10-07-2019 (proc. n.º 13072/17.0T8PRT-C.P1), «(…) trata-se de um direito (potestativo) com origem processual, que se constitui no momento da venda ou da adjudicação dos bens, que no seu exercício tem os mesmos efeitos do direito real de preferência e que permite aos familiares mais próximos do executado (cônjuge, descendente ou de ascendente) obter a adjudicação dos bens penhorados deste e vendidos, preterindo a proposta de compra apresentada por terceiros». O que define o direito de remição, para além da sua natureza potestativa de direito de preferência processual, é a sua função, como se afirma no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 09-03-2017 (Revista n.º 1629/13.2TBAMT.P1.S1), que o define como «(…) um direito funcionalmente direccionado para a tutela do património familiar, obstando à sua transmissão a terceiros, adjudicatários ou compradores em processos de natureza executiva» (destaque nosso). Como também esclarece o Acórdão da Relação de Coimbra, de 22-05-2007 (proc. n.º 212-E/1997.C1), «O direito de remição previsto para a execução singular confere, pois, a certos parentes ou familiares do executado, o direito de adquirirem, tanto por tanto, os bens vendidos ou adjudicados. É, assim, um verdadeiro direito de preferência legal, distinguindo-se dos demais direitos de preferência, por um lado, porque só tem lugar na venda executiva e, por outro lado, quanto à sua finalidade, este direito de remição não é senão um sobrevivente do velhíssimo direito de avoenga, destinado a impedir que certos bens saiam da família. A finalidade do direito de remição, inspirada na defesa do património familiar, é, pois, diferente da finalidade dos demais direitos de preferência, os quais têm por objectivo transformar a propriedade comum em propriedade singular, ou de reduzir a compropriedade, ou de favorecer a passagem da propriedade imperfeita para a propriedade perfeita. O direito de remição representa uma homenagem prestada à família do devedor. Homenagem justa, porque evita a desagregação do património familiar; homenagem inocente, porque nenhum prejuízo causa aos credores». Há unanimidade na doutrina e na jurisprudência quanto à finalidade do direito de remição: proteger o património da família do devedor, obstando a que dele saiam os bens penhorados. Mas não já quanto ao direito de remição do herdeiro habilitado que vem a substituir, na ação executiva, o executado originário após a sua morte. 3. Na doutrina e na jurisprudência, desenham-se duas posições: a posição que recusa às pessoas indicadas pelo artigo 842.º do CPC o direito de remição após a morte do executado e a posição que lhes reconhece o direito de remição. 3.1. A tese que recusa o direito de remição aos sucessores do executado apoia-se no argumento, segundo o qual a norma que atribui o direito de remição ao cônjuge, ascendentes e descendentes tem natureza excecional, não comportando, por isso, aplicação analógica, para evitar o alargamento arbitrário das hipóteses nele contempladas. Entende-se que estes sujeitos ocupam, após a morte do executado primitivo, a posição de executados, partes na causa, perdendo a sua qualidade de meros familiares do executado, para sucederem nos direitos e obrigações de que este era titular no processo executivo, o que teria como consequência lógica que, se o executado não é titular do direito de remição, então também não o é o herdeiro habilitado. Os herdeiros habilitados, na qualidade de executados, veriam ser-lhes aplicável a restrição que impede o executado de exercer o direito de remição, pelos mesmos motivos: se têm liquidez para comprar o bem penhorado, então, no interesse dos credores, deve ser dada prioridade ao pagamento da dívida, fazendo cessar a execução ou diminuindo a quantia exequenda; não faria sentido que os bens penhorados pudessem ser comprados pelos executados herdeiros porque o credor continuaria a ter o poder de os penhorar novamente. Esta é a tese defendida no Acórdão fundamento (Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 10-09-2006, proc. n.º 0653650), onde se entendeu que: «O filho do executado, habilitado como herdeiro daquele, por morte do pai, em acção executiva que contra aquele pendia, não goza do direito de remição, por, em consequência da habilitação, deter, agora, a qualidade de executado». (…) «E não goza porque não fazia sentido concedê-lo. Pela razão simples de que está na sua disponibilidade ficar com o bem: paga ao credor. Se tem dinheiro para ficar com o bem, também tem dinheiro para pagar ao credor. É isto que faz quem pretende remir. Ora os habilitados ficam na posição processual do primitivo executado. Sucedem-lhe. Vão ocupar o seu lugar. Se assim é, só podem ficar com os direitos que o primitivo executado tinha. E já vimos que não tinha o direito de remir. Logo, não lhes foi transmitido tal direito. Por outro lado, se o requerente tinha, antes, o direito de remir, por ser descendente do executado, perdeu-o. Perdeu-o porque não se justifica, como vimos, que ao executado seja concedido tal direito». Esta tese tem sido seguida pelos tribunais da Relação em acórdãos publicados em www.dgsi.pt (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 30-11-2006, proc. 1977/06-1; Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 17-12-2020, proc. n.º 1258/19.7T8VCT-H.G1 e Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 10-07-2019, proc. n.º 13072/17.0T8PRT-C.P1) e já foi adotada por este Supremo Tribunal, no Acórdão de 1-03-2001 (Agravo n.º 91/2001, não publicado), mas, neste caso, tão-só em relação ao cônjuge sobrevivo do executado e numa situação fáctica distinta da destes autos, na medida em que quem pretendia adquirir o bem era o próprio exequente e não um terceiro. Foi a seguinte a argumentação sintetizada no respetivo sumário: «I - O art.º 912 do CPC é uma norma excepcional que não comporta aplicação analógica – apenas as pessoas aí indicadas beneficiam do direito de remição, para que os bens não saiam do património familiar, e nelas não se inclui o executado, que pode sempre fazer cessar a execução, antes da venda, pagando a dívida. II - Não há que proceder à interpretação extensiva desse preceito, de modo a admitir que, numa execução intentada contra a mulher, entretanto falecida, o seu marido, habilitado como herdeiro, e, portanto, executado, possa remir a meação dela nos bens comuns, penhorada e vendida». Esta tese tem sido defendida por Lebre de Freitas, Isabel Alexandre e Armindo Ribeiro Mendes, na anotação ao artigo 842.º do Código de Processo Civil (in Código de Processo Civil Anotado, Vol. 3.º, Almedina, Coimbra, 3.ª edição, 2022, p. 834), em que os autores entendem que o direito de remição das pessoas indicadas no artigo 842.º do CPC está condicionado pela sua qualidade de terceiro relativamente à execução, retirando, com este fundamento, o direito de remição ao filho do executado que, ao mesmo tempo tenha sucedido, mediante habilitação no processo, ao outro executado (seu pai), entretanto falecido. 3.2. Todavia, esta construção jurídica, parecendo óbvia, levanta dúvidas numa análise de pormenor, como deve ser todo o processo de aplicação do direito. É que a posição jurídica dos co-executados, herdeiros do executado originário falecido na pendência da execução, não pode ser completamente decalcada da posição jurídica do de cujus. Há que ter em conta que os herdeiros não respondem com os seus bens próprios pelas dívidas da herança e que o património da herança é autónomo em relação ao património dos herdeiros, no sentido em que pelas dívidas da herança respondem só os bens desta e não os bens pessoais dos herdeiros. É este o regime jurídico que está estipulado no artigo 2068.º do Código Civil, que, sob a epígrafe “Responsabilidade da herança” dispõe que «A herança responde pelas despesas com o funeral e sufrágios do seu autor, pelos encargos com a testamentaria, administração e liquidação do património hereditário, pelo pagamento das dívidas do falecido, e pelo cumprimento dos legados». Assim, no rigor dos conceitos, não se pode considerar que os sucessores do de cujus, executado originário, sejam devedores do exequente, pois o seu património não responde pela dívida exequenda, que lhes é alheia, nem pode ser penhorado para garantir o pagamento da quantia exequenda. Ou seja, as razões que explicam que seja retirado ao executado originário o direito de remição não se ajustam à situação jurídica dos herdeiros, que, em relação ao objeto da execução, podem ser considerados terceiros, na medida em que não respondem com os seus bens pela dívida exequenda. Neste contexto, não se vê como possa desaparecer ou deixar de ser protegido pela lei, após a morte do executado primitivo, o interesse das pessoas enumeradas no artigo 842.º do CPC na preservação do bem na família. Neste sentido, bem andou o acórdão recorrido em entender que o herdeiro habilitado não passa a ser ele próprio executado. Não se pode esquecer que não é o seu património pessoal que responde pela dívida exequenda, mas antes e só os bens da herança e que esta dívida não é uma dívida própria do herdeiro habilitado, mas alheia. Ademais, como também se afirma, com razão, no acórdão recorrido, quando os familiares identificados no artigo 842.º do CPC intervêm no processo executivo não o fazem enquanto executados originários, mas antes e apenas na qualidade de herdeiros habilitados do primitivo executado, falecido na pendência da execução. É aceitável, perante esta realidade, que se divida a posição dos herdeiros numa dúplice função: por um lado, são parte na execução porque para efeitos processuais cabe-lhes, dentro do processo, exercer, em representação do de cujus, os direitos e as obrigações que cabiam ao executado originário, falecido na pendência da causa; por outro lado, são terceiros em relação ao objeto da execução, na medida em que, enquanto herdeiros, in casu descendentes, não respondem com os seus bens pelas dívidas da herança, mantendo assim o seu interesse, tutelado pela lei no artigo 842.º do CPC, em preservar os bens penhorados na família. É inegável que a razão de ser da norma ínsita no artigo 842.º do CPC continua a aplicar-se aos herdeiros descendentes do executado originário, após a morte deste, desde que não sejam devedores, como pode suceder, por exemplo, com o cônjuge que já antes da morte ocupava a posição de executado originário respondendo pelas dívidas comuns do casal. A posição jurídica dos filhos do de cujus no processo executivo resulta apenas de uma modificação subjetiva da instância (artigo 270.º, al. a), do CPC), em virtude da morte do executado originário, e da habilitação que lhes permite prosseguir os termos da demanda na qualidade de herdeiros a quem a posição jurídica litigiosa do de cujus foi transmitida por sucessão (artigo 351º, nº 1, do CPC). A finalidade deste incidente da instância implica que o herdeiro habilitado apenas vai ocupar a posição do falecido, exercendo os direitos e cumprindo as obrigações que a este último competiam, ficando sujeito à sua anterior atuação processual e aceitando a tramitação no estado em que a encontrar, bem como impulsionando o processo para o futuro. Mas, do ponto de vista do direito substantivo, não se pode afirmar que os herdeiros habilitados ocupem, quanto à responsabilidade pela dívida exequenda, a mesma posição do executado falecido na pendência da causa. É que, como vimos, sendo a herança um património autónomo, os herdeiros não assumem responsabilidade pessoal pelas dívidas do de cujus, nem se podem considerar executados, pois a lei subtrai o seu património pessoal à execução. Se o herdeiro adquirir o bem penhorado, este entra no seu património próprio e não poderá ser novamente executado pelo exequente, pois passará a integrar o património pessoal e intangível do herdeiro. Por outro lado, não é exigível aos executados, herdeiros do executado originário, que paguem a dívida exequenda com o dinheiro que pretendem usar para pagar a compra em negociação particular, porque esses valores são bens próprios. Não são assim válidas as razões invocadas pela doutrina para negar ao executado o direito de remição. A noção de terceiro não é uma noção rígida e com um único sentido. Constitui antes uma noção plurissignificativa, que tem uma extensão variável, mais ampla ou mais restrita, consoante o contexto jurídico em que é aplicável, atendendo à composição de interesses de cada situação. Ao julgador, é, pois, exigida uma ponderação de interesses para chegar à conclusão se um determinado sujeito é ou não terceiro quanto a uma determinada relação jurídica. No caso vertente, estamos perante uma relação jurídica entre o exequente e o executado, em relação à qual as pessoas referidas no artigo 842.º, in casu, os descendentes do executado, são terceiros. Será que, depois da morte do executado, operando-se a modificação subjetiva da instância e ocupando os descendentes, na qualidade de herdeiros, a posição jurídico-processual do executado originário, perdem a sua qualidade de descendentes interessados na manutenção do património do de cujus dentro da família? Extinguir-se-á esta qualidade e com ela o interesse protegido pelo artigo 842.º do CPC? Pensamos que não. Uma tal solução, para além de desprovida de lógica jurídica, não é exigível pela tutela dos interesses dos credores, a quem será indiferente que o bem seja adquirido pelo terceiro exterior à família ou por um membro da família, desde que o preço a pagar seja o mesmo e seja depositado na conta do processo. Na doutrina, Teixeira de Sousa pronuncia-se a favor da tese do direito de remição do herdeiro habilitado do executado, quando responde por dívida alheia, excluindo apenas deste direito o cônjuge que já era executado juntamente com o falecido, por dívidas comuns do casal (“Pode o executado exercer o direito de remição?”, in Blog do Instituto Português de Processo Civil, disponível para consulta https://blogippc.blogspot.com/2018/05/pode-o-executado-exercer-o-direito-de.html). Nesse artigo, afirma Teixeira de Sousa o seguinte: «Talvez o caso mais interessante que importa analisar é aquele em que um titular do direito de remição passa a assumir, através do incidente de habilitação, a posição de executado. Suponha-se, por exemplo, que a execução foi proposta contra A, pai de B; A falece e B é habilitado como herdeiro de A. Se A não tivesse falecido e se, na execução fosse vendido o prédio x de A, é indiscutível que B poderia exercer o direito de remição. Pergunta-se então: pela circunstância de A ter falecido e de B ter assumido a posição de executado (agora por uma dívida da herança), B perde o seu direito de remição? Imediatamente se vê que uma resposta positiva assenta num critério meramente formal. Se A não tivesse falecido, B poderia exercer o direito de remição; logo, não deve ser pela circunstância de B se ter tornado executado por uma dívida alheia que deve perder esse direito. B é terceiro perante a dívida exequenda, o que, aliás, justifica que apenas os bens que tenha recebido da herança possam responder por essa dívida (art. 744.º, n.º 1, CPC). Este critério material da aferição da posição de terceiro de B perante a dívida exequenda deve prevalecer sobre o critério formal de que B é executado. O critério geral é, pois, o seguinte: a remição é admissível (i) pelo executado que preenche as condições do art. 842.º CPC (ii) quanto a bens que não estejam a responder por uma dívida desse mesmo executado. Contra o referido critério formal, pode ainda acrescentar-se que o mesmo não encontra nenhuma justificação na finalidade da execução, que é a satisfação do crédito do exequente. Para esta parte é completamente indiferente que a quantia apurada para pagar o seu crédito provenha do adquirente do bem ou do executado que, nas condições acima referidas, tenha exercido o direito de remição. Sendo assim, o exercício do direito de remição pelo executado só está excluído quando a dívida for do próprio executado, dado que seria estranho que se admitisse que o executado que não pagou a dívida exequenda pudesse adquirir o bem cuja venda se destina a pagar essa mesma dívida. Se o executado possui liquidez para comprar o bem vendido na execução, o que se pode esperar é que essa liquidez seja utilizada para pagar, pelo menos parcialmente, a dívida exequenda, o que, aliás, até pode deixar sem justificação, atendendo ao princípio da instrumentalidade da venda executiva (cf. art. 813.º, n.º 1, CPC), a própria venda do bem que tinha sido penhorado. De acordo com o critério enunciado, o herdeiro que se torna executado por habilitação pode exercer o direito de remição na venda do bem da herança que se encontra penhorado, mas já não o pode fazer o cônjuge executado quanto a um bem comum ou a um bem próprio do outro cônjuge que responde por uma dívida comum. Dado que o que releva para o reconhecimento do direito de remição é que o executado não seja o devedor da dívida exequenda, o mesmo há que concluir no caso da pluralidade de executados, designadamente por haver uma pluralidade de devedores, uma pluralidade constituída pelo devedor e pelo fiador e ainda uma pluralidade integrada pelo devedor e pelo terceiro que é titular do bem sobre o qual recai a garantia real (cf. art. 54.º, n.º 2, CPC)».
3.3. Na jurisprudência adotou esta tese o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 22-05-2007 (proc. n.º 212-E/1997.C1), que reconheceu o direito de remição aos familiares do autor da herança. No Supremo Tribunal de Justiça a questão que tem surgido na jurisprudência é, sobretudo, a da desnecessidade de notificação das pessoas referidas no artigo 842.º do CPC para virem ao processo executivo exercer o direito de remição (Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 10-12-2009, Agravo n.º321-B/1997.S1; 13-09-2012, proc. n.º 4595/10.2TBBRG.G1.S1 e 14-12-2016, proc. n.º 577/10.2TBSJM-B.P1.S1) e ainda questão a da alegação de fraude à lei por parte do remidor, que não tem reunido prova suficiente (cfr. Acórdãos de 13-04-2010, proc. n.º 477-D/1996.L1.S1 e de 09-03-2017, Revista n.º 1629/13.2TBAMT.P1.S1). Quanto à questão destes autos, para além do já citado Acórdão de 1-03-2001, que não reconheceu ao cônjuge herdeiro do executado o direito de remição, existe um outro Acórdão que reconheceu este direito a uma filha do executado falecido na pendência da causa: o acórdão de 26 de março de 1963, BMJ, 125.º, p. 430.
3.4. No caso vertente, estamos precisamente num litígio entre uma sociedade comercial que pretende adquirir o bem penhorado por 900.000,00 euros, em negociação particular, e um familiar do executado, descendente deste, que ofereceu pelo bem o mesmo valor. Consistindo o direito de remição num privilégio ou preferência que reconhece a determinados membros da família do executado, os mais próximos, a faculdade de adquirir, tanto por tanto, os bens vendidos ou adjudicados no processo de execução, e que representa um verdadeiro benefício de carácter “familiar”, esta finalidade continua a fazer sentido mesmo quando as pessoas designadas no artigo 842.º do CPC vêm mais tarde a ocupar a posição jurídico-processual do executado, em virtude da sucessão mortis causa. Em igualdade de circunstâncias quanto ao preço oferecido como contrapartida da aquisição, deve prevalecer o interesse da família do executado sobre o interesse de outro potencial comprador. Terá sido esta a vontade do legislador e o resultado de uma interpretação sistemática e racional da lei. Pode, pois, o recorrido, herdeiro do executado, por ser filho deste, fazer-se substituir ao adjudicatário ou ao comprador, na preferencial aquisição de bens penhorados, mediante o pagamento do preço que tenha sido oferecido pelo terceiro. A ratio legis que subjaz à atribuição do direito de remição – impedir que os bens saiam da família do executado para as mãos de pessoas estranhas – permanece após a morte do executado. A verificação da sucessão mortis causa com todas as consequências, designadamente com a modificação subjetiva da ação executiva pendente contra o falecido, que conduz a que os herdeiros venham nela a assumir a posição de executados, não impede o julgador de recorrer a um critério material para aferir do direito de remição, nos casos em que o herdeiro habilitado ocupa a posição de executado em relação a uma dívida alheia. 4. Assim, improcedem as conclusões 1.ª a 13.ª da alegação de recurso da recorrente e confirma-se o acórdão recorrido, reconhecendo ao herdeiro habilitado, EE, o direito de remição.
II – Do abuso do direito 5. A recorrente entende ainda que o exercício do direito de remição pelo agora recorrido constituiu um manifesto abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium. Para fundamentar o seu entendimento alegou que a execução é de 2006, que em 15-05-2009 o aqui Recorrido assumiu a qualidade de co-executado e que em 2012 foi ordenada a venda por negociação particular, tendo sido apenas em 2019 que declarou pretender exercer o direito de remição, após ter silenciado durante mais de sete anos toda e qualquer proposta. Concluiu a recorrente que esse comportamento, tacitamente conformativo e aceitador da ação executiva, é completamente contraditório com o comportamento que o agora Recorrido assume, tentando fazer valer o direito de remição. Vejamos, então, se a factualidade destes autos conduz à conclusão propugnada pela recorrente. Em primeiro lugar, tem entendido a jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça (Acórdão de 23-03-2021, proc. 2620/17.5T8VFR.P1.S1) que «O abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium só existe em casos excecionais, não bastando que o titular do direito, ao exercê-lo, manifeste um comportamento contrário ao anterior, sendo ainda necessário que o comportamento posterior se apresente clamorosamente oposto aos ditames da lealdade e da correção imperantes na ordem jurídica e nas relações entre os contraentes», até porque «(…) não existe no direito civil um princípio geral de proibição do comportamento contraditório» (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12-11-2013, proc. n.º 1464/11.2TBGRD-A.C1.S1). O Supremo Tribunal de Justiça no Acórdão de 02-12-2013 (processo n.º 306/10.0TCGMR.G1.S1), definiu, também, a seguinte orientação: «A aplicação do instituto do abuso do direito tem uma natureza subsidiária, só a ele sendo lícito recorrer na falta de uma norma jurídica que resolva, de forma adequada, a questão em causa, exigindo-se a prova rigorosa dos seus elementos constitutivos e a ponderação dos valores sistemáticos em jogo, sob pena de se tratar de uma remissão genérica e subjectiva para a materialidade da situação». Para estarmos perante um venire contra factum proprium, suscetível de paralisar o exercício de um direito subjetivo reconhecido pela lei, têm de estar provados os seguintes pressupostos: 1 - A existência dum comportamento anterior do agente suscetível de basear uma situação objetiva de confiança; 2 - A imputabilidade das duas condutas (anterior e atual) ao agente; 3 - A boa fé do lesado (confiante); 4 - A existência dum “investimento de confiança”, traduzido no desenvolvimento duma atividade com base no factum proprium; 5 - O nexo causal entre a situação objetiva de confiança e o “investimento” que nela assentou.
6. Vejamos os factos alegados pelo recorrente. O recorrente não alega qualquer intenção do remidor de vender o bem a terceiro, que não está sequer minimamente indiciada nestes autos. Uma situação destas, a provar-se, seria evidentemente uma fraude que tornaria o negócio nulo e paralisaria o direito de remição. O recorrente baseia-se apenas no momento tardio em que o remidor exerceu o direito sem nunca o ter revelado antes, durante um período de sete anos, tendo, portanto, incorrido num comportamento contraditório, ou seja, após criar expetativas na recorrente de que não o faria, defraudou essas expetativas vindo exercer o direito tardiamente, devendo, pois, o seu direito a remir ser recusado. Ora, estando em causa a compra do bem, pode haver, legitimamente, da parte do herdeiro habilitado, hesitação no exercício do direito de remição por não dispor ainda do dinheiro necessário para a aquisição, que só mais tarde consegue reunir. De qualquer modo, independentemente dos motivos da demora na comunicação de que pretende exercer o direito, o que interessa é que o fez tempestivamente e de acordo com a lei (artigo 843.º do CPC), não se tendo provado qualquer ato que fosse contrário à finalidade do direito de remição – manter o património na família – ou indiciasse uma intenção fraudulenta. A mera circunstância do exercício do direito se ter verificado decorridos cerca de sete anos após ter sido ordenada a venda por meio de negociação particular, só por si, não significa qualquer comportamento contraditório com desvalor para paralisar o exercício do direito, nem para pôr em causa a boa fé do herdeiro habilitado. Até porque o direito de remição só pode operar após definição do valor da venda e o herdeiro habilitado que podia ter comprado o bem por um menor valor (575.000,00 euros – v. ponto 5.1. do Relatório), deixou o preço subir por entender que as propostas anteriores estavam muito abaixo do valor real do imóvel, o que traduz uma reta intenção. Por outro lado, a recorrente não fez um investimento na confiança que justifique a aplicação da figura do abuso do direito. Limitou-se a fazer uma proposta para um negócio que, presumindo-se ser um bom negócio, não chegou a concretizar-se porque o herdeiro habilitado exerceu o direito de remição que lhe é reconhecido pela lei. Trata-se apenas de uma vicissitude que resulta do funcionamento normal do sistema jurídico com o qual qualquer investidor em bens penhorados e objeto de venda executiva tem de contar.
7. Assim, não estão provados os requisitos da figura do venire contra factum proprium tal como definidos pela doutrina e pela jurisprudência, não sendo aplicável ao caso dos autos a norma do artigo 334.º do Código Civil, que consagra o instituto do abuso do direito.
Improcedem as conclusões 14.ª a 36.ª e confirma-se o acórdão recorrido.
8. Anexa-se sumário elaborado nos termos do artigo 663.º, n.º 7, do CPC. I - O direito de remição confere a certos parentes ou familiares próximos do executado (Cônjuge, descendentes e ascendentes), o direito potestativo de adquirirem, tanto por tanto, os bens vendidos ou adjudicados. O que o define é a sua função como um direito funcionalmente direcionado para a tutela do património familiar, obstando à sua transmissão a terceiros, adjudicatários ou compradores em processos de natureza executiva. II – O co-executado, filho dos executados originários, que intervém no processo executivo na qualidade de herdeiro habilitado dos seus pais, falecidos na pendência da execução, apesar de ser parte na execução, para o efeito de substituir os executados falecidos no processo, é terceiro em relação ao objeto da execução, na medida em que, enquanto herdeiro, a dívida exequenda lhe é alheia e não responde com os seus bens por ela, mantendo assim o seu interesse, tutelado pela lei no artigo 842.º do CPC, em preservar os bens penhorados na família. III - A noção de terceiro não é uma noção rígida e com um único sentido. Constitui antes uma noção plurissignificativa, que tem uma extensão variável, mais ampla ou mais restrita, consoante o contexto jurídico em que é aplicável, atendendo à composição de interesses de cada situação. IV - A mera circunstância do exercício do direito de remição se ter verificado decorridos cerca de sete anos após ter sido ordenada a venda por meio de negociação particular, só por si, não significa qualquer comportamento contraditório suscetível de constituir um abuso do direito, na modalidade de venire contra factum proprium, suscetível de paralisar o exercício do direito.
III – Decisão Pelo exposto, decide-se na 1.ª secção deste Supremo Tribunal de Justiça, negar a revista e confirmar o acórdão recorrido.
Custas pela recorrente. Lisboa, 21 de junho de 2022 Maria Clara Sottomayor (Relatora) Pedro de Lima Gonçalves (1.º Adjunto) Maria João Vaz Tomé (2.º Adjunto) |