Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 2ª SECÇÃO | ||
Relator: | SERRA BAPTISTA | ||
Descritores: | CASO JULGADO LIMITES DO CASO JULGADO | ||
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Data do Acordão: | 11/28/2013 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | NEGADA A REVISTA | ||
Área Temática: | DIREITO PROCESSUAL CIVIL - ACÇÃO - PROCESSO / INSTÂNCIA - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / ARTICULADOS / INSTRUÇÃO DO PROCESSO / SENTENÇA / RECURSOS. | ||
Doutrina: | - Alberto dos Reis, “Código de Processo Civil”, Anotado, vol. II, p. 356; vol. III, p. 93; volume V, p. 156 e ss.; Eficácia do Caso Julgado em Relação a Terceiros, BFDUC, 17 (1940/1941), pp. 206 e ss.. - Castro Mendes, Direito Processual Civil, II, pp. 772 e 773; Limites…, p.168; Manual de Processo Civil, p. 299. - Lebre de Freitas e outros, CPC Anotado, vol. 2.º, pp. 678, 715. - Lebre de Freitas, “Código de Processo Civil”, Anotado, vol. 2.º, 2.ª edição, pp. 348, 719-720. - M. Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, pp. 297, 303 e ss. - Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, p.578 e ss.. - Varela/Bezerra/Nora, Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, pp. 302, 659, 692. | ||
Legislação Nacional: | CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 3.º, N.ºS 1 A 3, 264.º, NºS 2 E 3, 494.º, 497.º, N.º 1, 498.º, N.º 1, 506.º, N.º1, AL. E), 514.º, 652.º, N.º 3, AL. E), 663.º, N.º 1, 665.º, 671.º, 672.º, 677.º. | ||
Jurisprudência Nacional: | ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA: -DE 23-09-2008, PROCESSO N.º 2022/08; DE 29-10-2009, PROCESSO N.º 479/09.5YFLSB; DE 02-03-2011, PROCESSO N.º 690/09.9YFLSB. -DE 01-06-2010, PROCESSO N.º 556/06.4TBRMR-B.L1.S1. | ||
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Sumário : | I –O caso julgado tem como pressuposto a repetição de uma causa decidida por sentença que já não admite recurso ordinário e exerce duas funções: (i) uma função positiva, quando faz valer a sua força e autoridade e (ii) uma função negativa, quando impede que a mesma causa seja novamente apreciada pelo Tribunal. II- Enquanto excepção, o caso julgado pressupõe a repetição de uma causa idêntica, repetindo-se a mesma quando se propõe uma acção idêntica a outra, quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir. III- O caso julgado possui limites (i) objectivos, abrangendo a parte decisória e já não, em regra, os fundamentos de facto ou de direito, (ii) subjectivos, já que tem eficácia relativa, apenas vinculando, em regra, as partes na acção, e (iii) temporais, tendo por momento de referência o do termo da discussão na fase da audiência final. IV- A verificação, posterior ao encerramento da discussão de facto da 1ª instância, de facto em cuja falta se tenha fundado a absolvição do pedido não impede a ulterior propositura de nova acção: os factos ocorridos após o encerramento da discussão são factos novos para efeitos de preencherem uma nova causa de pedir. | ||
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Decisão Texto Integral: |
ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
AA veio intentar acção, com processo ordinário, contra COMPANHIA DE SEGUROS BB, S.A., pedindo a condenação desta a pagar-lhe a quantia de € 37 608,27, acrescida de juros, contados desde a citação, à taxa legal em vigor, até efectivo e integral pagamento.
Alegando, para tanto, e em suma, que: No exercício da sua actividade compete-lhe, além do mais, planificar, organizar e coordenar a execução da contabilidade das entidades sujeitas aos impostos sobre o rendimento que possuam ou devam possuir contabilidade regularmente organizada, procedendo ao respectivo aconselhamento do regime tributário. No ano fiscal de 2002, ano seguinte ao do início da actividade dos clientes/contribuintes a seguir mencionados, não lhes comunicou para exercerem a opção pelo regime geral ou serem tributados pelo regime simplificado de determinação do lucro tributável, sendo que no sobredito ano de início de actividade aqueles contribuintes, nas respectivas declarações de IRC, haviam colocado uma cruz na quadrícula da opção pelo regime geral. Em consequência de tal omissão, e com referência ao exercício fiscal de 2002, alguns dos seus contribuintes/clientes foram tributados pela administração fiscal em montantes de IRC superiores àqueles que resultariam da aplicação do regime geral, montante que o autor saldou por tal lhe ter sido exigido pelos clientes. Encontrando-se inscrito na Câmara dos Técnicos Oficiais de Contas (CTOC) com o n.° ..., existe um seguro a seu favor – seguro de responsabilidade – celebrado entre esta Câmara e a ré que tem por objecto “a garantia da responsabilidade extracontratual que, ao abrigo da Lei Civil, seja imputável ao Segurado, na qualidade ou exercício da actividade referida nas respectivas condições Especiais e Particulares" e que abrange as indemnizações que legalmente sejam exigíveis ao segurado, em consequência de danos patrimoniais causados a clientes e/ou terceiros, desde que resultem de actos ou omissões cometidas durante o exercício da actividade de Técnico Oficial de Contas (ponto 3 das condições particulares). Pelo que a ré é responsável pelo reembolso das quantias que entregou aos clientes, em face dos danos por estes sofridos.
Citada, a ré veio contestar, defendendo-se por excepção e por impugnação.
Por excepção, invocou a incompetência territorial do tribunal e o caso julgado. Quanto a esta excepção alega, em síntese, que existe entre a presente acção e o que foi decidido por sentença proferida no âmbito do Proc. 243/06.3TBCPV identidade de sujeitos, pedido e causa de pedir, fundando-se a pretensão do autor nos mesmos factos que justificaram a instauração daquela acção, já que naquela o autor deduziu pedido de indemnização, que foi julgado improcedente e por isso, não pode pretender nesta acção obter nova decisão sobre a mesma matéria. Alega, ainda que o pagamento invocado nesta acção já foi alegado na anterior, pelo que o autor litiga de má fé. Além do mais, a responsabilidade pelos invocados prejuízos não cabe no âmbito de cobertura do seguro, não só por ser ao contribuinte (e não ao autor, enquanto TOC), que cabe a responsabilidade pela opção do regime fiscal e por constar expressamente da cl.ª 4.ª da condições particulares do seguro a exclusão de actos ou omissões intencionalmente praticados pelos beneficiários, o que é o caso. Conclui pela procedência das excepções, absolvendo-se o réu da instância ou, a assim se não entender, a improcedência da acção, com a sua absolvição do pedido.
Houve lugar a réplica, na qual o autor manteve a posição inicial, alegando em síntese, que não se verifica a excepção, porque na presente acção a sua pretensão assenta em factos distintos, mais propriamente no facto dos clientes exigirem o pagamento da diferença e o autor ter procedido ao respectivo pagamento.
Foi proferido despacho saneador (fls. 316 a 328), que julgou verificada a excepção dilatória de caso julgado e absolveu a ré da instância.
Inconformado, veio o autor interpor recurso de apelação para o Tribunal da Relação do Porto, o qual, por acórdão de fls. 358 a 376, decidiu julgar parcialmente procedente a apelação e, nessa conformidade, julgar improcedente a excepção de caso julgado, devendo os autos prosseguir os seus termos.
Agora irresignado, veio a ré interpor recurso de revista para este Supremo Tribunal de Justiça, formulando na sua alegação, as seguintes conclusões, que textualmente se reproduzem: 1.ª – 0 Tribunal da Relação decidiu mal a questão da excepção de caso julgado uma vez que, apesar de reconhecer a existência de identidade de sujeitos e de pedidos numa e noutra das acções em confronto, não reconheceu a existência de identidade de causa de pedir; 2.ª - Para tanto, decidiu que os factos não são os mesmos, até porque estão temporalmente separados e distinguidos; 3.ª - Contudo, a verdade é que o facto crucial, numa e noutra acção, é idêntico; 4.ª - Tal facto é, de acordo com o que foi alegado pelo Autor numa e noutra acção, o pagamento que realizou a clientes seus em consequência de erro cometido no exercício das suas funções; 5.ª - Numa e noutra acção, o Autor alegou que efectivamente realizou esse pagamento; 6.ª - Ora, a primitiva acção foi julgada improcedente porque, justamente, não ficou dado como provado o referido pagamento; 7.ª – Mas isso não legitima nem permite que o Autor venha a instaurar nova acção, alegando novamente esse pagamento, ainda que para tanto tenha maquilhado tal facto com uma localização temporal - feita muito a propósito, como é evidente - em momento ulterior ao encerramento do anterior processo; 8.ª – De contrário, estava aberto o caminho para permitir ao Autor a instauração de tantas acções quantas as necessárias até lograr provar esse pagamento e até obter vencimento, bastando para tal afirmar que, afinal, fez esse mesmo pagamento depois do julgamento da anterior acção; 9.ª – A razoabilidade e a boa fé não permitem esse entendimento nem este expediente; 10.ª – A decisão recorrida violou assim as disposições contidas nos arts. 493°, 494°, 497° e 498° do Código do Processo Civil, devendo assim ser revogada por outra que, confirmando a decisão de Ia Instância, determine a absolvição da instância por verificação da excepção de caso julgado, com o que farão V. Exas. a mais nobre e elevada.
O recorrido não contra-alegou. * Corridos os vistos legais cumpre apreciar e decidir. * Vem dado como PROVADO: A) Em 3.7.2006 o Autor instaurou uma acção declarativa de condenação com a forma de processo ordinário contra a Companhia de Seguros BB SA. que correu os seus termos pela secção única deste Tribunal, como Proc. 243/06.3TBCPV e aí formulou o seguinte pedido: pede que a acção seja julgada procedente por provada e, em consequência, considerarem-se incluídos no Âmbito da cobertura do seguro de responsabilidade civil profissional contratado entre a Câmara dos Técnicos Oficiais de Contas e a ré os danos patrimoniais causados a clientes do autor por este não ter alertado os seus referidos clientes para a opção pelo regime geral como forma de evitar a sua tributação pelo regime simplificado (pedido a.) e a condenar-se a ré a pagar ao autor a quantia de €44.787,79 por danos causados por este aos seus indicados clientes e que teve de suportar (pedido b). B) A acção identificada em A) foi julgada parcialmente procedente por parcialmente provada e, em conformidade, considerou incluídos no âmbito da cobertura do seguro de responsabilidade civil profissional contratado entre a Câmara dos Técnicos Oficiais de Contas e a ré os danos patrimoniais causados a clientes do autor (associado da CTOC) por este não ter alertado os seus referidos clientes para a opção pelo regime geral como forma de evitar a sua tributação pelo regime simplificado e absolver a ré do pedido formulado em b).
C) Na presente acção o autor intenta uma acção contra a Companhia de Seguros BB, SA e formula o seguinte pedido: Termos em que deve julgar-se provada e procedente a presente acção, sendo em consequência a ré condenada a pagar ao autor a quantia de €37.608,27, acrescida de juros, contados desde a citação, à taxa legal em vigor, até efectivo e integral pagamento.
D) Na acção mencionada em A. o Autora alegou os factos que a seguir se transcrevem: 1. O Autor exerce a actividade profissional de Técnico Oficial de Contas (TOC), encontrando-se inscrito na Câmara dos Técnicos Oficiais de Contas (CTOCJ, conforme documentos que integra e reproduz para os devidos e legais efeitos — Docs n°s 1 e 2. 2. A CTOC, em consequência do previsto no n° 4 do art.° 52° dos seus Estatutos, aprovados pelo Dec. Lei n° 452/99, de 05 de Novembro, subscreveu, em 07/11/2000, com a Ré um seguro de responsabilidade civil profissional — Doc. que se encontra em poder da Ré, requerendo-se, desde já, a sua junção aos autos. E) Naqueles autos proferíu-se sentença em 10.03.2008, com trânsito em julgado, com a decisão que se transcreve:" Pelo exposto, decide-se julgar a acção parcialmente procedente e, e conformidade: A - Considerar incluídos no "Âmbito de Cobertura" do seguro de responsabilidade civil profissional contratado entre a Câmara dos Técnicos Oficiais de Contas e a Ré os danos patrimoniais causados a clientes do A. (associado da CTOC), por este não ter alertado os seus referidos clientes para a opção pelo regime geral como forma de evitai a sua tributação pelo regime simplificado; B - Absolver a Ré do pedido formulado na al. b). Custas pelas partes na proporção do respectivo decaimento (art. 446° do C.P.C.), fixando-se o do A. em 80% e o da Ré em 20%." F) No que concerne ao pedido formulado em B, fundamentou-se a decisão nos termos que se transcrevem: " C — Verificados se encontram os pressupostos da responsabilidade civil contratual do A. para com os seus clientes em causa, ao nível da existência de uma conduta inadimplente culposa por banda daquele. Com efeito, o ora A., na sua qualidade de Técnico Oficial de Contas, tinha obrigação legal e estatutária de conhecer, integralmente, o regime legal que define a sua actividade, nomeadamente a atinente à formalização da opção pelo regime de tributação. Não tendo actuado de modo competente e diligente é responsável pela omissão praticada no exercício das suas funções. Aliás, tal culpa presume-se (art. 799° do C. Civil) e não foi afastada pela demandante. Cumpre analisar agora se daquele comportamento resultaram, adequadamente, para os clientes ou terceiros, danos patrimoniais indemnizáveis. Como vimos, no âmbito de cobertura do seguro celebrado entre a Câmara dos TOC a Ré, compreendem-se "as indemnizações que legalmente sejam exigíveis ao segurado, e consequência de danos patrimoniais causados a clientes ou a terceiros, desde que resulte de actos ou omissões cometidos no exercício da actividade de Técnico Oficial de Contas" n°3 das Condições Particulares do contrato de seguro ajuizado. No caso vertente, provou-se que contribuintes/clientes do A., como consequência directa e necessária do lapso culposo daquele, sofreram prejuízos, consubstanciados no facto de terem sido tributados pelo regime simplificado em quantias superiores àquelas que resultariam da tributação pelo regime geral, montantes esses que liquidaram — cf. factualidade contida nos n°s 12 a 15 do ponto 4.1. Quanto a outros não foi provado que tivessem pago os impostos liquidados factos n ° 10, 11 e 16. Sucede que, não se provou que algum dos mencionados clientes do A. tivesse exigido deste o pagamento da respectiva indemnização pelo dano sofrido e, muito menos que o demandante tivesse suportado qualquer daqueles prejuízos. Nem se pode falar de "danos futuros" indemnizáveis, porquanto falece a sua necessária previsibilidade. Isto porque não é minimamente seguro afirmar, neste momento que tais pedidos de ressarcimento venham a ocorrer (cfr. art. 564°, n°2 do C. Civil). Destarte, embora proceda o primeiro pedido do A. — meramente "instrumental" diremos nós -, não pode merecer acolhimento o pedido de condenação da Ré a pagar ao A. quantia correspondente a danos causados por este a clientes seus, e por si suportados.".
H - No despacho de fundamentação da decisão da matéria de facto considerou-se: " Contudo, a referida documentação não permite concluir que os valores que vieram efectivamente a ser liquidados pelos Serviços Fiscais com base na aplicação do regime simplificado foram pagos pelo autor, acrescendo que relativamente aos contribuintes Construções CC Limitada, Construções DD Limitada e Construções II Limitada, nem sequer permite concluir que ocorreu qualquer pagamento. Ademais nenhuma das testemunhas que eram representantes legais ou sócio apenas das firmas clientes do A. adiantou que o pagamento de tais montantes tivesse sido pago pelo ora demandante, sendo certo que as testemunhas KK, LL, MM e NN asseguraram que os montantes liquidados às suas respectivas sociedades foram por estas suportados. A testemunha OO confirmou que nalguns dos casos em apreço as dívidas ao Fisco ainda não haviam sido regularizadas. "
I - Na presente acção o Autor demanda a Companhia de Seguros – BB, SA e pede a condenação da Ré no pagamento da quantia de € 37 608,27, acrescida de juros contados desde a citação, à taxa legal em vigor, até efectivo e integral pagamento.
J - Para fundamentar a sua pretensão alega os factos que a seguir se transcrevem: 1.O A. exerce a actividade profissional de Técnico Oficial de Contas (TOC), encontrando-se inscrito na Câmara dos Técnicos Oficiais de Contas (CTOC) com o n. ° ... - doc. 1. Assim, e com referência ao exercício fiscal de 2002: SEM CONCEDER SEM CONCEDER SEM CONCEDER SEM CONCEDER SEM CONCEDER 47. Decorre do exposto que, por força das exigências para pagamento feita pelos supra referidos clientes do A., e devido à sua omissão, este teve de suportar as seguintes quantias, que ora reclama da Ré, a saber: 48. Do que resulta o total de € 37.608,27 (Trinta e sete mil seiscentos e oito euros e vinte e sete cêntimos), quantia pela qual a Ré é responsável, nos termos do sobredito contrato de seguro."
* São, como é bem sabido, as conclusões da alegação do recorrente que delimitam o objecto do recurso – arts. 684.º, n.º 3, e 690.º, n.os 1 e 4, do Código de Processo Civil[1], bem como jurisprudência firme deste Supremo Tribunal. Sendo, pois, as questões atrás enunciadas e que pela recorrente nos são colocadas que cumpre apreciar e decidir. As quais se podem resumir à de saber se se verifica o caso julgado.
Sustenta a recorrente que tendo sido invocado o pagamento na primeira acção, acção que foi julgada improcedente por se não ter o mesmo provado, ficou o autor impedido de voltar a invocar tal facto, por se ter formado caso julgado quanto à pretensão do autor, de que aquele integrava causa de pedir. Assim incorrendo o mesmo, acrescenta, em violação do caso julgado.
O caso julgado é a insusceptibilidade de impugnação de uma decisão decorrente do seu trânsito em julgado (art. 677.º). Por força do caso julgado o acto decisório é irrevogável pelo órgão jurisdicional que o pronunciou, dado que, logo que proferido, se lhe esgotam os poderes jurisdicionais sobre a matéria, com a consequência de o seu acto decisório se tornar imutável[2].
Excepção dilatória no regime vigente (art. 494.º, al. i), o caso julgado tem, nesse âmbito, como pressuposto a repetição de uma causa decidida por sentença que já não admite recurso ordinário e exerce duas funções: (i) uma função positiva e (ii) uma função negativa. Exerce a primeira quando faz valer a sua força e autoridade, e exerce a segunda quando impede que a mesma causa seja novamente apreciada pelo tribunal. Visando tal excepção, assim, evitar que o tribunal contrarie na decisão posterior o que decidiu na primeira ou a repita; a autoridade do caso julgado é o comando da acção ou proibição de repetição. O que vale por dizer que a sentença faz caso julgado quando a decisão nela contida se torna imodificável (efeito processual do caso julgado) em razão do que o tribunal não pode voltar a pronunciar-se sobre o decidido (excepção do caso julgado) e fica vinculado ao respectivo conteúdo (autoridade do caso julgado)[3]. Sendo certo que a autoridade de caso julgado e a excepção de caso julgado não são duas figuras distintas, mas antes duas faces da mesma figura – consistindo o facto jurídico “caso julgado” em existir uma sentença (um despacho) com trânsito sobre determinada matéria[4]. E, caso se encontrem preenchidos os pressupostos do caso julgado, pode distinguir-se entre o caso julgado formal, externo ou de simples preclusão e o caso julgado material ou interno. Consistindo o primeiro (art. 672.º) em estar excluída a possibilidade de recurso ordinário, nada obstando, porém, em que a matéria da decisão seja diversamente apreciada noutro processo, pelo mesmo ou por outro Tribunal. Correspondendo o mesmo às decisões que versam apenas sobre a relação processual, não provendo sobre os bens litigados. Consistindo o segundo (art. 671.º), geralmente designado como caso julgado “res judicata”, em a definição dada à relação controvertida se impor a todos os Tribunais (e até a quaisquer outras autoridades), quando lhes seja submetida a mesma relação. Todos têm de a acatar, de modo absoluto, julgando em conformidade, sem nova discussão. Competindo o mesmo às decisões que versam sobre o fundo da causa, sobre os bens discutidos no processo, definindo a relação ou situação jurídica deduzida e discutida em Juízo[5].
Quando constitui uma decisão de mérito (decisão sobre a relação material controvertida) a sentença produz, também fora do processo, efeito de caso julgado material: a conformação das situações jurídicas substantivas por ela reconhecidas como constituídas impõe-se nos planos substantivo e processual, distinguindo-se, neste, como atrás aflorado, o efeito negativo da inadmissibilidade de uma segunda acção (proibição de repetição: excepção de caso julgado) e o efeito positivo da constituição da decisão proferida em pressuposto indiscutível de outras decisões de mérito (proibição de contradição: autoridade de caso julgado)[6].
Enquanto excepção, o caso julgado pressupõe a repetição de uma causa idêntica, repetindo-se a mesma quando se propõe uma acção idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir (arts. 497.º, n.º 1, e 498.º, n.º 1): (i) há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica; (ii) há entidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico e (iii) identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas acções procede do mesmo facto jurídico – arts. 497.º, n.º 1, e 498.º, do CPC. Destes pressupostos resulta incontornável que o caso julgado não se estende a todos os fundamentos da decisão[7] e preclude a invocação de questões relacionadas com o thema decidendum enquanto se mantiver inalterada a situação apreciada na decisão e, em princípio só vincula as partes da acção, a significar que, como refere Miguel Teixeira de Sousa[8], possui limites (i) objectivos, (ii) temporais e (iii) subjectivos.
Quanto aos limites objectivos, é pacífico o entendimento neste Supremo Tribunal que o caso julgado abrange a parte decisória e já não, em regra, os seus fundamentos de facto ou de direito[9] – neste sentido cf., por todos, o ac. STJ de 01-06-2010, proferido nos autos de Revista n.º 556/06.4TBRMR-B.L1.S1 (Moreira Camilo), disponível no respectivo site deste Tribunal. No que concerne aos seus limites subjectivos o caso julgado tem eficácia relativa: apenas vincula, em regra, as partes da acção, não podendo, também em regra, afectar terceiros. Esta limitação é reflexo do princípio do contraditório (art. 3.º, n.ºs 1 a 3) no sentido de que quem não pode defender os seus interesses num processo pendente, não pode ser afectado pela decisão que nele foi proferida. Assim os terceiros não podem ser nem prejudicados nem beneficiados pelo caso julgado de uma decisão proferida numa acção em que não participaram nem foram chamados a intervir (Paulus, D.20.4.16: Nec rec inter alios iudicata aliis prodesse aut nocere solet)[10]. Além da eficácia inter partes, que sempre possui, o caso julgado pode atingir terceiros, o que sucede através de duas situações: a eficácia reflexa do caso julgado[11] e a extensão do caso julgado a terceiros[12].
Quanto aos limites temporais, o momento de referência do caso julgado é o do termo da discussão na fase da audiência final – 652.º, n.º 3, al. e). Com efeito, no que concerne aos factos que servem de fundamento à pretensão que querem ver apreciada (causa de pedir) – e não obstante a reforma do processo civil de 95/96 tenha visado também garantir a prevalência do fundo sobre a forma, através da previsão de um poder mais interventor do juiz, tendo nela saído revigorado o princípio do inquisitório ou da oficiosidade, imbuído de uma lógica de cooperação –, a verdade é que o Juiz só pode, em princípio, fundamentar a sua decisão nos factos alegados pelas partes, sem prejuízo de poder sempre atender àqueles que não carecem de alegação ou de prova (art. 514.º) de obstar ao uso anormal do processo (art. 665.º) e de considerar, mesmo oficiosamente, os factos instrumentais que resultem da instrução e discussão da causa e os factos essenciais que sejam complemento ou concretização de outros que as partes hajam oportunamente alegado e resultem da instrução e da discussão causa (art. 264.º, nºs 2 e 3)[13]. Estando, assim, consagrado, na nossa processualística civil, o princípio da substanciação, segundo o qual não basta a indicação genérica do direito que se pretende fazer valer, antes sendo necessário a indicação específica do facto constitutivo desse direito[14]. Recaindo sobre o autor, como corolário do princípio dispositivo, a alegação dos factos de cuja prova seja possível concluir pela existência do direito, competindo-lhe alegar os factos essenciais e concretos que se inserem na previsão da norma ou normas jurídicas que acolhem o seu invocado direito. Tendo tal princípio dispositivo, como reverso da medalha, o princípio da auto-responsabilidade das partes, vendo a que estiver onerada com o ónus da afirmação e prova, a acção julgada contra si se os factos alegados forem insuficientes para sua pretensão. Cabendo às partes alegar os factos que fundamentam a sua pretensão, só podem ser alegados ou considerados pelo tribunal os factos que cheguem ao seu conhecimento até ao encerramento da discussão (arts. 506.º, n.º 1 e 663.º, n.º 1).
Nas palavras de Miguel Teixeira de Sousa[15], incidindo o caso julgado sobre uma decisão que apreciou uma questão concreta, a referência temporal do caso julgado “determina várias consequências: - uma referida ao passado, que é a preclusão da invocação num processo posterior de questões não suscitadas no processo findo, mas anteriores ao encerramento da discussão na fase da audiência final e que nele podiam ter sido apresentadas; - duas outras, respeitantes ao futuro, que são a caducidade do caso julgado e a susceptibilidade da decisão transitada se se verificar uma alteração da situação de facto após o encerramento da discussão na audiência final”. Adiantando ainda o mesmo autor, que “para efeito do caso julgado, apenas os factos ocorridos depois do encerramento da discussão são considerados factos novos e podem ser invocados como uma nova causa de pedir numa acção posterior”. Navegando nas mesmas águas, Castro Mendes[16], apesar de não concordar com a criação de mais este limite do caso julgado, aceita os fundamentos que estão subjacentes a tal limite, por “exprimirem o que consta no nosso direito, do art. 663.º, n.º 1: a decisão final - sentença - deve corresponder «à situação existente no momento do encerramento da discussão” e Lebre de Freitas,[17] “o caso julgado constitui-se com referência à situação de facto existente no momento do encerramento da discussão (art. 663-1)”. Adiantando este último autor que «o nosso sistema jurídico não admite a figura da condenação condicional (…): quando o juiz constate que a condição suspensiva (…) de que depende o direito invocado, não está verificada, na ultima data a que atender (art. 662-1), o direito não pode se reconhecido ou constituído e o réu há-de ser absolvido do pedido(…). Regime idêntico é o da verificação, posterior ao encerramento da discussão de facto em 1.ª instância, de facto em cuja falta se tenha fundado a absolvição do pedido (…esta absolvição do pedido) não impede a ulterior propositura de nova acção (…)»[18].
No caso dos autos, o autor intentou a presente acção pedindo, no que ora importa, a condenação da ré a pagar-lhe a quantia de € 44 787,79, por danos causados aos seus clientes que teve de suportar em resultado da omissão do dever de aconselhamento do regime tributário que estes deviam adoptar, nos termos do art. 6.º, n.º 2 do DL n.º 452/99, de 05-11. Quantias pelas quais a ré é responsável em resultado de contrato de seguro de que o autor é beneficiário. Tal acção foi intentada em 03-07-2006 e, por decisão proferida em 10-03-2008, foi esta parte do pedido julgada improcedente por não se ter provado que o autor pagou a tais clientes as quantias aí referidas.
Na presente acção o autor pede a condenação da ré a pagar-lhe a quantia de € 37 608,27, acrescida de juros até efectivo e integral pagamento. Nos fundamentos da acção invoca que causou danos aos seus clientes por omissão do dever de aconselhamento do regime tributário que estes deviam adoptar, nos termos do art. 6.º, n.º 2 do DL n.º 452/99, de 05-11. Danos que teve de suportar, tendo pago: €10 257,48, à “Construções CC, Lda" em Outubro de 2009; € 4 581,51, à “Construções EE, Lda." em 01-09-2008; € 1 764,85, à "FF, Lda", em 30-08-2008; € 4 239,23, à "Construções GG, Lda”, em 29-10-2005; € 7 108,63, a "Construções HH, Lda, em 22-10-2008 e € 9 656,57, à "Construções II, Lda.”, em 31-12-2008.
Sendo os mesmos os clientes mencionados numa e noutra acção e o mesmo o exercício em referência (2002) – na primeira acção eram mencionados mais, a quem o pagamento agora não é invocado como causa de pedir do autor –, a presente acção foi instaurada em 08-04-2011.
Resultando do confronto das duas acções que o pagamento invocado como causa de pedir nesta última apenas ocorreu após a decisão – e, por maioria de razão, o encerramento da discussão – proferida na primeira.
Pelo que tais pagamentos integram a noção de facto novo, nos termos supra aludidos, em cuja falta se fundou a absolvição do pedido na primeira acção, sendo-o por não poder ser conhecido do tribunal do julgamento no momento da decisão[19].
Podendo ser invocados, nas palavras de Teixeira de Sousa, como “uma nova causa de pedir numa acção posterior”.
Tendo, assim, com acerto decidido a Relação. * Face a todo o exposto, acorda-se neste Supremo Tribunal de Justiça em se negar a revista. Custas pela recorrente.
Lisboa, de 28 de Novembro de 2013
Serra Baptista (Relator) Álvaro Rodrigues Fernando Bento
___________________________ [2] Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, V, pág. 156 e segs. [3] Excepcionalmente, a lei abre a rediscussão de uma matéria já definitivamente resolvida: o juiz poderá ainda rectificar erros materiais; suprir alguma nulidade processual, esclarecer a decisão ou reformar mesmo a sentença quanto a custas ou multa e, por outro lado, a sentença pode ser modificada através de qualquer dos recursos extraordinários admitidos na lei, que são o recurso de revisão (arts. 771.º e segs.) e a oposição de terceiro, esta, até 01.01.2008, prevista nos arts. 778.º e segs, na redacção anterior ao regime do DL n.º 38/2003, de 08-03). [11] A eficácia reflexa vincula qualquer sujeito a aceitar aquilo que foi definido entre os interessados directos e como tal baseia-se no pressuposto de que o que é definido em juízo entre todos os interessados directos é oponível – erga omnes - a qualquer terceiro (que, por definição, não é interessado directo), supondo a intervenção destes interessados, com especial relevância nas acções de estado (art. 674.º). [12] Já a extensão do caso julgado a terceiros implica uma vinculação de interessados (directos ou indirectos) à constituição, modificação ou extinção de uma situação subjectiva própria. Não vale, no entanto, com eficácia erga omnes, estabelecendo apenas a vinculação de certos interessados, fundada, designadamente: (i) na identidade da qualidade jurídica entre a parte e o terceiro; (ii) na situação de substituição processual; (iii) na titularidade pelo terceiro de uma situação jurídica dependente do objecto apreciado; e (iv) na oponibilidade resultante do registo: pela identidade jurídica (art. 498.º, n.º 2 do CPC) ficam vinculados ao caso julgado os que possam ser equiparados às partes na acção, como o sejam os terceiros que sucederam (inter vivos ou mortis causa) na titularidade do objecto processual; a substituição processual vincula o substituto como se fosse a parte substituída, como sucede na vinculação do adquirente de coisa ou direito litigioso (art. 271.º, n.º 3) ou nos casos de aproveitamento favorável do caso julgado nas situações de solidariedade (art. 522.º e 531.º do CC), de credor de uma prestação indivisível (art. 538.º, n.º 2 do CC); dos casos do art. 61.º, n.º 1 do CSC ou da acção de cobrança de créditos instaurada depois de encerrada a liquidação (art. 164.º, n.º 3 do CSC); na prejudicialidade relativamente à situação jurídica de um terceiro, como o seja a extensão ao fiador do caso julgado favorável ao devedor (art. 635.º, n.º 2 do CC) ou o terceiro que constitui uma hipoteca a favor do credor e que aproveita do caso julgado entre um devedor e este credor (arts. 717.º, n.º 2, e 635.º, n.º 1, do CC); quanto ao registo da acção implica que o caso julgado é oponível a terceiros que hajam adquirido ou constituído na pendência da acção ou mesmo antes dela, um direito incompatível com o reconhecimento da decisão transitada, ainda que não intervenham na acção (art. 271.º, n.º 3). [19] A noção de “factos novos” está, assim, tipicamente referida às circunstâncias do tempo processual da decisão; a justiça da decisão seria posta em causa se o facto relevante pudesse ter sido conhecido do tribunal do julgamento no momento da decisão. |