Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 2ª SECÇÃO | ||
Relator: | ABRANTES GERALDES | ||
Descritores: | INSOLVÊNCIA RECLAMAÇÃO DE CRÉDITOS AVAL EM BRANCO CRÉDITO CONDICIONADO | ||
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Data do Acordão: | 05/15/2013 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | CONCEDIDA EM PARTE A REVISTA | ||
Área Temática: | DIREITO CIVIL - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES - GARANTIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES / IMPUGNAÇÃO PAULIANA. DIREITO FALIMENTAR - MASSA INSOLVENTE E INTERVENIENTES NO PROCESSO / MASSA INSOLVENTE E CLASSIFICAÇÕES DOS CRÉDITOS - EFEITOS DA DECLARAÇÃO DE INSOLVÊNCIA / EFEITOS SOBRE OS CRÉDITOS - VERIFICAÇÃO DOS CRÉDITOS - PAGAMENTO AOS CREDORES. | ||
Doutrina: | - Carvalho Fernandes e João Labareda, Código de Insolvência e Recuperação de Empresas, anotado, p. 456. - Pereira Coelho, citado por Pereira Delgado, Lei Uniforme sobre Letras e Livranças, 7ª ed, p. 83. - Pinto Furtado, Títulos de Crédito, p. 145. | ||
Legislação Nacional: | CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 610.º, AL. A), 614.º. CÓDIGO DE INSOLVÊNCIA E RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS (CIRE): - ARTIGOS 50.º, 90.º, 91.º, N.º1, 128.º, N.º 1, AL. B), 129.º, 130.º, N.ºS1 E 3, 181.º, 303.º. | ||
Jurisprudência Nacional: | ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA: -DE 25-11-08, DE 29-11-11, E DE 2-5-12, TODOS EM WWW.DGSI.PT . -*- AUJ Nº 4/13, NO D.R., 1ª SÉRIE, DE 21-1-13. | ||
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Sumário : | 1. O relevo que no processo de insolvência deve ser dado ao princípio par conditio creditorum justifica a intervenção oficiosa do juiz na verificação dos créditos, ainda que a lista apresentada pelo administrador de insolvência – que frequentemente nem é jurista - não sofra qualquer impugnação, devendo ser recusada a sua homologação quando verifique que está afectada por erro manifesto (art. 129º do CIRE). 2. Neste sentido, deve o juiz recusar a homologação da lista apresentada pelo administrador que apresenta como créditos reconhecidos créditos reclamados exclusivamente com fundamento em avales prestados pela insolvente em livranças subscritas em branco e que ainda não foram preenchidas. 3. Tais créditos apenas podem ser reconhecidos como créditos sob condição suspensiva. A.G. | ||
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Decisão Texto Integral: | I - Por apenso ao processo em que foi declarada a insolvência de AA veio o administrador da insolvência juntar aos autos a lista de créditos reconhecidos que foi elaborada ao abrigo do disposto no art. 129° do CIRE. Não foram apresentadas impugnações, de modo que a lista foi homologada judicialmente. A insolvente, contudo, apelou da sentença homologatória, alegando que de entre os créditos reclamados pelo credor BCP, os de € 79.411,23 e de € 31.134,00 correspondem a fianças que a insolvente prestou para garantia do cumprimento de contratos de mútuo que foram celebrados entre esse credor e terceiro que estão a ser cumpridos. Quanto ao crédito reclamado pelo credor BES no valor de € 1.787.605,73, corresponde a avales que a insolvente prestou em três livranças que foram subscritas em branco no âmbito de dois contratos de financiamento e de um contrato de locação financeira outorgados entre o referido credor e terceiras entidades. Não se encontrando ainda preenchidas tais livranças, considerou que não poderiam ser reconhecidos os créditos que as mesmas visam titular. A Relação, depois de ter considerado que a concreta situação estava eivada de “erro manifesto” justificativo da recusa de homologação por parte do Tribunal de 1ª instância, apesar da falta de impugnação, decidiu que os créditos do BCP inerentes à intervenção da insolvente como fiadora deveriam ser integrados na lista de créditos reconhecidos sob condição suspensiva. Já quanto aos créditos do BES inerentes às livranças avalizadas pela insolvente determinou que fossem retirados da lista de créditos reconhecidos, uma vez que nem sequer se encontravam constituídos relativamente à insolvente. Deste acórdão recorreu o BES, SA, concluindo que: a) A decisão da Relação do Porto que julgou procedente a apelação, por existir um "erro manifesto" na lista de credores reconhecidos e, consequentemente, ordenou a anulação de todo o processado posterior à apresentação da lista, a fim de ser elaborada uma nova lista, não fez uma correcta interpretação dos factos, nem adequada aplicação do direito, pelo que deverá ser revogada. b) As questões a apreciar são as que se passam a enunciar, segundo a ordem lógica que entre as mesmas intercede: - Definição e amplitude do "erro manifesto" no âmbito da homologação da lista definitiva de créditos reconhecidos em sentença de verificação e graduação de créditos, nos termos do art. 130°, n° 3, do CIRE; - Momento da constituição do direito de crédito do portador de uma livrança em branco sobre o avalista e, em consequência, se deve manter-se, ou ser excluído, o crédito reclamado pelo Banco recorrente. c) O efeito cominatório previsto no art. 130°, n° 3, do CIRE, é corolário dos princípios do dispositivo, da auto-responsabilidade das partes, do contraditório, e mais amplamente, dos princípios da celeridade e economia processuais (que, como se sabe, são enfatizados no processo de insolvência). d) No apenso de verificação e graduação de créditos, o juiz está vinculado ao princípio do dispositivo, previsto no art. 264° do CPC, segundo o qual "às partes cabe alegar os factos que integram a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as excepções" (n° 1) e "o juiz só pode fundar a decisão nos factos alegados pelas partes, sem prejuízo do disposto nos arts. 514° e 665º" do CPC (n° 2), o que significa que são as partes que dispõem do processo, enquanto relação material controvertida. e) O pleito judicial é, por definição, um processo de partes, cujos interesses e pretensões devem ser, oportunamente, deduzidos. Se a própria parte não demonstra interesse na relação controvertida, deve sofrer as consequências jurídicas prejudiciais da sua negligência ou inépcia na condução do processo. f) A única excepção à decisão de homologação da lista a que alude o art. 129° do CIRE (enquanto efeito cominatório) é a existência de erro manifesto. g) "Erro" é uma representação inexacta da realidade, cuja verificação, nestes casos, deve ser "manifesta", ou seja, ostensiva, grosseira. Erro manifesto é aquele que é grosseiro, que facilmente se detecta por análise, mesmo que perfunctória, da lista do reconhecimento dos créditos por banda do administrador. h) Procedendo a uma análise da lista de créditos apresentada pelo administrador de insolvência, verifica-se que a mesma não padece que qualquer erro, muito menos manifesto. i) A norma legal que autoriza o juiz a corrigir a lista do art. 129° é (e só pode ser) a do art. 130°, n° 3, do CIRE, e apenas nos termos aí previstos - ou seja, quando a lista enferma de erro manifesto. Todavia, para corrigir erros (não manifestos) de direito ou de questões de fundo, não se pode lançar mão da norma do art. 58° do CIRE (como fez o acórdão recorrido), que tem outro âmbito de aplicação. j) O art. 58° do CIRE (assim como o art. 68°) confere ao Juiz (e à comissão de credores) o poder de acompanhamento e avaliação do desempenho das funções realizadas pelo administrador de insolvência, com a finalidade de, detectadas irregularidades, serem tomadas as diligências necessárias (nomeadamente, a sua destituição). k) Não se afigura correcta a conclusão do acórdão recorrido, que consiste na realização de uma "nova lista de credores", porquanto a inicial padece de um erro (manifesto?) que comporta restrição ou afectação dos direitos das partes. Porque, se bem se vê as coisas, i) ou o erro (uma representação inexacta) é manifesto (grosseiro) e, por isso, a sua correcção judicial é legítima, porque "inofensiva"; ou o erro não é manifesto e, por isso mesmo, é que afecta direitos das partes e, nessa medida, competia à parte interessada impugnar, iniciando um litígio e conferindo assim (e só assim) legitimidade decisória ao Juiz. l) A não ser assim, é a própria existência de um novo apenso de verificação de créditos que afecta e restringe os direitos das partes, na medida em que realiza uma duplicação injustificada de fases processuais, sem qualquer apoio na letra ou, até, na mens legis (atente-se na urgência que deve enformar o processo de insolvência). m) No acórdão recorrido, o crédito reclamado pelo BES foi considerado inexistente, uma vez que tem como título livranças avalizadas pela insolvente (ainda) não totalmente preenchidas. O Tribunal a quo considerou, assim, que o problema substancial em apreço (saber em que momento se considera constituída a obrigação do avalista - se no momento do preenchimento da livrança se no momento da assinatura da livrança) é um caso de "erro manifesto". n) O problema da existência ou inexistência de um direito de crédito, quando a livrança ainda não está totalmente preenchida levanta complexas configurações jurídicas que não se harmonizam, naturalmente, com o conceito de "erro manifesto" supra explanado. o) O próprio acórdão refere que "não falta, porém, quem considere que a obrigação cambiária, como existente só pelo facto de o título (em branco) ser emitida. Desde que contenha o nome do tomador, o título se bem que ainda incompleto, pode já circular por meio de endosso", remetendo para a doutrina de Ferrer Correia. Assim, ao assumir-se que a questão de fundo é controvertida na doutrina e na jurisprudência dos nossos Tribunais, já não estamos, naturalmente, no campo do chamado "erro manifesto". p) O processo de insolvência não se resume a uma espécie de processo de execução, consistindo, ao invés, num processo especial e autónomo, que partilha elementos declarativos com elementos executivos. q) Tendo em conta a natureza, a função e a finalidade do processo de insolvência, a verificação do passivo do devedor insolvente abarca não só os créditos vencidos e exigíveis, mas também - de acordo com o art. 50° do CIRE - créditos que se encontrem condicionados a um evento futuro e incerto (em óbvia oposição, assim, à execução comum, onde é imprescindível a existência de uma dívida certa, líquida e exigível). r) O art. 90° do CIRE dispõe que "os credores da insolvência apenas poderão exercer os seus direitos em conformidade com os preceitos do presente Código, durante a pendência do processo de insolvência", impondo, assim, um verdadeiro ónus a cargo dos credores, que apenas poderão exercer os seus direitos em conformidade com as regras do CIRE e apenas se (obviamente) reclamarem o seu crédito. s) O Banco recorrente reclamou um crédito, actualmente no valor de € 1.508.121,32, correspondente a financiamentos, de vários tipos, concedidos às sociedades BB, S.A., e CC, S.A., e garantidos por livranças em branco avalizadas, entre outros, pela insolvente. t) A insolvente participou nas negociações dos contratos de financiamentos, tendo assinado não só as livranças entregues como caução, como também os próprios contratos, na qualidade de garante da obrigação, e ainda os pactos de preenchimento das livranças - fonte da obrigação -, o que coloca a avalista no domínio das relações cambiárias imediatas, com a inerente possibilidade de invocação da relação subjacente. u) A declaração negocial da insolvente acontece, assim, no momento de assinatura dos contratos e na data da assinatura da livrança caução, sendo esse o momento determinante do nascimento da obrigação da avalista. v) É no momento da assinatura da livrança que o Banco assume a posição de credor relativamente aos avalistas que, a partir de então, se co-responsabilizam pelo pagamento da quantia que, eventualmente, venha a ser inscrita na livrança. É precisamente nesse momento que, nas suas esferas jurídicas, passa a haver a obrigação de prestar - ainda que essa obrigação esteja diferida no tempo. É, por conseguinte, nesse mesmo momento - em que a avalista se assume como garante da obrigação - que nasce a obrigação cambiária. w) A própria LULL prevê a validade e existência de livranças em branco – art. 76° -, em que falte alguns dos requisitos previstos no art. 75°, sendo o preenchimento completo apenas uma condição da sua eficácia (executiva). x) A obrigação da avalista, ora insolvente, apesar de não ser ainda certa líquida e exigível, já existe, já está constituída, pelo que pode ser reclamada no processo de insolvência, ainda que seja reconhecida como "sob condição". y) Assim, ao processo de insolvência são chamados todos os credores, independentemente dos seus créditos se encontrarem ou não vencidos nessa data, pois num processo de insolvência, não se trata de exigir o cumprimento da obrigação ao garante, não se está a executá-lo, mas sim a reclamar um direito de crédito que existe, foi constituído e só não é - ainda - exigível. z) A obrigação da avalista, ora insolvente, apesar de não ser ainda certa, líquida e exigível, já existe, já está constituída, pelo que pode ser reclamada no processo de insolvência, ainda que seja reconhecida como "sob condição". aa) A seguir-se o entendimento do Tribunal recorrido, os credores portadores de livranças em branco ver-se-iam forçados a preencher os respectivos títulos sempre que um avalista fosse declarado insolvente, para poderem defender os seus créditos nos processos de insolvência, o que implicaria a violação do pacto de preenchimento, acordado pelas partes. Pois, os pactos de preenchimento, celebrados entre o Banco recorrente e as sociedades subscritoras e respectivos avalistas prevêem, na sua grande maioria, o preenchimento dos títulos dados em garantia em caso de situação de incumprimento dos contratos e em caso de declaração de insolvência das mutuárias/subscritoras dos títulos. bb) O preenchimento do título de crédito dado em garantia seria abusivo quando o contrato que lhe subjaz esteja a ser integralmente cumprido. cc) Numa vertente puramente económica e social, as consequências do preenchimento antecipado das livranças, e a consequente exigência dos montantes nelas apostos, seriam catastróficas. Se na actual conjuntura económica já é difícil para a maioria das empresas honrar os seus compromissos, o vencimento antecipado dos créditos de que são devedores acarretaria, em grande parte dos casos, a sua situação de insolvência. dd) Os avalistas obrigaram-se ao pagamento da dívida no pressuposto do incumprimento por parte da empresa avalizada, cuja solvência e solidez podiam sempre controlar. Já não conseguem acautelar a situação financeira de todos os intervenientes cambiários, com os quais podem até não ter qualquer relação, pelo que, a exigência da totalidade da dívida a quem não contribuiu minimamente para o seu vencimento antecipado (e no pressuposto de uma situação de insolvência de pessoa diversa daquela de que se constituíram garantes) viola o princípio fundamental da segurança do comércio jurídico. ee) Ao permitir, no art. 50° do CIRE, que fossem reclamados créditos ainda não constituídos e exigíveis, o legislador quis evitar estas situações de manifesta injustiça social, não devendo o julgador esquecer tal desiderato, como o fez no caso sub judice. ff) O acórdão recorrido viola, assim, os arts. 50°, 90°, 130° do CIRE, os arts. 10°, 32°, 76° e 77° da LULL e o art. 264° do CPC. Esta solução conta com o apoio do Ac. deste STJ, de 25-11-08 (www.dgsi.pt), no qual se observa, além do mais, que “atendendo aos curtos prazos fixados na lei, quer para o administrador da insolvência elaborar as listas de credores, quer para estes as impugnarem, a inexistência de impugnações não constitui garantia significativa da correcção das listas elaboradas pelo administrador da insolvência, pelo que, embora os credores não fiquem, apesar dessa inexistência, com o direito de confiar na estabilidade da ilegalidade substancial resultante de alguma eventual incorrecção que os possa beneficiar, também não podem ficar impedidos de defenderem os seus direitos contra alguma alteração inesperada”. Adoptando, para o efeito, a solução defendida por Carvalho Fernandes e João Labareda (CIRE anot., pág. 456), considera-se ainda em tal aresto que o conceito de “erro manifesto” deve ser “interpretado em termos amplos, não podendo o Juiz abster-se de verificar a conformidade substancial e formal dos títulos dos créditos constantes da lista que vai homologar, nem dos documentos e demais elementos de que disponha …”. |