Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 1.ª SECÇÃO | ||
Relator: | JORGE LEAL | ||
Descritores: | INEPTIDÃO DA PETIÇÃO INICIAL PEDIDO CAUSA DE PEDIR AÇÃO POPULAR PETIÇÃO DEFICIENTE DESPACHO DE APERFEIÇOAMENTO INTERESSES DIFUSOS PEDIDO GENÉRICO INDEFERIMENTO LIMINAR PETIÇÃO INICIAL | ||
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Data do Acordão: | 07/09/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | CONCEDIDA A REVISTA | ||
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Sumário : |
I. Enferma de ineptidão a petição inicial onde não constam a causa de pedir e o pedido. II. Não enferma de ineptidão, por falta de causa se pedir, a petição inicial de ação popular que contém a alegação de que a 2.ª R. fabricou, nos três anos anteriores à propositura da ação, compressas com uma composição de pior qualidade da que é indicada nas respetivas embalagens, e que, nesses três anos, a 1.ª R. comercializou essas compressas nos seus estabelecimentos, de denominação “Wells”, localizados no território nacional. Assim, as RR. lesaram os consumidores, isto é, as pessoas que adquiriram essas embalagens, as quais terão pago um preço superior àqueloutro que caberia, atendendo à efetiva composição e qualidade dos produtos em questão. III. Não enferma de ineptidão, por falta de petitório, a petição inicial na qual, na sequência da alegação indicada em II, a A. formulou o pedido de condenação das RR. “a indemnizarem integralmente os autores populares pelos danos que lhes foram causados pelas práticas ilícitas tidas nos últimos três anos à entrada da presente ação em juízo e no que respeita ao preço pago pelas ditas compressas, seja a título doloso ou negligente, em montante global: 1. a determinar nos termos do artigo 609 (2), do CPC; 2. acrescido de juros vencidos e que se vencerem, à taxa legal em vigor a cada momento, contados desde a data em que as práticas consideradas ilícitas foram praticadas até ao seu integral pagamento, tendo como base para o cálculo dos juros os valores que as rés forem condenadas a indemnizar os autores populares pelo preço; 3. e com método para determinação e distribuição de indemnizações individuais determinado pelo tribunal”. | ||
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Decisão Texto Integral: |
Acordam os juízes no Supremo Tribunal de Justiça I. RELATÓRIO 1. Citizens´ Voice – Consumer Advocacy Association, autora na ação popular intentada contra Pharmacontinente – Saúde e Higiene, S.A. e Textil Planas Oliverias Portugal, Unipessoal, S.A., inconformada com o despacho que julgou a petição inicial inepta e, consequentemente, indeferiu liminarmente a petição inicial, interpôs recurso de revista, per saltum, para o Supremo Tribunal de Justiça, apresentando alegação em que formulou as seguintes conclusões: “1. Os autores populares, ora recorrentes, notificados do douto despacho proferido nos presentes autos e não se conformando com o mesmo, vêm interpor RECURSO DE REVISTA PER SALTUM, sobre a matéria de direito, nos termos e ao abrigo nos artigos 627, 629 (1), 631, 637, 639, 672, 675, 678 (1) aplicável ex vi artigo 644 (1, a) e 678 (3), todos do CPC, diretamente para este COLENDO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA. 2. O tribunal a quo, ponderada toda a matéria de facto e de direito, decidiu indeferir liminarmente a petição inicial, por a considerar inepta. 3. Ressalvado o devido respeito, que é o maior, o tribunal recorrido decidiu sem o acerto e ponderação que se lhe exigia o caso sub judice. 4. As questões a resolver circunscrevem-se a saber se a petição inicial é inepta. 5. Nesta ação os autores acusam as rés de enganar os consumidores e de praticar concorrência desleal. A controvérsia central gira em torno das compressas de tecido não tecido comercializadas pela ré 1 e produzidas pela ré 2, que terão sido rotuladas falsamente quanto à composição do seu material. Alegam os autores que, contrariamente ao indicado no rótulo, as compressas contêm muito mais poliéster do que o declarado (aproximadamente 50% em vez de 30%), comprometendo a qualidade do produto. Isso resultou em prejuízos aos consumidores, que acreditavam estar a comprar um produto de composição e qualidade superiores e por isso dispostos a pagar mais. Tal comportamento das rés consubstancia, no entendimento dos autores, em publicidade enganosa, fraude contra a qualidade e composição dos produtos e práticas comerciais desleais. 6. O pedido visa a declaração que as rés tiveram os comportamentos descritos, seja a título doloso ou negligente, e que com esses comportamentos lesaram os consumidores, provocando-lhe diversos danos (preço que cobraram por compressas fraudulentas, danos morais e danos com distorção da concorrência que em última linha se refletem nos consumidores) e com isso que os consumidores, autores populares, sejam indemnizados por esses danos. 7. A sentença entende que a petição é inepta, essencialmente, porque no processo não conta a lista dos estabelecimentos da ré com a insígnia “wells” onde esta comercializou as ditas compressas e nem as datas exatas em que as mesmas foram vendidas aos consumidores. 8. Pese embora os autores populares tenham identificado na petição popular que a ré 1 vendeu as ditas compressas fraudulentas em todos os seus estabelecimentos, em Portugal, que ostentam a insina “Well” e onde o sujeito passivo de IVA em relação aos consumidores é a ré 1 – tudo estabelecimentos que a ré 1 bem conhece, pois são factos próprios, pelo que a falta da lista dos mesmos nunca impede a sua defesa. 9. Assim como os autores identificaram temporalmente o período em que tal comportamento se revelou: três últimos anos – período em que a ré 1 sabe perfeitamente que comercializou tais compressas, podendo, inclusivamente rebater essa afirmação e balizar, no tempo, se assim o entender, a venda dessas compressas. 10. Assim, entende os autores que a petição inicial apresentada pelos recorrentes cumpriu rigorosamente com o disposto no artigo 552 (1, d), do CPC, ao expor os factos essenciais que constituem a causa de pedir e as razões de direito que servem de fundamento à ação. 11. Contrariamente ao entendimento do tribunal a quo, os recorrentes não se limitaram a invocar um direito subjetivo e sem estribo numa causa perfeitamente identificável e possível de compreender e eventualmente combater pelas rés. Os autores alegaram de forma detalhada a relação material subjacente e os factos constitutivos que fundamentam o seu direito. 12. Seguindo as lições de Miguel Teixeira de Sousa e Mariana França Gouveia, os recorrentes construíram a causa de pedir com base em factos que se subsumem a normas jurídicas específicas, demonstrando a existência de uma relação jurídica material que confere sustentação à pretensão. 13. A ação proposta visa obter uma declaração judicial que reconheça determinados comportamentos da ré, perfeitamente depurados na petição inicial, que violaram as normas de direito nacional e da União Europeia vertidos no pedido e que essa violação causou danos graves aos interesses económicos e sociais dos autores populares, particularmente enquanto consumidores, pedindo, por fim, que os mesmo sejam indemnizados por esses danos. 14. Os factos essenciais relatados na petição inicial, especificamente no seu §3, são claros e precisos, relatando a venda pela ré 1 de compressas TNT fraudulentas, o que constitui o núcleo da causa de pedir e é suficiente para a compreensão e a delimitação do objeto litigioso. 15. A exceção de ineptidão da petição inicial não deveria ter sido julgada procedente, uma vez que os factos alegados pelos recorrentes são inteligíveis, específicos e permitem a identificação clara da pretensão e das normas jurídicas violadas. 16. A petição inicial não apresenta a obscuridade ou ambiguidade alegada pela decisão recorrida. Pelo contrário, detalha de forma adequada os factos e as normas jurídicas aplicáveis, permitindo um entendimento claro da causa de pedir e do pedido. 17. A jurisprudência e a doutrina mais autorizada supra invocada, confirmam a adequação da petição inicial apresentada pelos recorrentes, que segue a teoria da substanciação adotada pelo legislador português. 18. Assim, a sentença recorrida, ao considerar a petição inicial inepta, desconsiderou a substancialidade dos factos alegados e a clareza com que estes foram expostos, contrariando a jurisprudência (tanto de Venerandos Tribunais da Relação como do Colendo Supremo Tribunal de Justiça) e a doutrina dominantes, nomeadamente já proferida em processos com uma estrutura e pedidos semelhantes a estes. 19. Destarte, pugna-se pela procedência do recurso in totum”. A recorrente terminou pedindo que o recurso fosse julgado procedente e, consequentemente, a decisão recorrida fosse revogada e se mandasse baixar a ação à primeira instância, para aí prosseguir os seus termos. 2. O Ministério Público apresentou contra-alegações, rematando com as seguintes conclusões: 1. A A., ainda que ao abrigo do exercício da faculdade de acção popular, ao dirigir uma pretensão ao tribunal, está obrigada a expor a situação de facto na qual se fundamenta para reclamar a titularidade de um direito que entende ter sido violado e que pretende seja reconhecido. – artº 552, nº 1 do C.P.C. 2. Os factos essenciais de que depende a procedência da pretensão da A. não estão perfeita e suficientemente concretizados na petição inicial apresentada. 3. A alegação da matéria de facto descrita na petição inicial não é suficiente para sustentar os pedidos formulados, não tendo sido alegadas as circunstâncias espácio-temporais de venda das compressas aos consumidores ou sequer o respectivo preço de venda ao consumidor. 4. Não é um facto público e notório quais são os estabelecimentos em que ocorreu a venda das compressas, não bastando a genérica alegação que a ré 1 dedica-se ao comércio a retalho em estabelecimentos com a insígnia “Wells”. 5. Para sustentar os pedidos formulados não basta alegar genericamente o fabrico de compressas pela ré 2 que têm uma composição muito diferente da que é ostentada no rótulo e concluir de imediato que como tal há uma vantagem imediata sobre os consumidores ao ser-lhes cobrado um preço por um produto de inferior qualidade daquela que está declarada no rótulo, quando nem sequer é alegado qual o preço cobrado pelas compressas vendidas. 6. A insuficiência de factos alegados determina a conclusão de ser absolutamente improvável a procedência da acção e, assim, sendo impunha-se a necessidade de indeferimento liminar, nos termos do artº 13 da Lei de Ação Popular. Pelo exposto, deve o recurso ser julgado improcedente e a douta decisão recorrida que rejeitou liminarmente a petição inicial por ineptidão integralmente mantida nos seus precisos termos”. 3. Foram colhidos os vistos legais. II. FUNDAMENTAÇÃO 1. O objeto do recurso, tal como delimitado pelas respetivas conclusões, consiste em saber se, como se ajuizou na decisão recorrida, a petição inicial é inepta, por omissão de causa de pedir e de petitório adequado. 2. Levar-se-á em consideração o seguinte Factualismo processual 1. Na petição inicial a A. alegou, em síntese, o seguinte: a. A A. é uma associação que tem como fim a defesa dos consumidores na União Europeia, seus associados e consumidores em geral; b. A presente ação assenta na violação dos direitos dos consumidores e em práticas comerciais desleais “que se manifestam do seguinte modo: 1. a ré 1 dedica-se ao comércio a retalho em estabelecimentos com a insígnia “Wells”; 2. a ré 1 distribui as compressas de tecido não tecido 10x10, produzidas pela ré 2, e que são vendidas nos seus estabelecimentos comerciais; 3. a ré 2 dedica-se à fabricação e comercialização de outras preparações e de dispositivos médicos, nomeadamente, mas não exclusivamente, compressas de tecido não tecido, as quais vende à ré 1; 4. as supra aludidas compressas, fabricada pela ré 2, distribuídas pela ré 1 e vendidas por esta aos consumidores, ostentam um rótulo onde indicam ter uma composição de 30 % de viscose e 70 % de poliéster e serem um dispositivo médico (“MD”) 5. as retro referidas compressas têm uma composição muito diferente daquela que vem declarada no seu rótulo; 6. alguns lotes das aludidas compressas chegam a ter ~61,7 % de viscose em vez de 39,3 % de poliéster. 7. assim, os consumidores, os aqui autores populares, quando compram as aludidas compressas, convencidos que estão a comprar uma composição de 70% de viscose e 30 % de poliéster, tal como declarado expressamente no rótulo, estão na realidade a comprar um produto diferente; 8. sendo que o produto efetivamente adquirido pelos consumidores é de qualidade inferior ao declarado no seu rótulo; 9. porquanto a viscose confere mais suavidade, melhor absorção de humidade e capacidade de imitar o toque de tecidos naturais, como por exemplo o algodão e a seda, sendo o poliéster menos absorvente do que a viscose; 10. devido à boa absorção da humidade, a viscose é essencial na composição das compressas de tecido não tecido, onde a absorção de líquidos corporais é crucial; 11. para além de que a sua suavidade também é benéfica, minimizando a irritação da pele – isto ao contrário do poliéster; 12. a viscose é um produto mais caro do que o poliéster, devido ao seu processo de fabricação mais complexo e à sua perceção como um tecido mais próximo dos naturais; 13. o poliéster é um produto mais barato do que a viscose por ser mais fácil de produzir em massa, uma vez que é um produto totalmente sintético e de grande abundância; 14.são motivadas pelas diferenças de custo na produção e aquisição das compressas que as rés adotam o comportamento enganosa para com os consumidores e anteriormente descrito; 15. obtendo uma vantagem imediata sobre os consumidores, ao cobrarem um preço por um produto de inferior qualidade daquela que está declarada no rótulo; 16. e obtendo uma vantagem sobre a concorrência, que não enganando os consumidores e não cometendo uma fraude contra a qualidade e composição dos produtos, pratica preços mais baixos ou aumenta as suas margens de lucro”; (…) 21º. A ré 2 desenvolve a sua atividade na indústria da fabricação de algodão hidrófilo, produzindo, nomeadamente, produtos designados como P..., para marcas próprias das maiores cadeias de distribuição nacional e internacional nas áreas da saúde e beleza, incluindo as compressas supra referidas que são distribuídas e vendidas pela ré 1 e vendidas por esta aos consumidores finais. 22º. As ditas compressas são produzidas pela ré 2, nas suas instalações, em ..., e de acordo com as instruções da ré 1. 23º. Sendo que o ilícito, local de produção das ditas compressas, ocorre nas instalações da ré 2, em concreto na Rua ..., distrito de .... 2. A A. formulou o seguinte petitório: “Nestes termos e nos demais de direito, que Vossa Excelência doutamente suprirá, deve a presente ação ser julgada procedente, por provada, e ser declarado que as rés: A. tiveram o comportamento descrito no §3 supra; B. cometeram uma violação, ainda em curso, através de uma prática única e continuada, dos interesses identificados, causando danos diretamente aos consumidores que adquiriram, em Portugal, quaisquer compressas tecido não tecido, produzidas pela ré 2, distribuídas e comercializadas pela ré 1, com a rotulagem a indicar uma composição de 70 % viscose e 30 % poliéster, quando essas compressas tinha uma composição diferente e qualidade inferior; C. violaram qualquer uma das seguintes normas: 1. artigos 6, 10 e 11 (1) do decreto lei 330/90; 2. artigos 4, 5 (1), 6 (b), 7 (1, b), 9 (1, a), do decreto lei 57/2008; 3. artigos 3 (d) (e) (f), 7 (4) e 8 (1, a, c, d), da lei 24/96; 4. artigo 311 (e) do decreto lei 110/2018; 5. artigos 6 (1, d) e 7 (1) (2) (3, c), da diretiva 2005/29/CE; 6. artigo 3 (b), da diretiva 2006/114/CE; e 7. artigo 4 (1), da diretiva 98/6/CE. D. publicitaram enganosamente a composição das compressas de tecido não tecido e supra melhor identificadas; E. tiveram o comportamento supra descrito em qualquer um dos pedidos anteriores e que o mesmo é ilícito e 1. doloso; ou, pelo menos, 2. grosseiramente negligente; F. agiram com culpa e consciência da ilicitude no que respeita aos factos supra referidos, com os autores populares; G. com a totalidade ou parte desses comportamentos lesaram gravemente os interesses dos autores populares, nomeadamente os seus interesses económicos e sociais, designadamente os seus direitos enquanto consumidores; H. causaram e causam danos aos interesses difusos de proteção do consumo de bens e serviços; I. que tal comportamento ocorreu nos últimos três anos a contar da entrada da presente ação; Deve ainda, J. ser declarado que a ré 2: 1. violou o artigo 23 (1, b) do decreto lei 28/84; 2. cometeu uma fraude sobre mercadorias. e em consequência, de qualquer um dos pedidos supra, devem as rés ser condenadas a: K. a indemnizarem integralmente os autores populares pelos danos que lhes foram causados pelas práticas ilícitas tidas nos últimos três anos à entrada da presente ação em juízo e no que respeita ao preço pago pelas ditas compressas, seja a titulo doloso ou negligente, em montante global: 1. a determinar nos termos do artigo 609 (2), do CPC; 2. acrescido de juros vencidos e que se vencerem, à taxa legal em vigor a cada momento, contados desde a data em que as práticas consideradas ilícitas foram praticadas até ao seu integral pagamento, tendo como base para o cálculo dos juros os valores que as rés forem condenadas a indemnizar os autores populares pelo preço; 3. e com método para determinação e distribuição de indemnizações individuais determinado pelo tribunal; L. subsidiariamente ao ponto anterior, serem as rés condenadas a indemnizarem integralmente os autores populares pelos danos que resultou do preço pago pelas ditas compressas, causados pelas práticas ilícitas tidas nos últimos três anos à entrada da presente ação em juízo, em montante global: 1. a fixar por equidade, nos termos do artigo 496 (1) e (4) do CC; 2. acrescido de juros vencidos e que se vencerem, à taxa legal em vigor a cada momento, contados desde a data em que as práticas consideradas ilícitas foram praticadas até ao seu integral pagamento, tendo como base para o cálculo dos juros os valores que as rés forem condenadas a indemnizar os autores populares pelo sobrepreço; 3. e com método para determinação e distribuição de indemnizações individuais determinado pelo tribunal; M. serem as rés condenadas a indemnizarem integralmente os autores populares pelos danos morais causados pelas práticas ilícitas tidas nos últimos três anos à entrada da presente ação em juízo, em montante global: 1. a fixar por equidade, nos termos do artigo 496 (1) e (4), do CC, mas nunca inferior a 50 euros por autor popular; 2. acrescido de juros vencidos e que se vencerem, à taxa legal em vigor a cada momento, contados desde a data em que as práticas consideradas ilícitas foram praticadas até ao seu integral pagamento, tendo como base para o cálculo dos juros os valores que as rés forem condenadas a indemnizar os autores populares pelos danos morais; 3. e com método para determinação e distribuição de indemnizações individuais determinado pelo tribunal; N. serem as rés condenadas a indemnizar integralmente os autores populares pelos danos de distorção da equidade das condições de concorrência, causados pelas práticas ilícitas tidas nos últimos três anos à entrada da presente ação em juízo, e em montante global: 1. nos termos do artigo 9 (2), da lei 23/2018, ou por outra medida, justa e equitativa, que o tribunal considere adequada, mas nunca menos que 50 euros por autor popular; 2. acrescido de juros vencidos e que se vencerem, à taxa legal em vigor a cada momento, contados desde a data em que as práticas consideradas ilícitas foram praticadas até ao seu integral pagamento, tendo como base para o cálculo dos juros os valores que as rés forem condenadas a indemnizar os autores populares pelos danos de distorção da equidade das condições de concorrência; 3. e com método para determinação e distribuição de indemnizações individuais determinado pelo tribunal; O. serem as rés condenadas a pagar a totalidade dos encargos, honorários e demais despesas em que incorrer a representante da classe por força da ação, nomeadamente, mas não exclusivamente, custos dos serviços com os testes à composição dos produtos, com os honorários advocatícios, pareceres jurídicos de professores universitários, pareceres e assessoria necessária à interpretação da vária matéria técnica [tanto ao abrigo do artigo 480 (3), do CPC, como fora do mesmo preceito], que compreende uma área de conhecimento jurídico-económico complexa e que importa traduzir e transmitir com a precisão de quem domina a especialidade em causa e em termos que sejam acessíveis para os autores e seu mandatário, de modo a que possam assim (e só assim) exercer eficazmente os seus direitos, nomeadamente de contraditório, e assim como os custos com o financiamento do litígio (litigation funding) que venha a ser obtido pela representante da classe nos termos do artigo 16 (6) e (7), do decreto lei 114- A/2023.; P. porque o artigo 22 (2), da lei 83/95 e o artigo 16 (2), do decreto lei 114- A/2023, estatui, de forma inequívoca e taxativa, que deve ser fixada uma indemnização global pela violação de interesses dos titulares ao individualmente identificados, e o artigo 16 (4), de que deve ser indica a entidade responsável pela receção, gestão e pagamento das indemnizações devidas a consumidores lesados não individualmente identificados, podendo ser designados para o efeito, nomeadamente, o demandante ou um ou vários consumidores lesados identificados na ação, requer-se que declare que CITIZENS’ VOICE – CONSUMER ADVOCACY ASSOCIATION, agindo como representante da classe neste processo e em representação dos restantes autores populares, têm legitimidade para exigir o pagamento das supras aludidas indemnizações, incluindo requerer a liquidação judicial nos termos do artigo 609 (2), do CPC e, caso a sentença não seja voluntariamente cumprida, executar a mesma, sem prejuízo do requerido nos pontos seguintes. subsidiariamente e nos termos do §4 (k): Q. o comportamento das rés, tido com todos os autores populares e descritos no §3, subsidiariamente, para o caso de não se aplicar nenhum dos casos supra, deve ser considerado mediante o instituto do enriquecimento sem causa e os autores populares indemnizados pelo preço cobrado, tal como sustentando em § 4 (k) supra. em qualquer caso e nos termos do §4 (l) deve: R. o comportamento da ré, tido com todos os autores populares e descritos no §3, sempre deve ser considerado com abuso de direito e, em consequência, paralisado e os autores populares indemnizados por todos os danos que tal comportamento lhes causou; requer-se ainda que Vossa Excelência: S. a condenação das rés a por termo aos comportamentos ilícitos em causa, abstendo-se de divulgar informações ou publicidade nos rótulos das embalagens das compressas que não estejam de acordo com a sua real composição e sejam enganadoras e com o aviso da cominação em multa de € 500.000 (quinhentos mil euros) por dia de atraso no cumprimento da sentença a esse respeito; T. a condenação da ré 1 a realizar a retoma das embalagens das ditas compressas para substituir os rótulos com informação verdadeira, nomeadamente passando a ostentar a sua real composição ou simplesmente as tirar do mercado e com o aviso da cominação em multa de € 100.000 (cem mil euros) por dia de atraso no cumprimento da sentença a esse respeito. requer-se, por fim, que Vossa Excelência: U. decida relativamente à responsabilidade civil subjetiva conforme § 14 infra, apesar de tal decorrer expressamente da lei 83/95, sem necessidade de entrar no pedido; V. decida relativamente ao recebimento e distribuição da indemnização global, apesar de tal decorrer expressamente da lei 83/95, sem necessidade de entrar no pedido; W. seja a decisão transitada em julgado comunicada aos consumidores, por extrato, a expensas da parte vencida e sob pena de desobediência, com menção do trânsito em julgado, no sítio de internet das rés e em dois jornais presumivelmente lidos pelo universo dos interessados no seu conhecimento, determinados pelo tribunal na decisão e no prazo indicado por este, o qual poderá ainda determinar que a publicação se faça por extrato dos seus aspetos essenciais, quando a sua extensão desaconselhar a publicação por inteiro, apesar de tal decorrer expressamente do artigo 17, do decreto lei 114-A, 2023, sem necessidade de entrar no pedido, e com o aviso da cominação em multa de € 100.000 (cem mil euros) por dia de atraso no cumprimento da sentença a esse respeito; X. declare os meios a utilizar para a divulgação aos consumidores representados da existência de uma indemnização, a que têm direito, e o modo de a reclamarem, identificando, designadamente: 1. o pagamento direto pela ré 1 aos consumidores representados que ainda sejam seus clientes e sejam identificáveis por via das reclamações apresentadas; 2. a informação direta pela ré 1 aos consumidores representados através dos canais com que aquele normalmente comunica com os seus clientes, desde que seja em suporte duradouro, incluindo um aviso em fatura, correio postal, correio eletrónico ou por mensagem telefónica escrita, repetindo essa informação em mais do que um ciclo mensal de faturação; 3. a utilização de uma ou mais plataformas eletrónicas de divulgação e distribuição de indemnizações globais, de natureza privada ou pública; 4. a informação aos meios de comunicação social, para além da publicação da sentença já supra requerida, e redes sociais. Y. declare que a representante da classe tem legitimidade para representar os consumidores lesados na cobrança das quantias que as rés venham a ser condenadas, nomeadamente, mas não exclusivamente, por intermédio da liquidação judicial das quantias e execução judicial de sentença; Z. declare, sem prejuízo do pedido imediatamente anterior, que as rés devem proceder ao pagamento da indemnização global a favor dos consumidores lesados diretamente à entidade designada pelo tribunal para proceder à administração da mesma, fixando uma sanção pecuniária compulsória adequada, mas nunca inferior a € 100.000 (cem mil euros) por cada dia de incumprimento após o trânsito em julgado de sentença que condene as rés nesse pagamento; AA. declare uma remuneração, com uma taxa anual de 5 % sobre o montante total da indemnização global administrada, mas nunca inferior a € 100.000 (cem mil euros), a favor da entidade que o tribunal designar para administrar as quantias que a ré for condenada a pagar, com exceção desse pagamento à aqui representante da classe CITIZENS’ VOICE – CONSUMER ADVOCACY ASSOCIATION, a qual prescinde de tal pagamento caso seja esta a entidade designada para esse feito; BB. declare a representante da classe isenta de custas [cf. artigo 4 (1, b, f) e (5) do decreto-lei 34/2008]. CC. condene a ré em custas. 3. Em 29.01.2024 foi proferido o seguinte despacho: “Antes do mais, atento o disposto no art.º 13.º da Lei n.º 83/95, de 31.08 (com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 214-G/2015, de 02/10) - fase de admissão liminar da petição inicial -, e atenta a intervenção obrigatória do Ministério Público em ações desta natureza, abra-se vista nos autos à Digna Procuradora da República, para promover o que tiver por conveniente quanto ao prosseguimento da presente ação (entre o mais que for entendido conveniente, a respeito do âmbito da citação). Notifique.” 4. Ao que o Ministério Público deduziu a seguinte promoção: “O Ministério Público nesta Instância Central Cível ao tomar conhecimento da presente acção, e não sendo manifestamente improvável a procedência do pedido, declara que pretende exercer a legitimidade activa, os poderes de representação e intervenção processual que lhe são conferidos por lei, nos artº15, nº1 e 16 da Lei 83/95 de 31-8. * Resulta alegado na petição inicial: “8º. A presente ação popular para defesa de interesses difusos e individuais homogéneos, intentada pela representante da classe supra identificada e demais autores populares, é uma ação de defesa dos direitos dos consumidores, que assenta na violação dos direitos destes e em práticas comerciais desleais que se manifestam do seguinte modo: 1. a ré 1 dedica-se ao comércio a retalho em estabelecimentos com a insígnia “Wells”; 2. a ré 1 distribui as compressas de tecido não tecido 10x10, produzidas pela ré 2, e que são vendidas nos seus estabelecimentos comerciais; 3. a ré 2 dedica-se à fabricação e comercialização de outras preparações e de dispositivos médicos, nomeadamente, mas não exclusivamente, compressas de tecido não tecido, as quais vende à ré 1; 4. as supra aludidas compressas, fabricada pela ré 2, distribuídas pela ré 1 e vendidas por esta aos consumidores, ostentam um rótulo onde indicam ter uma composição de 30 % de viscose e 70 % de poliéster e serem um dispositivo médico (“MD”) (…)”. Nos termos do artº590.º, n.º 4, do CPC, deve o juiz convidar as partes a aperfeiçoar os seus articulados quando estes revelem insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada. Considerando a futura necessidade de citação dos consumidores que tenham adquirido tais bens, importando saber se estão em causa interesses gerais ou geograficamente localizados, pr. que, oportunamente, se convide a A. ao aperfeiçoamento da petição inicial, no sentido de ser esclarecida a localização dos estabelecimentos comerciais da 1ª Ré onde aqueles foram vendidos”. 5. Em 08.02.2024 foi proferido o seguinte despacho: “Por se concordar com os fundamentos expostos pelo MP, diligencie-se em conformidade. D.N. * Após, dê-se conhecimento do que vier a ser introduzido ao MP para se pronunciar, querendo.” 6. A A. respondeu nos termos que, na parte pertinente, aqui se transcrevem: “Na petição inicial estão expostos os factos essenciais que constituem a causa de pedir e as razões de direito que servem de fundamentação à ação. Na mesma consta que a ré PHARMACONTINENTE - SAÚDE E HIGIENE, S.A comercializa as ditas compressa nos seus vários estabelecimentos comerciais, os quais, como é público e notório estão espalhados por todo o país não necessitando de alegação ou prova [cf. artigo 412 (1) do CPC]. Destarte, não se pode considerar que a petição inicial seja de alguma forma inepta, pelo que não se impõe qualquer correção ou aperfeiçoamento da mesma. Sem prejuízo, sempre se dirá que a aferição do tipo de interesses em causa (gerais ou geograficamente localizados) não depende do local ou locais onde as ditas compressas possam ter sido comercializadas. Uma vez que, em causa, estão todos os consumidores–clientes da ré PHARMACONTINENTE - SAÙDE E HIGIENE, S.A que sejam residentes em Portugal. Tal como consta explicitamente na petição inicial. Assim, qualquer consumidor residente em Portugal, independentemente do seu local de residência, é um potencial cliente da PHARMACONTINENTE - SAÙDE E HIGIENE, S.A, nomeadamente quando faça as suas compras fora da sua localidade ou residência, seja em férias, passeio ou trabalho. Tal significa, de forma claríssima, que todos os residentes em Portugal são potenciais titulares dos interesses em causa”. 7. Em 16.02.2024 o Ministério Público apresentou a seguinte promoção: “A presente acção popular foi instaurada por Citizens Voice – Consumer Advocacy Association contra as RR. Pharmacontinente Saúde e Higiene, S.A. e Textil Planas Olivera, Unipessoal, Ldª e peticiona a responsabilização das demandadas pela prática de factos lesivos dos consumidores e a sua condenação a indemnizar os Autores populares pelos danos por si sofridos em consequência de actos praticados por aquelas. Concretiza a A. tais factos do seguinte modo, como resulta do artº8 da petição inicial: 1. a ré 1 dedica-se ao comércio a retalho em estabelecimentos com a insígnia “Wells”; 2. a ré 1 distribui as compressas de tecido não tecido 10x10, produzidas pela ré 2, e que são vendidas nos seus estabelecimentos comerciais; 3. a ré 2 dedica-se à fabricação e comercialização de outras preparações e de dispositivos médicos, nomeadamente, mas não exclusivamente, compressas de tecido não tecido, as quais vende à ré 1; 4. as supra aludidas compressas, fabricada pela ré 2, distribuídas pela ré 1 e vendidas por esta aos consumidores, ostentam um rótulo onde indicam ter uma composição de 30 % de viscose e 70 % de poliéster e serem um dispositivo médico (“MD”); 5. as retro referidas compressas têm uma composição muito diferente daquela que vem declarada no seu rótulo” Defende a A. que na petição inicial estão expostos os factos essenciais que constituem a causa de pedir e as razões de direito que servem de fundamentação à acção e que não se impõe qualquer correcção ou aperfeiçoamento da mesma. Não concretiza a A. em que concretos estabelecimentos comerciais da Ré 1 foram alegadamente vendidas as compressas de tecido produzidas pela Ré 2 não se aceitando que seja suficiente afirmar que tal ocorreu nos seus vários estabelecimentos comerciais espalhados pelo país nem que é um facto público e notório quais são esses estabelecimentos e onde se situam. Igualmente carece a petição inicial da alegação das datas em que tais vendas ocorreram, pelo que se afigura inviável a pretensão deduzida em juízo, não devendo assim prosseguir com despacho liminar de citação.” 8. Em 02.3.2024 foi proferido o despacho recorrido, do qual se transcrevem as partes mais relevantes: “Da admissibilidade liminar da p.i em juízo: I. Em sede preliminar, veio o Ministério Público pugnar pelo indeferimento liminar da p.i., por ineptidão desta. Para tanto, alega que o articulado carece ab initio e continua a carecer de factos – uma vez que a Autora não respondeu ao convite ao seu aperfeiçoamento –, como a identificação de locais e datas das alegadas vendas, essenciais à apreciação do mérito do peticionado. A Autora fora convidada a aperfeiçoar o seu articulado, tendo optado por não o fazer (ref.ª 15729236). II. Vejamos. Dispõe o art.º 13.º da Lei da Ação Popular (LAP) que «a petição deve ser indeferida quando o julgador entenda que é manifestamente improvável a procedência do pedido, ouvido o MP e feitas as preliminares averiguações que o julgador tenha por justificadas ou que o autor ou o Ministério Público requeiram.» O despacho de indeferimento liminar da petição, por manifesta improcedência do pedido, deve ser proferido se não houver desenvolvimento possível da factualidade articulada que viabilize ou possa viabilizar o pedido, em termos objetivos e claros. Relativamente ao pedido, conforme se lê da p.i., foi o mesmo assim formulado: (…) Para tanto, alegou, conforme se lê no art.º 8.º da petição inicial, que: (…) Perante tudo isto, defende a Autora que na petição inicial estão expostos os factos essenciais que constituem a causa de pedir e as razões de direito que servem de fundamentação à ação e que não se impõe qualquer correcção ou aperfeiçoamento da mesma. Porém, como dá nota o Ministério Público quanto à causa de pedir, a Autora não concretiza em que concretos estabelecimentos ter-se-ão desenvolvido as vendas que diz serem ilícitas e danosas, nem os momentos em que isso foi acontecendo, ainda que balizando – por razões que se inferem de prescrição do direito – até há 3 anos atrás. Primeiramente, comecemos pela importância processual do pedido e seus efeitos processuais. A decisão de ineptidão da petição inicial pode ter fundamento na ausência de qualquer pedido concreto e determinado que pudesse vir a ser apreciado pelo Tribunal, isto é, pode haver uma verdadeira falta de indicação do pedido (cfr. art. 186.º, n.º 1 e n.º 2, alínea a), do CPC). Diz-se inepta a petição quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir, quando ocorra contradição entre o pedido e a causa de pedir ou quando se cumulem causas de pedir ou pedidos substancialmente incompatíveis (art. 186.º, n.ºs 1 e 2 do CPC). Quanto ao pedido, dúvidas não existem de que o mesmo é um elemento essencial da petição inicial, o que faz com que a sua falta ou ininteligibilidade torne a petição inepta e que este vício acarrete a nulidade de todo o processo e a absolvição do réu da instância (arts. 186.º, n.º 1 e n.º 2, alínea a), e 278.º, n.º 1, alínea b), do CPC). Daí que se exija que na petição inicial «o autor concretize a providência que pretende ver decretada pelo tribunal, de modo a que este não fique com dúvidas acerca do efeito jurídico que ele visa obter com a ação, isto é, de modo a que não se veja impossibilitado de decidir por ignorar o que o autor realmente pretende», aí se salientando que, «como é óbvio, os pedidos vagos e imprecisos não satisfazem aquela exigência», o mesmo sucedendo quanto à admissibilidade de pedidos genéricos, como decorria do disposto no n.º 1 do art. 471.º do CPC (correspondente ao actual art. 556.º), nos termos do qual a formulação de tais pedidos só é permitida: “a) Quando o objecto mediato da acção seja uma universalidade, de facto ou de direito; b) Quando não seja ainda possível determinar, de modo definitivo, as consequência do facto ilícito, ou o lesado pretenda usar da faculdade que lhe confere o artigo 659.º do Código civil; ou c) Quando a fixação do quantitativo esteja dependente de prestação de contas ou de outro acto que deva ser praticado pelo réu”.» (cfr. Ac. STJ de 22.03.2007, Proc. n.º 06S3961, disponível para consulta em www.dgsi.pt). Prescreve o art.º 552º n.º1 al. e) do CPC que, na petição, com que propõe a ação, deve o autor formular o pedido. Como ensina Abrantes Geraldes, a «noção de “pedido” (…) corresponde ao efeito jurídico que o autor pretende retirar da acção proposta, traduzindo-se na providência que o autor solicita ao tribunal (…)» (cfr. in “Temas do Direito Processual Civil”, vol. I, pág.119). O pedido, entre outras características, deve ser, “claro” e “intelegível”, bem como deve ser “preciso” e “determinado”; deve apresentar “coerência” com a causa de pedir ou com pedidos cumulados; deve ainda ser lícito “viável” e “representar uma forma tutela de um direito ou de um interesse juridicamente relevante (juridicamente)” (cfr. mesmo Autor e obra, págs. 122 e 123). A «indeterminabilidade ou a ambiguidade do objecto do processo constitui uma falha tão grave quanto as referidas anteriormente [de existência e inteligibilidade], devendo o autor expressar a sua vontade de forma que possa ser facilmente apreendida por terceiros e de modo a permitir a definição dos contornos do direito, quando tiver de ser proferida a sentença./ Será inepta uma petição que contenha um pedido vago e abstracto, como aquele que foi objecto do Ac. da Rel. De Évora, de 13-12-84, in CJ, tomo V, pág. 314, e que consistia em “proibir todo e qualquer acto ofensivo de interesses do autor” (…).» (cfr. mesmo Autor e obra, págs. 127 e 128). Ora, o pedido da Autora, elencado de A a J e supra transcrito padece, justamente, dessa vacuidade e abstração, tornando, desde logo, desnecessária pronúncia judicial porque a decisão seria inócua, inexequível e insusceptível de concretizar tutela de situação jurídica. É que o direito de ação popular, previsto na Lei nº 83/95, de 31.8, deve ser exercido para a prevenção, cessação ou perseguição judicial de infrações relativas à saúde pública, ao ambiente, à qualidade de vida, à proteção do consumo de bens e serviços, ao património cultural e ao domínio público. E, por tal parte do pedido, tal não acontece. Mutatis mutandi quanto ao pedido que se formula por U. e V.. Deve, pois julgar-se nesta parte inepta a p.i., por falta de pedido. Vejamos agora do pedido formulado de K a N. e respeitante à condenação no pagamento de todos os danos sofridos, a apurar em sede de liquidação de sentença ou de equidade. Parece-se que, neste caso, estará o pedido ferido de ininteligibilidade, por ferido, s.m.o., de precisão e determinação. O que se relaciona diretamente com o alegado pelo MP, quanto à imputada ausência de factos concretos para se delimitar a alegada atuação ilícita e danosa das RR. É que «não pode pretender-se colocar o réu ou o juiz na posição de ter de adivinhar a real vontade do autor. O réu só pode exercer efectivamente o contraditório quando confrontado com uma pretensão cujos contornos e alcance resultem claros da petição inicial, sem necessidade de conjecturar acerca da verdadeira intenção do autor quando resolveu solicitar a intervenção judicial; no que ao juiz concerne, a clareza e inteligibilidade da tutela solicitada visam evitar, incertezas quanto ao objecto da acção no que respeita à forma de tutela pretendida.» (cfr. Ac. TRLisboa de 13.02.2019, Proc. n.º 5931/18.9T8LSB.L1-4, disponível para consulta em www.dgsi.pt). Ora, in casu, nem a alegada conduta ilícita se mostra determinada em termos espaço-temporais, nem os invocados danos se encontram descritos ou individualizados na petição inicial. De notar que o pedido formulado não se confunde com o pedido genérico. Nos termos do art.º 556.º do CPC, permite-se a formulação de pedidos genéricos nos casos seguintes: a) Quando o objeto mediato da ação seja uma universalidade, de facto ou de direito; b) Quando não seja ainda possível determinar, de modo definitivo, as consequências do facto ilícito, ou o lesado pretenda usar da faculdade que lhe confere o artigo 569.º do Código Civil; c) Quando a fixação do quantitativo esteja dependente de prestação de contas ou de outro ato que deva ser praticado pelo réu. Tratam-se de “situações excecionais”, “pois, em regra, o pedido deve ser apresentado de forma específica” (cfr. Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, “Código do Processo Civil Anotado”, vol. 2.º, pág. 508). No caso presente, não se está diante de nenhuma universalidade de facto ou de direito, nem de situação onde a fixação de determinado valor está dependente de prestação de contas ou qualquer ato praticado pelas Rés. Está-se diante de ação de responsabilidade, a qual não tem em vista permitir que a parte, num momento ulterior do processo, venha indicar os factos ilícitos praticados pelo sujeito processual passivo; o que se lhe permite, nos termos do art.º 556.º n.º1 al. b) do CPC é tão-só a concretização das consequências danosas dos factos ilícitos imputados. Quanto aos factos ilícitos e quais os danos daí decorrentes, não há dispensa nem flexibilização da sua alegação: ao autor, requerente de determinada providência ressarcitória, compete a concretização e contextualização factual do comportamento que está na base do pedido de indemnização. Conclui-se, portanto, que o pedido de indemnização “de todos os danos” causados na esfera jurídica dos potenciais interessados, sem que a conduta esta concretizada e sem que os danos estejam minimamente identificados na acção, não consubstancia um pedido determinado e preciso, susceptível de apreciação por parte do tribunal, devendo nesta parte ser a p.i. julgada também inepta. A este resultado se chega, também, pela via da análise da causa de pedir: como se disse, o réu só pode exercer efectivamente o contraditório quando confrontado com uma pretensão cujos contornos e alcance resultem claros da petição inicial, sem necessidade de conjecturar quanto aos mesmos. Depois, também essa determinação se impõe para que se defina com rigor o âmbito do caso julgado. Convidada preliminarmente, a Autora não quis tornar clara a causa de pedir fundamento do pedido indemnizatório: não indicou os estabelecimentos, as vendas, a publicitação das vendas, os prejuízos suportados e a quem … Nos termos do art.º 186.º nº2 al. a) do CPC, a petição é inepta por falta de causa de pedir. Como ensina o Prof. Alberto dos Reis, a falta de causa de pedir traduz-se nos casos em que o autor faz, na petição, afirmações mais ou menos vagas e abstractas que umas vezes descambam na ineptidão por omissão da causa de pedir, outras, na improcedência por falta de matéria de facto necessária ao reconhecimento do direito (Neste mesmo sentido, veja-se, Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, ob. cit., vol. 1.º, pág 374). Ora, tal como acima se disse quanto ao pedido, a causa de pedir invocada pela Autora padece de vaguidade e de indeterminação, na medida que não identifica, concretamente, as vendas, em qualidade e quantidade, os seus momentos temporais e espaciais, a sua publicidade e período temporal. Como dá nota o MP, «não concretiza a A. em que concretos estabelecimentos comerciais da Ré 1 foram alegadamente vendidas as compressas de tecido produzidas pela Ré 2 não se aceitando que seja suficiente afirmar que tal ocorreu nos seus vários estabelecimentos comerciais espalhados pelo país nem que é um facto público e notório quais são esses estabelecimentos e onde se situam. Igualmente carece a petição inicial da alegação das datas em que tais vendas ocorreram, pelo que se afigura inviável a pretensão deduzida em juízo, não devendo assim prosseguir com despacho liminar de citação.» A formulação de uma causa de pedir, nos termos agora efetuados, inviabiliza, smo, a defesa da parte contrária e a formação do caso julgado, uma vez que não é identificado de forma suficiente o comportamento censurável que se lhe imputa. «Desta forma, projectando no futuro a decisão, se for então possível determinar concretamente qual a situação jurídica que foi objecto de apreciação jurisdicional, sem correr riscos de repetição da causa, não se verifica a falta de causa de pedir. Já quando, por falta de invocação de qualquer matéria de facto, por grave deficiência na sua descrição ou por falta de localização no espaço e no tempo, for previsível o risco de repetição da causa ou se tornar impossível a averiguação da relação jurídica anteriormente litigada deverá concluir-se pela ineptidão da petição inicial.» (cfr. Abrantes Geraldes, in “Temas do Direito Processual Civil”, Vol. I, pág 209). É que não se pode atender apenas ao facto de uma Ré produzir e outra ter um estabelecimento aberto público, à pressuposição que, nessas atividades, se distorceu a equidade das condições da concorrência (?)e se publicitou de forma enganosa, para efeitos de fundamento de facto ao pedido formulado. Está portanto a p.i. ferida de ineptidão, nesta parte, por indeterminação ilegal do pedido e por falta de causa de pedir. Por fim, quanto ao pedido apresentado em P, R, S, T, W, X, Y, Z, AA, BB e CC, por ser consequência do anterior, não aceite, estão os mesmos objetivamente prejudicados. O pedido apresentado em Q está igualmente ferido de improcedência, por falta de alegação dos factos essenciais ao enriquecimento das RR. E, por último, o pedido apresentado em O diz respeito a custas de parte, consequência da procedência do pedido que não se admite. Feitas estas considerações sobre o caso sub judice, há que relembrar que tanto a falta de causa de pedir, como do pedido, e ilegalidade deste, quando insuscetíveis de sanação, constituem exceções dilatórias conducentes à absolvição da instância: a primeira constitui a nulidade típica prevista nos art.ºs 186.º n.ºs 1, 2, a), e 278.º n.º 1, b), do CPC; a segunda, reconduz-se a uma exceção dilatória inominada. Ora, prevendo a ação popular uma fase liminar de apreciação da viabilidade da peça inicial, uma vez verificadas, aquelas excepções dão origem ao seu indeferimento liminar, como se fará de imediato. III. Por todo o exposto, por ineptidão da p.i. e ao abrigo do disposto no art.º 13.º da LAP, indefere-se liminarmente a petição inicial. Custas a cargo da Autora (sem prejuízo de isenção ou de dispensa de que possa beneficiar). Registe e notifique e d.n..” 3. O Direito Como corolário do princípio dispositivo, sobre o autor recai o ónus de alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir (art.º 5.º n.º 1 do Código de Processo Civil). Estes são os factos concretos, a que a ordem jurídica dá relevância para o reconhecimento do direito invocado pelo autor, ou seja, para a procedência do pedido (artigo 552.º, nº 1, alínea d); art.º 581.º nº 4 do CPC). A causa de pedir e o pedido, que devem ser indicados na petição inicial (art.º 552.º nº 1 alíneas d) e e), formam o objeto do processo. Constituem elementos essenciais para que o processo cumpra a sua função de tutela do direito substantivo, através da regulação definitiva do litígio trazido a juízo, por meio da prolação de sentença de mérito com força de caso julgado (artigos 619.º n.º 1, 580.º e 581.º do CPC). A sua falta acarreta a chamada “ineptidão da petição inicial” (art.º 186.º n.º 2 alínea a) do CPC), a qual tem como consequência a nulidade de todo o processo (n.º 1 do art.º 186.º do CPC) e constitui fundamento para o indeferimento liminar da petição inicial (art.º 590.º n.º 1 do CPC). A lei equipara à pura e simples omissão de indicação de causa de pedir a sua ininteligibilidade. Conforme já em 1945 expendia Alberto dos Reis (Comentário ao Código de Processo Civil, vol 2º, Coimbra Editora, pág. 371), “podem dar-se dois casos distintos: a) a petição ser inteiramente omissa quanto ao acto ou facto de que o pedido procede; b) expor o acto ou facto, fonte do pedido, em termos de tal modo confusos, ambíguos ou ininteligíveis, que não seja possível apreender com segurança a causa de pedir. Num e noutro caso a petição é inepta, porque não pode saber-se qual a causa de pedir”. E logo de seguida Alberto dos Reis distingue a petição inepta da petição simplesmente deficiente: “quando a petição, sendo clara e suficiente quanto ao pedido e à causa de pedir, omite factos ou circunstâncias necessários para o reconhecimento do direito do autor, não pode taxar-se de inepta; o que então sucede é que a acção naufraga” (obra citada, pág. 372). E também aquele Mestre não deixou de reconhecer que por vezes é difícil distinguir a deficiência que envolve ineptidão da que deve importar improcedência do pedido. “Há uma zona fronteiriça, cuja linha divisória nem sempre se descobre com precisão. São os casos em que o autor faz, na petição, afirmações mais ou menos vagas e abstractas, que umas vezes descambam na ineptidão por omissão da causa de pedir, outras na improcedência por falta de material de facto sobre que haja de assentar o reconhecimento do direito (obra citada, pág. 374). Assim, continua Alberto dos Reis, “a doação, a venda, o testamento, considerados em abstracto, são simples nomes, classes ou categorias legais, que nenhum efeito jurídico podem produzir; para que o direito surja, é indispensável um certo acto de doação, um determinado contrato de venda, uma especial disposição testamentária.” (obra citada, pág. 375). Atualmente, no nosso direito processual civil, a petição deficiente pode dar azo ao chamado despacho de aperfeiçoamento, mediante o qual o juiz convida as partes, nomeadamente o autor, a suprir as insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada (art.º 590.º n.º 4 do Código de Processo Civil). O aperfeiçoamento será o remédio para os casos em que os factos alegados pelo autor como causa de pedir são insuficientes ou não se apresentam suficientemente concretizados, em termos que comprometem o êxito da ação. No primeiro caso, está em causa a falta de elementos de facto necessários à completude da causa de pedir; no segundo caso, estão em causa afirmações feitas, relativamente a alguns desses elementos de facto, de modo conclusivo (abstrato ou jurídico) ou equívoco (José Lebre de Freitas, Código de Processo Civil anotado, volume 2.º, 3.ª edição, 2017, Almedina, pág. 634). Fora desses casos estão aqueles em que a causa de pedir não se apresenta identificada, mediante a alegação de elementos de facto suficientes para o efeito: aqui, está-se perante ineptidão da petição inicial, que apenas é sanável nos termos previstos no art.º 186.º n.º 3 do CPC, ou seja, quando se verificar, pelo teor da contestação e ouvido o autor, que o réu interpretou convenientemente a petição inicial (Lopes de Freitas, obra citada, páginas 628, 629 e 634; Lopes do Rego, Comentários ao Código de Processo Civil, vol I, 2.ª edição, 2004, Almedina, pág. 431). In casu, o tribunal a quo considerou que a petição inicial é inepta, por carecer de causa de pedir, e porque o peticionado padece de indeterminação, ininteligibilidade e abstração. Vejamos. Na apreciação desta matéria haverá que levar em consideração as particularidades do meio processual em questão, isto é, uma ação popular. São essas particularidades que justificam que a lei preveja, nos termos do art.º 13.º da Lei n.º 83/95, de 31.8 (Lei da Ação Popular), um controlo preliminar, por parte do juiz, com eventual intervenção do Ministério Público, acerca da viabilidade da ação, com o eventual indeferimento liminar. Aí se diz, nesse artigo: “Regime especial de indeferimento da petição inicial A petição deve ser indeferida quando o julgador entenda que é manifestamente improvável a procedência do pedido, ouvido o Ministério Público e feitas preliminarmente as averiguações que o julgador tenha por justificadas ou que o autor ou o Ministério Público requeiram”. Vejamos, então, do que tratam as ações populares. Nesta análise seguiremos, por comodidade, a exposição contida no acórdão do STJ, de 16.11.2023, processo n.º 6390/22.7T8VNG.L1.S1: “Dispõe o art. 52.º, n.º 3 da Constituição da República Portuguesa que “é conferido a todos, pessoalmente ou através de associações de defesa dos interesses em causa, o direito de ação popular nos casos e termos previstos na lei, incluindo o direito de requerer para o lesado ou lesados a correspondente indemnização, nomeadamente para: a) Promover a prevenção, a cessação ou a perseguição judicial das infrações contra a saúde pública, os direitos dos consumidores, a qualidade de vida e a preservação do ambiente e do património cultural; b) Assegurar a defesa dos bens do Estado, das regiões autónomas e das autarquias locais.”. A Lei n.º 83/95, de 31-08, que regula o exercício do direito à ação popular estipula, no seu art. 1.º, n.º 2, que “são designadamente interesses protegidos pela presente lei a saúde pública, o ambiente, a qualidade de vida, a proteção do consumo de bens e serviços, o património cultural e o domínio público.”, sendo titulares do direito de ação popular, “quaisquer cidadãos no gozo dos seus direitos civis e políticos e as associações e fundações defensoras dos interesses previstos no artigo anterior, independentemente de terem ou não interesse direto na demanda.” (cfr. n.º 2 do art. 1.º do mesmo diploma). Como explica Paulo Otero (in Revista da Ordem dos Advogados, Lisboa, Ano 59, Dezembro de 1999, pp. 871-873), “a acção popular, sendo sempre uma acção judicial e, neste sentido, a expressão do direito fundamental de acesso aos tribunais, distingue-se de todas as demais modalidades de acções pela amplitude dos critérios determinativos da legitimidade para a respectiva propositura. Mediante a acção popular, pode dizer-se que todos os membros de uma comunidade- ou, pelo menos, um grupo de pessoas não individualizável pela titularidade de qualquer interesse directamente pessoal - estão investidos de um poder de acesso à justiça visando tutelar situações jurídicas materiais que são insusceptíveis de uma apropriação individual. A acção popular traduz, deste modo, uma forma de tutela jurisdicional de posições jurídicas materiais que, sendo pertença de todos os membros de uma certa comunidade, não são, todavia, apropriáveis por nenhum deles em termos individuais. Deparamos aqui, por isso mesmo, com um conjunto de interesses materiais solidariamente comuns aos membros de uma comunidade e cuja titularidade se mostra indivisível através de um processo de apropriação individual. Neste sentido, deverá afirmar-se que o actor popular age sempre no interesse geral da colectividade ou da comunidade a que pertence ou se encontra inserido, isto sem que tal meio de tutela judicial envolva a titularidade de qualquer interesse directo e pessoal.” Ora, a Lei de Defesa do Consumidor, aprovada pela Lei n.º 24/96, de 31.7, deixa expresso que o consumidor tem direito “[à] prevenção e à reparação dos danos patrimoniais ou não patrimoniais que resultem da ofensa de interesses ou direitos individuais homogéneos, colectivos ou difusos” e que “têm legitimidade para intentar as ações previstas nos artigos anteriores: a) Os consumidores diretamente lesados; b) Os consumidores e as associações de consumidores ainda que não diretamente lesados, nos termos da Lei n.º 83/95, de 31 de agosto; c) O Ministério Público e a Direção-Geral do Consumidor quando estejam em causa interesses individuais homogéneos, coletivos ou difusos” (cfr. arts. 3.º e 13.º do referido instrumento legal). MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA (in A Legitimidade Popular na Tutela dos Interesses Difusos, Lex, pp. 120 e ss.) escreve, neste âmbito, que “no objecto da acção popular podem incluir-se quer os interesses difusos stricto sensu, quer os interesses colectivos, quer ainda os respectivos interesses individuais homogéneos, o que, em termos práticos, significa que a acção popular pode visar tanto a prevenção da violação de um interesse difuso stricto sensu ou de um interesse colectivo, como a reparação dos danos de massas resultantes da violação destes interesses (…)” Sobre o conceito de interesses difusos stricto sensu, interesses coletivos e interesses individuais homogéneos, veja-se o que a este propósito escreveu MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, In Ob. Cit. pp. 46 e ss., em termos muito bem sintetizados no acórdão do STJ de 08-09-2016 (proc. n.º 7617/15.7T8PRT.S1): “Os interesses difusos são interesses que possuem uma dimensão individual e supra- individual, ao contrário dos interesses individuais, que só possuem uma dimensão individual, pertencem exclusivamente a um ou a alguns titulares. Os interesses particulares homogéneos são aqueles em que não existem situações individuais particularizadas, mas tão só situações jurídicas genericamente consideradas. Os interesses difusos encontram-se dispersos ou disseminados por vários titulares, mas são interesses sem sujeito ou sem titulares, cabem a cada a todos a cada um dos membros de uma classe ou de um grupo, mas são insusceptíveis de apropriação individual por qualquer desses sujeitos, sendo, pois, a dupla dimensão individual e supra -individual uma característica essencial desses interesses. Os interesses difusos são indiferenciados, não só porque podem pertencer a qualquer sujeito que se inclua numa certa classe ou categoria, mas também porque eles existem independentemente de qualquer relação voluntária estabelecida entre os seus titulares. (…) Os interesses individuais homogéneos podem ser definidos como os interesses de cada um dos titulares de um interesse difuso “stricto sensu” ou de um interesse coletivo. Não são apenas interesses singulares, isto é, de um indivíduo, mas também interesses supra- individuais, pois que pertencem a todos os titulares do interesse difuso “stricto sensu” ou do interesse coletivo. Na ação popular procura-se a tutela de um interesse difuso, assim como os correspondentes interesses individuais homogéneos de todos os seus titulares. No entanto, para que a tutela coletiva seja praticável, ela impõe normalmente a abstração de algumas particularidades respeitantes a cada um dos seus titulares. Na verdade, a tutela coletiva não é possível sem a abstração do “lastro de individualização” que é característica das situações “standard”. (sublinhado nosso) Como se desenvolve no referido aresto, “a possibilidade de o demandado numa ação popular invocar diferentes defesas contra vários representados pode ser utilizada como um critério prático para verificar se eles são titulares de um mesmo interesse individual homogéneo”, aí se acrescentando que “a adequação da representação exercida pelo autor popular pressupõe o preenchimento de dois requisitos: um deles, de carater negativo, é a ausência de qualquer conflito de interesses entre o autor popular e os titulares do interesse difuso; o outro requisito, de carater positivo, é a garantia que a atuação do demandante permite substituir a presença dos titulares do interesse difuso na ação popular.”. Resulta, assim, que a tutela popular visa a salvaguarda de interesses difusos, enquanto interesses que pertencem a uma pluralidade indiferenciada de sujeitos e respeitam, por isso, a interesses indivisíveis da coletividade. Ora, os interesses individuais homogéneos, enquanto objeto admissível de ação popular, são, assim, encarados como “todos aqueles casos em que os membros da classe são titulares de direitos diversos, mas dependentes de uma única questão de facto ou de direito, pedindo-se para todos eles um provimento jurisdicional de conteúdo idêntico”, neste sentido se tendo pronunciado este Supremo Tribunal nos Acórdãos de 23-09-1997 (proc. n.º 97B503) e de 20.10.2005 (proc. n.º 05B2578). AROSO DE ALMEIDA E CARLOS CADILHA (in Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, Almedina, 2021, 5.ª edição, p. 103), explicam, ainda, neste âmbito que “(…) no que respeita ao segundo tipo de ações populares, parece-nos que a legitimidade prevista no n.º 2 deste artigo 9.º (…) também pode ser invocada por quem tenha interesse pessoal na demanda, para o efeito de fazer valer interesses individuais homogéneos no âmbito de uma ação de grupo ou class action. Com efeito, a ofensa de um interesse difuso pode, em certas circunstâncias, dar origem à constituição de interesses individuais homogéneos, que são interesses que surgem em termos idênticos na esfera jurídica de um número mais ou menos elevado de indivíduos em consequência de uma mesma situação jurídica (…)”. Ora, a legitimidade ativa para o exercício da ação popular afere-se em função dos bens e interesses cuja tutela se pretende, na medida em que, adiantam aqueles autores (ob. cit. p. 97) “a ação popular não é, pois, um meio processual, mas uma forma de legitimidade que permite desencadear os diversos tipos de ações ou providências cautelares que se tornem necessárias à defesa de interesses difusos” – sublinhado nosso. Isto dito, cumpre deixar expresso que a apreciação liminar – por se debruçar tão-só sobre o teor da petição inicial – deve ater-se ao objeto do processo tal como configurado pelo autor, o mesmo é dizer, a apreciação da natureza dos interesses cuja tutela se reclama deve partir sempre do objeto do processo, tal como configurado pelo autor, com total desconsideração, neste âmbito, do eventual mérito ou demérito da pretensão em análise. Assim, a apreciação da viabilidade da ação popular – no que especificamente diz respeito à natureza dos interesses em presença – deve ter em consideração o pedido e a causa de pedir, havendo que aquilatar se, segundo o autor, existem interesses difusos, nas suas várias modalidades, carentes de tutela popular”. Isto exposto, reportemo-nos ao caso destes autos. Antes de mais, cabe notar que, na sua promoção inicial, o Ministério Público não considerou que a presente ação era manifestamente inviável. De facto, aí se afirmou, expressamente, que “O Ministério Público nesta Instância Central Cível ao tomar conhecimento da presente acção, e não sendo manifestamente improvável a procedência do pedido, declara que pretende exercer a legitimidade activa, os poderes de representação e intervenção processual que lhe são conferidos por lei, nos artº15, nº1 e 16 da Lei 83/95 de 31-8.” (negrito nosso). Isto é, na sua promoção, o Ministério Público limitou-se a requerer que a A. fosse notificada para aperfeiçoar a petição inicial, com foco apenas na localização dos estabelecimentos da 1.ª R. onde teriam sido vendidos os bens indicados na petição. E isso “Considerando a futura necessidade de citação dos consumidores que tenham adquirido tais bens, importando saber se estão em causa interesses gerais ou geograficamente localizados…”. Assim, a A. não foi confrontada com um iminente juízo de rejeição da ação, por falta de pedido e de causa de pedir. E, com efeito, não se vislumbra que a petição inicial padeça de tais vícios. Conforme decorre da transcrição feita da petição inicial, a ação tem, como causa de pedir, a alegação de que a 2.ª R. fabricou, nos três anos anteriores à propositura da ação, compressas com uma composição de pior qualidade da que é indicada nas respetivas embalagens, e que, nesses três anos, a 1.ª R. comercializou essas compressas nos seus estabelecimentos, de denominação “Wells”, localizados no território nacional. Assim, as RR. lesaram os consumidores, isto é, as pessoas que adquiriram essas embalagens, as quais terão pago um preço superior àqueloutro que caberia, atendendo à efetiva composição e qualidade dos produtos em questão. Estão em causa interesses individuais homogéneos, interesses que surgem em termos idênticos na esfera jurídica de um número mais ou menos elevado de indivíduos em consequência de uma mesma situação jurídica, isto é, pessoas, à partida indeterminadas, que têm em comum serem consumidoras de um determinado produto, que enferma de uma determinada desconformidade, desencadeadora de prejuízos cuja avaliação decorre da mesma questão de facto e de direito. No que concerne à causa de pedir, ela está, cremos, suficientemente caracterizada, permitindo identificar a razão de ser e o objeto do litígio. Alegados que estão os factos essenciais à identificação do objeto da lide, será possível, no desenrolar da ação, suprir aspetos que careçam de complemento ou de concretização (cfr. artigos 5.º n.º 2 al. b), 590.º n.º 4, 591.º n.º 1 al. c) do CPC). Também quanto ao peticionado, entendemos que inexiste a ajuizada ineptidão por omissão. A prolixidade e o desajustamento manifestados no que concerne a pretensões declaratórias da violação de normas legais, que mais não são do que a indevida localização no petitório de segmentos próprios da fundamentação do pedido (cfr. as alíneas A a J), apenas terá como consequência a sua desconsideração em sede de emissão do dispositivo. Na alínea K), a A. formulou o pedido de condenação das RR. “a indemnizarem integralmente os autores populares pelos danos que lhes foram causados pelas práticas ilícitas tidas nos últimos três anos à entrada da presente ação em juízo e no que respeita ao preço pago pelas ditas compressas, seja a título doloso ou negligente, em montante global: 1. a determinar nos termos do artigo 609 (2), do CPC; 2. acrescido de juros vencidos e que se vencerem, à taxa legal em vigor a cada momento, contados desde a data em que as práticas consideradas ilícitas foram praticadas até ao seu integral pagamento, tendo como base para o cálculo dos juros os valores que as rés forem condenadas a indemnizar os autores populares pelo preço; 3. e com método para determinação e distribuição de indemnizações individuais determinado pelo tribunal”. Constata-se que a A. não quantificou o valor da indemnização peticionada, relegando para momento posterior a sua liquidação, invocando o disposto no art.º 609.º n.º 2 do CPC. Admite-se que a amplitude e a variabilidade concreta das situações integradoras do caso trazido a juízo possam justificar que o pedido de indemnização seja, à partida, formulado em termos genéricos, conforme o permite o disposto nos artigos 556.º n.º 1 alínea b) do CPC e 569.º do Código Civil. A transcrita alínea K) não consubstancia uma situação de omissão ou de ininteligibilidade do pedido, fulminadora da petição inicial com o vício da ineptidão. Quando muito, poderá fundar um despacho de aperfeiçoamento, nos termos já acima expostos – sendo certo que um tal convite, quanto a essa vertente da ação, não chegou a ser formulado. O mesmo se dirá em relação ao pedido subsidiário formulado na alínea L), que apela a um juízo de equidade e, bem assim, em relação ao pedido de indemnização por danos não patrimoniais, formulado sob a alínea M). Constatando-se que a petição inicial não enferma de ineptidão, seja por falta de causa de pedir, seja por falta de pedido, é despiciendo apreciar, nesta fase processual, os restantes pedidos constantes do petitório. Termos em que se julga a revista procedente. III. DECISÃO Pelo exposto, julga-se a revista procedente e, consequentemente, revoga-se a decisão recorrida, devendo, em conformidade, determinar-se a prossecução da ação. Pela revista, não são devidas custas. Lx, 09.7.2024
Jorge Leal (Relator) Manuel Aguiar Pereira Henrique Antunes |