Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
119458/16.3YIPRT.P1.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: ANTÓNIO MAGALHÃES
Descritores: ARRENDAMENTO PARA FINS NÃO HABITACIONAIS
PRAZO CERTO
DENÚNCIA
RENDA
LIBERDADE CONTRATUAL
NORMA SUPLETIVA
CLÁUSULA PENAL
ABUSO DO DIREITO
BOA FÉ
PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
NULIDADE DE CLÁUSULA
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
AUDIÇÃO PRÉVIA DAS PARTES
DECISÃO SURPRESA
NULIDADE PROCESSUAL
NULIDADE DE ACÓRDÃO
INADMISSIBILIDADE
EXCESSO DE PRONÚNCIA
PROCESSO EQUITATIVO
CONSTITUCIONALIDADE
Data do Acordão: 02/09/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I. A violação do princípio do contraditório do art. 3º, nº 3 do CPC dá origem não a uma nulidade processual nos termos do art. 195º do CPC, mas a uma nulidade do próprio acórdão, por excesso de pronúncia, nos termos dos arts. 615º, nº 1, al. d), 666º, n.º 1, e 685º do mesmo diploma;

II. A cláusula prevista num contrato de arrendamento para fins não habitacionais pelo prazo de 5 anos, em que se prevê que “Se a Segunda Outorgante pretender cessar o contrato de arrendamento, antes de decorrido o prazo referido no número 1 da presente cláusula, constitui-se na obrigação de pagar à Primeira o montante das rendas vincendas, respeitantes ao período que medeia entre a data de cessação e a data de final do prazo contratual”, é uma cláusula penitencial,  na medida em que é independente do facto de se tratar de um inadimplemento contratual e, portanto, de um facto ilícito;

III. À semelhança do que sucede com as cláusulas penais, que pressupõe o incumprimento do contrato, também na cláusula referida em 2. se justifica o controlo da legitimidade do exercício do exercício do direito à pena, nos termos do art. 334º, nº 1 do Código Civil:

IV. Existe abuso de direito, por violação dos limites impostos pela boa fé (de que o princípio da proporcionalidade é um sub-princípio), se houver desproporção grave entre o benefício do titular exercente do direito e o sacrifício por ele imposto a outrem;

V. Ora, existe uma manifesta desproporcionalidade entre a vantagem auferida pela autora (que recebe 36 rendas vincendas, no montante de 68.400 euros, acrescidos de juros, sem proporcionar à arrendatária o gozo do locado) e o sacrifício imposto pela autora aos réus, sócios da arrendatária (que pagam aquelas rendas, por a arrendatária ter feito uso da denúncia prevista no contrato);

VI. Em consequência do abuso, deve paralisar-se o exercício do direito da autora à pena e denegar-se a sua pretensão de pagamento das rendas vincendas após a denúncia da arrendatária.

Decisão Texto Integral:


Acordam na 1.ª Secção Cível do Supremo Tribunal de Justiça:

*



“Imodávila - Sociedade de Gestão e Investimento Imobiliário S.A.”, com sede …, intentou a presente acção declarativa de processo comum contra “Silhuetomania - Nutrição, Saúde e Beleza Lda.”, com sede …, pedindo a condenação no pagamento da quantia de €68.400,00, acrescida de juros de mora vencidos, no montante de €1.836,49 e vencidos até efectivo e integral pagamento à taxa legal

Foi requerida e admitida a intervenção principal provocada de AA e BB os subscritores do contrato de arrendamento em questão (que, conforme nele consta, na parte final em relação aos segundos outorgantes, foi subscrito pelos dois mas deixou em aberto a futura intervenção da recorrente, o que se veio a verificar).

 Entretanto a sociedade requerida foi dissolvida e liquidada, mostrando-se registada a sobredita situação, tendo a acção prosseguido com os dois supra referidos intervenientes enquanto sócios da mesma conforme aliás despacho (fls. 207) citado no relatório da decisão sob recurso (como se extrai do documento de fls. 204 e segs., encontra-se registada na Conservatória do Registo Comercial a dissolução da sociedade Ré e o encerramento da sua liquidação).

A final proferiu-se despacho saneador/ sentença que julgou a presente acção procedente por provada, e consequentemente condenou a Ré (substituída pelos seus sócios) no pedido.

 Os supra referidos AA e BB apelaram da sobredita decisão, tendo a Relação revogado a sentença e absolvido a ré do pedido.

 Não se conformou a autora que interpôs recurso de revista, rematando a alegação com as seguintes conclusões:

 “I - Foi com total estupefacção, desagrado e (de todo o modo respeitosa discordância que a ora Recorrente tomou conhecimento do teor do Acórdão do Tribunal da Relação de que se recorre

 II - A Autora, ora Recorrente, celebrou com os Réus, representantes SILHUETOMANIA - NUTRIÇÃO, SAÚDE E BELEZA, LDA., um contrato de arrendamento com fins não habitacionais em 01 de Junho de 2014.

 III - Após intensas negociações entre as partes com reuniões presenciais e comunicações escritas [comprovadas pelosdocumentosde comunicações trocadas entre as partes juntas pelos próprios Réus (ora Recorridos) com a sua Contestação (cfr. documento com Ref. CITIUS n.º ……)] vieram as partes fixar a celebração do contrato de arrendamento pelo período de 5 (cinco) anos.

 IV - Recorrente e Recorridos livre e voluntariamente estipularam no nº 3 da Cláusula 2ª do Contrato de Arrendamento que “nos termos legais, se a Segunda Outorgante pretender cessar o contrato de arrendamento, antes de decorrido o prazo referido no número 1 da presente cláusula, constitui-se na obrigação de pagar à Primeira o montante das rendas vincendas, respeitantes ao período que medeia entre a data de cessação e a data de final do prazo contratual”

 V - Os Recorridos denunciaram voluntariamente o contrato de arrendamento, incumprindo o prazo de duração que livremente tinham acordado com a Recorrente

VI - O Contrato de Arrendamento cessou por denúncia dos Recorridos, sendo que veio posteriormente a Recorrente interpor uma acção judicial peticionando a condenação dos Recorridos no pagamento da quantia de 70.236,49 Euros cuja obrigação de pagamento dos Recorridos deriva do contratualizado pelas partes no Contrato de Arrendamento celebrado

 VII - O Tribunal de 1.ª Instância veio considerar tal cláusula como plenamente válida e eficaz, tendo condenado os Recorridos no pagamento à Recorrente daquela quantia. Sumariamente considerou a 1.ª Instância que tal fixação antecipada do montante indemnizatório pelas partes enquadrava-se no âmbito da liberdade contratual conferida pelo artigo 405.º C.C.

 VIII - Daquela decisão da 1.ª Instância vieram os Recorridos interpor Recurso de Apelação, o qual culminou com a revogação inexplicável e surpreendente da sentença proferida pela 1.ª Instância

IX - O Tribunal da Relação do Porto revogou tal sentença descurando todos e quaisquer argumentos esgrimidos pelos Réus (ora Recorridos) nas suas Alegações de Recurso, refutando a sua argumentação, e considerando que a cláusula em causa não viola normas imperativas, não é violadora da ordem pública ou dos bons costumes. Contudo, considerou a nulidade de tal cláusula sustentando que “na circunstância, se abusou do direito (art. 334º do CC) designadamente tendo como pano de fundo o fim social e económico do direito de denúncia em questão que, neste caso, se mostra afectado como se procurou demonstrar.”

 X - Salvaguardando o devido respeito – que será sempre inabalável – tal decisão jurisdicional tem forçosamente de ser plenamente censurada, revelando ser um atropelo aos mais elementares princípios jurídicos do nosso ordenamento, e das normas processuais aplicáveis.

 XI - O julgamento do Tribunal da Relação do Porto, no que contende com a apreciação do Direito afigura-se, na óptica da Recorrente, profundamente errado, infundado e injusto, assentando a divergência da ora Recorrente naincorrecta edesadequada apreciação jurídica da causa, designadamente no que concerne à decisão de considerar a nulidade da referida cláusula por abuso do direito, sem prejuízo da nulidade processual em que incorre tal decisão nos termos infra expostos

 XII - Tendo a presente causa um valor superior à alçada do Tribunal da Relação … [decuja decisão ora se recorre],sendo desfavorávelà oraRecorrente em valor superior a metade dessa alçada, e estando igualmente verificado o critério da sucumbência mínima exigida pelo n.º 1 do artigo 629.º do C.P.C., dúvidas não subsistem quanto à admissibilidade do presente Recurso de Revista nos termos do artigo 678.º e 629.º do C.P.C..

  DA NULIDADE POR OMISSÃO DO DIREITO AO CONTRADITÓRIO DA AUTORA

XIII - Jamais foi promovida pelo Tribunal da Relação a quo um debate sobre a existência, ou não, de uma situação de abuso do direito, além de nem tão pouco se mostrarem observados uma realidade conducente à existência de qualquer situação de abuso do direito nos presentes autos

 XIV - Em nenhum momento dos presentes autos, foi a ora Recorrente instada a pronunciar-se sobre a existência, ou não, de abuso do direito, tendo inexistido qualquer debate (ainda que escrito) sobre esta questão

 XV - Em respeito ao Princípio do Contraditório, não o poderia fazer sem permitir às partes pronunciarem-se sobre a mesma por escrito, o que efectivamente não aconteceu

 XVI - Assim, esta violação do Princípio do contraditório consubstancia a prolação de uma decisão surpresa proibida pelo n.º 3 do artigo 3.º do C.P. C..

 XVII - Ou seja, consagra-se no referido n.º 3 do artigo 3.º do C.P.C. o princípio do contraditório, designadamente através da proibição de decisão-surpresa, isto é, da decisão baseada em fundamento que não tenha sido previamente considerado pelas partes

 XVIII - Como assevera o Supremo Tribunal de Justiça, no seu Acórdão de 12 de Julho de 2018 que «a decisão-surpresa que a lei pretende afastar, afoitamente, contende com a solução jurídica que as partes não tinham a obrigação de prever, para evitar que sejam confrontadas com decisões com que não poderiam contar e não com os fundamentos não expectáveis de decisões que já eram previsíveis (…)»

 XIX - O exercício do contraditório negado à Autora – ora Recorrente, deveria ter lugar antes de proferido o Acórdão ora recorrido, tratando-se até de um acto preparatório do mesmo. Mas não aconteceu!

 XX - A posição do Tribunal Constitucional é liminar [vide Acórdão n.º 298/2005 de 7-06-2005]: «o princípio do contraditório decorre a regra fundamental da proibição da indefesa, em função da qual nenhuma decisão, mesmo interlocutória, deve ser tomada, pelo tribunal, sem que, previamente, tenha sido dada às partes ampla e efetiva possibilidade de a discutir, contestar e valorar»

 XXI - Não tendo sido dada às partes a possibilidade de se pronunciarem por escrito sobre o abuso do direito, é então possível concluir-se que em não foi permitido à Autora – ora Recorrente - o seu debate, numa gritante violação do n.º 3 do artigo 3.º do Código de Processo Civil, tendo sido antes confrontada por uma efectiva DECISÃO-SURPRESA!

 XXII - De facto, «A inobservância do contraditório constitui uma omissão grave, representando uma nulidade processual sempre que tal omissão seja susceptível de influir no exame ou na decisão da causa, sendo nula a decisão (surpresa) quando à parte não foi dada possibilidade de se pronunciar sobre os factos e respectivo enquadramento jurídico»11

 XXIII - Veja-se igualmente o Supremo Tribunal de Justiça [acórdão de 4-05-1999], que é liminar em afirmar que: “nenhuma decisão deve, pois, ser tomada pelo juiz 11 Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 19 de Abril de 2018 sem que previamente tenha sido dada ampla e efectiva possibilidade ao sujeito processual contra quem é dirigida, de a discutir, de a contestar e de a valorar”

 XXIV - A decisão do Tribunal da Relação que revogou a sentença proferida pela 1.ª Instância revestiu a forma de uma “decisão-surpresa”, sem audição da Autora para que exercesse o seu contraditório (escrito) quanto a uma questão de direito que jamais havia sido suscitada nos autos [abuso do direito].

 XXV - Trata-se, antes de mais, de uma nulidade processual, na medida em que se terá omitido a prática de um acto que a lei prescreve [artigo 195.º, n.º 1 C.P.C.].

 XXVI - Mas também, nestes termos, e visto que ficou a Autora impossibilitada de deduzir uma defesa eficaz, útil ou adequada no exercício do seu direito ao contraditório, estamos perante uma nulidade, por violação dos princípios do contraditório (cfr. art. 3.º, n.º 1 e 3), da boa-fé processual (cfr. art. 8.º do C.P.C.), e do direito a um processo justo e equitativo (cfr. art. 20.º da C.R.P. e art. 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem), que, a ser desvalorizada e indeferida, redunda igualmente numa violação gritante do consagrado no artigo 20.º, n.º 4 da C.R.P., padecendo de incurável inconstitucionalidade o prosseguimento dos autos sem exercício de contraditório da Autora – ora Recorrente, a qual se deixa arguida para todos os efeitos tidos por convenientes

  DA ERRADA INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO DAS NORMAS LEGAIS

    A - DA INEXISTÊNCIA DE ABUSO DE DIREITO

 XXVII - Jamais se pode considerar que estamos perante qualquer abuso do direito que, consequentemente, faz enfermar tal cláusula de nulidade

 XXVIII - Só estaremos perante um abuso do direito quanto estamos perante um exercício anormal de um direito próprio, isto é, o exercício do direito em termos reprovados pela lei, embora respeitando a estrutura formal do direito, mas violando a sua afectação substancial, funcional ou teleológica.

 XXIX - Há, portanto, abuso de direito, segundo a concepção objectiva aceite no artigo 334.º C.C., sempre que o titular exerce o seu direito com manifesto excesso dos limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes, ou pelo fim económico ou social desse direito.

XXX - É preciso, portanto, como acentuava MANUEL ANDRADE, que o direito seja exercido “em termos clamorosamente ofensivos da justiça”.

 XXXI - Em concomitância com o exposto, a determinação da existência, ou não, do abuso de direito faz-se a partir de três conceitos: boa fé, bons costumes e o fim económico ou social do direito.

 XXXII - O fim social e económico do direito é a função instrumental própria do direito, a justificação da respectiva atribuição pela lei ao seu titular.

 XXXIII - É consensual que, no que respeita ao fim social ou económico do direito, «deverão considerar-se os juízos de valor positivamente consagrados (como sucede no poder paternal, no poder tutelar, etc.), a par de outros em que se reconhece maior liberdade de actuação ou decisão ao titular (direitos potestativos, direito de propriedade, dentro de certos limites, etc.)»

 XXXIV - Invoca o Tribunal da Relação ….. que a cláusula em causa é nula, porque se abusou do direito “tendo como pano de fundo o fim social e económico do direito de denúncia em questão que, neste caso, se mostra afectado como se procurou demonstrar”.

 XXXV - De qualquer forma, e na esteira do Supremo Tribunal de Justiça no seu aresto de 17 de Maio de 2017: «o exercício do direito só é abusivo quando o excesso cometido for manifesto. É isso que resulta expressamente do art.º 334.º do Código Civil e é também essa a lição de todos os autores e de todas as legislações»

  XXXVI- Para que fosse possível condenar o comportamento da Autora, ora Recorrente, como abusivo, era necessário encontrar. Nesse mesmo comportamento factos que demonstrassem que esta excedeu, manifesta e clamorosamente o fim social ou económico do direito exercido ou que, com a sua actuação, tinha violado expectativas dos Réus, ora Recorridos.

 XXXVII - Ora, em nenhum momento se poderá afirmar que as expectativas dos Réus foram violadas, uma vez que estes assinaram, de forma livre e consciente o contrato de arrendamento de onde constava a cláusula em discussão.

 XXXVIII - Por outro lado, e no que tange ao eventual excesso do fim social ou económico do direito exercido, sempre se diga que nos termos do artigo 1110.º n.º 1 do Código Civil: “As regras relativas à duração, denúncia e oposição à renovação dos contratos de arrendamento para fins não habitacionais são livremente estabelecidas pelas partes, aplicando-se, na falta de estipulação, o disposto quanto ao arrendamento para habitação.

  XXXIX - Isto significa, portanto, que as próprias partes podem até fixar no Contrato de Arrendamento a impossibilidade de o contrato de arrendamento ser passível de cessar por recurso à denúncia. E se o fizerem, dão simplesmente uso à liberdade contratual disponibilizada pelo legislador quanto a estas questões no arrendamento não habitacional.

 XL - De facto, outra conclusão não pode ser retirada deste artigo que não seja a da liberdade contratual das partes para a estipulação das cláusulas que lhes parecerem convenientes aos seus interesses no momento da celebração do contrato referentes aquelas matérias (denúncia, oposição à renovação e duração dos contratos).

 XLI - Ainda assim, e ao arrepio desta liberdade contratual – defende o Tribunal da Relação do Porto que a cláusula livremente acordada entre as partes é nula por abusar do direito

 XLII - Se analisarmos esta questão do prisma de que tal “coarcta o direito à denúncia”, diga-se que tal direito à denúncia não foi coarctado pelas partes, mas poderia tê-lo livremente sido, nos termos no n.º 1 do artigo 1110.º C.C.. De facto, Recorrente e Recorridos poderiam ter convencionado uma exclusão da possibilidade de denúncia do contrato de arrendamento, porque a lei assim o permite. Ainda assim, a verdade é que tal não foi limitado ou coarctado.

   XLIII - E como refere o próprio Supremo Tribunal de Justiça 12: «Não há abuso de direito quando dele apenas se pretendem tirar os efeitos que a lei confere».

 XLIV - Por outro lado, tal cláusula nem sequer inviabiliza a denúncia do contrato – e reflexo disso é que os próprios Réus o denunciaram.

 XLV - Não foi violado o direito à livre renúncia pelo arrendatário, tanto que os Réus – ora Recorridos - recorreram a tal mecanismo para denunciar o arrendamento, obedecendo aos prazos de pré-aviso prescritos, e sem que isso fosse impedido pela Autora – ora Recorrente.

  XLVI - Ora se os Réus utilizaram um direito que a lei lhes reconheceu, se o exercício desse direito conduziu às consequências jurídicas pelos Réus queridas [denúncia do contrato], como é possível que venha agora ser considerado que essa cláusula coarctou o direito do Réu à denúncia do contrato e como tal é abusiva?!

 XLVII - Deve ser liminarmente negado que na situação em causa estejamos perante uma violação dantesca do direito, quando as partes se limitaram a usar a autonomia privada que lhes é concedida, estabelecendo para tal uma cláusula penal. 12 Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 07 de Janeiro de 1991.

 XLVIII - Não se olvide também que “(...) o abuso do direito, enquanto “válvula de escape”, só deve funcionar em situações de emergência, para evitar violações chocantes  

  XLIX - No caso em concreto não se verifica nenhuma violação chocante do direito, pelo que a presente cláusula não deveria de ter sido considerada como nula por abuso de direito. Até porque o direito de denúncia do contrato de arrendamento – que as partes não excluíram do contrato, ainda que o pudessem fazer – foi efectivamente exercido pelos Réus, sem qualquer limitação ou constrangimento.

 L - Perceba-se que a cláusula em causa, livremente acordada pelas partes e por si negociada e pretendida, mais não é do que uma cláusula penal, livremente estabelecida pelas partes no âmbito da liberdade contratual que lhe é atribuída por lei

 LI - Veja-se um caso análogo(de foro laboral) decidido pelo Supremo Tribunal de Justiça [Acórdão de 10 de Janeiro de 2007]: «Já vimos que a cláusula, tendo sido aceite por ambas as partes, concretiza um princípio da liberdade contratual, nada impedindo que possa ser aplicada no âmbito de um contrato de trabalho a termo certo, ainda que com efeitos circunscritos a aspectos estatutários ou remuneratórios que possam decorrer do regime que tenha sido definido pela empresa, para os seus trabalhadores, em função da antiguidade. Não podendo imputar-se ao trabalhador um abuso de direito, quando este pretende obter, por via da acção, um efeito jurídico que possa derivar das estipulações contratuais livremente consignadas pelas partes»

  LII - A cláusula penal estipulada se situa dentro dos limites da liberdade contratual, não contendendo com a imperatividade do regime da denúncia dos contratos de arrendamento, uma vez que não coloca em causa, materialmente, a liberdade de denunciar, ainda que lícita e legitimamente lhe associe certos efeitos jurídicos e indemnizatórios

 LIII - E mais: «ainda que, em tese geral, não seja impossível configurar neste âmbito um exercício abusivo do direito, não poderá admitir-se uma intervenção do tribunal em termos tais que, na prática, venha a configurar uma inadmissível restrição do princípio da liberdade contratual» - Acórdão de 18-01-2018 do Supremo Tribunal de Justiça.

   B - DA AUTONOMIA PRIVADA E DA LIBERDADE CONTRATUAL DAS PARTES

LIV - A verdade é que o Tribunal da Relação do Porto faz tábua-rasa na sua decisão da autonomia privada das partes, princípio fundamental do Direito Português.

 LV - Numa acepção muito ampla, o conceito de autonomia privada refere o espaço de autodeterminação pessoal. Neste sentido, a autonomia privada é uma expressão do princípio da liberdade, permitindo tudo o que não for imposto ou proibido.

 LVI - A autonomia privada abrange quer a possibilidade de livre conformação das relações jurídicas entre as partes, permitindo a celebração de contratos ou, mais genericamente, de negócios jurídicos, e a aposição ao mesmo de determinado clausulado.

 LVII - A autonomia privada é frequentemente identificada com uma das suas mais significativas expressões: a liberdade contratual, prevista no artigo 405.ºdo Código Civil, abrangendo quer a possibilidade de celebrar ou não celebrar determinado contrato (liberdade de celebração), quer a possibilidade de fixação do conteúdo do contrato (liberdade de estipulação”

   Pede, a terminar, a revogação do acórdão e a confirmação da sentença da 1ª instância.

   Os recorridos contra-alegaram pugnando pela negação da revista.

       Cumpre decidir.

     Foram dados como factos provados os seguintes:

“1º Em 1 de Junho de 2014 celebrou a aqui Requerente com os representantes da aqui Requerida Silhuetomania - Nutrição, Saúde e Beleza S.A. um contrato de arrendamento com fins não Habitacionais.

2º. Tendo o mesmo por objecto a fracção autónoma designada pela letra “AY” do prédio sito na Estrada ….., freguesia de ….., concelho do …., inscrito na matriz predial urbana de freguesia de ….., sob o nº …. e descrito na …...ª Conservatória do Registo Predial do …, sob a ficha nº … com o alvará de utilização nº ALV/…. e com certificado de desempenho energético de qualidade do ar nº CE….., emitido em 05/11/2010.

3º. Nos termos da cláusula 3ª daquele contrato de arrendamento é devida pela aqui Requerente uma renda anual de €22.800,00 paga em duodécimos de €1.900,00

4º. Porém e conforme consta do nº 2 da cláusula 3ª, nos primeiros 24 meses de vigência do contrato a renda mensal seria de €1.650,00.

5º. Na data de 02/02/2016 recebeu a Requerente uma carta da Requerida, através da qual pretendia esta última fazer cessar os efeitos do contrato de arrendamento, a partir da data de 30/06/2016.

6º. A Requerida regularizou o pagamento das rendas até a data de 30/06/2016, data em que pretendeu operar a cessão de contrato de arrendamento.

7º. A requerida enviou por correio registado com aviso de recepção a chave do imóvel e a comunicação de que o imóvel estava naquela data livre de pessoas e bens e considerava resolvido o referido contrato.

Está ainda provado por documento:

“8º. Do contrato de arrendamento constam como segundos outorgantes AA e BB ou a sociedade que venham a constituir, o que veio a suceder, com a constituição da sociedade “Silhuetomania - Nutrição, Saúde e Beleza Lda.

9º. Na pendência da acção, a sociedade requerida foi dissolvida e liquidada, mostrando-se registada a sobredita situação.

10. A cláusula 2ª do Contrato de Arrendamento celebrado entre as partes no 1 de Junho de 2014 (fls. 57 a 65), que regula a duração do contrato, é do seguinte teor:

“1. O arrendamento produz efeitos a partir do dia 01 de Junho de 2014 e é celebrado pelo prazo de 5 anos, renovando-se automaticamente no seu termo, por períodos de 1 ano, salvo se qualquer um dos Outorgantes se opuser à respectiva renovação de acordo com o estabelecido no presente Contrato e nos termos previstos na lei.

2. (….)

3. Nos termos legais, se a Segunda Outorgante pretender cessar o contrato de arrendamento, antes de decorrido o prazo referido no número 1 da presente cláusula, constitui-se na obrigação de pagar à Primeira o montante das rendas vincendas, respeitantes ao período que medeia entre a data de cessação e a data de final do prazo contratual».

11º. A cláusula 3ª do Contrato de Arrendamento, nos nºs 1 e 2, estipula:

”1. A renda anual é de 22.800,00 (…), paga em duodécimos de 1.900 (…) até ao primeiro dia útil do mês anterior àquele a que disser respeito.

2. Contudo, nos primeiros vinte e quatro meses de vigência do presente contrato, a renda será de 1.650 (…)”

12º.  A cláusula 10ª do Contrato de Arrendamento, que respeita à cessação do contrato, estipula:

 “1. O contrato cessa, nos seguintes casos:

a) Por acordo das partes;

b) Por denúncia;

c) Por resolução;

d) Por oposição à renovação;

2. Salvo nos casos em que o contrário resulte expressamente deste contrato, a Segunda Outorgante não tem direito a ser indemnizado em virtude da cessação do contrato.

 13º. Não existe no contrato qualquer disposição que regule os termos da denúncia.”

O Direito.

Está em causa a validade da cláusula 2ª, nº 3 de um contrato de arrendamento para fins não habitacionais celebrado no dia 1 de Junho de 2014 entre a autora e a primitiva ré, do seguinte teor: «nos termos legais, se a Segunda Outorgante pretender cessar o contrato de arrendamento, antes de decorrido o prazo referido no número 1 da presente cláusula, constitui-se na obrigação de pagar à Primeira o montante das rendas vincendas, respeitantes ao período que medeia entre a data de cessação e a data de final do prazo contratual».

Com apelo ao disposto no nº 1 do artigo 1110º do Código Civil, o qual estabelece que “as regras relativas à duração, denúncia e oposição à renovação dos contratos de arrendamento para fins não habitacionais são livremente estabelecidas pelas partes”, o despacho saneador /sentença considerou que as disposições integradas pelas partes no contrato de arrendamento são admissíveis ao abrigo do princípio da liberdade contratual, razão pela qual concluiu que a cláusula 2ª, nº 3 em apreciação não está ferida de qualquer nulidade, por violação de qualquer norma imperativa.

De seguida, fazendo a destrinça entre cláusula de simples fixação antecipada do montante indemnizatório - a prevista no art. 810º, n.º 1 do Código Civil, a cláusula penal de índole exclusivamente compulsória e a cláusula penal em sentido estrito,  a sentença considerou que a autora como a ré pretenderam convencionar livremente uma cláusula indemnizatória,  que se enquadra dentro da liberdade contratual conferida pelo art. 405º do Código Civil, razão pela qual, também, não vislumbrava que tal cláusula fosse nula por contrária à ordem pública e aos costumes. pelo que, concluindo pela validade da referida cláusula, e uma vez que a primitiva ré e arrendatária pôs fim ao contrato de arrendamento 36 meses antes do seu termo, condenou a ré, substituída pelas sócias, nos termos do art. 162º do Código das Sociedades Comerciais, a pagar as rendas vincendas correspondentes aos referidos 36 meses.

Na apelação, a Relação reafirmou a responsabilidade das sócias ao abrigo do art. 162º do CSC, confirmou o entendimento da 1ª instância de que a cláusula em questão não viola propriamente normas imperativas - porque estamos perante um contrato para fins não habitacionais e o art. 1110º, nº 1 do Código Civil permite que as regras da denúncia sejam livremente estabelecidas pelas partes contratantes- nem é violadora da ordem pública ou dos bons costumes.

No entanto, considerando que a cláusula em causa, na prática, inviabilizava/ coarctava  a denúncia do contrato de arrendamento, na medida em que impunha ao denunciante uma obrigação que, cumprida, implicava, na prática, o cumprimento do contrato (com o pagamento das rendas vincendas) ao arrepio da liberdade de o denunciar - o que se mostrava desproporcionado e atentava com a liberdade de desvinculação contratual - concluiu que a cláusula em causa é nula  porque, na circunstância, se abusou do direito (art. 334º do CC) designadamente tendo como pano de fundo o fim social e económico do direito de denúncia em questão que, neste caso, se mostra afectado. Consequentemente, absolveu a Ré do pedido.

Da nulidade:

Suscitou a recorrente a nulidade processual prevista no art. 195º, nº 1 do CPC por omissão do direito ao contraditório relativamente à questão do abuso de direito, que esteve na origem de uma decisão-surpresa proferida pela Relação proibida pelo n.º 3 do art. 3º do CPC. Adjuvantemente, refere a violação da boa-fé processual (art. 8º do CPC), e do direito a um processo justo e equitativo (art. 20º da CRP e art. 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem), que, a ser desvalorizada e indeferida, redunda igualmente numa violação gritante do consagrado no artigo 20º, nº 4 da CRP., padecendo de inconstitucionalidade o prosseguimento dos autos sem exercício de contraditório da Autora.

É verdade que a Relação enveredou pela questão do abuso de direito que não tinha sido expressamente considerada na sentença. O que constitui uma decisão-surpresa, em resultado do não cumprimento do princípio do contraditório previsto no art. 3º, nº 3 do CPC.

Porém a recorrente arguiu a nulidade do art. 195º, nº 1 do CPC, com a consequente nulidade do acórdão. O que convoca a questão de saber se a decisão-surpresa é uma nulidade processual nos termos do art. 195º, n.º 1 do CPC ou uma nulidade da sentença, neste caso, do acórdão, nos termos dos arts. 615º, nº 1, al. d), 666º, nº 1, e 685º do mesmo diploma.

Propendemos para a segunda posição, de acordo com a posição que já expressámos no acórdão de 13.10.2020, proferido no proc. nº 392/14.4T8CHV-A.G1.S1, para o qual remetemos. Com efeito, escrevemos aí:

“Assim, e como se dá nota no acórdão do STJ de 23.6.2016, proc. nº 1937/15.8T8BCL.S1, em www.dgsi.pt: no escrito datado de 10.5.2014, no referido Blog (do IPPC de Teixeira de Sousa), em comentário ao Ac.R. de Évora, de 10.4.2014, o referido processualista observou que ainda que a falta de audição prévia constitua uma nulidade processual, por violação do princípio do contraditório, essa “nulidade processual é consumida por uma nulidade da sentença por excesso de pronúncia (art. 615º, nº 1, al. d), do NCPC), dado que sem a prévia audição das partes o tribunal não pode conhecer do fundamento que utilizou na sua decisão” Também em escrito datado de 23.3.2015, em comentário ao Ac. da R. do Porto, de 2.3.2015 concluiu que “o proferimento de uma decisão-surpresa é um vício que afecta esta decisão (e não um vício de procedimento e, portanto, no sentido mais comum da expressão, uma nulidade processual)”; como aí se refere, até esse momento, “não há nenhum vício processual contra o qual a parte possa reagir”, e que “o vício que afecta uma decisão-surpresa é um vício que respeita ao conteúdo da decisão proferida; a decisão só é surpreendente porque se pronuncia sobre algo de que não podia conhecer antes de ouvir as partes sobre a matéria”. Ainda no escrito de 20.5.2020, em comentário a acórdão da Relação do Porto, apreciou assim: “O vício decorrente da falta da audição prévia das partes é - como é indiscutível e indiscutido - o proferimento de uma decisão-surpresa; há, assim, uma decisão-surpresa, mas não uma "nulidade-surpresa"; basta este aspecto linguístico para justificar que o vício não é a nulidade processual, mas antes a decisão-surpresa; esta expressão indicia um desvalor da decisão, pelo que não é compreensível desconhecer este desvalor e recorrer ao da nulidade processual (e menos ainda pretender duplicar o desvalor da decisão-surpresa com o da nulidade processual); acresce que o CPC trata diferentemente as nulidades processuais (arts. 186º e ss.) e as nulidades da decisão (arts. 615º, 666º, n.º 1, e 685º), pelo que fica por justificar como é que, contra a sistemática do CPC, uma decisão viciada é uma nulidade processual;- O objecto do recurso é (sempre) uma decisão (não pode ser outra coisa); há uma decisão recorrida, mas não uma "nulidade recorrida"; logo, o objecto do recurso é a decisão-surpresa, o que significa que o recorrente tem de fundamentar a interposição do recurso num vício dessa decisão; em concreto, a decisão-surpresa é uma decisão nula por excesso de pronúncia, dado que conhece de matéria que, perante a omissão da audição das partes, não podia conhecer (arts. 615.º, n.º 1, al. d), 666.º, n.º 1, e 685.º CPC).” Por último, no escrito de 22.9.2020 do mesmo Blog, escreveu: “(...) A audição prévia das partes é um pressuposto ou uma condição para que a decisão não seja considerada uma decisão-surpresa. Quer dizer: a decisão-surpresa é um vício único e próprio: a decisão é uma decisão-surpresa quando tenha sido omitida a audição prévia das partes. Noutros termos: há um vício (que é a decisão-surpresa), e não dois vícios independentes (a omissão da audiência prévia das partes e a decisão-surpresa). Em concreto: há um vício processual que é consequência da omissão de um acto. Se assim é, claro que o que há que considerar é o vício em si mesmo (a decisão-surpresa), e não separadamente a causa do vício e o vício. Em parte alguma do direito processual ou do direito substantivo se considera a causa do vício e o vício como duas realidades distintas. A única distinção que é possível fazer é ontológica: é a distinção entre a causa e a consequência. Dado que a decisão-surpresa corresponde a um único vício e porque este nada tem a ver com a decisão como trâmite, o vício de que padece a decisão-surpresa só pode ser um vício que respeita à decisão como acto. Em concreto, a decisão-surpresa é uma decisão nula por excesso de pronúncia (art. 615.º, n.º 1, al. d), CPC), dado que se pronúncia sobre uma questão sobre a qual, sem a audição prévia das partes, não se pode pronunciar.” Portanto, seja qual for a perspectiva que se adopte - a consunção da nulidade processual pela nulidade da decisão por excesso de pronúncia - ou a consideração de apenas um vício, o da decisão, será sempre este último que deverá ser atacado.”

Portanto, a recorrente não arguiu a nulidade do acórdão, nos termos dos arts. 615º, 666º, n.º 1, e 685º do CPC: fundamentou a nulidade do mesmo apenas nos efeitos da nulidade processual previstos art. 195º, nº 2 do CPC. E como não é possível convolar a nulidade processual para nulidade do acórdão- por o caso não se integrar na previsão do art. 193º, nº 3 do CPC, nem se subsumir à do art. 5º, nº 5 do mesmo diploma - improcede a arguida nulidade. 

Como assim, não tendo a recorrente reagido através do uso correcto dos meios processuais, não é possível configurar aqui qualquer violação da boa-fé processual (cfr. art. 8º do CPC), ou do direito a um processo justo e equitativo (cfr. art. 20º da CRP. e art. 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem), nem a violação do consagrado no artigo 20º, nº 4 da CRP, susceptível de anular o acórdão recorrido.

Da questão do abuso de direito:

Como se viu, o acórdão concluiu que a cláusula em causa é nula porque, “na circunstância, se abusou do direito (art. 334º do CC) designadamente tendo como pano de fundo o fim social e económico do direito de denúncia em questão que, neste caso, se mostra afectado”

Todavia, não é o abuso do direito de denúncia da primitiva ré que está em causa, mas o eventual abuso do direito da autora no accionamento judicial da cláusula. A autora não exerceu qualquer direito de denúncia. O que não quer dizer que não se deva apreciar se o direito de denúncia em questão foi ou não afectado.

Para o efeito, e para a análise da problemática mais geral do abuso de direito, torna-se necessário começar por verificar a natureza da cláusula, cuja validade, à face do art. 280º do Código Civil, foi afirmada quer pela sentença quer pelo acórdão da Relação.

Como se recorda, de novo, a cláusula em questão é do seguinte teor: “Se a Segunda Outorgante pretender cessar o contrato de arrendamento, antes de decorrido o prazo referido no número 1 da presente cláusula, constitui-se na obrigação de pagar à Primeira o montante das rendas vincendas, respeitantes ao período que medeia entre a data de cessação e a data de final do prazo contratual”.

Como se refere no Ac. STJ de 27-09-2011, processo n.º 81/1998.C1.S1, em www.dgsi.pt: A cláusula penal pode revestir três modalidades: cláusula com função moratória ou compensatória, dirigida à reparação de danos mediante a fixação antecipada da indemnização em caso de não cumprimento definitivo ou de simples mora do devedor; cláusula penal em sentido estrito ou propriamente dita, em que a sua estipulação substitui o cumprimento ou a indemnização, não acrescendo a nenhum deles; e cláusula penal de natureza compulsória em que há uma pena que acresce ao cumprimento ou que acresce à indemnização pelo incumprimento, sendo a finalidade das partes, nesta última hipótese, a de pressionar o devedor a cumprir, e já não a de substituir a indemnização”. É este hoje o entendimento prevalecente, que vai no sentido de recusar a natureza de instituto unitário à cláusula penal, admitindo, antes, que  a figura é susceptível de diversas modalidades, consoante a intencionalidade das partes e a função que estas lhe pretenderam reconhecer (cfr. Pinto Monteiro, Sobre o Controlo da Cláusula Penal, em Comemorações dos 35 Anos do Código Civil….; Volume III, pág. 194; Ana Filipa Morais Antunes, em Comentário ao Código Civil, Direito das Obrigações, ed. Universidade Católica, pág. 1162).

No caso sub judice, se a 2ª instância não a qualifica expressamente, a 1ª instância parece inclinar-se para o primeiro tipo de cláusula (cláusula indemnizatória).

Porém, olhando para a cláusula em apreço, não parece que a mesma se possa reduzir a uma cláusula meramente indemnizatória, que tenha em vista o incumprimento contratual do pagamento das rendas.

Também a sua estipulação não parece subsumir-se no tipo de cláusula em sentido estrito e substituir o cumprimento ou a indemnização, que não irá acrescer a qualquer outra indemnização porque contempla já a satisfação do interesse do credor.

Finalmente, não se surpreende também aqui uma verdadeira cláusula penal compulsória. É verdade que, aparentemente não visa reparar o credor, que se destina apenas a pressionar a outra outorgante ao cumprimento integral do prazo do contrato.

Porém, esta cláusula supõe, ainda, o incumprimento contratual, é um plus que acresce à indemnização pelo não cumprimento (o que não é o caso).

Como refere o Prof. Galvão Telles (Direito das Obrigações, Coimbra Editora Lda, 4ª edição, pág. 352 e ss.) qualquer cláusula penal supõe sempre inexecução de uma obrigação e culpa do devedor.

Ora, a denúncia no contexto do contrato não pode ser vista como um incumprimento do contrato. Em caso de denúncia, o contrato cessa legalmente. 

Esta cláusula que impõe a obrigação de pagar as rendas vincendas visa assim não o cumprimento do contrato mas apenas o sancionamento da denúncia antes do termo do contrato. Visa, como se disse, compelir a parte ao cumprimento do prazo integral do contrato, ao pagamento das rendas, impedindo-a de denunciar antes do termo do contrato. E, por isso, esta cláusula tem mais a natureza de uma cláusula penitencial, na medida em que é independente do facto de se tratar de um inadimplemento contratual e, portanto, de um facto ilícito (Ana Filipa Morais Antunes, ob. cit., pág. 1165) “Este tipo de estipulação- com natureza afim, mas distinta da clausula penal – pode ser autorizada no exercício da autonomia privada. Procura-se, por esta via, conjugar, por um lado, o princípio da estabilidade – donde resultaria necessidade de cumprir o contrato até ao seu termo (cfr. Artigo 406º, nº 1) - e , por outro lado, a faculdade  de “ arrependimento” e de desvinculação unilateral. (…). Com efeito, o desiderato destas cláusulas é precisamente dificultar a cessação antecipada do contrato e independente de um incumprimento contratual“ (loc.cit.). Todavia “… justifica-se aplicar o regime jurídico previsto para a cláusula penal em matéria de configuração, conteúdo e limites de admissibilidade, tendo presente que ambas as figuras comungam das mesmas funções e têm uma natureza consensual (ob.cit., 1165).

Ou seja: à semelhança do que sucede com as cláusulas penais, para além do controlo das situações em que a pena se mostra ofensiva dos bons costumes, sendo, portanto, nula, nos termos do art. 280º, nº 2 do Código Civil (nulidade que a Relação arredou) e do controlo exercido através da redução da cláusula penal, nos termos do art. 812º do mesmo diploma (Pinto Monteiro, ob. cit., pág. 197 e segs), também aqui se justifica o controlo da legitimidade do exercício do direito à pena, nos termos do art. 334º (Pinto Monteiro, ob. cit., pág. 199).

Nos termos do art. 334º, nº 1 do Código Civil, é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.

Ora, o exercício do direito à pena integral excede manifestamente os limites impostos pela boa fé.

É certo que não está esclarecida a intenção das partes subjacente à estipulação da cláusula em apreço, a boa fé subjectiva das mesmas.

Porém, o que importa é, como se sabe, a boa fé objectiva.  E é neste âmbito que se fala do desequilíbrio das posições jurídicas e, como sub-hipótese, na desproporção grave entre o benefício do titular exercente do direito e o sacrifício por ele imposto a outrem (Menezes Cordeiro, Litigância de Má Fé, Abuso de Direito de Acção e Culpa “In Agendo”, 2ª edição, pág. 104, Tratado de Direito Civil Português I – Parte Geral, Tomo I, 1999, págs. 211-212; cfr. ainda, na jurisprudência, Ac. STJ de 16.4.2018, proc. 2037/13.0TBPVZ.P1.S1, Ac. STJ de 11.2.2015, proc. 174/12.8TBLGS.E1.S1 e Ac. STJ de 18.3.2010, proc. 387/1993.S1); e se menciona também, a propósito, o princípio da proporcionalidade, como sub-princípio do princípio da boa fé, a que devem obedecer os contratos, em ordem a corrigir a desproporção ou o desequilíbrio entre as prestações, em casos evidentes e graves (Nuno Pinto de Oliveira, Princípios de Direito dos Contratos, págs. 193 e 194).

Vejamos, então, o caso concreto.

À data da celebração do contrato (e da denúncia) vigorava o art. 1110º do Código Civil, na redaçcão da Lei nº 31/2012 de 14/8, que estabelecia o seguinte: “1 - As regras relativas à duração, denúncia e oposição à renovação dos contratos de arrendamento para fins não habitacionais são livremente estabelecidas pelas partes, aplicando-se, na falta de estipulação, o disposto quanto ao arrendamento para habitação. 2 - Na falta de estipulação, o contrato considera-se celebrado com prazo certo, pelo período de cinco anos, não podendo o arrendatário denunciá-lo com antecedência inferior a um ano”.

No exercício da liberdade contratual consentida neste artigo, as partes convencionaram, na cláusula 10ª, a denúncia como modo de cessação do contrato, sem sujeição a qualquer condicionamento directo desse exercício,

Sucede, no entanto, que associado ao exercício do direito de denúncia (e dos outros modos de cessação previstos) antes do termo do prazo do contrato, as partes estabeleceram a cláusula 2ª, nº 3, acima transcrita, que agora permitiu o exercício do direito à pena aí prevista e que encerra uma manifesta desproporcionalidade entre a vantagem auferida pela autora (que receberia 36 rendas vincendas, no montante de   68.400 euros, acrescidas de juros, sem proporcionar à arrendatária ou aos sócios o gozo do locado) e o sacrifício imposto pelo exercício aos réus sócios, que substituem a arrendatária (e que pagariam todas aquelas rendas, apenas por a arrendatária ter exercido o direito de denúncia, previsto, aliás, no contrato).

Afigura-se-nos, pois, ilegítimo pedir a pena correspondente às 36 rendas vincendas até ao termo de um contrato de 5 anos, que é denunciado ao fim de dois.

Existe, assim, abuso do direito à pena.

E quais as consequências desse abuso?

Como bem se frisa no Ac. STJ de 24.10.2006, no proc. 06B2414 “tão só estatuída no art. 334º C.Civ. a ilegitimidade do exercício abusivo do direito, a lei não estabelece ou determina as sanções que lhe devam corresponder, cumprindo achar, de entre as várias soluções possíveis, entre as quais se contam a neutralização ou paralisação do seu exercício ou a competente indemnização, a mais adequada à situação concreta ajuizada” (v. Cunha de Sá, “ Abuso do Direito “ (1997), 637 e Código Civil anotado de Pires de Lima e Antunes Varela, vol. I., 3ª edição, pág. 297, para as quais o citado acórdão remete).

Ora, a solução mais adequada, no caso vertente, reside na paralisação do direto da autora à pena e à denegação da sua pretensão, pois não se apuraram circunstâncias que nos pudesse levar a ponderar a redução do montante pedido, como correspondendo a um “exercício moderado, equilibrado, lógico ou racional” do direito da autora. (Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., pág. 298).

Em síntese:

“1. A violação do princípio do contraditório do art. 3º, nº 3 do CPC dá origem não a uma nulidade processual nos termos do art. 195º do CPC, mas a uma nulidade do próprio acórdão, por excesso de pronúncia, nos termos dos arts. 615º, nº 1, al. d), 666º, n.º 1, e 685º do mesmo diploma;

2. A cláusula prevista num contrato de arrendamento para fins não habitacionais pelo prazo de 5 anos, em que se prevê que “Se a Segunda Outorgante pretender cessar o contrato de arrendamento, antes de decorrido o prazo referido no número 1 da presente cláusula, constitui-se na obrigação de pagar à Primeira o montante das rendas vincendas, respeitantes ao período que medeia entre a data de cessação e a data de final do prazo contratual”, é uma cláusula penitencial,  na medida em que é independente do facto de se tratar de um inadimplemento contratual e, portanto, de um facto ilícito;

3. À semelhança do que sucede com as cláusulas penais, que pressupõe o incumprimento do contrato, também na cláusula referida em 2. se justifica o controlo da legitimidade do exercício do exercício do direito à pena, nos termos do art. 334º, nº 1 do Código Civil:

4. Existe abuso de direito, por violação dos limites impostos pela boa fé (de que o princípio da proporcionalidade é um sub-princípio), se houver desproporção grave entre o benefício do titular exercente do direito e o sacrifício por ele imposto a outrem;

5. Ora, existe uma manifesta desproporcionalidade entre a vantagem auferida pela autora (que recebe 36 rendas vincendas, no montante de 68.400 euros, acrescidos de juros, sem proporcionar à arrendatária o gozo do locado) e o sacrifício imposto pela autora aos réus, sócios da arrendatária (que pagam aquelas rendas, por a arrendatária ter feito uso da denúncia prevista no contrato);

6. Em consequência do abuso, deve paralisar-se o exercício do direito da autora à pena e denegar-se a sua pretensão de pagamento das rendas vincendas após a denúncia da arrendatária.”

Pelo exposto, acorda-se em negar a revista e confirmar o acórdão recorrido.

Custas pela recorrente.


*


Lisboa, 9 de Fevereiro de 2021

O relator António Magalhães

(Nos termos do art. 15º-A do DL nº 10-A/2020 de 13.3., atesto o voto de conformidade dos Srs. Juízes Conselheiros Adjuntos Jorge Dias e Maria Clara Sottomayor que não assinaram, por não o poderem fazer).