Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
780/10.5JAPRT.S1
Nº Convencional: 5ª SECÇÃO
Relator: MANUEL BRAZ
Descritores: TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES
PROIBIÇÃO DE PROVA
JUÍZ DE INSTRUÇÃO
ESCUTAS TELEFÓNICAS
VIGILÂNCIA ELECTRÓNICA
ORGÃOS DE POLÍCIA CRIMINAL
AUTORIDADE POLICIAL
AUTORIDADE JUDICIÁRIA
LACUNA
INTERPRETAÇÃO EXTENSIVA
FUNDAMENTAÇÃO
TRÂNSITO EM JULGADO
BUSCA
BUSCA DOMICILIÁRIA
APREENSÃO
COMPARTICIPAÇÃO
CO-AUTORIA
MEDIDA CONCRETA DA PENA
PREVENÇÃO GERAL
PREVENÇÃO ESPECIAL
ILICITUDE
CULPA
DOLO DIRECTO
Data do Acordão: 10/24/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADOS OS RECURSOS
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL PENAL – PROVA / MEIO DA OBTENÇÃO DE PROVA / ESCUTAS TELEFÓNICAS – FASES PRELIMINARES / MEDIDAS CAUTELARES E DE POLÍCIA – RECURSOS / RECURSOS ORDINÁRIOS.
DIREITO PENAL – FACTO / FORMAS DO CRIME / AUTORIA.
Doutrina:
- Figueiredo Dias, in Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, Questões Fundamentais, p. 791.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGOS 1.º, ALÍNEA C), 187.º, 189.º, 190.º, 251.º, N.º 1, ALÍNEA A) E 399.º.
CÓDIGO PENAL (CP): - ARTIGO 26.º.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGOS 18.º, N.ºS 2 E 3, 32.º, N.º 4 E 202.º, N.ºS 1 E 2.
ORGÂNICA DA POLÍCIA JUDICIÁRIA (LOPJ), APROVADA PELA LEI N.º 37/2008, DE 06-08 E REPECTIVAS ALTERAÇÕES: - ARTIGO 11.º, N.º 1, ALÍNEAS D) E I).
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

- DE 20-09-2006, PROCESSO N.º 2321/06.


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ACÓRDÃOS DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL:

- ACÓRDÃO N.º 278/2007;
- ACÓRDÃO N.º 486/2009.
Sumário :
I - O uso de dispositivo electrónico de localização de um automóvel por GPS representa uma intromissão na vida privada dos ocupantes do veículo, por permitir conhecer a quem o manipule os locais por onde se movimentam, locais que, pela sua natureza, podem fornecer indicações sobre aspectos da vida pessoal e íntima daqueles. II - Não é correcto colocar no mesmo plano a localização de um veículo por meio de GPS e o seu seguimento por pessoas a bordo de outro veículo. Existe entre ambos uma diferença substancial e, estando-se no âmbito de uma investigação criminal, decisiva: enquanto o seguimento do veículo alvo por pessoas que se encontram noutro veículo se passa à vista de todos, permitindo a quem é seguido furtar-se à vigilância ou evitar agir de modo a poder auto-incriminar-se, o uso do sistema de GPS é um meio oculto de vigilância, que nenhuma oportunidade dá ao ocupante do veículo visado de iludi-lo, agindo, sem poder sabê-lo, de uma forma que pode representar a sua auto-incriminação. III - O art. 189.º do CPP traduz o propósito do legislador de regular, além do mais, a localização de alvos por meios electrónicos, referindo um desses tipos de localização, a celular. Dada a similitude de alcance dos dois meios de obtenção da prova, as razões que levaram a prever a localização celular aplicam-se ao GPS. Até porque, como se informa no acórdão do TC n.º 486/2009, a tecnologia GPS, com a sua recente incorporação nos equipamentos móveis, já se encontra presente na localização celular, permitindo-lhe atingir «um grau de precisão muito elevado em matéria de determinação da posição geográfica». IV - Donde a conclusão de que nesta matéria a letra da lei ficou aquém do seu espírito. Da própria razão de ser da lei resulta que o legislador, querendo referir-se a um género – meios electrónicos de localização geográfica de um alvo – mencionou apenas uma espécie desse género. Dizendo a letra da lei menos do que se pretendia, há que alargar o texto legal fazendo-o corresponder ao seu espírito. O uso de aparelho de GPS para obter a localização geográfica, em tempo real, de um alvo é aceite desde que autorizado por despacho do JIC e tenha lugar na investigação de casos de média ou grande criminalidade, com apelo às disposições dos arts. 18.º, n.ºs 2 e 3, 32.º, n.º 4, e 202.º, n.ºs 1 e 2, da CRP. V - Mesmo que se entenda que a falta de fundamentação do despacho do JIC que autorizou o uso do GPS está sujeito à disciplina dos arts. 187.º e 190.º do CPP e deve ser vista como proibição de prova, inexistindo norma que afaste a regra da recorribilidade prevista no art. 399.º do CPP, tal decisão admitia recurso e não se tendo dele recorrido, transitou em julgado, não mais podendo ser posto em causa (nos casos em que é recorrível, a decisão sobre proibições de prova transita em julgando, estabilizando-se, se dela não for interposto recurso ou, sendo-o, este for julgado improcedente). VI - Os inspectores da PJ são OPC’s, nos termos do art. 1.º, al. c), do CPP, e os inspectoreschefes são mesmo autoridades de polícia criminal, como resulta da conjugação da al. d) desse preceito e do art. 11.º, n.º 1, al. i), da LOPJ, aprovada pela Lei 37/2008, de 06-08. VII - De acordo com a norma da al. a) do n.º 1 do art. 251.º do CPP, os OPC’s e, por maioria de razão, as autoridades de polícia criminal podem, sem prévia autorização da autoridade judiciária, efectuar buscas em local que, embora reservado ou não livremente acessível ao público, não seja um domicílio, desde que tenham «fundadas razões para crer que ali se ocultam objectos relacionados com o crime, susceptíveis de servirem para a prova e que de outra forma poderiam perder-se». VIII - No caso, os inspectores da PJ vigiavam desde algum tempo os movimentos da carrinha (em que os arguidos se transportavam), por terem fortes indicações, colhidas nomeadamente através de escutas telefónicas, de que ali seria transportado produto estupefaciente proibido. Como a carrinha foi levada para um espaço privado e vedado, onde, por não ser possível continuar a vigiar os seus movimentos e os das pessoas que a conduziam e seguiam, sem levantar suspeitas, o produto, não havendo intervenção imediata dos agentes policiais, poderia ser dela retirado e levado para local desconhecido, nomeadamente entregue a terceiros. IX - O local buscado foi a referida carrinha que se encontrava «debaixo de um telheiro». Um telheiro, construção aberta, como era no caso, destina-se a guardar ou abrigar objectos que não é adequado ou próprio introduzir na habitação, como alfaias agrícolas, lenha, etc. Serve-lhe de apoio, mas não faz parte da habitação, considerando-se esta como o espaço fechado onde se desenvolvem ou podem desenvolver, recatadamente, «dentro de portas», ao abrigo dos olhares de estranhos, todos aqueles actos que são característicos da vida privada e íntima de cada um. Nos factos provados, é referenciada uma residência, a do «avô do arguido R», mas o telheiro não só lhe era exterior como estava dela separado, ainda que «em zona próxima». A busca não foi, pois, efectuada num domicílio. X - A busca foi realizada no dia 03-04-2012. E logo no dia seguinte, o MP requereu ao JIC a validação das apreensões ocorridas durante a busca, referindo expressamente o produto estupefaciente encontrado. No mesmo dia – 04-04-2012 –, o JIC, no despacho que aplicou medidas de coacção, referiu o auto de busca e apreensão como um dos elementos que suportavam a conclusão da existência de fortes indícios da prática pelos arguidos de um crime de tráfico de estupefacientes, validou as apreensões e valorou a droga apreendida para fundamentar as medidas de coacção decididas. Não pode, pois, negar-se haver aí uma implícita, mas inequívoca, validação da busca, procedimento que é aceitável, mesmo sob o ponto de vista constitucional (cf., neste sentido, o ac. do STJ, de 20-09-2006, Proc. n.º 2321/06, e o ac. do TC n.º 278/2007). XI - Os 3 arguidos actuaram de comum acordo relativamente ao transporte da cannabis, acordo esse que envolveu o tipo de contribuição de cada um, tal como veio a ocorrer, ou seja, houve uma decisão conjunta de todos relativamente àquele facto. Efectivamente, o transporte foi feito na referida carrinha, conduzida pelo arguido P. Os outros 2 arguidos, como combinado, «com a finalidade de acompanharem o transporte do haxixe», pouco depois de a carrinha ter iniciado a marcha, foram ao encontro dela, cada um em seu veículo, começando por segui-la, sendo que em determinado momento o arguido R passou para a frente, indicando o caminho até à propriedade do seu avô, onde acabaram por parar, ficando a carrinha que continha a droga debaixo de um telheiro. A condução da carrinha constituiu, sem dúvida, um acto que se integrou no transporte da droga, mas não o esgotou. Por transporte deve entender-se toda a operação pelos arguidos acordada de fazer conduzir, naquelas circunstâncias, o produto estupefaciente até ao local onde pararam, a propriedade do avô de R. Nessa operação, cabia a cada um desempenhar uma determinada tarefa: a P cabia o papel de conduzir a carrinha; os outros 2 tinham a seu cargo o acompanhamento dessa carrinha, notoriamente com vista a garantir a chegada em segurança ao destino; ao arguido R cabia ainda a tarefa de indicar o caminho, como se infere do facto de, durante o percurso, ter tomado a dianteira, encaminhando-se e aos outros para a propriedade do avô. Assim, os contributos dos arguidos P e R foram determinantes para a realização desse transporte. Era necessário conduzir a carrinha onde estava a droga, e executou essa tarefa; era necessário fazer o acompanhamento desse veículo, em ordem a tornar o transporte seguro, bem como propiciar a entrada no espaço que tinham como destino, e R desempenhou estes papéis. XII - Havendo decisão conjunta e participação directa na execução do facto típico, não pode deixar de concluir-se que os arguidos são co-autores, à luz do art. 26.º do CP [como defende Figueiredo Dias, in Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, Questões Fundamentais, pág. 791, «(…) o princípio do domínio do facto aqui com a exigência de uma repartição de tarefas, que assinala a cada comparticipante contributos para o facto que, podendo situar-se fora do tipo legal de crime, tornaram a execução do facto dependente daquela mesma repartição»]. XIII - A determinação da medida concreta da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita, de acordo com o disposto no art. 71.º do CP, em função da culpa e das exigências de prevenção, devendo atender-se a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, circunstâncias essas que ali se faz uma enumeração exemplificativa e podem relevar pela via da culpa ou da prevenção. XIV - No caso, a operação de transporte da substância proibida foi cuidadosamente preparada e reflectida, como resulta da escolha de um veículo adequado, uma carrinha com vidros escuros, para evitar que se visse do exterior a carga, das suas movimentações entre 29-03- 2013 e 03-04-2013 e das circunstâncias em que, quando a viatura, já carregada e conduzida pelo arguido P, iniciou a marcha, os arguidos J e R vieram ao encontro dela e a acompanharam até ao ponto onde se veio a imobilizar, seguindo um itinerário em que serviu de guia R. Surpreende-se nisso uma vontade muito determinada e persistente de levar o facto por diante, do que decorre dolo de grande intensidade, que releva em sede de culpa. XV - No que se refere ao grau de ilicitude do facto, há a considerar, por um lado, que, se a substância em causa não é das de maior nocividade para a saúde das pessoas, a quantidade transportada é enorme, quase 1,5 toneladas, suficiente para abastecer uma infinidade de consumidores, e, por outro, que a conduta típica, o mero transporte da droga, não podendo embora deixar de se lhe reconhecer uma especial perigosidade para os bens jurídicos que se visa proteger, é das que revelam menor comprometimento com o comércio ilegal de drogas. Nesse transporte há, porém, uma maior implicação do arguido J, que actuou mais próximo dos responsáveis pela introdução da cannabis no país, tendo tido alguma «intervenção» no seu desembarque e ficado responsável por diligenciar pelo seu transporte em terra. As condutas dos arguidos P e R equivalem-se em desvalor. Assim, a ilicitude é bastante elevada, relativamente a J, e elevada, em relação aos outros 2, relevando este factor pela via da culpa e da prevenção geral. XVI - Tendo em conta a intensidade do dolo e o apontado grau de ilicitude do facto, tem-se a culpa como bastante elevada em relação ao arguido J e elevada no que se refere aos outros 2, a permitir que a pena se fixe em patamar situado muito além do limite mínimo da moldura penal. XVII - A medida das exigências de prevenção geral é elevada, atendendo a que, embora não se esteja perante um tipo de droga de maior potencial de danosidade para a saúde dos seus consumidores, está em causa um enorme carregamento, cuja notícia não pode ter deixado de causar um grande impacto na comunidade, fazendo-a despertar para os problemas sociais que andam ligados ao tráfico e consumo de estupefacientes. Por outro lado, este tipo de actividade, se não está em crescendo, mantém-se pelo menos em níveis muito elevados. Destas circunstâncias resulta que o mínimo de pena imprescindível à manutenção da confiança colectiva na ordem jurídica se situa muito acima do limite mínimo da moldura penal.
XVIII - Em sede de prevenção especial há a considerar positivamente a ausência de antecedentes criminais por parte do arguido R e negativamente as condenações anteriormente sofridas pelos arguidos P e J, que, embora não tenham qualquer ligação com o crime deste processo, não deixam de revelar alguma hostilidade ao direito, no que se refere a P, pelo número de infracções, e em relação a J, pela natureza de um dos crimes anteriores (lenocínio) e, mais decisivamente, pelo facto de haver cometido o crime deste processo durante o período de suspensão da execução da pena aplicada por aquele. Quanto a este último arguido, tendo em conta que é referenciado por pessoa ou pessoas com posição importante no mundo da droga, como resulta do facto de haver sido incumbido de organizar o transporte em terra de uma quantidade tão grande, exige-se à pena um redobrado efeito de desencorajamento da prática de novos crimes desta natureza, que lhe é facilitada por aquela circunstância. XIX - Ponderando tudo, só pode concluir-se que as penas fixadas, de 6 anos de prisão para J, 5 anos e 5 meses de prisão para P e 5 anos e 3 meses de prisão para R, situando-se muito mais perto do limite mínimo do que do limite máximo da moldura penal e mesmo muito aquém do seu ponto intermédio, não excedem a medida necessária para realizarem as finalidades da punição. A diferença das penas dos arguidos P e R encontra fundamento nas menores exigências de prevenção especial relativamente ao último, em função da ausência de antecedentes criminais
Decisão Texto Integral:

                        Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça:

            No 2º juízo do Tribunal Judicial da comarca de Olhão, em processo comum com intervenção do tribunal colectivo, foi proferido acórdão que condenou os arguidos

                                              AA:

            -na pena de 6 anos de prisão, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo artº 21º, nº 1, do DL nº 15/93, de 22 de Janeiro;

                                        BB:

            -na pena de 5 anos e 5 meses de prisão, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes da mesma previsão legal;

                                       CC:

            -na pena de 5 anos e 3 meses de prisão, pela prática do mesmo crime.

            Desse acórdão interpuseram recurso os três arguidos, concluindo assim a sua motivação:

                                        AA:

            «1. O Recorrente foi condenado pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art. 21° n° 1 do DL 15/93, de 22.01, na pena de seis anos de prisão.

2. O Recorrente considera excessiva a pena em que foi condenado.

3. O Recorrente também não concorda com a fundamentação e decisão do Tribunal quanto à admissão da utilização do GPS e da admissão da diligência da busca realizada, por considerar que tais meios de obtenção de prova da forma como foram realizados não são válidos.

Admissibilidade de utilização de localizadores “GPS” nos automóveis

4. Conforme decorre de fls. 335, a Policia Judiciária solicitou a autorização para a instalação de um dispositivo electrónico de localização, vulgo GPS, com o objectivo de vir a deter os suspeitos em flagrante delito.

5. O Tribunal por despacho constante a fls. 340, veio a autorizar a instalação do requerido meio de obtenção de prova.

6. Conforme decorre do aludido despacho, a autorização para instalação deste dispositivo fundamenta-se essencialmente, na conjugação dos arts. 125° e 189° do CPP.

7. O art. 125° admite provas que não forem proibidas por lei, importando indagar se a instalação deste dispositivo constitui uma prova proibida.

8. É indiscutível que a instalação daquele dispositivo atenta contra a privacidade ou até intimidade do cidadão, uma vez que através deste meio é possível controlar todos os passos do visado.

9. Segundo o princípio da reserva de lei, a autorização de um meio invasivo apenas é permitido quando esteja expressamente previsto e definido na lei.

10. Ora, o art. 189° do CPP não prevê aquele meio de obtenção de prova, devendo tal meio de obtenção de prova ser declarado nulo, com todas as consequências legais decorrentes do art. 122° do mesmo diploma, e a prova por ele obtida ser proibida nos termos do art. 126° do CPP.

11. Contudo, se se considerar que tal meio de prova pode ser aceite nos termos dos arts. 187° e 189° do CPP, tem que obrigatoriamente constar em despacho fundamentado do Juiz de Instrução que tal diligência é indispensável à descoberta da verdade, pois de outra forma seria impossível ou muito difícil de obter tal prova.

12. O despacho é totalmente omisso de fundamentação.

13. Mas mesmo que estivesse fundamentado, o mesmo não seria legítimo, nem podia receber qualquer credibilidade, em virtude de ser possível através de outro meio de prova obter o trajecto do veículo, nomeadamente seguimento policial, uma vez que tinham conhecimento de onde o veículo se encontrava antes de iniciar a marcha, precisavam de saber para colocar o dispositivo de GPS.

14. É de tal modo importante esta protecção de dados pessoais, que a Lei n° 32/2008, de 17/Jul, que transpôs a Directiva n° 2006/24/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de Março, define dados como sendo “os dados de tráfego e os dados de localização, bem como os dados conexos necessários para identificar o assinante ou o utilizador” (art. 2°, n° 1, al. a).

15. Sendo que o acesso a esses dados no âmbito desta lei é que “A transmissão dos dados às autoridades competentes só pode ser ordenada ou autorizada por despacho fundamentado do juiz, nos termos do artigo 9°”. Assim, dispõe-se neste artigo 9° que “A transmissão dos dados referentes às categorias previstas no artigo 4° só pode ser autorizada, por despacho fundamentado do juiz de instrução, se houver razões para crer que a diligência é indispensável para a descoberta da verdade ou que a prova seria, de outra forma, impossível ou muito difícil de obter no âmbito da investigação, detecção e repressão de crimes graves” (n° 1) [neste sentido o acórdão da 1ª Secção do Tribunal da relação do Porto de 21-03-2013, processo n° 246/12.9TAOAZ-A.P1].

16. Por não ter decidido dessa forma, encontra-se tal despacho ferido de nulidade por falta de fundamentação, e por violação de um princípio constitucional, pelo que se está perante uma prova proibida, por violação do previsto nos arts. 124°, 125°, 126°, 187°, 189°, 190° todos do CPP, art. 18°, 25°, 32° n° 1 e n° 8, 34°, 35° todos da CRP, arts. 30° al. a), art. 4° da Lei n° 67/98, de 26 de Outubro, que transpôs a Directiva n° 95/46/CE, e arts. 2°, 4° e 9° da Lei n° 32/2008, de 17/Jul, que transpôs a Directiva 11.0 2006/24/CE.

17. Nesta situação em concreto deve pois ser declarado nulo aquele meio de prova com todas as consequências legais decorrentes do art. 122° do mesmo diploma.

Busca ao sítio dos Mortais

18. Conforme decorre do Relato de diligência externa (fls. 356), da acusação, bem como do acórdão ora recorrido, foi realizada uma busca no veículo de marca Citroën, modelo Jumper, com matrícula espanhola ...CWN, este veículo encontrava-se estacionado no interior da Quinta sita no Sítio dos Mortais, Moncarapacho.

19. Este local é propriedade privada, tal como resulta da certidão junta aos autos e decorre, aliás, do respectivo Relato de diligência Externa e ainda das aludias fotografias, bem como dos testemunhos (DD e EE) produzidos em sede de audiência de julgamento, e dado como provado pelo Tribunal no facto n° 8, pág. 2 do acórdão.

20. Nos termos do art. 174°, n°s 2 e 3 do CPP, os locais reservados ou não livremente acessíveis ao público apenas podem ser buscados verificando-se algum dos pressupostos constantes das alíneas do n° 5 do citado preceito, o que aqui não se aplica.

21. A não verificação de nenhum daqueles pressupostos inquina a busca à Quinta sita no Sítio dos Mortais de Nulidade;

22. Aqui também não se aplica o previsto no art. 251° n° 1 al. a), por se estar perante um domicilio.

23. E nestes termos estamos perante uma prova proibida nos termos dos arts. 124°, 125°, e 126° do CPP, por violação de autorização judiciária nos termos do art. 174° do CPP e art. 32° da CRP, não podendo a mesma produzir os seus efeitos.

24. No entanto mesmo que se considerasse que a mesma era aceite nos termos do art. 251° n° 1 al. a) do CPP, a diligência é nula, uma vez que não foi respeitado o previsto no art. 251° n° 2 e n° 6 do art. 174°, ser a busca imediatamente comunicada ao Juiz de Instrução e por este apreciada em ordem à sua validação.

25. O Tribunal ao aceitar a diligência da busca, violou o previsto no art. 174°, caso se considere que se aplica o art. 251°, o que se repugna foi violado o n° 6 desse artigo, arts. 124°, 125° e 126° todos do CPP.

26. Devendo tal busca ser declarada nula, e aprova por ela obtida proibida, pela violação dos arts. Já elencados no ponto 25 destas conclusões.

Medida da pena

27. A aplicabilidade ou manutenção de uma pena visa a protecção dos bens jurídicos e a integração do agente na sociedade, art. 40° do C.P.

28. O art. 70° do CP fornece ao Juiz o critério geral que deve presidir à escolha das penas.

29. A aplicabilidade da medida da pena obedece, exclusivamente, aos critérios estabelecidos no n° 1 do art. 71° do CP (concretizados no n° 2 do mesmo artigo), os quais não foram pesados a nível de decisão por parte do Tribunal ”a quo”.

30. O dispositivo da sentença quanto à medida da pena enferma de falta de fundamentação, uma vez que não é possível perceber que elementos foram ponderados pelo Tribunal “a quo” para aplicar aquela pena e não outra.

31. Não se consegue ver o valor que teve para a ponderação da pena, a ausência de antecedentes criminais de crime da mesma natureza, a sua reinserção na sociedade, o apoio da sua companheira, o seu comportamento posterior ao crime.

32. Todos os actos decisórios devem ser sempre fundamentados de facto e de direito para que o Tribunal Superior consiga entender qual foi o raciocínio lógico que levou o Tribunal a tomar determinada decisão.

33. A exigência de fundamentação é aplicada a todos os actos decisórios.

34. Por ser omissa na sua fundamentação a decisão recorrida violou o previsto nos arts. 374°, 379° e 97° todos do CPP.

35. Os critérios de determinação da pena no caso em concreto foram claramente excedidos, tendo em conta que se se tivessem tomado em consideração determinados elementos a pena seria inferior à aplicada ao recorrente, mais próxima do mínimo.

36. Não tendo o Tribunal recorrido tido em consideração e em consequência violado os normativos previstos, nos arts. 40°, 70°, 71° n° 1, n° 2, al. a), b), d), e), e 3, todos do C. Penal.

37. Devendo à pena ser revista e aplicada uma pena mais próxima do mínimo».

                                          BB:

            «1. O Recorrente foi condenado pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art. 21° n° 1 do DL 15/93, de 22.01, na pena de cinco anos e cinco meses de prisão.

2. O Recorrente considera excessiva a pena em que foi condenado.

3. O Recorrente também não concorda com a fundamentação e decisão do Tribunal quanto à admissão da utilização do GPS e da admissão da diligência da busca realizada, por considerar que tais meios de obtenção de prova da forma como foram realizados não são válidos.

Admissibilidade de utilização de localizadores “GPS” nos automóveis

4. Conforme decorre de fls. 335, a Policia Judiciária solicitou a autorização para a instalação de um dispositivo electrónico de localização, vulgo GPS, com o objectivo de vir a deter os suspeitos em flagrante delito.

5. O Tribunal por despacho constante a fls. 340, veio a autorizar a instalação do requerido meio de obtenção de prova.

6. Conforme decorre do aludido despacho, a autorização para instalação deste dispositivo fundamenta-se, essencialmente, na conjugação dos arts. 125° e 189° do CPP.

7. O art. 125° admite provas que não forem proibidas por lei, importando indagar se a instalação deste dispositivo constitui uma prova proibida.

8. É indiscutível que a instalação daquele dispositivo atenta contra a privacidade ou até intimidade do cidadão, uma vez que através deste meio é possível controlar todos os passos do visado.

9. Segundo o principio da reserva de lei, a autorização de um meio invasivo apenas é permitido quando esteja expressamente previsto e definido na lei.

10. Ora, o art. 189° do CPP não prevê aquele meio de obtenção de prova, devendo tal meio de obtenção de prova ser declarado nulo, com todas as consequências legais decorrentes do art. 122° do mesmo diploma, e a prova por ele obtida ser proibida nos termos do art. 126° do CPP.

11. Contudo se se considerar que tal meio de prova pode ser aceite nos termos dos arts. 187° e 189° do CPP, tem que obrigatoriamente constar em despacho fundamentado do Juiz de Instrução que tal diligência é indispensável à descoberta da verdade, pois de outra forma seria impossível ou muito difícil de obter tal prova.

12. O despacho é totalmente omisso de fundamentação.

13. Mas mesmo que estivesse fundamentado, o mesmo não seria legítimo, nem podia receber qualquer credibilidade, em virtude de ser possível através de outro meio de prova obter o trajecto do veículo, nomeadamente seguimento policial, uma vez que tinham conhecimento de onde o veículo se encontrava antes de iniciar a marcha, precisavam de saber para colocar o dispositivo de GPS, cfr. pontos 2 e 3 dos factos dados como provados.

14. É de tal modo importante esta protecção de dados pessoais, que a Lei n° 32/2008, de117/Jul, que transpôs a Directiva n° 2006/24/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de Março, define dados como sendo “os dados de tráfego e os dados de localização, bem como os dados conexos necessários para identificar o assinante ou o utilizador” [art. 2°, n° 1, al. a)].

15. Sendo que o acesso a esses dados no âmbito desta lei é que “A transmissão dos dados às autoridades competentes só pode ser ordenada ou autorizada por despacho fundamentado do juiz, nos termos do artigo 9°”. Assim, dispõe-se neste artigo 9° que “A transmissão dos dados referentes às categorias previstas no artigo 4° só pode ser autorizada, por despacho fundamentado do juiz de instrução, se houver razões para crer que a diligência é indispensável para a descoberta da verdade ou que a prova seria, de outra forma, impossível ou muito difícil de obter no âmbito da investigação, detecção e repressão de crimes graves” (n° 1), [neste sentido o acórdão da 1ª Secção do Tribunal da relação do Porto de 21-03-2013, processo n° 246/12.9TAOAZ-A.P1].

16. Por não ter decidido dessa forma, encontra-se tal despacho ferido de nulidade por falta de fundamentação, e por violação de um princípio constitucional, pelo que se está perante uma prova proibida, por violação do previsto nos arts. 124°, 125°, 126°, 187°, 189°, 190° todos do CPP, art. 18°, 25°, 32° n° 1 e n° 8, 34°, 35° todos da CRP, arts. 3° al. a), art. 4° da Lei n° 67/98, de 26 de Outubro, que transpôs a Directiva n° 95/46/CE, e arts. 2°, 4° e 9° da Lei n° 32/2008, de 17/Jul., que transpôs a Directiva n° 2006/24/CE.

17. Nesta situação em concreto deve pois ser declarado nulo aquele meio de prova com todas as consequências legais decorrentes do art. 122° do mesmo diploma.

Busca ao Sítio dos Mortais

18. Conforme decorre do Relato de diligência externa (fls. 356), da acusação, bem como do acórdão ora recorrido, foi realizada uma busca no veículo de marca Citroën, modelo Jumper, com matrícula espanhola ...CWN, este veículo encontrava-se estacionado no interior da Quinta sita no Sítio dos Mortais, Moncarapacho.

19. Este local é propriedade privada, tal como resulta da certidão junta aos autos e decorre, aliás, do respectivo Relato de diligência Externa e ainda das aludias fotografias, bem como dos testemunhos (DD e DD) produzidos em sede de audiência de julgamento, e dado como provado pelo Tribunal no facto n° 8, pág. 2 do acórdão.

20. Nos termos do art. 174°, n°s 2 e 3 do CPP, os locais reservados ou não livremente acessíveis ao público apenas podem ser buscados verificando-se algum dos pressupostos constantes das alíneas do n° 5 do citado preceito, o que aqui não se aplica.

21. A não verificação de nenhum daqueles pressupostos inquina a busca à Quinta sita no Sítio dos Mortais de nulidade.

22. Aqui também não se aplica o previsto no art. 251° n° 1 al. a), por se estar perante um domicilio.

23. E nestes termos estamos perante uma prova proibida nos termos dos arts. 124°, 125°, e 126° do CPP, por violação de autorização judiciária nos termos do art. 174° do CPP e art. 32° da CRP, não podendo a mesma produzir os seus efeitos.

24. No entanto mesmo que se considerasse que a mesma era aceite nos termos do 251° n° 1 al. a) do CPP, a diligência é nula, uma vez que não foi respeitado o previsto no art. 251° n° 2 e n° 6 do art. 174°, ser a busca imediatamente comunicada ao Juiz de Instrução e por este apreciada em ordem à sua validação.

25. O Tribunal ao aceitar a diligência da busca, violou o previsto nos arts. 174°, caso se considere que se aplica o art. 251°, o que se repugna, foi violado o n° 6 desse artigo, arts. 124°, 125° e 126° todos do CPP.

26. Devendo tal busca ser declarada nula e a prova por ela obtida proibida, pela violação dos arts. já elencados no ponto 25 destas conclusões.

Cumplicidade

27. Mal esteve o Tribunal quando condena o recorrente em co-autor.

28. Não existe nenhum elemento que demonstre que havia uma decisão conjunta entre as partes.

29. A condução de um veículo em nada demonstra que o recorrente tivesse conhecimento do que se estava a passar, ou que até tinha controlo do facto.

30. A actuação do recorrente foi completamente secundária e instrumental, uma vez que se uma pessoa não levasse o veículo, qualquer outra o poderia fazer.

31. O recorrente nem era referenciado naquele processo, nem sequer existem intercepções telefónicas do mesmo a falar com qualquer um dos co-arguidos.

32. A actuação do recorrente está subsumida ao art. 26° do CP, como cúmplice e não co-autor, não tendo o Tribunal decidido desta forma, violou tal dispositivo legal.

Medida da pena

33. A aplicabilidade ou manutenção de uma pena visa a protecção dos bens jurídicos e a integração do agente na sociedade, art. 40° do C.P.

34. O art. 70° do CP fornece ao Juiz o critério geral que deve presidir à escolha das penas.

35. A aplicabilidade da medida da pena obedece, exclusivamente, aos critérios estabelecidos no n° 1 do art. 71° do CP (concretizados no n° 2 do mesmo artigo), os quais não foram pesados a nível de decisão por parte do Tribunal ”a quo”.

36. O dispositivo da sentença quanto à medida da pena enferma de falta de fundamentação, uma vez que não é possível perceber que elementos foram ponderados pelo Tribunal “a quo” para aplicar aquela pena e não outra.

37. Não se consegue ver o valor que teve para a ponderação da pena a ausência de antecedentes criminais de crime da mesma natureza, a sua reinserção na sociedade, o apoio da sua companheira, o seu comportamento posterior ao crime.

38. Todos os actos decisórios devem ser sempre fundamentados de facto e de direito para que o Tribunal Superior consiga entender qual foi o raciocínio lógico que levou o Tribunal a tomar determinada decisão.

39. A exigência de fundamentação é aplicada a todos os actos decisórios.

40. Por ser omissa na sua fundamentação a decisão recorrida violou o previsto nos arts. 374°, 379° e 97° todos do CPP.

41. Está bem inserido na sociedade, tem a sua vida organizada.

42. Tem a profissão de pescador, e uma empresa de venda de peixe.

43. Tem uma boa estrutura familiar.

44. Mostra-se uma pessoa com capacidade de autonomia pessoal e de organização de um projecto de vida adequado.

45. No E.P onde se encontra preso tem apresentado um comportamento adequado e uma postura adaptada ao meio institucional em causa.

46. O facto ocorrido foi circunscrito a um único dia 29 de Março de 2012.

47. O recorrente não era referenciado neste processo, não tem intercepções telefónicas.

48. Os critérios de determinação da pena no caso em concreto foram claramente excedidos, tendo em conta que se tivessem tornado em consideração determinados elementos a pena seria inferior à aplicada ao recorrente, mais próxima do mínimo.

49. Não tendo o Tribunal recorrido tido em consideração e em consequência violado os normativos previstos nos artigos 32° e 205° da Constituição da República Portuguesa e arts. 40°, 70°, arts. 71° n° 1, n° 2, als. a), b), d), e), e 3, todos do C. Penal.

50. Devendo a pena ser revista e aplicada uma pena mais próxima do mínimo.

51 E, uma vez que estariam preenchidos os requisitos exigidos pelo art. 50° do CP, e o Tribunal considerar que a nível de prevenção especial a mesma está atenuada deveria a pena ser suspensa na sua execução».

                                           CC:

            «1. Foi o arguido CC condenado em co-autoria material, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, p. p. pelo artigo 21° do DL 15/93, de 22.01, na pena de 5 anos e 3 meses de prisão.

2. Entende modestamente o recorrente que deve ser condenado pelo cometimento do citado ilícito mas na forma da cumplicidade (artigo 27°, do Cód. Penal).

3. Julgada a causa provou-se em resumo que o CC conduziu o veículo Opel Astra de matrícula ...DGH pela A22, tendo apenas acompanhado o transporte do haxixe que se encontrava na carrinha Citroen Jumper ... CWN, até ao Sitio dos Murtais.

4. A conduta do arguido CC constituiu apenas um auxílio material e nunca um factor indispensável ao cometimento do ilícito a consistir, no caso dos autos, numa operação de descarregamento e transporte de haxixe.

5. Não se aceita, com todo o respeito, a douta convicção do Tribunal a quo no sentido de julgar e condenar o recorrente como autor, afastando a sua participação como cúmplice, ao considerar que “... transporte que é imputável aos três arguidos, no quadro da co-autoria”.

6. Na verdade, a cumplicidade, definida no artigo 27° do Cód. Penal, pressupõe um apoio doloso a outra pessoa no facto antijurídico doloso cometido por esta. Não há na cumplicidade domínio material do facto, limitando-se o cúmplice a favorecer a prática do facto.

7. Atentos os factos provados, o CC, na verdade, embora participando no acordo conjunto, contribuiu positivamente apenas proporcionando o acompanhamento da viatura que transportava os fardos de haxixe, nos termos mencionados no douto Acórdão. Não teve em circunstância alguma o domínio funcional do facto ilícito típico. O crime, mesmo omitido o contributo do ora recorrente, teria sido praticado.

8. Com fundamento no exposto, o arguido deverá ser condenado, não como co-autor, mas como cúmplice e ser a presente pena aplicada nos termos dos artigos 72° e 73° do Código Penal.

9. Caso assim não se entenda e se julgue o arguido co-autor material do crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo artigo 21° do DL 15/93, de 22 de Janeiro, sempre se dirá que a pena é excessiva e demasiado gravosa, avaliando objectivamente a conduta do CC.

10. O recorrente, vistos os factos provados, não aceita, modestamente, a pena de cinco anos e três meses que lhe foi aplicada.

11. Atendendo-se ao preceituado no artigo 71°, n°s 1 e 2, do Cód. Penal e à matéria de facto provada, o arguido, com respeito por melhor opinião, deveria ser condenado na pena de quatro anos de prisão, limite mínimo da medida prevista no artigo 21° do DL15/93, de 22 de Janeiro.

12. Na senda da pena supra requerida, e não descurando que é certo que são particularmente exigentes as necessidades de prevenção geral no que respeita aos crimes de tráfico de estupefacientes, atenta a danosidade social que provocam.

13. Contudo, dispõe o artigo 50°, n° 1, do Código Penal que “O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 5 anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”. Segundo o n° 2 do referido preceito “O tribunal, se o julgar conveniente e adequado à realização das finalidades da punição, subordina a suspensão da execução da pena de prisão, nos termos dos artigos seguintes, ao cumprimento de deveres ou à observância de regras de conduta, ou determina que a suspensão seja acompanhada do regime de prova”.

14. É sabido que só se deve optar pela suspensão da pena quando existir um juízo de prognose favorável, centrado na pessoa do arguido e no seu comportamento futuro. A suspensão da pena tem um sentido pedagógico e reeducativo, sentido norteado, por sua vez, pelo desiderato de afastar, tendo em conta as concretas condições do caso, o delinquente da senda do crime.

15. Aposta que a opção pela suspensão sempre pressupõe, há-de fundar-se num conjunto de indicadores que a própria lei adianta. Personalidade do agente, condições da sua vida, conduta anterior e posterior ao crime e circunstâncias deste, nomeadamente:

-Trata-se de haxixe, droga de natureza menos agressiva que as demais;

-O arguido CC apenas logrou acompanhar a viatura que transportava o produto estupefaciente pela A22 e depois por uma estrada em Moncarapacho, Olhão;

- Não tem antecedentes criminais;

-Apresenta bom comportamento anterior e posterior ao caso dos autos;

-Está bem integrado na sociedade, exercendo uma profissão remunerada que lhe permite uma vivência financeiramente normal;

-Não é portador de uma personalidade criminógena, apresentando um quadro comportamental de acordo com as normas e os valores sociais, conforme factos provados (relatório social);

-Não obteve qualquer vantagem económica muito embora seja de presumir que a pretendia alcançar. Desconhece-se, porém, o montante (não apurado) dos benefícios a obter como resultado da sua participação;

-Já cumpriu mais de um ano de prisão preventiva.

16. Deste modo, o caso do arguido CC favorece a possibilidade de fazer um juízo de prognose favorável, no sentido de que a ameaça de regressar à prisão caso esta seja suspensa por Vossas Excelências e a própria censura do facto são suficientes, não só para o afastar de outras actuações criminosas, assim como para realizar as finalidades de prevenção geral.

17. Assim, com fundamento no exposto e no artigo 50°, n° 1, do Cód. Penal, conjugado com os factos provados relativos ao arguido CC, deverá, com todo o respeito, a pena aplicada à recorrente ser suspensa na sua execução pelo período de dois anos.

18. Não obstante o supra exposto, a defesa do arguido CC continua, com toda a devida vénia, a entender que a utilização do aparelho GPS constante nos autos, carece de expressa permissão legal para o efeito em que foi utilizado, devendo assim ser considerada prova nula, com todas as consequências legais decorrentes do artigo 122° do C.P.P.

19. Assim como que não foram cumpridos os trâmites legais para a busca domiciliária ocorrida no Sitio dos Murtais.

20. Esta busca domiciliária, não foi efectuada nos termos do art. 174°, n° 2 e n° 3, do C.P.P., devendo consequentemente ser declarada nula, bem como todas as diligências subsequentes dessa busca domiciliária.

21. Nenhum dos requisitos constantes nas alíneas do n° 5 do artigo 174° do C.P.P., se encontram igualmente preenchidos.

22. O requisito da alínea a), nunca poderia estar preenchido, uma vez que, no caso em concreto, não se verificava perigo iminente para a vida ou integridade física de qualquer cidadão.

23. E também não se encontrava preenchido o pressuposto da alínea c), uma vez o flagrante delito ocorreu já depois de se ter perpetrado a invasão pelos OPC na propriedade privada.

24. Para além disso, a mesma também não foi comunicada imediatamente ao Juiz de Instrução Criminal, o que, também por via desta, a busca sempre seria nula.

Nestes termos e nos mais de Direito, deve conceder-se provimento ao presente recurso, substituindo-se o douto Acórdão condenatório proferido pelo Tribunal Colectivo por outra decisão em que considere os meios de obtenção de prova utilizados, nomeadamente, o dispositivo GPS e a busca domiciliária, nulos, e consequentemente absolver o arguido da prática do crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. nos termos do artigo 21° do Decreto-Lei n° 15193, de 22 de Janeiro, pelo qual vem acusado.

Caso assim não se entenda, condenar o arguido CC pela prática do crime p. e p. nos termos do artigo 21° do Decreto-Lei n° 15/93, de 22 de Janeiro, na forma de cumplicidade (artigo 27° do Cód. Penal), na pena de 24 meses de prisão, suspensa por igual período na sua execução;

Ou ainda, caso não seja este ultimo o entendimento de Vossas Excelências, deverá o arguido ser condenado como co-autor do crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. nos termos do artigo 21° do Decreto-Lei n° 15/93, de 22 de Janeiro, na pena de quatro anos de prisão, suspensa pelo período de três anos na sua execução».

Respondendo, o MP junto do tribunal recorrido defendeu a improcedência dos recursos.

Os recursos foram admitidos para subir directamente ao Supremo Tribunal de Justiça.

Neste tribunal, o MP teve vista do processo.

Colhidos os vistos legais e realizada a audiência, requerida pelos arguidos AA e BB, cumpre decidir.

            Foram dados como provados os seguintes factos (transcrição):

1. Em 29.03.2012 foi estacionada junto ao Teatro Municipal de Faro uma carrinha de marca Citroen, modelo Jumper, cor branca, vidros escuros e matrícula ...CWN, destinada ao transporte por terra de produto estupefaciente que se encontrava na iminência de desembarcar na costa algarvia.

2. Nesse dia, pelas 23.05 hrs., um indivíduo não identificado recolheu e levou a carrinha, e, depois de se deslocar a zona erma junto ao rio Gilão, deixou-a estacionada em Tavira.

3. Em 03.04.2012, pelas 06.30 hrs., a carrinha foi deixada num parque de estacionamento sito na Rua do Alto do Cano, em Tavira, contendo no seu interior 45 fardos de haxixe (resina), envoltos em plástico tipo serapilheira, de cor castanha, 4 fardos de haxixe (resina de cannabis), envoltos em plástico de cor azul, e 1 fardo de haxixe (resina de cannabis) envolto em fita adesiva de cor castanha, com o peso líquido de 1.456,755 kg, parcialmente dissimulados sob a estrutura de uma cama e um colchão.

4. Com a intervenção do arguido AA, aquela cannabis tinha sido desembarcada na madrugada do dia 02.04.2012, entre as 04 e as 05.00 hrs., cabendo àquele AA diligenciar pelo transporte descrito em 5) e ss.

5. Pouco tempo depois do referido em 3, a carrinha, conduzida pelo arguido BB, iniciou a sua marcha, e dirigiu-se a uma rotunda localizada na saída de Tavira.

6. Nessa rotunda circulava o veículo Ford Fiesta, com a matrícula ...-JL-..., conduzido pelo arguido AA, o qual dera várias voltas à rotunda com os faróis apagados.

7. Quando a Citroen chegou à rotunda, o Ford Fiesta dirigiu-se para a A22, sendo seguido pela carrinha, e depois pelo Opel Astra de matrícula ...DGH, conduzido pelo arguido CC, que, no caminho, passou para a frente dos outros veículos, tendo o Opel Astra e o Ford Fiesta a finalidade de acompanhar o transporte do haxixe.

8. Após a A22, dirigiram-se no sentido de Moncarapacho, e no Sitio dos Mortais tomaram um caminho de terra batida que dá acesso a residências, armazéns, alpendres e anexos, e pararam em zona próxima da residência do avô do arguido CC, estacionando a Citroen Jumper debaixo de um telheiro – existindo ao lado desse telheiro um armazém, e em frente dele um alpendre – zona essa que se situa em terreno vedado (em parte com arame e em parte com muro) e pertencente ao avô do arguido CC, não existindo portão no caminho de terra batida que dá acesso a essa zona.

9. Aí foram interceptados por agentes da Polícia Judiciária.

10. Nessas circunstâncias de tempo e lugar, no interior do veículo Opel Astra ...DGH encontrava-se uma embalagem de aerossol, de marca “Defenol”, de origem alemã, contendo como produto activo 2-clorobenzalmalononitrilo (CS), num total de 40 ml de solução, apta a projectar, sob a forma de spray, substância lacrimogénea irritante e incapacitante.

11. Os arguidos conheciam as características estupefacientes do haxixe, que não destinavam ao seu consumo, sabendo como agiam e querendo agir da forma descrita.

12. Os arguidos actuaram de forma consciente, livre e deliberada, de comum acordo e em conjugação de esforços, sem autorização, sabendo que o transporte, a detenção, a venda e cedência de produtos estupefacientes é proibida e punida por lei.

13. O arguido AA vivia com a companheira à data dos factos, relação que se mantém há mais de 20 anos, em moldes positivos, de apoio mútuo e atenção. A mãe do arguido integrava também o agregado. A companheira tem visitado o arguido na prisão e planeia manter a vida em comum com ele.

Frequentou a escola, tendo completado o 4° ano de escolaridade.

Desenvolveu inicialmente actividade laboral na construção civil e posteriormente na hotelaria. Há vários anos que explorava dois estabelecimentos de diversão nocturna, em Palmela e em S. Bartolomeu de Messines, que actualmente se encontram cedidos a terceiros, um deles mediante uma renda e outro mediante uma percentagem dos lucros.

A situação económica é descrita coma precária.

Embora residisse em Palmela, deslocava-se com frequência S. Bartolomeu de Messines, onde se localizam os dois estabelecimentos referidos.

Tem mantido um comportamento adequado ás regras no EP.

Foi condenado:

-por decisão de 28.04.2008, transitada em 23.11.2009 [proc. 1158/06 do Tribunal de Setúbal], na pena 3 anos e 4 meses de prisão, suspensa por igual período, pela prática em 01.03.2006 de um crime de lenocínio, p. pelo art. 170° n°1 do CP;

-por decisão de 31.03.2009, transitada em 11.05.2009 [proc. 229/05 do Tribunal de Setúbal], na pena de 3 meses de prisão, substituída por 240 dias de multa, à taxa diária de 5 euros, pela prática em 03.06.2005 de um crime de usurpação de direito de autor, p. pelos arts. 195° n°s 1 e 2 als. a) e b) e 197° n° 1 do CDADC.

O arguido BB provém de uma família estruturada, pautada por sentimentos de pertença e de cooperação, com um quadro económico relativamente equilibrado.

Concluiu o 11° ano de escolaridade e posteriormente um curso profissional de informática e gestão. Com cerca de 17 anos iniciou percurso laboral numa oficina de carpintaria, vindo a adquirir posteriormente experiência como comerciante de peixe, inicialmente coadjuvando o sogro e desde há 3 anos com o pai, usufruindo de um vencimento de 700 euros mensais.

Mantém há cerca de 14 anos relação marital da qual tem uma filha, actualmente com 12 anos.

À data dos factos residia com a companheira e a filha, em apartamento arrendado (renda 400 euros) de tipologia T2, detentor de adequadas condições de habitabilidade.

No decurso da sua reclusão a companheira afastou-se do arguido.

O seu quotidiano estruturava-se pela vida familiar e a actividade laboral, contexto em que é referenciado pelo pai como investido.

Tem tido, no EP, um comportamento adequado ao nível do cumprimento das normas e tem tido suporte do pai.

Foi condenado:

-por decisão de 09.09.2008 [proc. 463/98 do Tribunal de Setúbal], n pena de 100 dias de multa à taxa diária de 300$00, pela prática em 08.09.1998 de um crime de condução sem habilitação legal, p. pelo art. 3° n° 2 do DL 2/98, de 03.01 – pena declarada extinta pelo cumprimento;

-por decisão de 23.10.1998 [proc. 546/98 do Tribunal de Setúbal], na pena de 5 meses de prisão, suspensa por 18 meses, pela prática em 22.10.1998 de um crime de condução sem habilitação legal, p. pelo art. 3° n° 2 do DL 2/98, de 03.01 – pena declarada extinta pelo cumprimento;

-por decisão de 30.06.1999 [proc. 880/99 do Tribunal de Setúbal], na pena de 3 meses de prisão, a cumprir por dias livres, pela prática em 24.06.1999 de um crime de condução sem habilitação legal, p. pelo art. 3° n° 2 do DL 2/98, de 03.01 – pena declarada extinta pelo cumprimento;

-por decisão de 07.01.2004 [proc. 248/02 do Tribunal da Moita], na pena de 5 meses de prisão, substituídos por 150 dias de multa, à taxa diária de 5 euros, pela prática em 18.08.2002 de um crime de receptação, p. pelo art. 231° n° 2 do CP – pena declarada extinta pelo cumprimento;

-por decisão de 20.11.2003 [proc. 3/00 do Tribunal de Setúbal], na pena de 15 meses de prisão, suspensa por 3 anos, pela prática em 01.07.2002 de um crime de homicídio por negligência, p. pelo art. 137° do CP – pena declarada extinta pelo cumprimento;

-por decisão de 27.10.2008 [proc. 14016/03 do Tribunal de Lisboa], na pena de 100 dias de multa, à taxa diária de 6 euros, pela prática em 10.2003 de um crime de desobediência, p. pelo art. 348° do CP.

O arguido CC é oriundo de um agregado familiar afectivo e com um estrato socioeconómico mediano.

Optou por integrar o mercado de trabalho com cerca de dezassete anos de idade, em detrimento da conclusão do 10° ano de escolaridade, iniciando actividade laboral como trabalhador agrícola e/ou indiferenciado da construção civil. Registou ainda experiências laborais em Portugal como distribuidor de produtos (gás e gelados), um período como segurança/vigilante e na exploração de uma pastelaria. Desde há cerca de dez anos que trabalha em Espanha, onde usufruía de melhores condições remuneratórias, tendo desenvolvido actividades como gerente de restaurantes e porteiro/vigilante em recintos de diversão nocturna, sendo que no ano anterior aos factos trabalhava principalmente em recintos de diversão nocturna em virtude da redução do volume de trabalho no sector da restauração.

Contraiu matrimónio com cerca de vinte e quatro anos, saindo do agregado dos pais, tendo já um descendente, nascido de um relacionamento efémero, que permaneceu junto dos seus pais, dada a desvinculação da mãe do menor. A relação marital era pouco gratificante, dada a incompatibilidade de personalidades, verificando-se um gradual distanciamento face à deslocação do arguido para Espanha, que culminou na ruptura marital decorridos seis anos, tendo o divórcio sido formalizado já durante a reclusão.

À data da reclusão, e havia cerca de cinco anos, CC mantinha uma relação marital com a actual companheira (tendo um descendente, com 3 anos de idade), tida como gratificante.

Em termos económicos, movimentava-se num quadro de suficiência, assente nas receitas auferidas pelo arguido (estimadas em cerca de 1000 euros mensais), e no vencimento da companheira, operária fabril.

Os tempos livres são passados com a família constituída e a família de origem e o filho primogénito, residentes em Olhão.

Tem registado um padrão comportamental adequado às normas no EP, colaborando no atendimento no bar dos reclusos. Tem tido visitas regulares da companheira e demais familiares.

Não tem condenações registadas no seu CRC.

 E foi dado como não provado que (transcrição)

a) em data e por meios não concretamente apurados, mas pelo menos desde Maio de 2010, o arguido AA, em concretização de plano previamente elaborado, começou a organizar a logística necessária para se proceder ao transporte, a partir de Marrocos, de haxixe, com o intuito de o mesmo ser introduzido no mercado europeu, por meio de uma venda acordada com uns indivíduos de nacionalidade espanhola, de identidades não apuradas;

b) para tanto, o arguido AA encetou contactos telefónicos e pessoais com diversos indivíduos cujas identidades não foram apuradas, tendo reunido com os mesmos, por diversas vezes, em locais como o “Fórum Montijo”, o “Algarveshopping” e o “Fórum Algarve’, a fim de planear o carregamento, transporte, desembarque, armazenamento e entrega do produto estupefaciente;

c) nesses contactos telefónicos, o arguido AA utilizou, até determinado momento, os números de telemóvel ..., ... e ... e, a partir de 01.02.2012, os números ... e ..., especialmente adquiridos para o efeito, cerca de quatro meses antes (em 08.11.2011), no “Algarveshopping”;

d) nas suas diversas deslocações pela zona centro e sul do país, o arguido AA utilizou habitualmente o veículo de marca BMW, modelo 320D, cor azul e matrícula ...-RD ou o veículo de marca Mitsubishi, modelo Strakar, de matrícula ...-SV e, por vezes, pernoitou nos seus estabelecimentos de diversão nocturna, designadamente “A Sorte do Azar – Night Club”, em Palmela e “Night Club Lagar”, sito em S. Bartolomeu de Messines;

e) o arguido AA providenciou pelo estacionamento da carrinha Citroen Jumper, como referido em 1, o que ocorreu em concretização do plano referido em a) dos factos não provados;

f) em 2, nesse dia e hora [29.03.2012], a carrinha foi levada a fim de nela colocar o produto estupefaciente vindo de Marrocos, por mar;

g) alguns instantes depois do referido em 3, chegaram ao local os arguidos AA e BB no veículo Ford Fiesta, sendo que o arguido BB ocupava o lugar de passageiro no Fiesta, e o Citroen, depois de iniciar a marcha, seguiu logo nesse momento atrás do Ford Fiesta e à frente do veículo Opel Astra, que ali chegou entretanto;

h) o caminho de terra batida referido em 7 é transversal à Rua Capitão Manuel Madeira Nobre;

i) os arguidos destinavam à venda a terceiros o haxixe apreendido;

j) a cannabis apreendida pesava 1.559,005 Kg;

l) o aerossol pertencia ao arguido CC, ou estava na «posse» deste, o qual conhecia as suas características, e quis trazê-lo consigo, sabendo que a sua detenção era proibida e punida por lei.

Conhecendo:

1. Deve começar por conhecer-se da alegação apresentada nos três recursos da nulidade da prova obtida mediante o uso do aparelho de GPS colocado no veículo onde foi encontrada a droga e a busca nessa viatura, pois se for procedente poderá levar à absolvição dos arguidos.

2. Sobre o uso do aparelho de GPS:

Alegam os arguidos que o sistema de GPS, usado para localizar a carrinha onde foi encontrada a droga, mediante a colocação nesta do respectivo dispositivo electrónico, é um meio de obtenção da prova proibido, uma vez que, atentando contra a privacidade ou mesmo a intimidade do cidadão, só poderia ser utilizado se houvesse uma lei a prevê-lo, e não há. Logo, as provas obtidas por esse meio são nulas.

Os arguidos AA e BB dizem ainda que, a considerar-se permitido este meio de obtenção da prova, o seu uso teria de ser precedido de autorização do juiz de instrução, dada através de despacho fundamentado, onde se mencionasse que a diligência era indispensável à descoberta da verdade ou que a prova seria, de outra forma, impossível ou muito difícil de obter, sendo que o despacho de autorização judicial que existiu «é totalmente omisso de fundamentação». Acrescentam que, mesmo que estivesse fundamentado, esse despacho não «seria legítimo nem podia receber qualquer credibilidade, em virtude de ser possível através de outro meio de prova obter o trajecto do veículo, nomeadamente seguimento policial».

Como resulta da decisão recorrida, o sistema de GPS (Global Positioning System) foi utilizado para sinalizar os movimentos da carrinha que continha a canabis, ocorridos entre 29/03/2012, quando se deslocou de junto do Teatro Municipal de Faro, e pouco depois das 06,30 horas do dia 03/04/2013, quando abandonou o parque de estacionamento situado na Rua do Alto do Cano, em Tavira. O uso do GPS não proporcionou directamente quaisquer provas do crime, mas potenciou a sua obtenção, permitindo aos investigadores seguir os movimentos do veículo onde suspeitavam estar guardada a droga e descobrir os implicados na operação.

O artº 125º do CPP estabelece o princípio de que «são admissíveis as provas que não forem proibidas por lei».

Por seu turno, o artº 126º do mesmo diploma, depois de nos nºs 1 e 2 indicar como nulas as provas obtidas por diversas formas que não vêm ao caso, dispõe no nº 3 que, «ressalvados os casos previstos na lei, são igualmente nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações sem o consentimento do respectivo titular».

O uso de dispositivo electrónico de localização de um automóvel por GPS representa uma intromissão na vida privada dos ocupantes do veículo, por permitir conhecer a quem o manipule os locais por onde se movimentam, locais que, pela sua natureza, podem fornecer indicações sobre aspectos da vida pessoal e íntima daqueles.

Benjamim Silva Rodrigues vê a questão da seguinte maneira:

«(…) há que sublinhar que nos encontramos perante um meio de investigação que, sem margem para dúvidas, contende com alguns direitos fundamentais. Em primeiro lugar, à cabeça de todos os direitos fundamentais encontra-se o direito à reserva da intimidade e da vida pessoal e familiar, de tal modo que se exige, por parte do Estado, um recuo em todas as ingerências estatais, dentro ou fora de um processo criminal, que contendam com tal direito fundamental, apenas devendo ser admitida a ultrapassagem de tal fronteira em casos gravosos (artigo 18º, nº 2, da CRP 1976) a necessitar de “esclarecimento criminal” e no âmbito de um processo criminal “em curso”. Em segundo lugar, ainda que em níveis não muito elevados, também estará em causa o problema de que, com o uso de tal método de investigação criminal, se contender com a liberdade de deambulação, em todo o território nacional, de forma anónima, já que tal se configura como essencial para a estruturação do direito à intimidade pessoal e espacial do indivíduo. O cidadão tem o direito ao esquecimento, por parte do Estado, perante todas as movimentações que ele efectue, em território nacional, fora de qualquer actividade ilícita ou criminosa» (Da Prova Penal, Tomo II, 1ª edição, página 92).

Não é correcto colocar no mesmo plano a localização de um veículo por meio de GPS e o seu seguimento por pessoas a bordo de outro veículo. Existe entre ambos uma diferença substancial e, estando-se no âmbito de uma investigação criminal, decisiva: enquanto o seguimento do veículo alvo por pessoas que se encontram noutro veículo se passa à vista de todos, permitindo a quem é seguido furtar-se à vigilância ou evitar agir de modo a poder auto-incriminar-se, o uso do sistema de GPS é um meio oculto de vigilância, que nenhuma oportunidade dá ao ocupante do veículo visado de iludi-lo, agindo, sem poder sabê-lo, de uma forma que pode representar a sua auto-incriminação.

É em função desse secretismo que o uso do GPS representa uma intromissão na vida privada, em consequência do que, à face da falada norma do nº 3 do artº 126º do CPP, as provas obtidas mediante a sua utilização só não são nulas e de valoração proibida se esse meio de obtenção da prova estiver previsto na lei.

E está.

Nos termos do artº 187º do CPP, a intercepção e gravação de conversações ou comunicações telefónicas é admissível, para além do mais que aqui não importa, se forem autorizadas por «despacho fundamentado do juiz de instrução», e «houver razões para crer que a diligência é indispensável para a descoberta da verdade ou que a prova seria, de outra forma, impossível ou muito difícil de obter».

O artº 189º, nº 1, estende esse regime às conversações ou comunicações transmitidas por qualquer outro meio técnico diferente do telefone, designadamente ao «correio electrónico ou outras formas de transmissão de dados por via telemática (…) e à intercepção das comunicações entre presentes».

Por sua vez, o nº 2 do artº 189º estabelece: «A obtenção e junção aos autos de dados sobre a localização celular ou de registos da realização de conversações ou comunicações só podem ser ordenadas ou autorizadas, em qualquer fase do processo, por despacho do juiz, quanto a crimes previstos no nº 1 do artigo 187º e em relação às pessoas referidas no nº 4 do mesmo artigo».

A disposição não fala nos dados de localização de um alvo obtidos por GPS, mas deve fazer-se dela uma interpretação extensiva, de modo a abranger esses dados. De facto, o artº 189º traduz o propósito do legislador de regular, além do mais, a localização de alvos por meios electrónicos, referindo um desses tipos de localização, a celular. Dada a similitude de alcance dos dois meios de obtenção da prova, as razões que levaram a prever a localização celular aplicam-se ao GPS. Até porque, como se informa no acórdão do Tribunal Constitucional nº 486/2009, acolhendo ensinamentos de Rui de Sá (Sistemas e Redes de Telecomunicações, 2007), a tecnologia GPS, com a sua recente incorporação nos equipamentos móveis, já se encontra presente na localização celular, permitindo-lhe atingir «um grau de precisão muito elevado em matéria de determinação da posição geográfica».   

 Donde a conclusão de que nesta matéria a letra da lei ficou aquém do seu espírito. Da própria razão de ser da lei resulta que o legislador, querendo referir-se a um género – meios electrónicos de localização geográfica de um alvo – mencionou apenas uma espécie desse género. Dizendo a letra da lei menos do que se pretendia, há que alargar o texto legal fazendo-o corresponder ao seu espírito.

O uso de aparelho de GPS para obter a localização geográfica, em tempo real, de um alvo é aceite por Benjamim Silva Rodrigues, desde que autorizado por despacho do juiz de instrução e tenha lugar na investigação de casos de média ou grande criminalidade, não pela via aqui seguida, mas com apelo às disposições dos artºs 18º, nºs 2 e 3, 32º, nº 4, e 202º, nºs 1 e 2, da Constituição (ob. cit., página 93).

Cabendo, desta forma, os dados obtidos por meio de GPS no âmbito de previsão do nº 2 do artº 189º, o seu uso tinha de ser autorizado por despacho do juiz de instrução, como aí se estabelece.

E foi, como reconhecem os recorrentes.

Relativamente ao despacho do juiz de instrução, alegam AA e BB que não se encontra fundamentado, em violação do disposto nos artºs 187º, 189º e 190º, daí decorrendo a nulidade das provas obtidas no processo despoletado pelo uso do GPS.

É verdade que o despacho não se encontra fundamentado. Tendo o MP requerido autorização para a colocação do instrumento electrónico de localização por GPS no veículo suspeito de conter a droga, invocando o disposto nos artºs 6º da Lei nº 5/2002, de 11 de Novembro, e 2º, nºs 5 e 6, da Lei nº 49/2008, de 27 de Agosto, sem outras considerações, o juiz de instrução deferiu esse requerimento, afirmando, singelamente, fazê-lo ao abrigo daquelas disposições legais, que, na realidade, nada prevêem sobre o uso deste meio de obtenção da prova.

Mas a falta de fundamentação não tem o alcance pretendido por estes dois arguidos.

Nos termos do artº 187º do CPP, como se viu, «a intercepção e a gravação de conversações ou comunicações telefónicas» só podem ser autorizadas por «despacho fundamentado do juiz de instrução».

Esse requisito, como estabelece nº 1 do artº 189º do mesmo diploma, é extensível aos meios de obtenção da prova indicados nesta disposição.

Mas não aos previstos no nº 2 do mesmo preceito, para os quais aí se estabelece, nesta matéria, uma disciplina autónoma, que contempla a autorização do juiz de instrução apenas por meio de despacho, sem a exigência de fundamentação.

Logo, não sendo requisito exigido pelo artº 189º, nº 2, a fundamentação do despacho do juiz de instrução que autorizou a recolha dos dados de localização geográfica da viatura suspeita de transportar a canabis, a sua falta não está abrangida pela previsão de nulidade contida no artº 190º.

Isso não significa que esse despacho não devesse ser fundamentado. Devia tê-lo sido, nos termos gerais previstos no artº 97º também do CPP. Conhecendo de uma questão interlocutória, o despacho do juiz de instrução é um acto decisório [nº 1, alínea b)]. E «os actos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão» [nº 5]. Mas a omissão constitui um vício processual que, não estando previsto como nulidade, constitui mera irregularidade, nos termos do artº 118º, nºs 1 e 2, ainda do CPP. A irregularidade teria de ser arguida perante o tribunal que nela incorreu, no momento indicado no artº 123º, nº 1, suscitando-se aí uma decisão da qual, se lhe fosse desfavorável, o interessado poderia ter interposto recurso. Não tendo sido seguido esse caminho, o vício sanou-se.

Mesmo que se devesse entender que a falta de fundamentação do despacho do juiz de instrução que autorizou o uso do GPS está sujeita à disciplina dos artºs 187º e 190º e deve ser vista como proibição de prova, como defendem os arguidos AA e BB, a questão já não podia ser agora colocada.

Efectivamente, esse despacho, inexistindo norma que afaste a regra da recorribilidade prevista no artº 399º do CPP, admitia recurso. Não se tendo dele recorrido, transitou em julgado, não mais podendo ser posto em causa.

Nem se argumente em contrário com a norma do nº 2 do artº 310º. Essa disposição tem em vista os casos abrangidos no nº 1, em que a pronúncia sobre questões de proibições de prova não se torna definitiva, na medida em que está integrada numa decisão – a decisão instrutória que pronunciar o arguido pelos factos constantes da acusação do MP – que é irrecorrível.

Nos casos em que é recorrível, a decisão sobre proibições de prova transita em julgando, estabilizando-se, se dela não for interposto recurso ou, sendo-o, este for julgado improcedente.

AA e BB alegam ainda que, mesmo considerando-se fundamentado, o despacho do juiz de instrução é ilegítimo e não merece credibilidade, visto que era possível obter a prova por outro meio, nomeadamente seguimento policial. Mas, sendo o despacho do juiz de instrução recorrível, como se disse, a sede própria para apreciar o seu acerto ou desacerto era o recurso que dele se interpusesse em devido tempo.

3. Sobre a busca:

Se bem se compreende, pretendem os recorrentes que, sendo propriedade privada e, portanto, reservado ou não livremente acessível ao público o local onde foi efectuada a busca, esta, por não se verificar nenhuma das situações previstas no nº 5 do artº 174º do CPP, teria de ser ordenada ou autorizada por despacho da autoridade judiciária, nos termos do nº 3 do mesmo preceito, e não foi. Logo daí decorreria a invalidade desse meio de obtenção da prova.

Mas não foi com base nas disposições do artº 174º que a decisão recorrida afirmou a validade da busca. E não é aí que se encontra a solução do caso.

A busca no veículo foi realizada por inspectores da polícia Judiciária, um deles inspector-chefe, que dirigiu o acto. Os inspectores da Polícia Judiciária são órgãos de polícia criminal, nos termos do artº 1º, alínea c), do CPP, e os inspectores-chefes são mesmo autoridades de polícia criminal, como resulta da conjugação da alínea d) desse preceito e do artº 11º, nº 1, alínea i), da Lei Orgânica da Polícia Judiciária, aprovada pela Lei nº 37/2008, de 6 de Agosto [«São autoridades de polícia criminal, nos termos e para os efeitos do Código de Processo Penal: Inspectores -chefes»].

E estabelece o artº 251º do CPP:

«1. Para além dos casos previstos no nº 5 do artigo 174º, os órgãos de polícia criminal podem proceder, sem prévia autorização da autoridade judiciária:

a) À revista de suspeitos em caso de fuga iminente ou de detenção e a buscas no lugar em que se encontrarem, salvo tratando-se de busca domiciliária, sempre que tiverem fundada razão para crer que neles se ocultam objectos relacionados com o crime, susceptíveis de servirem a prova e que de outra forma poderiam perder-se;

b) …

2. É correspondentemente aplicável o disposto no nº 6 do artº 174º».

De acordo com a norma da alínea a), os órgãos de polícia criminal e, por maioria de razão, as autoridades de polícia criminal podem, sem prévia autorização da autoridade judiciária, efectuar buscas em local que, embora reservado ou não livremente acessível ao público, não seja um domicílio, desde que tenham «fundadas razões para crer que ali se ocultam objectos relacionados com o crime, susceptíveis de servirem para a prova e que de outra forma poderiam perder-se».

Os inspectores vigiavam desde algum tempo os movimentos da carrinha, por terem fortes indicações, colhidas nomeadamente através de escutas telefónicas, de que ali seria transportado produto estupefaciente proibido. Como a carrinha foi levada para um espaço privado e vedado, onde, por não ser possível continuar a vigiar os seus movimentos e os das pessoas que a conduziam e seguiam, sem levantar suspeitas, o produto, não havendo intervenção imediata dos agentes policiais, poderia ser dela retirado e levado para local desconhecido, nomeadamente entregue a terceiros.

A actuação dos agentes, procedendo à busca após a detenção dos recorrentes, só extravasaria o âmbito de previsão da alínea a) do nº 1 do artº 251º, se o local devesse ser considerado um domicílio, como pretendem os recorrentes.

E não deve.

Como escrevem Jorge Miranda e Rui Medeiros, «qualquer tentativa de aproximação ao conceito de domicílio não pode perder de vista o bem jurídico que este direito fundamental pretende proteger, no caso concreto a chamada “esfera privada espacial”», pelo que «a qualificação de qualquer espaço como domicílio implica, necessariamente, que aí se resida, isto é, que aí se pratiquem actos relacionados com a vida familiar e com a esfera íntima privada». Para estes autores, «requisito fundamental para a determinação do conceito de domicílio» é «a existência de uma compartimentação espacial susceptível de evitar ou limitar a possibilidade de violações ou entradas» (Constituição da República Portuguesa Anotada, Tomo I, 2010, página 759).

Daqui partiu o acórdão nº 216/2012 do Tribunal Constitucional para chegar à conclusão de que domicílio, para este efeito, é o «espaço funcionalmente utilizado como habitação humana, local reservado que é o centro da vida pessoal e familiar de cada um, ou seja, “aquele espaço fechado e vedado a estranhos, onde, recatadamente e livremente, se desenvolve toda uma série de condutas e procedimentos característicos da vida privada e familiar”», adoptando nesta última parte a fórmula usada pelo acórdão nº 452/89 do mesmo tribunal.

No caso, o local buscado foi a referida carrinha que se encontrava «debaixo de um telheiro». Um telheiro, construção aberta, como era no caso, destina-se a guardar ou abrigar objectos que não é adequado ou próprio introduzir na habitação, como alfaias agrícolas, lenha etc. Serve-lhe de apoio, mas não faz parte da habitação, considerando-se esta como o espaço fechado onde se desenvolvem ou podem desenvolver, recatadamente, “dentro de portas”, ao abrigo dos olhares de estranhos, todos aqueles actos que são característicos da vida privada e íntima de cada um. Nos factos provados, é referenciada uma residência, a do «avô do arguido CC», mas o telheiro não só lhe era exterior como estava dela separado, ainda que «em zona próxima» (facto nº 8).

A busca não foi, pois, efectuada num domicílio.

Dizem ainda os recorrentes que, a aceitar-se a aplicação ao caso de regime do artº 251º, deve considerar-se a busca nula, nos termos do nº 2 deste preceito e do nº 6 do artº 174º, na medida em que devia ter sido imediatamente comunicada ao juiz de instrução e por este apreciada em ordem à sua validação, o que não aconteceu.

Também aqui não têm razão.

A busca foi realizada no dia 03/04/2012. E logo no dia seguinte, o MP requereu ao juiz de instrução a validação das apreensões ocorridas durante a busca, referindo expressamente o produto estupefaciente encontrado. No mesmo dia – 04/04/2012 –, o juiz de instrução, no despacho que aplicou medidas de coacção, referiu o auto de busca e apreensão como um dos elementos que suportavam a conclusão da existência de fortes indícios da prática pelos arguidos de um crime de tráfico de estupefacientes, validou as apreensões e valorou a droga apreendida, falando de «uma apreensão de haxixe de grande dimensão (50 fardos de paletes de haxixe)», para fundamentar as medidas de coacção decididas.

Não pode negar-se haver aí uma implícita, mas inequívoca, validação da busca, procedimento que é aceitável, mesmo sob o ponto de vista constitucional (cf. neste sentido o acórdão do STJ de 20/09/2006, proc. nº 2321/06, disponível em www.dgsi.pt e acórdão do Tribunal Constitucional) nº 278/2007.

E a validação nesse lapso de tempo ainda se pode considerar imediata, uma vez que previamente houve que lavrar o auto de busca e apreensão e apresentar o processo ao magistrado do MP e este, por sua vez, teve de fazer a análise das diligências realizadas e redigir o requerimento apresentado ao juiz de instrução, havendo ainda a passagem do processo por oficiais de justiça, para serem lavrados os termos de vista e conclusão. Note-se que o Tribunal Constitucional, naquele acórdão nº 278/2007 e no acórdão nº 274/2007, não considerou desconforme à Constituição o entendimento de que a validação da busca pelo juiz de instrução no prazo de 48 horas cumpre a norma do nº 6 do artº 174º.

Não é, pois, proibida a prova obtida por meio da busca realizada na carrinha que transportava a droga.

3. Sobre a pretensão dos arguidos BB e CC serem apenas cúmplices:

O artº 21º, nº 1, do DL nº 15/93 prevê o crime de tráfico e outras actividades ilícitas, equiparando vários comportamentos que vão desde o cultivo até à venda ou distribuição das plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas anexas ao diploma. Qualquer um desses comportamentos é típico. Um deles é o transporte. O transporte preenche, pois, o tipo objectivo do ilícito.

E, no caso, o que se provou foi o transporte do produto previsto na tabela I - C, resina de canabis, na carrinha Citroen Jumper, de matrícula ...CWN, pelo menos, da Rua do Alto do Cano, em Tavira, até ao Sítio dos Mortais, onde se deu a detenção dos arguidos e a apreensão da droga.

Os três arguidos actuaram de comum acordo relativamente ao transporte da canabis, acordo esse que envolveu o tipo de contribuição de cada um, tal como veio a ocorrer, ou seja, houve uma decisão conjunta de todos relativamente àquele facto (nº 12 da matéria de facto provada).

O transporte foi feito, como se disse, na referida carrinha Citroen Jumper, conduzida pelo arguido BB. Os outros dois arguidos, como combinado, «com a finalidade de acompanharem o transporte do haxixe», pouco depois de a carrinha ter iniciado a marcha, foram ao encontro dela, cada em seu veículo, começando por segui-la, sendo que em determinado momento o arguido CC passou para a frente, indicando o caminho até à propriedade do seu avô, onde acabaram por parar, ficando a carrinha que continha a droga debaixo de um telheiro (factos nºs 7 e 8).

A condução da carrinha Citroen Jumper constituiu, sem dúvida, um acto que se integrou no transporte da droga, mas não o esgotou. Por transporte deve entender-se toda a operação pelos arguidos acordada de fazer conduzir, naquelas circunstâncias, o produto estupefaciente até ao local onde pararam, a propriedade do avô de CC. Nessa operação cabia a cada um desempenhar uma determinada tarefa: a BB cabia o papel de conduzir a carrinha Citroen Jumper; os outros dois tinham a seu cargo o acompanhamento dessa carrinha, notoriamente com vista a garantir a chegada em segurança ao destino; ao arguido CC cabia ainda a tarefa de indicar o caminho, como se infere do facto de, durante o percurso ter tomado a dianteira, encaminhando-se e aos outros para a propriedade do avô.

O transporte acordado foi, pelo menos, até à propriedade do avô de CC, no Sítio dos Mortais, conduzindo um dos arguidos a viatura que continha a droga e fazendo os outros o seu acompanhamento, para dar maior segurança à operação, cabendo ainda a CC encabeçar a “caravana”, visto que iam entrar na propriedade do avô. Assim, os contributos dos arguidos BB e CC foram determinantes para a realização desse transporte. Era necessário conduzir a carrinha onde estava a droga, e BB executou essa tarefa; era necessário fazer o acompanhamento desse veículo, em ordem a tornar o transporte seguro, bem como propiciar a entrada no espaço vedado que tinham como destino, e CC desempenhou estes papéis.

Tiveram, assim, estes dois, em conjunto com AA, o domínio do facto, que foi o transporte da droga, tomando parte directa na sua execução.

O arguido BB diz que a sua actuação foi “completamente secundária e instrumental, uma vez que se uma pessoa não levasse o veículo, qualquer outra o poderia fazer”. Como se disse, o recorrente tomou parte directa na execução do facto típico – o transporte da droga. É autor. É claro que se ele não conduzisse o veículo, outro o podia fazer. Mas se fosse outro a conduzir o veículo, seria esse outro a tomar parte directa na execução do facto. E o recorrente, se mais não houvesse em relação a ele, não seria sequer participante. Não foi, porém, o que aconteceu.

É impertinente a alegação que faz nesta parte de que «a condução de um veículo em nada demonstra que o recorrente tivesse conhecimento do que se estava a passar», pois deu-se como provado que “sabia como agia”, isto é, sabia o que estava a fazer, a conduzir um veículo contendo quase uma tonelada e meia do produto referido, e “quis agir da forma descrita”, sendo que não impugnou a decisão sobre matéria de facto, tendo mesmo explicitado que o objecto do seu recurso era a matéria de direito.

O mesmo se deve dizer da afirmação de que “não existe nenhum elemento que demonstre que havia uma decisão conjunta entre as partes”, pois deu-se como provado que “os arguidos actuaram de comum acordo”. Não tendo sido impugnada a decisão proferida sobre matéria de facto, não se compreende ainda neste âmbito a alegação de que “o recorrente não era referenciado naquele processo, nem sequer existem intercepções telefónicas do mesmo a falar com qualquer dos co-arguidos”. Nem se vê em que é que isso interfere na distinção entre autor e cúmplice.

Havendo decisão conjunta e participação directa na execução do facto típico, não pode deixar de concluir-se que os arguidos BB e CC são co-autores, à luz do artº 26º do CP.

Vale aqui a lição de Figueiredo Dias:

«O que nesta figura existe de característico é a existência, por um lado de uma decisão conjunta; por outro de uma determinada medida de significado funcional da contribuição do co-autor para a realização típica; muito exactamente realçada pela nossa lei ao impor que o co-autor tome parte directa na execução. Deste modo, a actuação de cada co-autor, no papel que lhe é destinado, apresenta-se como momento essencial da execução do plano comum, ou, noutras palavras, constitui a realização da tarefa que lhe cabe na “divisão de trabalho” que representa mesmo a essência desta forma de autoria.

(…).

Essencial é a ideia segundo a qual o princípio do domínio do facto se combina aqui com a exigência de uma repartição de tarefas, que assinala a cada comparticipante contributos para o facto que, podendo situar-se fora do tipo legal de crime, tornam a execução do facto dependente daquela mesma repartição» (Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, Questões Fundamentais …, 2ª edição, página 791).   

4. Sobre as penas:

4.1. Os arguidos AA e BB pretendem que o acórdão recorrido, na parte referente à determinação da respectiva pena concreta é nulo, por falta de fundamentação, nos termos dos artºs 374º, nº 2, e 379º, nº 1, alínea a), do CPP.

O vício estaria em não se perceber, relativamente a ambos, que ponderação teve nessa operação a ausência de antecedentes criminais da mesma natureza, a reinserção na sociedade, o apoio da companheira e o comportamento posterior ao crime.

Existe falta de fundamentação nesta matéria quando se desconhecem, por não serem explicitadas na decisão, as razões pelas quais se chegou à pena decidida. No caso, a decisão recorrida explicitou as razões pelas quais achou justa a pena fixada: a) o grau de ilicitude do facto, sendo a menor danosidade intrínseca da droga contrabalançado pela sua enorme quantidade; b) o dolo directo e intenso; c) o propósito, inerente à actividade desenvolvida, de obter vantagens patrimoniais; d) a circunstância de, à data dos factos, todos os arguidos terem ocupação profissional e a situação pessoal e familiar estabilizada; e) a conduta anterior ao facto, referindo-se positivamente a ausência de antecedentes criminais relativamente a CC e negativamente as condenações já sofridas por AA e BB, com especial valoração, no que se refere a AA, de uma delas, em função da natureza do crime (lenocínio), da pena aplicada (3 anos e 4 meses de prisão, suspensa) e do facto de o crime em julgamento haver sido praticado no período da sua suspensão, e, em relação a BB, a extensão e natureza dos respectivos crimes, na medida em que evidenciam «a sua oposição constante às regras comunitárias, surgindo o actual crime, mais grave, como o culminar dessa atitude refractária».

Não existe nenhuma referência às circunstâncias agora apontadas por estes recorrentes. Por isso, o que eles pretenderão dizer é que essas circunstâncias não foram tidas em consideração na determinação da pena, devendo tê-lo sido. Mas nisso o que há é uma discordância sobre a fundamentação da operação de determinação da pena, que nada tem que ver com o vício da falta de fundamentação.

4.2. Cabe agora averiguar se a medida de cada uma das penas é excessiva, como dizem todos os arguidos.

A determinação da medida concreta da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita, de acordo com o disposto no artº 71º, em função da culpa e das exigências de prevenção, devendo atender-se a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, circunstâncias essas de que ali se faz uma enumeração exemplificativa e podem relevar pela via da culpa ou da prevenção.

À questão de saber de que modo e em que termos actuam a culpa e a prevenção responde o artº 40º, ao estabelecer, no nº 1, que «a aplicação de penas visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade» e, no nº 2, que «em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa».

Assim, a finalidade primária da pena é a de tutela de bens jurídicos e, na medida do possível, de reinserção do agente na comunidade. À culpa cabe a função de estabelecer um limite que não pode ser ultrapassado.

Na lição de Figueiredo Dias, a aplicação de uma pena visa acima de tudo o “restabelecimento da paz jurídica abalada pelo crime”. Uma tal finalidade identifica-se com a ideia da “prevenção geral positiva ou de integração” e dá “conteúdo ao princípio da necessidade da pena que o art. 18º, nº 2, da CRP consagra de forma paradigmática”.

Há uma “medida óptima de tutela dos bens jurídicos e das expectativas comunitárias que a pena se deve propor alcançar”, mas que não fornece ao juiz um quantum exacto de pena, pois “abaixo desse ponto óptimo ideal outros existirão em que aquela tutela é ainda efectiva e consistente e onde portanto a pena concreta aplicada se pode ainda situar sem perda da sua função primordial”.

Dentro desta moldura de prevenção geral, ou seja, “entre o ponto óptimo e o ponto ainda comunitariamente suportável de medida da tutela dos bens jurídicos (ou de defesa do ordenamento jurídico)” actuam considerações de prevenção especial, que, em última instância, determinam a medida da pena. A medida da “necessidade de socialização do agente é, em princípio, o critério decisivo das exigências de prevenção especial”, mas, se o agente não se «revelar carente de socialização», tudo se resumirá, em termos de prevenção especial, em «conferir à pena uma função de suficiente advertência» (Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2007, páginas 79 a 82).

No caso, a operação de transporte da substância proibida foi cuidadosamente preparada e reflectida, como resulta da escolha de um veículo adequado, uma carrinha com vidros escuros, para evitar que se visse do exterior a carga, das suas movimentações entre 29/03/2013 e 03/04/2013 e das circunstâncias em que, quando a viatura, já carregada e conduzida pelo arguido BB, iniciou a marcha, os arguidos AA e CC vieram ao encontro dela e a acompanharam até ao ponto onde se veio a imobilizar, seguindo um itinerário em que serviu de guia CC. Surpreende-se nisso uma vontade muito determinada e persistente de levar o facto por diante, do que decorre dolo de grande intensidade, que releva em sede de culpa.

No que se refere ao grau de ilicitude do facto, há a considerar, por um lado, que, se a substância em causa não é das de maior nocividade para a saúde das pessoas, a quantidade transportada é enorme, quase uma tonelada e meia, suficiente para abastecer uma infinidade de consumidores, e, por outro, que a conduta típica, o mero transporte da droga, não podendo embora deixar de se lhe reconhecer uma especial perigosidade para os bens jurídicos que se visa proteger, é das que revelam menor comprometimento com o comércio ilegal de drogas. Nesse transporte há, porém, uma maior implicação do arguido AA, que actuou mais próximo dos responsáveis pela introdução da canabis no país, tendo tido alguma «intervenção» no seu desembarque e ficado responsável por diligenciar pelo seu transporte em terra (facto nº 4). As condutas dos arguidos BB e CC equivalem-se em desvalor. Temos, assim, que a ilicitude é bastante elevada, relativamente a AA, e elevada, em relação aos outros dois, relevando este factor pela via da culpa e da prevenção geral.

Tendo em conta a intensidade do dolo e o apontado grau de ilicitude do facto, tem-se a culpa como bastante elevada em relação ao arguido AA e elevada no que se refere aos outros dois, a permitir que a pena se fixe em patamar situado muito além do limite mínimo da moldura penal, mais relativamente a AA.

A medida das exigências de prevenção geral é elevada, atendendo a que, embora não se esteja perante um tipo de droga dos de maior potencial de danosidade para a saúde dos seus consumidores, está em causa um enorme carregamento, cuja notícia não pode ter deixado de causar um grande impacto na comunidade, fazendo-a despertar para os problemas sociais que andam ligados ao tráfico e consumo de estupefacientes. Por outro lado, este tipo de actividade, se não está em crescendo, mantém-se pelo menos em níveis muito elevados. Destas circunstâncias resulta que o mínimo de pena imprescindível à manutenção da confiança colectiva na ordem jurídica se situa muito acima do limite mínimo da moldura penal.

Em sede de prevenção especial há a considerar positivamente a ausência de antecedentes criminais por parte do arguido CC e negativamente as condenações anteriormente sofridas pelos arguidos BB e AA, que, embora não tenham qualquer ligação com o crime deste processo, não deixam de revelar alguma hostilidade ao direito, no que se refere a BB, pelo número de infracções, e em relação a AA, pela natureza de um dos crimes anteriores (lenocínio) e, mais decisivamente, pelo facto de haver cometido o crime deste processo durante o período de suspensão da execução da pena aplicada por aquele. Quanto a este último arguido, tendo em conta que é referenciado por pessoa ou pessoas com posição importante no mundo da droga, como resulta do facto de haver sido incumbido de organizar o transporte em terra de uma quantidade tão grande, exige-se à pena um redobrado efeito de desencorajamento da prática de novos crimes desta natureza, que lhe é facilitada por aquela circunstância.

Os arguidos AA e BB pretendem que estão reinseridos na sociedade, mas não se vê de que factos se pode retirar essa conclusão, e eles não o dizem.

Falam também do apoio da companheira.

Sobre isso sabe-se que a companheira de AA o visita no estabelecimento prisional e planeia continuar a viver com ele. Mas não se vê em que é que essa circunstância releva em sede de medida da pena (e tinha de sê-lo pela via da prevenção), pois não houve qualquer alteração em relação à situação verificada à data dos factos, visto que já então viviam juntos, e isso não constituiu qualquer obstáculo à sua prática.

E no que se refere ao arguido BB, ficou assente que a companheira se afastou dele.

Quanto ao comportamento posterior ao crime, provou-se apenas que no estabelecimento prisional estes arguidos cumprem as normas. Mas isso é o que se exige de todos os reclusos, sob pena da aplicação de sanções disciplinares.

Ponderando tudo quanto acabou de expor-se, só pode concluir-se que as penas fixadas, de 6 anos de prisão para AA, 5 anos e 5 meses de prisão para BB e 5 anos e 3 meses de prisão para CC, situando-se muito mais perto do limite mínimo do que do limite máximo da moldura penal e mesmo muito aquém do seu ponto intermédio, não excedem a medida necessária para realizarem as finalidades da punição. A diferença das penas dos arguidos BB e CC encontra fundamento nas menores exigências de prevenção especial relativamente ao último, em função da ausência de antecedentes criminais.

4.3. Sendo superior a 5 anos de prisão a medida das penas, não há que equacionar a suspensão da sua execução, uma vez que, nos termos do artº 50º, nº 1, do CP, só pode suspender-se a execução de penas de prisão não superiores a 5 anos.

Decisão:

Em face do exposto, acordam os juízes do Supremo Tribunal de Justiça em negar provimento aos recursos.

Os recorrentes vão condenados a pagar cada um 6 UC de taxa de justiça e, solidariamente, as demais custas.

                                               Lisboa, 24 de Outubro de 2014

Manuel Braz (Relator)

Isabel São Marcos

Santos Carvalho