Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
364/21.2GFSTB-A.E1- A.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: LEONOR FURTADO (RELATORA DE TURNO)
Descritores: ESCUSA
JUÍZ DESEMBARGADOR
IMPEDIMENTOS
SUSPEIÇÃO
IMPARCIALIDADE
ISENÇÃO
INDEFERIMENTO
Data do Acordão: 07/21/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: ESCUSA
Decisão: IMPROCEDÊNCIA / NÃO DECRETAMENTO.
Sumário :
I - O pedido de escusa ou de recusa de juiz assenta na apreciação do risco de que, em determinado processo, a sua intervenção possa ser considerada suspeita, por haver motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.
II - Objectivamente, o facto de i) o juiz possuir um conhecimento e relação cordial com o Assistente e de ter conhecido familiares seus, ii) ou a actual amplificação no espaço público do escrutínio de quem atua em qualquer órgão de soberania e iii) as circunstâncias pessoais dos envolvidos – juiz e um sujeito processual ligados por um cordial conhecimento –, não se mostram suficientes para evidenciar que, qualquer intervenção do juiz peticionante em processo em que pontue o visado sujeito processual, seja susceptível de criar dúvidas sérias sobre a sua posição de inteira equidistância.
III - E, a indicada relação de amizade é entre os filhos da requerente e do sujeito processual e não é, directamente, com a Senhora Desembargadora. Não está em causa uma amizade com um sujeito processual, mas apenas, uma relação de cordialidade, por via da amizade entre os seus filhos.
IV - Uma tal relação não pode ser vista, objectivamente, como sendo motivo sério e grave de modo a fazer nascer o receio ou apreensão, razoavelmente fundadas pelo lado relevante das aparências, sobre a imparcialidade do juiz, ainda que, esse relacionamento (repita-se, meramente cordial) seja com quem tem interesse de parte.
Decisão Texto Integral:


PEDIDO DE ESCUSA

JUIZ DESEMBARGADOR

Processo n.º 364/21.2GFSTB-A.E1-A

Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça:

I – RELATÓRIO
1. A Senhora Juiz Desembargadora AA, exercendo funções no Tribunal da Relação ... (TR...), Secção ..., ... Subsecção, ao abrigo do disposto nos art.ºs 43.º e 45.º. n.º 1, al. b), do Código de Processo Penal (CPP), formulou pedido de escusa de intervir no processo n.º 364/21.2GFSTB-A.E1, do Tribunal de Instrução Criminal da Comarca ..., Juiz ..., do qual é relatora, invocando os seguintes fundamentos:

 1 - No referenciado processo é recorrente BB, o qual é pai de CC, sendo este último um dos melhores amigos da ... da signatária, DD;

2- Por força da aludida relação de amizade, que perdura há mais de oito anos, a signatária mantém relacionamento de cordialidade com o recorrente, tendo já estado na sua casa/residência, em situações de convívio;

3- O ... do recorrente frequenta a casa da signatária, tendo, nesse contexto, em conversa mantida, chegado a "desabafar" sobre os acontecimentos ocorridos que estão na origem do processo 364/21.2GFSTB.

4- Conquanto a signatária não se considere, em consciência, afetada na sua capacidade de apreciar e decidir, de forma imparcial e isenta, nos autos em referência, entende que a situação descrita, designadamente, o facto de poderem ser vistos juntos, em público e/ou a frequentar a respetiva residência, em momentos de convívio, poderá consubstanciar, aos olhos do cidadão comum, motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade da signatária.”.


Com o requerimento foi junta certidão do recurso apresentado pelo Assistente BB e não foram juntos quaisquer outros elementos que suportem o requerido.

2. Atenta à natureza urgente do processo foram dispensados os vistos e, realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.

II – FUNDAMENTAÇÃO
1. Os factos estão consubstanciados nos n.ºs 1,2 e 3, do requerimento que suporta o pedido de escusa.

O pedido de escusa ou de  recusa de juiz assenta na apreciação do risco de que, em determinado processo, a sua intervenção possa ser considerada suspeita, por haver motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade

Sobre o fundamento da suspeição a que se refere o art.º 43.º do CPP, este Supremo Tribunal tem jurisprudência firme cuja aplicação se mostra actualizada, não se justificando repetir os ensinamentos que dela emanam, valendo por todos, a fundamentação efectuada no Ac. do STJ de 13-04-2005, Proc. n.º 05P1138, em www.dgsi.pt. Efectivamente, ali se disse:

A imparcialidade do juiz (e, por isso, do tribunal), constitui, pois, uma garantia essencial para quem submeta a um tribunal a decisão da sua causa.

4. A imparcialidade do juiz e do tribunal, no entanto, não se apresenta sob uma noção unitária. As diferentes perspectivas, vistas do exterior, do lado dos destinatários titulares do direito ao tribunal imparcial, reflectem dois modos, diversos mas complementares, de consideração e compreensão da imparcialidade: a imparcialidade subjectiva e a imparcialidade objectiva.

Na perspectiva ou aproximação subjectiva ao conceito, a imparcialidade tem a ver com a posição pessoal do juiz, e pressupõe a determinação ou a demonstração sobre aquilo que um juiz, que integre o tribunal, pensa no seu foro interior perante um certo dado ou circunstância, e se guarda, em si, qualquer motivo para favorecer ou desfavorecer um interessado na decisão.

(…)

5. As aparências são, pois, neste contexto, inteiramente de considerar, sem riscos devastadores ou de compreensão maximalista, quando o motivo invocado possa, em juízo de razoabilidade, ser considerado fortemente consistente («sério» e grave») para impor a prevenção.

O pedido de escusa do juiz para intervir em determinado processo pressupõe, e só poderá ser aceite, quando a intervenção correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo sério e grave adequado a gerar dúvidas sobre a sua imparcialidade, ou quando tenha tido intervenção anterior no processo fora dos casos do artigo 40º do Código de Processo Penal - artigo 43º, nºs 1, 2 e 4 do mesmo diploma.

(…) O motivo «sério» e «grave», por regra, deve surgir e revelar-se numa determinada situação concreta e individualizada, pois é aí que se manifestam os elementos, processuais ou pessoais, que podem fazer nascer dúvidas sobre a imparcialidade e que têm, por isso, de ser apreciados nessas (nas suas próprias) circunstâncias.”.

No mesmo sentido, entre outros, os acórdãos do STJ de  23-09-2009, Proc. n.º 532/09.5YFLSB; ou o de 27-10-2021, Proc. n.º 69/18.1TREVR-B.S1 ou o de 22/09/2022, Proc. n.º 362/19.6GESLV.E1-A.S1, e, mais recentemente, o Ac. de 02/02/2023, Proc. n.º 19/16.0YGLSB-N  – todos em www.dgsi.pt.

Neste último aresto salientou-se que “Não estando o juiz autorizado a recusar-se a si próprio, declarando-se voluntariamente suspeito, é-lhe, não obstante, conferida a possibilidade de suscitar perante outro tribunal a suspeição que admite que possa recair sobre si, para assim ser dispensado de intervir no processo – uma suspeição que a lei qualifica como escusa (art.43.º, n.º 4 do C.P.P.).

(…)No entanto, não é necessário demonstrar uma efetiva falta de isenção e imparcialidade do juiz peticionante da escusa, bastando, atentas as particulares circunstâncias do caso, um receio objetivo de que, vista a questão sob a perspetiva do cidadão comum, o juiz possa ser alvo de uma desconfiança fundada quanto às suas condições para atuar de forma imparcial.

A jurisprudência dos nossos tribunais tem sido constante no sentido de se exigir a alegação de factos concretos que constituam motivo de especial gravidade e que possam gerar desconfiança, não se bastando com simples generalidades.” – sublinhado nosso.

E, mais adiante, no mesmo aresto acrescenta-se: “(…) No respeitante ao primeiro critério, a questão circunscreve-se a saber se a convicção pessoal do julgador em dada ocasião, oferece garantias suficientes para excluir qualquer dúvida legítima.

Nesta perspetiva, a imparcialidade tem a ver com a posição pessoal do juiz, e pressupõe a determinação ou a demonstração sobre aquilo que um juiz, que integra o tribunal, pensa no seu foro íntimo perante um certo dado ou circunstância, e se guarda, em si, qualquer motivo para favorecer ou desfavorecer um interessado na decisão.

Por princípio, impõe-se que existam provas que permitam demonstrar ou indiciar relevantemente uma tal predisposição, e, por isso, a imparcialidade subjetiva presume-se até prova em contrário.

A imparcialidade vista pelo segundo critério circunscreve-se a saber se, independentemente da atitude pessoal do juiz, certos factos verificáveis autorizam a suspeitar da sua imparcialidade.

E, embora nesta matéria, mesmo as aparências possam revestir-se de alguma importância, entrando em linha de conta a ótica do acusado, sem, todavia, desempenhar um papel decisivo, o elemento determinante consiste em saber se as apreensões do interessado podem considerar-se objetivamente justificadas.” – sublinhado nosso.


3. O pedido de escusa apresentado pela Senhora Juiz Desembargadora AA respalda-se na necessidade de garantir e prevenir que sobre o sistema de justiça, em geral, e em particular no caso para que pede dispensa de intervir, recaia o perigo da suspeição e da desconfiança sobre a isenção e imparcialidade da decisão, pois que é necessário que não haja sombra de suspeita sobre quem julga, referindo a requerente que “(…)   o facto de poderem ser vistos juntos, em público e/ou a frequentar a respetiva residência, em momentos de convívio, poderá consubstanciar, aos olhos do cidadão comum, motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade da signatária.”.

No caso presente, verifica-se que a Senhora Juiz Desembargadora intervém como relatora num processo em que um sujeito processual, o Assistente, é uma pessoa das suas relações “(…) de cordialidade com o recorrente”, resultante do facto de o seu ... manter com a ... da requerente amizade “(…) que perdura há mais de oito anos”, sendo que, por via dessa amizade “(…).”, a requerente já esteve em casa daquele “(…), em situações de convívio.”.

Como se disse no recente Ac. do STJ, de 19/04/2023, Proc. n.º 37/23.1JAFAR-A.E1-A.S1, em www.dgsi.pt, “Na interpretação e preenchimento da cláusula geral de suspeição, a jurisprudência deste Tribunal tem adotado um critério particularmente exigente, pois, estando em causa o princípio do juiz natural, deve tratar-se de uma suspeição fundada em motivo sério e grave, a avaliar em função das circunstâncias objetivas do caso, “a partir do senso e experiência comuns, conforme juízo do cidadão de formação média da comunidade do julgador” (assim, os acórdãos de 15.1.2015, Proc. 362/08.1JAAVR.P1 apud acórdão de 18.12.2019, Proc. 12/16.2GAPTM.E1-A.S1, cit., de 27.4.2022, Proc. 30/18.6PBPTM.E1-A.S1, e de 26.10.2022, cit.), como requer o artigo 43.º, n.º 1, do CPP.”

Objectivamente, o facto de i) a Senhora Juiz Desembargadora possuir um conhecimento e relação cordial com o Assistente e de ter conhecido familiares seus, ii) ou a actual amplificação no espaço público do escrutínio de quem atua em qualquer órgão de soberania e iii) as circunstâncias pessoais dos envolvidos – juiz e um sujeito processual ligados por um cordial conhecimento –, não se mostra suficiente para evidenciar que, qualquer intervenção do juiz peticionante em processo em que pontue o visado um sujeito processual, seja susceptível de criar dúvidas sérias sobre a posição de inteira equidistância da juiz.

Na verdade, tais circunstâncias subjectivas, desacompanhadas da alegação concreta de factos objectivos que importam preservar e que dissipem todas as dúvidas ou reservas sobre a intervenção do juiz num processo em que esse sujeito processual intervém, pois, as aparências têm importância, não se verifica fundamento para que deva ser concedida a escusa pedida por um Juiz por temer fundadamente que sobre si recaia a suspeição de falta de imparcialidade.

Com efeito, no caso, a peticionante não alegou factos concretos que permitam concluir pela suficiência dos elementos objectivos necessários ao deferimento do pedido, designadamente: i) quanto à localidade da residência de ambos (o que permitiria, pelas características da localidade,  aferir da notoriedade da relação cordial e da frequência da sua casa pelo ... do Assistente); ii) sobre o grau da relação de convivialidade que tem como o sujeito processual; iii) ou, sequer, a indicação da idade dos filhos de ambos, dado importante para se aferir da eventual relação de confiança entre si e o ... do sujeito processual. Apenas, apontou situações genéricas sobre a existência de uma amizade com oito anos entre os filhos, que este “desabafou” e que ela tem relações cordiais com o Assistente, não se tratando de verdadeira intimidade.

Mesmo sobre o alegado “desabafo” do ... do sujeito processual, em sua casa – “(…) sobre os acontecimentos ocorridos que estão na origem do processo 364/21.2GFSTB” –, a requerente não é clara quanto às circunstâncias e razões para o “desabafo”, aqui, em causa, não concretizando quando, porquê e com quem se desenrolou a conversa referenciada.

De salientar e frisar que, a indicada relação de amizade é entre os filhos da requerente e do sujeito processual e não, directamente, com a Senhora Desembargadora. Acresce que, mesmo que o ... do Assistente seja visita frequente da casa da Senhora Desembargadora, isso não significa que esta tenha uma relação de proximidade e intimidade, nem com o ... nem com os pais (aqui, em particular, com o Pai sujeito processual no processo). Diferente é uma situação de amizade em que as pessoas, viajam juntas, passam férias juntas, celebram festividades familiares ou espectáculos, juntas ou que trocam presentes, entre si.

É claro que a situação em si mesma é susceptível de causar incómodo para o decisor, face à amizade dos filhos, mas não integra o risco sério e grave de, para a comunidade em geral, se entender ser a intervenção do juiz parcial ou não isenta, colocando em causa a aplicação da justiça.

Relevante para que se considere a suspeição, é, antes do mais, a natureza e a extensão do comprometimento do Juiz no processo em causa, como juiz natural, que justifique o cuidado e escrúpulo que agora se tem, para evitar que sobre a sua decisão recaia qualquer dúvida. Tal como afirmado no acórdão de 02/02/2023, já referenciado “Na articulação entre os princípios do juiz natural - que encontra expressão no art.32.º, n.º 9 da C.R.P.: «Nenhuma causa pode ser subtraída ao tribunal cuja competência esteja fixada em lei anterior» - e da imparcialidade do juiz (e do tribunal), aquele princípio deve ceder quando existam circunstâncias sérias, no sentido de ponderosas, cuja verificação não se coaduna com a leviandade de um juízo, e graves, porque de forte relevo na formulação do juízo de desconfiança.”.

Deve notar-se que não está em causa uma amizade com um sujeito processual, mas apenas, uma relação de cordialidade, por via da amizade entre os seus filhos. Uma tal relação não pode ser vista, objectivamente, como sendo motivo sério e grave de modo a fazer nascer o receio ou apreensão, razoavelmente fundadas pelo lado relevante das aparências, sobre a imparcialidade do juiz, ainda que, esse relacionamento (repita-se, meramente cordial) seja com quem tem interesse de parte.

E, as divergências profissionais são correntes entre intervenientes processuais, sendo que, embora se compreenda o escrúpulo que moveu a Exma. Senhora Juiz Desembargadora a solicitar a escusa, tal relação de cordialidade não é susceptível de ser vista como motivo de suspeição adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade, porquanto, o auditório de pessoas prudentes entende a coexistência das relações de cordialidade e mesmo de amizade entre os decisores e as partes ou os seus representantes, no âmbito do estrito do desempenho das suas funções.

Ora, do pedido não resultam alegados factos que, séria e concretamente, permitam considerar que a intervenção da peticionante no processo em causa possa correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo sério e grave, fundado na indicada “relação de cordialidade” entre o Juiz e um dos sujeitos processuais, que possa gerar dúvidas sobre a sua imparcialidade e assim, através da aceitação do seu pedido de escusa, reforçar a confiança que numa sociedade democrática os tribunais devem oferecer aos cidadãos.


III – DECISÃO

Termos em que, acordando, se decide:
a) Não conceder a escusa pedida pela Senhora Juiz Desembargadora , nos termos do art.º 43.º, do CPP, por não existir fundamento para tal e, consequentemente, indeferir o requerido;
b) Sem custas.

Lisboa, 21 de Julho de 2023 (processado e revisto pelo relator)

Leonor Furtado (Relatora)

Teresa Féria (Adjunta)

José Luís Lopes da Mota (Adjunto)

Mário Belo Morgado  (Presidente)