Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
251/21.4T8TMR.E1.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: ISAÍAS PÁDUA
Descritores: CASA DE MORADA DE FAMÍLIA
DECISÃO PROVISÓRIA
CADUCIDADE
TRÂNSITO EM JULGADO
SENTENÇA
DIVORCIO SEM CONSENTIMENTO
PROCEDIMENTOS CAUTELARES
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 01/31/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :
I- Os efeitos da decisão proferida na pendência da ação de divórcio que, à luz do incidente previsto no n.º 7 do artº. 931º do CPC, fixa o regime provisório de utilização da casa de morada de família, não caducam (automaticamente) com o trânsito da sentença que decretou o divórcio entre os cônjuges, mas tão-só, e salvo acordo entretanto ocorrido entre aqueles sobre a matéria, com o trânsito em julgado da sentença proferida na ação instaurada (por qualquer um deles), ao abrigo artº. 990º do CPC, destinada a fixar/regular definitivamente aquela utilização ou então com a partilha dos bens do dissolvido casal (se a casa for objeto dessa partilha e/ou dos acordos nela ocorridos a esse propósito).
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

I- Relatório



1. A autora, AA instaurou (em 18/02/2021) contra o réu, BB, ambos com os demais sinais dos autos, ação especial de divórcio sem consentimento.


2. Na pendência/decurso dessa ação, a autora, ao abrigo do disposto no artigo 931º, n.º 7, do CPC, deduziu contra o réu incidente de atribuição provisória da utilização da casa de morada de família.


3. Incidente esse que, por sentença proferida em 04/05/2021, veio a ser julgado procedente, tendo, em consequência, atribuído provisoriamente à A./requerente o direito de arrendamento do prédio misto sito em ..., ..., inscrito na matriz urbana sob o artigo ...91 e na matriz rústica sob o artigo ...16, secção C, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o ...36, da freguesia ..., com a obrigação de a mesma pagar a renda no valor de € 615,00 mensais.


4. Posteriormente, veio a ser decretado o divórcio entre aquelas partes, declarando dissolvido o casamento entre elas celebrado, na sequência de sentença proferida em 15/06/2021 (transitada em julgado em 29/06/2021).


5. Antes dessa sentença que decretou a o divórcio, o R./requerido, por requerimento de 01/06/2021, inconformado com aquela outra sentença que decidiu o referido incidente (de atribuição de casa da morada de família do casal) dela interpôs recurso de apelação.


6. Recurso que veio a ser julgado improcedente, inicialmente por decisão sumária proferida (em 27/07/2021) pelo sr. juiz desembargador Relator (a quem os autos foram distribuídos), que confirmou a sentença proferida sobre o aludido incidente, e depois por acórdão do Tribunal da Relação de Évora, proferido em 25/11/2021, na sequência da reclamação para conferência feita pelo recorrente daquela decisão, que confirmou igualmente tal decisão/sentença.


7. Novamente irresignado com tal acórdão decisório, o requerido dele interpôs recurso de revista excecional, tendo concluído as respetivas alegações nos seguintes termos (respeitando-se a ortografia):

« 1ª – Conforme foi já decidido pelo Supremo de Tribunal de Justiça, “a fixação judicial da regulação provisória da utilização da casa de morada da família é caracterizável como um procedimento especialíssimo ou incidente do processo de divórcio” (Ac. STJ de 23-11-2017, Rel. António Joaquim Piçarra).

2ª - O alcance da regulação provisória fixada judicialmente no incidente a que alude o nº 7 do artigo 931º do CPC é “(…) temporalmente delimitado (a pendência do processo de divórcio) e, encontrando-se as partes já definitivamente divorciadas, a regulação provisória perdeu a sua eficácia (…)”. – Cfr. Acórdão do STJ a que nos reportamos na conclusão que antecede.

3ª – O STJ tem a sua orientação jurisprudencial estabilizada no sentido de existir uma clara destrinça entre a regulação provisória a que alude o n.º 7 do artigo 931.º do CPC e o processo de jurisdição voluntária previsto no artigo 990.º do CPC.

4ª – Já no que tange à eficácia da decisão proferida no incidente a que se reportam os autos, tem sido entendido que a mesma “…visa regular a utilização da casa de morada de família durante a pendência do processo de divórcio, nos termos previstos no artigo 931.º, n.º 2, do CPC.”, conforme se considerou, aliás, no douto Acórdão do Tribunal da Relação de Évora (o Tribunal Superior ora recorrido), de 11.07.2019, no processo nº 8214/16.5T8STB-B.E1 (Relatora: Isabel Peixoto Imaginário), disponível em www.dgsi.pt.

5ª – Por oposição ao que sucede com o processo de jurisdição voluntária regulado pelo artigo 990º e ss. do CPC, esse sim, vocacionado para a produção de efeitos para lá da extinção do processo de divórcio (no caso vertente, na sequência do trânsito em julgado da decisão judicial que o decretar).

6ª – O recorrente e a recorrida encontram-se definitivamente divorciados desde a data de 29.06.2021, na qual transitou em julgado a sentença que decretou a dissolução do casamento entre aqueles.

7ª - O trânsito em julgado da decisão que decretou o divórcio entre o recorrente e a recorrida ocorreu já depois de aquele ter interposto recurso ordinário de apelação para o Tribunal ora recorrido, circunstância que nessa instância deveria ter sido desde logo conhecida e tomada em consideração aquando da decisão singular ali proferida, que lhe são posteriores.

8ª - À luz do entendimento jurisprudencial acolhido nos preditos Arestos, a perda de eficácia da decisão provisória proferida pelo Tribunal de 1.ª Instância, ao abrigo do n.º 7 do artigo 931.º do CPC, deveria outrossim ter sido reconhecida e declarada pelo Tribunal recorrido, quer na decisão singular quer no Acórdão proferido na sequência de reclamação deduzida contra aquela, o que contudo não sucedeu.

9ª - E que acarreta, assim, a inutilidade superveniente da lide no que toca ao incidente de atribuição provisória da casa de morada de família autuado por incorporação nos preditos autos de divórcio.

10ª - O entendimento sufragado pelo Tribunal da Relação ..., no douto Acórdão ora recorrido, está em OSTENSIVA CONTRADIÇÃO com o que foi doutamente decidido por este Supremo Tribunal de Justiça (STJ) no processo n.º 4905/19...., da ... Secção (relatado pelo Exmo. Senhor Juiz Conselheiro CC), datado de 6.05.2021, cuja cópia se junta e que constitui, para os efeitos do presente recurso de revista, o Acórdão Fundamento, cf. al. c) do n.º 2 do artigo 672.º do CPC.

11ª - Acórdão do qual resulta que “…na acção de divórcio sem consentimento em que os cônjuges tenham acordado quanto ao propósito de se divorciar, o tribunal pode nos termos do art. 931.º, n.º 7, do CPC, por iniciativa sua ou a requerimento do cônjuge, fixar alimentos e atribuir a utilização da casa de família, decisões que vigorarão apenas na pendência da acção e até ao trânsito em julgado da sentença que decrete o divórcio.”, e o que é precisamente a situação dos autos.

12ª - Mais resulta cristalino do Acórdão Fundamento que, e ao contrário do entendimento sufragado pelo Tribunal Recorrido, “No que importa à decisão a proferir, incidente sobre a atribuição da casa de morada de família e os alimentos, o cônjuge pode pedir que no decurso da acção e para valer enquanto não é proferido o divórcio, lhe sejam fixados alimentos e atribuída a casa de morada de família e pode pedir também, como efeito do decretamento do divórcio, que lhe seja dado o arrendamento da mesma através do procedimento previsto no art. 990 do CPC, mas esses são procedimentos diferentes, quer na forma quer no conteúdo. O primeiro pretende uma regulação provisória e, nessa medida, com alcance meramente temporário, reporta tal provisoriedade à pendência do processo de divórcio - Cfr, neste sentido, Nuno de Salter Cid, in A protecção da casa de morada da família no direito português, Almedina, págs. 318 e 322, José António França Pitão e Gustavo França Pitão, in Código de Processo Civil Anotado, Quid Juris, tomo II, pág. 280, e António Santos Abrantes Geraldes, in Temas da Reforma do Processo Civil, III Volume, Almedina, págs. 45 e 46.” (negrito e sublinhado nossos)

13ª – Apesar de os respectivos sentidos e fundamentos de decisão serem diametralmente opostos entre ambos, tanto o Acórdão recorrido como o Acórdão fundamento foram proferidos no domínio da mesma legislação – i.e., no cotejo entre o disposto no n.º 7 do artigo 931.º e o disposto no artigo 990.º, ambos do CPC.

14ª – Tendo ambos por objeto a mesma questão fundamental de direito: o âmbito de vigência da decisão proferida ao abrigo do referido n.º 7 do artigo 931.º do CPC.

15ª – Razão pela qual se mostra preenchido o requisito de admissibilidade do presente recurso de revista excecional a que alude a alínea c) do n.º 1 do artigo 672.º do CPC.

16ª – É também fundamento da presente revista excecional, em face do disposto na al. a) do n.º 1 do artigo 672.º do CPC, a circunstância de estarmos perante uma questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito, i.e. porque há “controvérsia da questão jurídica na doutrina e na jurisprudência, a sua complexidade, ou a sua natureza inovadora, em termos de se justificar a intervenção do STJ para evitar dissonâncias interpretativas a porem em causa a boa aplicação do direito.”, conforme se pode ler no douto Acórdão da Formação, de 16.05.2019, tirado no processo nº 86375/16.9YIPRT.L1.S1 (disponível em https://www.stj.pt/wp-content/uploads/2020/03/revistaexcecional2019.pdf),

17ª – Apesar de a quaestio atinente à delimitação da eficácia e validade temporal da decisão proferida no âmbito do incidente de atribuição provisória da casa de morada de família previsto no n.º 7 do artigo 931.º do CPC ter dado azo a algumas decisões judiciais, verifica-se, todavia, que não há, ainda, um lastro relevante de decisões e, menos ainda, uma firme orientação jurisprudencial, o que naturalmente gera incerteza e de dúvida, quer nos julgadores, quer nas partes, e que convoca a intervenção de vocação uniformizadora do Supremo Tribunal de Justiça.

18ª - Razão pela qual, e ao abrigo do disposto na al. a) do n.º 1 do artigo 672.º do CPC, também o presente recurso de revista excecional ser admitido.

19ª - A questão controvertida contende com matéria atinente ao direito da família, conjugado com o direito (constitucionalmente protegido) à habitação e a consequente proteção dos cônjuges, no âmbito de um processo de divórcio, o que faz com que a questão cuja apreciação é submetida a este Alto Tribunal extravase largamente os estritos limites do caso concreto, assumindo inequívoca ressonância social.

20ª – A questão a apreciar contende “com interesses gerais e valores sociais do domínio da instituição familiar, pelo que a formação de jurisprudência tanto quanto possível uniforme sobre as mesmas questões é susceptível de levar à alteração de comportamentos sociais relevantes, assumindo, pois, manifesta saliência social.” (negrito nosso), conforme decidido pela Formação no processo de Revista Excecional n.º º 2151/18.6T8VCT.G1.S2, por meio de Acórdão de 2.12.2020,

21ª - Na densificação do conceito indeterminado de “interesses de particular relevância social” a que alude a alínea b) do nº 1 do artigo 672º do CPC, a Formação tem manifestado especial sensibilidade para as temáticas oriundas do direito da família, em vista da obtenção de padrões de atuação judicial que contribuam progressivamente para pacificação social, o que a título de exemplo se extrai dos Acórdão prolatados nos processo de revista excecional n.º 3069/19.0T8VNG.P1.S2 e 2279/17.0T8GMR.G1.S2.

22ª – Donde se conclui que a questão atinente à validade e vigência da decisão de atribuição provisória da casa de morada de família, prolatada ao abrigo do disposto no n.º 7 do artigo 931.º do Código Civil, é uma questão que se reveste de particular relevância social que convoca e legitima a presente revista excecional, a qual deve ser admitida ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 672.º do CPC.

23ª – Em face do teor do Acórdão Fundamento, é entendimento do recorrente que a decisão proferida pelo Exmo. Senhor Juiz de 1.ª Instância, ao abrigo do n.º 7 do artigo 931.º do CPC, é uma decisão cuja eficácia se encontra limitada à vigência do processo de divórcio, no âmbito do qual é proferida.

24ª – Decisão que, incidental do processo de divórcio, e estando marcada pela dimensão de provisoriedade, se encontra subordinada à tramitação e vigência daquele processo de divórcio, esgotando-se os seus efeitos com o terminus do mesmo.

25ª – Com o trânsito em julgado da sentença que decretou o divórcio entre o recorrente e a recorrida, temos que se esgotou a eficácia da decisão proferida no dito incidente, o que determina, em termos processuais, a inutilidade superveniente da lide, circunstância à qual o Tribunal recorrido foi totalmente insensível, desvalorizando-a por completo.

26ª - O que deverá agora reconhecer-se, revogando-se o douto Acórdão recorrido, do Tribunal da Relação de Évora, substituindo-se o mesmo por douto Acórdão que declare, com os fundamentos supra expostos – i.e., a provisoriedade da decisão proferida ao abrigo do n.º 7 do artigo 931.º do CPC e a subordinação da sua vigência à da ação de divórcio –, a inutilidade superveniente da lide, mercê do trânsito em julgado da decisão que decretou o divórcio nos autos em que corre o incidente em questão.»

Terminou, pedindo a revogação do acórdão recorrido e o decretamento da extinção da instância por inutilidade superveniente da lide mercê do trânsito em julgado da decisão que decretou o divórcio.


8. Não foram apresentadas contra-alegações.


9. Recurso esse que veio a ser admitido (como revista excecional) por acórdão da Formação (nºs. 3 e 4 do artº. 672º do CPC).


10. Cumpre-nos, agora, apreciar e decidir


***

II- Fundamentação



A) De facto.

Pelas instâncias foram dados como provados os seguintes factos (mantendo-se a sua numeração e a ortografia):

1. Em 21-08-2015 requerente e requerido, respetivamente, com 44 anos e 52 anos, casaram entre si, sem convenção antenupcial;

2) Por escrito datado de 01-02-2019, intitulado de "contrato de arrendamento", D... S.A. declarou ceder ao requerido, para gozo por 4 anos, mediante o pagamento pelo mesmo àquela de uma contraprestação mensal de € 500,00, o prédio misto sito em ..., ..., inscrito na matriz urbana sob o artigo ...91 e na matriz rústica sob o artigo ...16, secção C, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o ...36, da freguesia ...;

3) Hoje, o valor da contraprestação pelo gozo do imóvel acima referido é de € 615,00;

4) Desde pelo menos 01-02-2019 até hoje, que Requerente e requerido dormem, fazem refeições e recebem correspondência na casa acima referida;

5) Antes disso, requerente e requerido faziam isso em apartamento no ...;

6) A escolha do terreno e os termos da construção da casa aí implantada, acima referida em 2., foram definidos por requerente e requerido;

7) A casa tem uma área de cerca de 400 m2, está equipada com alarme e na sua envolvente existe jardim, piscina, horta e divisões para ovelhas e cães;

8) O custo global com a manutenção da casa e sua envolvente ascende, incluindo renda, a pelo menos € 1.500,00;

9) A requerente é enfermeira e desempenhou funções como tal até pelo menos o ano de 2014;

10) A requerente de fevereiro de 2015 a agosto de 2019 trabalhou para a D..., S.A. e recebia cerca de € 2.000,00 por mês;

11) Este contrato foi extinto por acordo entre a requerente e D..., S.A.;

12) De 16 de Agosto de 2019 até hoje vigora o acordo para a prestação de serviços da requerente à D..., Lda., pelo qual recebe o valor de €1.138,50 mensais;

13) Hoje a requerente não presta serviço à D..., Lda. e continua a receber o valor de € 1.138,50;

14) Por carta de 15-02-2021, D..., Lda., comunicou à requerente que revogava o contrato de prestação de serviços com efeitos a partir de 31-03-2021;

15) Por comunicação eletrónica de 23-02-2021, a D..., Lda. deu sem efeito esta revogação;

16) O requerido anunciou que porá termo a este acordo de prestação de serviços a partir do divórcio;

17) A requerente dispõe de aforro de pelo menos € 50.000,00, produto da venda, após o liquidar de imposto de mais-valias, da sua casa do ...;

18) Além da casa referida em 2., a requerente não dispõe de outra casa para viver;

19) O requerido é gerente e diretor comercial da D..., Lda. e aufere por essas funções cerca de € 6.000,00 por mês;

20) O requerido é administrador da D..., S.A., e não recebe remuneração por essas funções;

21) De 31-07-2015 a 31-12-2020, o requerido prestou serviços a S... Ltd. mediante o pagamento por aquela de um valor de 13.300,00 por mês;

22) O requerido tem residência fiscal em A...;

23) O requerido passa pelo menos metade do ano em trabalho em A..., estando ausente de Portugal por períodos por norma não superiores a 2 meses;

24) No ano de 2020, o requerido ficou de Fevereiro a Julho em A... por constrangimentos advindos da pandemia por Covid-19;

25) O requerido, quando em Portugal, desempenha as funções de administrador da D..., S.A. em ..., ...;

26) O requerido suporta pelo menos o pagamento da renda, os consumos de eletricidade e água e despesas com jardineiro da casa referida em 2.;

27) Além da casa referida em 2., o requerido não dispõe em Portugal de outra casa para viver;

28) Desde pelo menos 01-02-2019 a filha da requerente também dorme, faz refeições e recebe correspondência na casa referida em 2.;

29) A filha da requerida encontra-se a estudar no 11.° ano em Escola em ... e não tem modo de subsistência próprio;

30) O filho do requerido dispõe de quarto na casa;

31) O filho encontra-se a trabalhar em ... e pai não assegura qualquer despesa necessária à sua subsistência;

32) No período de 16-04-2021 a 23-04-2021, a requerente e o requerido dormiram na mesma cama e partilharam refeições;

33) A requerente pretende ficar na casa e assumir do pagamento da renda e das despesas manutenção, no valor total de pelo menos € 1.500,00 mensais;

33) Em vista do divórcio por mútuo consentimento, o requerido propôs à requerente que: esta saísse da casa de morada de família até Março de 2021; a entrega do primeiro à segunda da quantia de € 100.000,00 para aquisição de habitação própria permanente por esta; pagamento de rendas da segunda por seis meses; entrega da quantia de € 1.100,00 mensais do primeiro à segunda durante 24 meses; entrega da viatura automóvel Ford Ranger ou similar; entrega pela segunda ao primeiro das quantias de € 190.000,00, € 10.000,00, € 12.500,00 e € 3.700,00, que esta teria em seu poder e pertenceriam àquele;

34) Em vista do divórcio por mútuo consentimento, a requerente propôs ao requerido: sair (a requerente) de casa e que este lhe entregasse a quantia de € 350.000,00, a carrinha pick-up e os cães.

Factos que importa ainda considerar, pela sua relevância, como provados, e que resultam da consulta feita do processo eletrónico que corre por apenso à sobredita ação de divórcio, com a autuação nº. 251/21.....

35) Por apenso à sobredita ação de divórcio, a A./requerente AA instaurou, em 12-07-2021, contra o requerido BB, ação, ao abrigo do artº. 990º do CPC, pedindo, no final, que lhe seja atribuído, em exclusivo, a casa que foi morada de família e do respetivo direito ao arrendamento.

36) O R./requerido contestou a ação e deduziu reconvenção, pedindo no final a improcedência da ação e procedência do pedido reconvencional, atribuindo-se-lhe a ele a aquela casa de morada de família.

37) Por sentença proferida, em 22-04-2022, foi tal ação julgada procedente, atribuindo à A./requerente o direito de arrendamento relativamente ao prédio em causa que constituiu a casa de morada da família, mediante o pagamento pela mesma de uma renda mensal de no valor de € 615,00.

38) Sentença essa ainda não transitado em julgado, pois que, com ela inconformada, o R./requerido dela interpôs recurso de apelação (por requerimento de 06-06-2022), pedindo a sua revogação, atribuindo-se a ele a casa de morada de família.

39) Recurso esse que a A./requerente contra-alegou, pedindo a sua improcedência e a manutenção da sentença proferida.


***


B) De direito.

1. Do objeto do recurso e do seu conhecimento.

Como é sabido, e constitui hoje entendimento pacífico, é pelas conclusões das alegações dos recorrentes que se afere, fixa e delimita o objeto dos recursos, não podendo o tribunal de recurso conhecer de matérias ou questões nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso (cfr. artºs. 635º, nº. 4, 639º, nº. 1, 608º, nº. 2, e 679º do CPC).

Ora, calcorreando as conclusões das alegações do sobredito recurso do R. verifica-se que a única questão que, verdadeiramente, aqui se nos impõe conhecer e apreciar traduz-se em saber se com o trânsito em julgado da sentença que decretou o divórcio entre a requerente/ora recorrida e o requerido/ora recorrente caducaram, ou não, os efeitos da decisão proferida, ao abrigo do 931º, nº. 7 do CPC, no incidente que atribuiu provisoriamente à primeira o direito à utilização da casa de morada de família (vg. o direito ao arrendamento sobre a mesma)?

Por outras, palavras, está aqui em causa determinar o âmbito do limite temporal da vigência/eficácia do regime de atribuição/utilização da casa de morada de família fixado, à luz do nº. 7 do artº. 931º do CPC, provisoriamente a favor de um dos cônjuges na pendência da ação de divórcio.

No que concerne a tal incidente dispõe-se no nº. 7 do artº. 931º do CPC que “em qualquer altura do processo, o juiz, por iniciativa própria ou a requerimento de alguma das partes, e se o considerar conveniente, pode fixar um regime provisório quanto a alimentos, quanto à regulação do exercício das responsabilidades parentais dos filhos e quanto à utilização da casa de morada da família; para tanto, o juiz pode, previamente, ordenar a realização das diligências que considerar necessárias.” (sublinhado e negrito nossos)

Como sintetizou o acórdão do STJ de 23/11/2017 (proc. n.º 1448/15.1T8VNG.P2.S2,, disponível em www.dgsi.pt), “a fixação judicial da regulação provisória da utilização da casa de morada da família é caracterizável como um procedimento especialíssimo ou incidente do processo de divórcio, distinto do processo de jurisdição voluntária de atribuição da casa de morada da família, configurando o primeiro uma antecipação dos efeitos da composição definitiva do litígio que se alcançará no último. Além disso, apesar de não ser expressamente qualificado como tal, o primeiro tem vindo a ser considerado um procedimento cautelar específico do processo judicial de divórcio, encerrando, assim, as características basilares da tutela cautelar em que avulta a provisoriedade e a instrumentalidade da regulação judicialmente estabelecida.

A tutela provisória em análise não deverá, no entanto, confundir-se com a tutela provisória característica das providências cautelares (cfr. Miguel Teixeira de Sousa, em comentário ao acórdão do STJ de 13/10/2016, proferido no proc. nº. 135/12.7TBPBL-C.C1-S1), consultável em https://blogippc.blogspot.com/2017/01/jurisprudencia-541.html?m=1%E2%80%9D). Com efeito, e ao contrário do que sucede com as providências cautelares comuns, a presente providência é decidida com base em critérios de conveniência, não requerendo a propositura de uma ação cujo objeto seja o próprio direito acautelado (cfr. neste sentido, e ainda que se referindo ao regime provisório de alimentos, o acórdão do STJ de 05/11/1997, BMJ nº. 471º, págs. 298-303”).

Aduz Tomé d´Almeida Ramião que “a razão de ser deste procedimento tem justificação no facto de ser do conhecimento geral que muitas vezes, porventura mais do que deviam, a situação de divórcio arrasta os cônjuges para uma conflitualidade desmedida, com sentimentos de raiva, revolta, de ódio, para tensões e conflitos que por vezes atinge foros de pura irracionalidade, com alterações emocionais profundas, em que cada um dos cônjuges tenta imputar ao outro a responsabilidade da rutura conjugal, procurando vingar-se nele, com prejuízos em especial para os filhos menores.” (in “O Divórcio e Questões Conexas – Regime Jurídico Atual (de acordo com a Lei n.º 61/2008), 3.ª edição, Lisboa, Quid Iuris, 2011, págs. 83-84). E daí a necessidade, que por vezes se impõe/urge, de acautelar preventivamente, pela importância de que se revestem, e enquanto não são reguladas/resolvidas em definitivo, as questões relativas aos interesses ali contemplados. (cfr., a propósito, Ac. do STJ de 17/01/2013, proc. 2324/07.7TBVCD.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt).

Nos presentes autos, as instâncias decidiram, em sentido convergente, atribuir provisoriamente à requerente o direito de arrendamento relativo à casa de morada de família, direito esse que era titulado pelo requerido/ora recorrente, mediante a contraprestação mensal da quantia de € 615,00.

Vem o recorrente afirmar que a decisão que decretou o divórcio entre as partes (então cônjuges) transitou em julgado a 29-06-2021, já após ter sido interposto recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Évora da decisão proferida em primeira instância a respeito do presente incidente, datada de 04-05-2021. Defendendo que a eficácia da decisão de atribuição provisória da casa de morada de família se reporta unicamente ao período de pendência do divórcio, argumenta que o tribunal a quo deveria ter, na decisão singular ou na subsequente, proferida em conferência, declarado a inutilidade superveniente da lide em decorrência do trânsito em julgado da mencionada decisão que decretou a dissolução do casamento entre as partes.

Considerou, a este respeito, o acórdão recorrido: “O incidente de que tratam os presentes autos é uma decisão sempre provisória, o que significa necessitar, para se cimentar na esfera jurídica das partes, de uma decisão definitiva; por outro lado, a decisão transitada que decretou o divórcio não teve como objeto a atribuição da casa de morada de família, uma vez que, como no caso dos autos, não havendo acordo dos cônjuges quanto a esta questão, pode ser proferida uma decisão provisória, (art° 931°/7 do CPC) por iniciativa das partes ou mesmo do juiz, decisão que deve subsistir até à partilha ou ao trânsito em julgado da referida decisão definitiva de atribuição da casa de morada de família (art° 990° do CPC). O que vale por dizer que o trânsito em julgado da sentença que decretou o divórcio não tem qualquer efeito nos presentes autos.”

Consultados os autos (a que tivemos acesso eletronicamente), constata-se que a requerente, ora recorrida, veio a instaurar o processo de jurisdição voluntária de atribuição de casa de morada de família a que alude o artº. 990º do CPC, tendo sido proferida sentença a 22-04-2022, ainda não transitada em julgado (à data dessa consulta), que decidiu atribuir-lhe o direito de arrendamento do imóvel em discussão no presente incidente (matéria factual essa que se extrai dos pontos 35) a 39) ).

A questão que, assim, se coloca é a de saber se o regime provisório fixado, ao abrigo do citado n.º 7 do artº. 931º do CPC, quanto à utilização da casa de morada de família caduca, ou não, quando ocorre o trânsito em julgado da decisão que, decretando o divórcio, põe termo ao processo?

Tal questão não tem obtido resposta unânime, nem por parte da jurisprudência, nem por parte da doutrina.

No conspecto da jurisprudência do STJ, os acórdãos do STJ de 26/04/2012 (proc. n.º 33/08.9TMBRG.G1.S1), de 27/04/2017 (proc. n.º 273/14.1TBSCR.L1.S1) e de 31/03/2022 (proc. n.º 756/20.4T8SXL.L1.S1), disponíveis em www.dgsi.pt, entendem que não, considerando que o incidente em análise visa a aplicação, no decurso da ação de divórcio, de uma medida provisória, de natureza cautelar, para vigorar até à partilha do património do casal.

Perfilhando idêntico entendimento, o acórdão do STJ de 13/10/2016 (proc. n.º 135/12.7TBPBL-C.C1.S1), disponível em www.dgsi.pt, faz notar que a circunstância de já ter sido definitivamente decretado o divórcio não faz caducar automaticamente os efeitos da decisão judicial de atribuição provisória de casa de morada de família, “protraindo a vigência de tal regime até ao momento da partilha dos bens do casal.”

No mesmo sentido aponta o acórdão do STJ de 17/01/2013 (proc. n.º 2324/07.7TBVCD.P1.S1), disponível em www.dgsi.pt, no qual, muito embora se referindo à vigência do acordo provisório relativo à utilização da casa de morada de família judicialmente homologado e obtido ao abrigo do art.º 1407º, n.º 2, do CPC de 1961 (correspondente ao n.º 2 do artº 931º do nCPC atualmente vigente) – disposição que expressamente previa que a utilização da casa de morada de família deveria vigorar “durante o período de pendência do processo”, – se entendeu que “não existe qualquer base legal para se sustentar uma solução que se traduza na caducidade automática do acordo provisório”, concluindo que se trata de “uma solução que facilmente se compreende, já que nenhum dos ex-cônjuges pode apagar a anterior existência de uma relação jurídica de casamento, vínculo ainda mais perene quando, como ocorre no caso concreto, existam filhos menores, a quem deve ser garantida, sem percalços injustificados, a estabilidade de uma habitação”, defendendo depois, e nessa sequência, que o regime provisório (quanto à utilização da casa de morada de família) acordado na pendência da ação de divórcio não caduca, automaticamente, com o trânsito em julgado da sentença que a decretou o divórcio, devendo perdurar, na produção dos seus efeitos, e caso antes não seja modificado, até que seja proferida sentença em ação instaurada, à luz do então vigente artº. 1413º do derrogado CPC de 61 (e que corresponde ao artº. 990º do atual CPC), por qualquer dos ex-cônjuges com vista à resolução definitiva da questão (vg. neste caso referente à utilização da casa que foi a morada da família) em diferendo.

Em sentido diverso, manifestaram-se os acórdãos do STJ de 20/10/2005 (proc. n.º 05B2152) , de 23/11/2017 (proc. n.º 1448/15.1T8VNG.P2.S2) e de 06/05/2021 (proc. 4905/19.7T8MTS.P1.S1), disponíveis em www.dgsi.pt, que consideraram que a decisão de caráter provisório fixada a respeito da utilização da casa de família deverá tão-só vigorar na pendência da ação de divórcio e até ao trânsito em julgado da sentença que o decrete, observando o último aresto que para que tal regime de utilização da casa de família vigore para lá do trânsito em julgado da sentença que decretou o divórcio terá de ser instaurada a ação de jurisdição voluntária nos termos do artº. 990º do CPC. Mobilizam-se a este respeito e para suportar o entendimento propugnado, as características da tutela cautelar relacionadas com a provisoriedade e com a instrumentalidade da regulação judicial, num procedimento que, não sendo expressamente qualificado pela lei como procedimento cautelar, tem vindo a ser considerado jurisprudencialmente como um procedimento cautelar específico do processo judicial de divórcio.

Também no plano doutrinário não se deteta unanimidade.

Nuno de Salter Cid, embora reconhecendo não estatuir a lei expressamente a sua caducidade automática logo que transite em julgado a decisão que ponha termo ao processo, defende, todavia, que o regime provisório caduca findo o respetivo processo de divórcio, salvo se, entretanto, foi pedida e está pendente a “atribuição da casa”, nos termos do artº. 990º CPC. Segundo o autor, “se esta foi pedida e for decidida (com trânsito em julgado) caduca, obviamente; se foi pedida mas não decidida ainda (o que nunca acontecerá se for aplicável o art. 1778.º-A CC), ou se a decisão não transitou em julgado, deve a meu ver entender-se que não caduca até ser decidida a “atribuição da casa”, com trânsito em julgado.” (in “Sobre a atribuição judicial provisória do direito de utilizar a casa de morada da Família”, revista Julgar, n.º 40, 2020, pág. 59, e nota 2”)

Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira (in “Curso de Direito de Família, Vol. I- Introdução. Direito Matrimonial – pág. 741”), e Almeida Ramião (in “Ob. cit., pág. 84”) pronunciam-se no sentido de que o regime provisório de utilização da casa apenas vigora na pendência do processo do divórcio. (Igualmente Miguel Teixeira de Sousa afirma que o regime provisório se destina a vigorar somente na pendência da ação de divórcio (in “comentário ao acórdão do STJ de 13/10/2016 (proc. n.º 135/12.7TBPBL-C.C1-S1, consultável em https://blogippc.blogspot.com/2017/01/jurisprudencia-541.html?m=1%E2%80%9 D).

Nuno de Lemos Jorge defende que “a providência relativa ao uso da casa de morada de família caduca se não for proposta a ação prevista no artigo 990º do CPC, da qual a dita providência depende, no prazo de 30 dias contados do trânsito em julgado da sentença que decretou o divórcio (artigo 373º, n.º 1 alínea a), do CPC, com as devidas adaptações). Se a ação principal for intentada, a providência subsistirá até ao trânsito em julgado da respetiva sentença.” (in “As providências especiais previstas no artigo 931.º, n.º 7, do Código de Processo Civil — natureza e procedimentos», in AA.VV. (Ana M.ª Carvalho Massena Carreiro, Org.), Direito da Família — Vária, Lisboa, Centro de Estudos Judiciários, 2018, p.49,consultávelemhttps://www.ministeriopublico.pt/sites/default/files/documentos/pdf/eb_direitofamiliavaria2018.pdf).

Perante panóplia de posições divergentes que se deixaram expostas sobre a vexata quaestio acima enunciada, e tendo em vista dar resposta à questão colocada nos presentes autos, quid iuris?

Muito embora reconhecendo que a resposta não se apresenta fácil, ante a inexistência de previsão legal expressa acerca do período de vigência da decisão provisória proferida ao abrigo do n.º 7 do artº. 931º do CPC, propendemos para acolher o entendimento que melhor se coadunará com as especificidades da relação jurídico-familiar e o que mais favorece a estabilidade de uma habitação que, outrora, constituiu o centro de vida da comunidade conjugal e que subsistirá como referência para os filhos do casal dissolvido (se os houver). Esse entendimento é, justamente, o que, na linha do acórdão recorrido, recusa a caducidade automática do regime provisório de atribuição de casa de morada de família, fixado ao abrigo do n.º 7 do artº. 931º do CPC, com o trânsito em julgado da decisão que decretou o divórcio.

Em consequência, julgamos que os efeitos da decisão em causa, que fixou o referido regime provisório, apenas deverão caducar – não existindo entretanto acordo alcançado sobre a matéria pelos (ex)cônjuges - com a partilha dos bens do casal dissolvido, exceto se, entretanto, for intentada a ação, ao abrigo do artº. 990.º do CPC, com vista à atribuição (em definitivo) da casa de morada de família (artº. 1793º do CC) ou à transmissão do direito ao arrendamento sobre a mesma (artº. 1105º do CC), situação em que a providência provisória deverá caducar automaticamente com o trânsito em julgado da decisão proferida nessa ação.

Com efeito, ainda que com o divórcio, e por efeito dele, cessem as relações patrimoniais entre os cônjuges (artº. 1688º do CC), a verdade é que, até à partilha, se mantém a chamada comunhão de mão comum ou propriedade coletiva (neste sentido, vide o acórdão do STJ de 26/04/2012, proc. n.º 33/08.9TMBRG.G1.S1, disponível em www.dgsi.pt), subsistindo o substrato patrimonial autónomo que adveio da celebração do casamento, assim como – não raras vezes – a situação de conflitualidade familiar que, como se deixou antever, constitui, porventura, a principal ratio do procedimento sob escrutínio.

O caráter provisório da medida não se afigura, a nosso ver, incompatível com a conclusão alcançada, já que a vigência do regime interino não deixa de ser temporalmente delimitada – coincidindo tal limite temporal com a data do trânsito em julgado da decisão proferida no âmbito do processo de jurisdição voluntária previsto no artº. 990º do CPC ou com a partilha dos bens do ex-casal.

De resto, o entendimento opostono sentido da caducidade automática da decisão provisória com o trânsito em julgado da sentença de divórcio – levanta assinaláveis dificuldades de ordem prática, criando “um vazio” sobre a forma ou o modo de gerir a situação relativa à utilização da casa da morada que foi da família, enquanto não se proceder à sua partilha ou for proferida decisão definitiva que resolva a situação em diferendo na ação a instaurar (por qualquer dos (ex)cônjuges) à luz do artº. 990º do CPC (numa adjetivação do regime substantivo consagrado no artº. 1793º do CC), potenciando, assim, ainda a conflitualidade entre aqueles, e que, como se viu, constitui uma das pedras de toque que esteve subjacente à estipulação do regime provisório antes fixado e que com ele se quis também evitar. Dificuldades essas que porventura poderão aumentar se o cônjuge beneficiário dessa utilização estiver a pagar por ela (como sucede no caso sub júdice) um renda/contraprestação.

Por outro lado, a nosso ver, razões pragmáticas desaconselham tal solução da caducidade automática do referido regime provisório. Vejamos porquê?

Como decorre da leitura do nº. 7 do citado artº. 931º do CPC, o referido regime provisório pode ser fixado em qualquer altura do processo do divórcio (pelo juiz, quer por iniciativa deste, quer a requerimento de alguma das partes).

Sendo assim, tanto pode ser fixado, no início, como no decurso ou no fim desse processo. Donde que possa ser fixado na própria sentença final que decretou o divórcio ou na data com ela coincidente. E sendo assim, não faria sentido, a nosso ver, que esse regime provisório caducasse logo com o trânsito dessa sentença, pois que tal levaria a que o regime perdurasse apenas durante um curto período de tempo, e sobretudo no caso de não vir a ser interposto recurso da sentença que decretou o divórcio (como sucedeu na situação em apreço, em que ocorreu mesmo renúncia a esse recurso pelas partes). Solução essa que, assim, não faria sentido, à luz da jurisprudência dos interesses e da economia processual.

Diga-se ainda que, e salvo devido respeito por opinião divergente, não pode ir buscar-se ao nº. 2 do citado artº. 931º o fundamento de que o regime provisório (vg. quanto à utilização da casa da morada da família) fixado à luz no n.º 7 do mesmo preceito legal vigora a apenas durante a pendência da ação de divórcio, pois que enquanto naquele nº. 2 se pressupõe que tenha havido acordo das partes (cônjuges) para a fixação (provisória) desse regime, já no aludido nº. 7 o regime provisório fixado à sua luz pressupõe a não existência de acordo para o efeito entre os cônjuges.

Refira-se, ainda, por último, que, como constitui entendimento dominante, o incidente previsto no nº. 7 do citado artº. 931 do CPC, que fixa um regime provisório quanto às matérias neles revistas, não está sujeito, devido às suas especificidades (que se deixaram referenciadas), sujeito ao regime dos procedimentos cautelares comuns, nomeadamente no que concerne às causas de caducidade destes (vg. a prevista na al. a) do nº. 1 do artº. 373º do CPC).

Posto isto, e tendo em conta a aposição adotada sobre a matéria, no caso em apreciação, não obstante ter transitado em julgado a sentença que decretou o divórcio entre as partes, considerando que ainda não transitou em julgado a sentença, proferida a 22-04-2022, na ação intentada ao abrigo do artº. 990.º do CPC (apenso C) – que decidiu atribuir à recorrida o direito de arrendamento relativo à casa de morada de família –, somos levados a concluir não se ter verificado ainda a caducidade dos efeitos da decisão que, nos termos do incidente proferido à luz do artº. 931º n.º 7 do CPC, atribuiu provisoriamente aquele direito de arrendamento à requerente, ora recorrida, sobre a casa foi a morada da família.

E daí que o presente recurso improceda, mantendo-se a decisão recorrida.


***

III- Decisão



Assim, em face do que se deixou exposto, acorda-se em negar provimento à revista (excecional), confirmando-se a decisão do acórdão recorrido.

Custas do recurso pelo recorrente (artº. 527º, nºs. 1 e 2, do CPC).

Lisboa, 2023/01/31


Isaías Pádua (Relator)

Manuel Aguiar Pereira

Maria Clara Sottomayor