Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1094/23.6T8PVZ.P1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: EMIDIO SANTOS
Descritores: AÇÃO DECLARATIVA
COMPETÊNCIA MATERIAL
JUÍZO CÍVEL
INDEMNIZAÇÃO
SOCIEDADE COMERCIAL
DIREITOS DOS SÓCIOS
RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA
RESPONSABILIDADE DO GERENTE
DANO
GERENTE NÃO SÓCIO
INTERMEDIAÇÃO FINANCEIRA
ATO ILÍCITO
RESPONSABILIDADE CIVIL PROFISSIONAL
NULIDADE DE ACÓRDÃO
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
OPOSIÇÃO ENTRE OS FUNDAMENTOS E A DECISÃO
Data do Acordão: 04/03/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
É de qualificar como acção relativa ao exercício de direitos sociais, para efeitos da alínea c) do n.º 1 do artigo 128.º da Lei da Organização do Sistema Judiciário, a acção de indemnização proposta por uma sociedade comercial contra quem foi gerente de direito e de facto dessa sociedade e contra duas trabalhadoras dessa mesma sociedade, fundada, em relação ao gerente, na prática de actos danosos com preterição dos seus deveres legais e, em relação às trabalhadores, em auxílio que prestaram aos gerentes na prática desses actos.
Decisão Texto Integral:

Acordam na 2.ª secção cível do Supremo Tribunal de Justiça

Tecnogial – Projectos e Tecnologia Industrial Lda, com sede na Rua da Telheira, número 59, na freguesia de Perafita, concelho de Matosinhos, propôs no Juízo Central Cível da ... do tribunal judicial da comarca do Porto, a presente acção declarativa com processo comum contra AA e BB, residentes na Rua ..., ... ..., CC, residente na Rua Padre ..., ... ..., e DD, residente Rua da ..., ..., ..., pedindo a condenação solidária dos réus no pagamento do montante de € 913.895,60 (novecentos e treze mil, oitocentos e noventa e cinco euros e sessenta cêntimos), decomposto nas seguintes parcelas:

• (i) Danos provocados pelos desvios de faturação através da T........: 55.959,80 (cinquenta e cinco mil, novecentos e cinquenta e nove euros e oitenta cêntimos);

• (ii) Danos decorrentes de cheques abusivamente emitidos a favor do 1.º Réu: € 23.184,70 (vinte e três mil, cento e oitenta e quatro euros e setenta cêntimos);

• (iii) Danos decorrentes de pagamento de horas extraordinárias: € 16.760,00 (dezasseis mil, setecentos e sessenta euros);

• (iv) Danos decorrentes empréstimos não autorizados e o esquema do “IVA extra”: € 53.613,68 (cinquenta e três mil, seiscentos e treze euros e sessenta e oito cêntimos);

• (v) Realização de pagamentos e liberalidades feitos pelo 1.º réu sem suporte contabilístico: € 764.377,42 (setecentos e sessenta a quatro mil, trezentos e setenta e sete euros e quarenta e dois cêntimos).

Pediu ainda a condenação solidária dos réus no pagamento de juros vencidos e vincendos à taxa anual de juros legais, a contar da data da citação, até efetivo e integral pagamento.

Para o efeito alegou em síntese:

• Que o 1.º réu foi sócio e gerente da autora desde a sua constituição até 2015 e gerente de facto depois dessa data até ... de Janeiro de 2021;

• Que, enquanto exerceu tais funções, desviou facturação e clientela através de uma sociedade por si criada; emitiu cheques abusivamente a seu favor; desviou verbas para pagamento a si próprio de horas extraordinárias; subtraiu documentação mercantil; fez empréstimos não autorizados e não registados na contabilidade da autora e desenvolveu um procedimento (esquema do IVA extra) com vista a obter liquidez em seu benefício próprio e à custa dos fundos societários;

• Os levantamentos em dinheiro, cheques, pagamento de horas extraordinárias, empréstimos e esquema do “IVA extra”, foram desviados pelo 1.º Ré das contas a Autora, com o auxílio das 2.ª e 3.ª Rés.

Os réus contestaram. Na sua defesa arguiram, com interesse para a revista, que na acção estava em causa o exercício judicial dos direitos da sociedade autora contra alegados membros do seu órgão executivo, pelo que estavam em causa direitos cuja competência material cabia exclusivamente aos tribunais de comércio, sendo o juízo de competência genérica cível materialmente incompetente para apreciar e decidir a questão.

No despacho saneador, o Meritíssimo juiz do tribunal a quo decidiu que o tribunal onde a acção foi proposta era incompetente em razão da matéria para o conhecimento da acção. Competentes eram os Juízos de Comércio. Em consequência, absolveu os réus da instância.

Apelação

A autora não se conformou e interpôs recurso de apelação, pedindo se revogasse o despacho saneador e se substituísse o mesmo por decisão que considerasse o tribunal a quo competente em razão da matéria, ordenando-se que a acção prosseguisse aí os seus termos.

O Tribunal da Relação, por acórdão proferido em 10-10-2024, julgou improcedente a apelação, mantendo a decisão recorrida.

Revista:

A autora não se conformou e interpôs recurso de revista, pedindo:

1. Se revogasse a decisão recorrida, e, em consequência, se determinasse que os autos baixassem à primeira instância para prosseguirem os seus termos no Juízo Central Cível da ...;

2. Caso assim não se entendesse, se declarasse a competência do Juízo Central Cível da ... para julgar a ação no que respeitava às rés e recorridas CC e DD, prosseguindo os autos os seus termos quanto a estas rés naquele Juízo.

Os fundamentos do recurso expostos nas conclusões foram os seguintes:

1. O Venerando Tribunal da Relação do Porto decidiu que a competência para julgar a ação proposta pela recorrente pertence ao Juízo de Comércio.

2. A recorrente não se conforma com esta decisão, por entender que o Tribunal a quo incorreu em omissão de pronúncia e contradição entre os fundamentos e a decisão, além de erro na determinação da competência material.

3. O Tribunal a quo não se pronunciou sobre a situação das rés CC e DD, que nunca foram sócias nem gerentes da recorrente, não possuindo qualquer vínculo societário ou orgânico com a mesma, mas que participaram nos atos ilícitos praticados em conluio com os Réus gerentes.

4. Ao não considerar a posição destas rés, o Tribunal omitiu pronúncia sobre questões essenciais para a decisão, violando o disposto no artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Civil aplicável ex vi do n.º 1 do art.º 666.º do mesmo diploma

5. A decisão recorrida sintetizou a questão em análise como sendo uma ação de responsabilidade civil pelo exercício da administração da sociedade, ignorando a participação das rés CC e DD que não eram gerentes nem sócias.

6. O Tribunal errou ao considerar que a ação proposta é relativa ao exercício de "direitos sociais", quando se trata, na verdade, de uma ação de responsabilidade civil por atos ilícitos praticados por réus gerentes e por réus terceiros sem vínculo societário.

7. Os "direitos sociais" são direitos inerentes à condição de sócio, pertencendo exclusivamente aos sócios da sociedade, não sendo a sociedade titular de tais direitos.

8. Assim, uma ação proposta pela sociedade contra os seus gerentes não configura o exercício de "direitos sociais", mas sim uma ação de responsabilidade civil por factos ilícitos praticados contra a sociedade.

9. Ao aplicar o disposto no artigo 128.º, n.º 1, alínea c), da Lei da Organização do Sistema Judiciário (LOSJ), o Tribunal atribuiu competência ao Juízo de Comércio de forma errada, uma vez que a ação não se subsume à competência da mencionada disposição.

10. Existe contradição entre os fundamentos da decisão recorrida e a decisão tomada, pois o Tribunal define os "direitos sociais" como pertencentes aos sócios, mas aplica essa definição a uma ação movida pela sociedade contra um Réus sócio e três rés não sócias, o que constitui nulidade nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Civil.

11. A responsabilidade que se pretende assacar às rés CC e DD é a título de responsabilidade civil por facto ilícito, nos termos do artigo 483.º do Código Civil, não sendo as mesmas sócias ou gerentes da sociedade.

12. A competência para julgar ações de responsabilidade civil contra terceiros sem vínculo societário pertence aos Juízos Centrais Cíveis, nos termos dos artigos 40.º, n.º 1, e 117.º, n.º 1, alínea a), da LOSJ.

13. Não existe uma relação de especialidade entre a responsabilidade dos gerentes prevista nos artigos 72.º e 80.º do Código das Sociedades Comerciais e a responsabilidade civil geral prevista nos artigos 483.º e seguintes do Código Civil, pois a primeira assenta nos pressupostas desta última.

14. Na realidade, a responsabilidade dos gerentes para com a sociedade não afasta a aplicação do regime geral da responsabilidade civil por factos ilícitos.

15. O princípio da prevalência das decisões de mérito sobre as decisões formais, previsto no artigo 278.º, n.º 3 e art.º 6.º, n.º 2, ambos do Código de Processo Civil, impõe que o litígio seja julgado pelo Juízo Central Cível.

16. Acresce que, separar o julgamento dos dois réus gerentes e das duas rés terceiras pela prática da mesma factualidade em conluio conduziria a decisões contraditórias e violaria os princípios da unidade da instância e da economia processual, ínsitos nos artigos 260.º e 130.º do Código de Processo Civil.

17. O Tribunal a quo não considerou que os atos ilícitos praticados pelos quatro Réus estão interligados, tendo sido cometidos em conluio, visando lesar, como lesaram, gravemente a recorrente.

18. Nem que tais atos a título de responsabilidade civil por facto ilícito, estribada no art.º 483.º do CC, dado inexistir qualquer vínculo orgânico à Sociedade Autora.

19. Devendo a ação ser julgada quanto a todos os réus pelo Juízo Central Cível da ... nos termos do art.º 40.º, n.ºs 1 e 2 e art.º 117.º, n.º 1, al. a) da LOSJ.

20. Assim, não se entendendo, o tribunal competente para julgar a presente ação no que às Rés e Recorridas CC e DD diz respeito, é o Juízo Central Cível da ..., por força das acabadas de citar disposições da LOSJ.

21. Foram violadas na decisão recorrida as seguintes normas:

• Artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Civil (Contradição entre os fundamentos e a decisão), aplicável ex vi do disposto no n.º 1 do artigo 666.º do mesmo Código;

• Artigo 615.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Civil (Contradição entre os fundamentos e a decisão), aplicável ex vi do disposto no n.º 1 do artigo 666.º do mesmo Código;

• Artigos 260.º e 130.º do Código de Processo Civil: princípios da unidade da instância e da economia processual;

• Artigo 128.º, n.º 1, alínea c), da Lei da Organização do Sistema Judiciário;

• Artigos 40.º, n.º 1, e 117.º, n.º 1, alínea a), da Lei da Organização do Sistema Judiciário.

• Artigos 72.º e 80.º do Código das Sociedades Comerciais: Responsabilidade dos gerentes para com a sociedade.

• Artigo 483.º do Código Civil: Responsabilidade civil por factos ilícitos

• Artigo 278.º, n.º 3 e 6.º n.º 2 do Código de Processo Civil: Prevalência das decisões de mérito sobre as decisões formais.

Os recorridos não responderam.


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Questões suscitada pelo recurso:

1. Saber se o acórdão recorrido incorreu em omissão de pronúncia e contradição entre os fundamentos e a decisão;

2. Saber se, ao aplicar o disposto no artigo 128.º, n.º 1, alínea c), da Lei da Organização do Sistema Judiciário (LOSJ), o Tribunal atribuiu competência ao Juízo de Comércio de forma errada, uma vez que a acção não se subsume à competência da mencionada disposição;

3. Saber se tribunal competente para julgar a presente ação, no que às rés CC e DD diz respeito, é o Juízo Central Cível da ....


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Os factos relevantes para a decisão são constituídos pelo teor da petição inicial.

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Resolução das questões

Omissão de pronúncia:

A recorrente imputa ao acórdão recorrido a violação do artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC, aplicável à 2.ª instância por remissão do n.º 1 do artigo 666.º do CPC, sob a alegação de que não se pronunciou sobre a situação das rés CC e DD, que nunca foram sócias nem gerentes da recorrente, não possuindo qualquer vínculo orgânico ou societário com a mesma, mas que participaram nos actos ilícitos praticados em conluio com os réus gerentes.

A nulidade é de indeferir.

A omissão de pronúncia prevista na 1.ª parte da alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC (aplicável à 2.ª instância por remissão do n.º 1 do artigo 666.º do mesmo diploma) está relacionada com o n.º 2 do artigo 608.º do CPC, na parte em que dispõe que o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.

A nulidade sanciona o incumprimento, por parte do juiz, do dever enunciado neste preceito. Para efeitos dele, questões são as pretensões ou meios de defesa deduzidos pelas partes. Fora do alcance do conceito estão os argumentos de facto e/ou de direito de que se servem as partes para sustentarem as pretensões ou meios de defesa. Sobre a distinção entre questões e argumentos continuam a revelar-se úteis as seguintes palavras de Alberto dos Reis: “Quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão”(Código de Processo Civil anotado, Volume V, Coimbra Editora, Limitada, - 1981, página 143).

Interpretando a 1.ª parte da alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC com o sentido e o alcance expostos, seria de afirmar que o acórdão recorrido incorreu em omissão de pronúncia se a situação das rés CC e DD servisse de base a uma pretensão autónoma da ora recorrente em relação ao pedido de revogação e substituição do saneador por decisão que considerasse o tribunal a quo competente em razão da matéria, condição que não se verifica. Com efeito, apesar de, na apelação, a ora recorrente ter invocado a situação das rés CC e DD – situação consistente em não serem sócias nem gerentes da autora - para concluir que a decisão recorrida foi para além do que aquilo que autorizava a letra da lei (leia-se alínea c) do n.º 1 do artigo 128.º da Lei da Organização do Sistema Judiciário), tal invocação constituiu apenas argumento para sustentar que a presente acção não podia qualificar-se como acção relativa ao exercício de direitos sociais para efeitos da alínea c) do n.º 1 do artigo 128.º da Lei das Organização do Sistema Judiciário.

A questão suscitada na apelação e que cabia ao tribunal da Relação resolver era de saber se a decisão proferida em 1.ª instância, ao julgar o tribunal onde a acção foi proposta, incompetente, em razão da matéria, para dela conhecer, havia violado o disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 117.º da Lei da Organização do Sistema Judiciário.

Ao julgar improcedente a apelação e ao manter o despacho recorrido, afirmando que a competência para o conhecimento da acção cabia aos juízos de comércio, o acórdão da Relação pronunciou-se sobre a questão suscitada na apelação.

Pelo exposto, indefere-se a arguição de nulidade baseada em omissão de pronúncia.

Oposição entre os fundamentos e a decisão

A segunda causa de nulidade imputada ao acórdão é a prevista na 1.ª parte da alínea c) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, consistente na oposição entre os fundamentos e a decisão.

Na tese da recorrente, o acórdão incorreu nesta causa de nulidade porque definiu “direitos sociais” como os pertencentes aos sócios, mas aplicou essa definição à presente acção, que era movida pela sociedade contra um réu que era sócio e três réus que não eram sócios (conclusão 10.ª).

A nulidade é de indeferir.

Para efeitos da 1.ª parte da alínea c), do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, os fundamentos estão em oposição com a decisão quando, para usarmos as palavras de Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora “a fundamentação aponta num sentido; a decisão segue caminho oposto ou, pelo menos, direcção diferente” (Manual de Processo Civil, Coimbra Editora Limitada, 1984, página 671).

Observe-se que a oposição entre os fundamentos e a decisão tem de resultar do texto da decisão recorrida. Não releva, pois, para os efeitos em causa, a coerência que, segundo a parte que arguiu a nulidade, devia existir entre os fundamentos e a decisão.

Assim interpretada, a 1.ª parte da alínea c) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC daria guarida à arguição de nulidade se os fundamentos do acórdão apontassem no sentido de que o tribunal competente, em razão da matéria, para a acção era o juízo central cível de ..., condição que não se verificam como o atestam os seguintes trechos da fundamentação:

Logo, teremos de concluir que nesta acção a autora pretende exercer um direito social, e que, sendo essa a questão única, central e nuclear da acção a sua competência material cabe ao tribunal de comércio”;

É, pois, manifesto que a apreciação e decisão do litígio em apreço cabe à secção de Comércio e não ao tribunal recorrido”.

Pelo exposto, indefere-se a nulidade arguida.


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A questão que importa solucionar de seguida é a de saber se, ao aplicar o disposto no artigo 128.º, n.º 1, alínea c), da Lei da Organização do Sistema Judiciário (LOSJ), o Tribunal atribuiu competência ao Juízo de Comércio de forma errada, uma vez que a acção não se subsume à competência da mencionada disposição.

A tese da recorrente para sustentar a competência, em relação a todos os réus, do tribunal onde a acção foi proposta, assenta na seguinte linha argumentativa:

• A presente acção emerge de responsabilidade civil por actos ilícitos, praticados por réus gerentes e por réus terceiros, sem vínculo societário;

• Uma acção com este fundamento não se ajusta à hipótese prevista na alínea c) do n.º 1 do artigo 128.º da Lei da Organização do Sistema Judiciário – acção relativa ao exercício de direitos sociais;

Os "direitos sociais" são direitos inerentes à condição de sócio, pertencendo exclusivamente aos sócios da sociedade, não sendo a sociedade titular de tais direitos.

• Assim, uma ação proposta pela sociedade contra os seus gerentes não configura o exercício de "direitos sociais", mas sim uma acção de responsabilidade civil por factos ilícitos praticados contra a sociedade;

• Não existe uma relação de especialidade entre a responsabilidade dos gerentes prevista nos artigos 72.º e 80.º do Código das Sociedades Comerciais e a responsabilidade civil geral, prevista nos artigos 483.º e seguintes do Código Civil, pois a primeira assenta nos pressupostas desta última.

Esta argumentação não colhe.

Em primeiro lugar, o conceito de direitos sociais, constante da norma que serviu de fundamento à decisão recorrida (alínea c) do n.º 1 do artigo 128.º da Lei Orgânica do Sistema Judiciário), não se reduz, contrariamente à alegação da recorrente, ao “conjunto unitário de direitos atuais e potenciais do sócio, que emergem do contrato da sociedade e da regulamentação legal, que visa regular ou proteger a sua interacção societária”.

O Supremo Tribunal de Justiça tem afirmado de modo constante, e não vemos razões para nos afastarmos deste entendimento, que os direitos sociais tidos em vista pelo preceito abrangem não apenas os direitos dos sócios de uma sociedade comercial, mas também os direitos conferidos pelas normas que regulam a relação societária, quer se trate da lei societária ou de direitos conferidos pelo contrato de sociedade, relevando a natureza societária/comercial da relação jurídica em litígio.

Citam-se em abono desta interpretação os seguintes acórdãos do STJ: acórdão proferido em 5-07-2018, no processo n.º 11411/16.0T8LSB.L1; acórdão proferido em 24-02-2022, no processo n.º 1044/21.4T8LRA-A.C1.S1., acórdão proferido em 26-10-2022, no processo 4583/21.3T8VNF-B.G1.S1, acórdão proferido em 25-06-2024, no processo n.º 10009/19.5T8LSB-H.L1-A.S1, acórdão proferido em 17-09-2024, no processo n.º 20106/23.7T8SNT.L1.S1. e acórdão proferido em 26-11-2024, no processo n.º 406/23.4T8VIS-A.C1.S1, todos publicados em www.dgsi.pt).

Este sentido e alcance da expressão “direitos sociais” têm sido afirmados também por autores como Filipe Cassiano Santos e José Ferreira Gomes.

O primeiro escreve a este propósito: “Direitos sociais são aqueles direitos que têm por fonte o ordenamento societário (ou seja, a lei societária, o estatuto social feito nos termos desta ou, ainda, regulamentos ou contratos de execução ou integração do estatuto) e, por isso, suscitam fundamentalmente a aplicação dos preceitos do Código das Sociedades Comerciais e da legislação societária especial, independentemente da qualidade dos sujeitos que são seus titulares.... São, assim, direitos sociais quer os direitos dos sócios..., quer os direitos atribuídos pelo ordenamento societário, seja a não sócios, seja a sócios, independentemente da qualidade de sócio, face à sociedade, a (outros) sócios ou membros de órgãos sociais” (Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 153, N.º 4043, Nov/Dez, 2023, página 135, Gestlegal).

Por seu turno, José Ferreira Gomes, em comentário ao acórdão do STJ de 5 de Julho de 2018, acima referido e onde se procedeu à interpretação do artigo 128.º, n.º 1, alínea c) da Lei da Organização do Sistema Judiciário, manifestou concordância com a interpretação do preceito no sentido de que o “exercício de direitos sociais”, para efeitos do artigo 128.º/1, c) da LOSJ, deve ser interpretado em sentido amplo, compreendendo não apenas o exercício de direitos dos sócios perante a sociedade, mas todos os direitos da sociedade, dos sócios, dos credores sociais e de terceiros que sejam conferidos pela lei societária ou pelo contrato de sociedade” (Revista de Direito das Sociedades Ano X (2018) Número 4, página 838).

Segue-se do exposto que, para usarmos as palavras deste último autor, os direitos sociais tidos em vista pela alínea c) do n.º 1 do artigo 128.º da LOSJ compreendem não apenas “os direitos dos sócios perante a sociedade, mas todos os direitos da sociedade, dos sócios, dos credores sociais e de terceiros que sejam conferidos pela lei societária ou pelo contrato de sociedade”.

Assim interpretada, é de afirmar que a presente acção se ajusta à mencionada alínea, pois o direito que a autora pretende exercer através dela é o direito de indemnização, cuja fonte radica no n.º 1 do artigo 72.º do Código das Sociedades Comerciais. Com efeito, a autora, ora recorrente, pretende ser indemnizada pelos danos causados por acções do réu, enquanto gerente de direito e de facto dela, autora.

Em segundo lugar, não é exacta a alegação da recorrente segundo a qual a presente acção não passa de uma acção de responsabilidade civil por factos ilícitos e que não existe uma relação de especialidade entre a responsabilidade dos gerentes prevista nos artigos 72.º e 80.º do Código das Sociedades Comerciais e a responsabilidade civil geral, prevista nos artigos 483.º e seguintes do Código Civil, pois a primeira assenta nos pressupostos desta última.

A primeira diferença que se pode apontar entre as duas responsabilidades é a seguinte. No âmbito do n.º 1 do artigo 483.º do Código Civil, a ilicitude é constituída pela “violação do direito de outrem ou de qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios”; no n.º 1 do artigo 72.º, do CSC, a ilicitude traduz-se “na prática de actos ou omissões com preterição dos deveres legais ou contratuais”. Isto é, a ilicitude remete, nas palavras de Coutinho de Abreu e Maria Elisabete Ramos, para “deveres legais específicos e deveres legais gerais: os primeiros resultam imediata e especificamente da lei; os segundos revelam-se de modo relativamente indeterminado, muitas vezes em cláusulas gerais” (Código das Sociedades Comerciais em Comentário, Volume I, 2.ª Edição, Almedina, página 898) e para deves previstos no contrato de constituição da sociedade comercial (deveres estatutários).

A segunda é a seguinte. No regime geral da responsabilidade civil por factos ilícitos, é ao lesado que incumbe provar a culpa da lesão (1.ª parte do n.º 1 do artigo 487.º do Código Civil). A parte final do n.º 1 do artigo 72.º, do Código das Sociedades Comerciais estabelece uma presunção de culpa a favor da sociedade.

Onde a responsabilidade civil prevista no n.º 1 do artigo 72.º do Código das Sociedades Comerciais não apresente especificidades, em relação à obrigação de indemnização prevista no n.º 1 do artigo 483.º do Código Civil, é em matéria de nexo de causalidade entre o facto e o dano e na verificação de danos.

Estes pontos em comum das duas responsabilidades não apagam, no entanto, as especificidades acima apontadas à responsabilidade civil prevista no n.º 1 do artigo 72.º do CSC.

Em terceiro lugar, não vale contra o acórdão recorrido a alegação de que o tribunal onde foi proposta a acção é, pelo menos, competente para preparar e julgar os pedidos deduzidos contra as rés CC e DD. Vejamos.

É certo que a responsabilidade das mencionadas rés não se filia directamente em nenhuma norma de direito societário, designadamente no n.º 1 do artigo 72.º do Código das Sociedades Comerciais. De acordo com o relato da autora, as rés respondem pelos danos que o primeiro réu lhe causou porque o auxiliaram nalguma das suas acções, mais concretamente: a segunda ré (CC) auxiliou-o na subtracção de documentação mercantil, na execução de empréstimos não autorizados e em pagamentos feitos a si próprio e a terceiros; a terceira ré (DD) auxiliou-o na subtracção de documentação mercantil auxiliou e em pagamentos que ele fez a si a si próprio e a terceiros.

Não há norma de direito societário que responsabilize os trabalhadores de uma sociedade, perante esta, por auxiliarem os gerentes ou administradores que pratiquem actos ou omissões com preterição dos deveres legais e contratuais. A norma que responsabiliza os que auxiliarem o autor de um acto ilícito pelos danos que este haja causado é a do artigo 490.º do Código Civil.

Daí que, à primeira vista, a presente acção, na parte em que pede a condenação das rés CC e DD, não fosse de considerar como acção relativa a direitos sociais.

Sucede que, à luz do que foi alegado na petição, a responsabilidade das rés CC e DD depende necessariamente da responsabilidade do primeiro réu, ou seja, de uma responsabilidade que tem como fundamento jurídico normas de direito societário. Não é possível autonomizar a responsabilidade das rés da responsabilidade do primeiro réu. Daí que, ainda que indirectmente, a responsabilidade assacada às rés filia-se em normas de direito societário. Assim, considera-se que os juízos do comércio são também competentes para conhecer da acção em relação às rés CC e DD.

Por todo o exposto, é de concluir que ao julgar incompetente para o conhecimento da acção o tribunal onde ela foi proposta, o acórdão recorrido não violou nenhuma das disposições indicadas pelo recorrente.

De resto, não faz sentido imputar-lhe a violação dos artigos 6.º, n.º 2, 130.º, 260.º e 278.º, n.º 3, todos do CPC, ou o artigo 80.º do Código das Sociedades Comerciais. Com efeito, decorre das alíneas a) e b) do n.º 2 do artigo 639.º do CPC que só tem sentido imputar à decisão recorrida a violação de normas que tenham constituído fundamento jurídico do que foi decidido, quando é certo que nenhuma das disposições acima indicadas serviu de razão juródica à decisão de julgar incompetente, em razão da matéria, para a acção, o tribunal onde esta foi proposta.


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Decisão:

Nega-se a revista e, em consequência, mantém-se o acórdão recorrido.

Responsabilidade quanto a custas:

Considerando a 1.ª parte do n.º 1 do artigo 527.º do CPC e o n.º 2 do mesmo preceito, e a circunstância de a recorrente ter ficado vencida, condena-se a mesma nas custas do recurso.

Lisboa, 3 de Abril de 2025

Relator: Emídio Santos

1.º Adjunto: Carlos Portela

2.º Adjunto: Orlando dos Santos Nascimento