Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
19639/17.9T8LSB.L1.S1
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO (CÍVEL)
Relator: MARIA DO ROSÁRIO MORGADO
Descritores: CONTRATO DE ARRENDAMENTO
BENFEITORIAS NECESSÁRIAS
BENFEITORIAS ÚTEIS
OBRAS
AUTORIZAÇÃO
SENHORIO
FORMA ESCRITA
ESTIPULAÇÕES VERBAIS ACESSÓRIAS
CONTRATO VERBAL
LIBERDADE DE FORMA
ABUSO DE DIREITO
VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM
BOA -FÉ
LEVANTAMENTO DE BENFEITORIAS
DIREITO À INDEMNIZAÇÃO
ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
DIREITO DE RETENÇÃO
LIQUIDAÇÃO ULTERIOR DOS DANOS
INCONSTITUCIONALIDADE
PRINCÍPIO DA IGUALDADE
PROCESSO EQUITATIVO
AMPLIAÇÃO DO ÂMBITO DO RECURSO
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
RECURSO SUBORDINADO
DUPLA CONFORME
ACÓRDÃO UNIFORMIZADOR DE JURISPRUDÊNCIA
Data do Acordão: 09/10/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I - A razão de ser determinante da forma estipulada no contrato para a realização de obras no arrendado encontra a sua justificação na maior facilidade concedida às partes em demonstrar a conformidade da sua atuação com o programa contratual, face às consequências que poderiam advir do seu eventual incumprimento;

II - A inexistência de autorização escrita para a realização de obras no locado não afeta a validade da convenção verbal firmada entre as partes;

III – Configura abuso de direito a invocação de cláusula contratual que nega o direito a indemnização por benfeitorias, pela realização de obras no locado, quando o senhorio tenha incentivado a inquilina a fazê-las e acompanhado e supervisionado a sua realização.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

I – Relatório

1. AA instaurou a presente ação declarativa com processo comum contra BB e CC, pedindo:

a) – A condenação das RR. a pagar-lhe a quantia de € 148.480,85, correspondente ao somatório do valor atualizado de obras de beneficiação realizadas no imóvel que ocupa (€ 48.480,85)[1] e do montante dos danos sofridos por ter renunciado à aquisição de um apartamento para sua habitação (€ 100.000,00), acrescida de juros de mora à taxa legal desde a citação;

b) – Se reconheça que é titular do direito de retenção sobre o referido imóvel até que as RR. a reembolsem do valor das obras que ali realizou (€ 48.480,85).

Para tanto, alegou, em síntese, que:

Em 1994, passou a residir com o marido e os filhos no r/c do n° 8 do prédio sito na Rua …, em …, à data pertencente a seu tio DD, entretanto falecido, sendo as RR., atualmente, as proprietárias do prédio, por o terem adquirido por sucessão.

Pela utilização do dito r/c, a A. acordou com o tio o pagamento mensal de Esc.50.000,00 e, mais tarde, quando foi instituído o euro, de € 250,00.

O tio da A., com quem mantinha uma relação de grande proximidade, sempre lhe assegurou o direito a ocupar vitaliciamente o referido r/c, fosse por transmissão da sua propriedade para a A., fosse através da manutenção do arrendamento.

Como garantia desse propósito, em 2001, o tio e a A. celebraram um contrato de arrendamento tendo por objeto o dito r/c, mediante o pagamento da renda acima referida.

Com o mesmo desiderato, o tio da A. outorgou, em 31.5.2001, testamento no qual instituiu a A. legatária do r/c., propondo-se, além disso, celebrar com ela contrato de compra e venda do locado, nos termos de uma minuta que lhe enviou, negócio que, contudo, não chegou a concretizar-se.

A A., convicta de que o tio honraria os compromissos assumidos, e com a sua autorização, supervisão e incentivo, acabou por realizar obras no locado, no valor de € 48.480,85, tendo, inclusive, desistido da aquisição de uma outra casa em …, como era sua intenção.

Sucede que, em 2016, o seu tio faleceu, tendo a A., depois disso, tomado conhecimento de que ele havia outorgado um outro testamento, instituindo herdeiro universal dos seus bens o pai das ora RR.

Entende, assim, que o seu tio, agindo como agiu, sem respeitar as regras da boa fé, incorreu em responsabilidade delitual e pré-contratual devendo, por isso, as RR., sucessoras daquele, indemnizar a A. pelos prejuízos relativos ao valor das obras que realizou e por ter sido levada a não adquirir uma outra casa para morar, em condições mais vantajosas do que atualmente.

Alegou, finalmente que lhe assiste o direito de retenção sobre o andar arrendado até que o valor das obras lhe seja reembolsado.

2. Na contestação, as RR. invocaram a ilegitimidade da A. e impugnaram factualidade alegada na p.i.. Além disso, deduziram reconvenção pedindo a condenação da A. a pagar-lhes a quantia de € 21.000,00, sendo € 11.000,00 por rendas devidas e não pagas e € 10.000,00, a título de indemnização por ofensa à memória do tio da A. Peticionaram ainda a sua condenação como litigante de má-fé.

3. A A. respondeu e requereu a improcedência da reconvenção.

4. Foi admitida a reconvenção apenas quanto ao primeiro pedido formulado e proferido despacho saneador que julgou a A. parte legítima (atento o consentimento prestado pelo seu cônjuge a fls. 82).

5. Realizada a audiência de discussão e julgamento, no decurso da qual a A. reduziu o seu pedido em € 785,61, valor de uma garrafeira por si adquirida (cf. fls. 239), foi proferida sentença que, julgando a ação e a reconvenção totalmente improcedentes, absolveu a A. e as RR. dos pedidos contra si formulados.

6. Inconformada com o assim decidido, a A. interpôs recurso para o Tribunal da Relação, que, julgando parcialmente procedente a apelação, proferiu acórdão a:

- Condenar as RR. a pagar à A., pelas benfeitorias necessárias e/ou úteis que foram realizadas por esta, em 2001, no r/c do n° 8 do prédio sito na Rua …, em …, com exceção do esquentador, do forno, da placa de fogão e fechadura (no valor total respetivo de € 921,03) e da garrafeira, a quantia que se vier a liquidar posteriormente, até ao limite máximo de € 35.875,41;

- Reconhecer à A. o direito de retenção sobre o referido r/c, até ao pagamento do valor que vier a ser liquidado;

- Manter, no mais, o decidido pela 1ª instância.

7. Irresignadas, as RR. vieram interpor a presente revista, formulando as seguintes conclusões:

A. Para a delimitação do presente recurso importa responder às seguintes questões:

B. «Tendo a A. realizado obras de reparação/beneficiação do andar no mesmo ano em que celebrou o contrato de arrendamento respetivo, obras que foram autorizadas pelo proprietário do imóvel que a incentivou a realizá-las e que as acompanhou e fiscalizou, assegurando-lhe que lhe transmitiria o direito de propriedade daquele espaço ou que a cedência do mesmo duraria enquanto fosse viva, e sendo nesse pressuposto que a A. as levou a cabo, tem a mesma direito à indemnização pelas benfeitorias assim introduzidas se vier a ser-lhe exigida a restituição do locado pelas sucessoras do referido proprietário, não podendo estas opor-lhe, sob pena de abuso de direito, a cláusula contratual que no contrato exclui o direito do locatário a benfeitorias.»?

E

«(...) tendo em conta as condições em que foram levadas a cabo as obras em 2001, o contexto e o pressuposto em que ambas as partes acordaram na respetiva realização, não se afigura que tenham, senhorio e inquilina, pretendido que tais cláusulas [8.ª e 9.ª do contrato de arrendamento] respeitassem pelo menos àquelas concretas obras (iniciais) de reparação/beneficiação do r/c, ou que a A. tivesse renunciado antecipadamente a ser indemnizada por elas. Deste modo, e fazendo a interpretação do dito contrato e, designadamente, das cláusulas 8.ª e 9.ª, com recurso às regras previstas no Código Civil quanto à interpretação e integração dos negócios jurídicos (art.ºs 236.º e ss. do CC), somos levados a concluir que as mesmas não teriam aplicação quanto às obras em questão nestes autos.»?

C. «Tendo em conta os pontos 10 e 11 supra – com exceção do esquentador, do forno, da placa de fogão e fechadura – estaremos perante benfeitorias necessárias e/ou úteis (contra o que defendem as apeladas) posto que respeitam, no essencial, a obras de reparação/beneficiação do imóvel e passaram, desse modo, a fazer parte integrante do mesmo (art.º 204.º, n.º 3, do CC), evitando o detrimento do espaço arrendado e valorizando-o.»?

D. «Assiste-lhe, em consequência, o direito de reter o locado, nos termos do art.º 754.º do CC, uma vez obrigada a entregar o mesmo, com fundamento no crédito por benfeitorias cujo valor cumpre ainda liquidar nos termos dos arts. 358.º e ss do CPC.»?

E. Em síntese, o presente recurso incide, concretamente sobre a decisão proferida pelo Venerando Tribunal da Relação de Lisboa que julgou parcialmente procedente o recurso interposto pela aqui recorrida no que à condenação no pagamento pelas benfeitorias realizadas no imóvel concerne e, bem assim, no reconhecimento do direito de retenção sobre o imóvel até integral pagamento da respetiva indemnização.

F. Decidindo como decidiu, o douto acórdão do Venerando Tribunal da Relação de Lisboa violou, além do mais, por errada interpretação e aplicação, o disposto no art.º 204.º, 216.º, 236.º e ss, 334.º, 405.º, 754.º, 756.º, al. b), 1273.º todos do CC.

G. Com efeito, e no que concerne à interpretação da cláusula 8.ª e 9.ª do contrato de arrendamento a douta decisão recorrida propugna o entendimento da A., aqui Recorrida, afirmando que lhe assiste razão quanto à interpretação daquela cláusula 9.ª, quando refere que a sua invocação, no contexto do contrato e à sua aplicação às obras realizadas pela A. no mesmo ano da celebração do dito contrato, seria, no caso, contrária à boa fé.

H. Não parece às Recorrentes que assim seja, pois nem a invocação da cláusula 9.ª constitui abuso de direito.

I. Tão-pouco se pode concluir que o facto de as obras terem sido realizadas no mesmo ano da celebração do contrato de arrendamento obsta a que determinadas cláusulas do mesmo lhe sejam aplicáveis, designadamente as cláusulas 8.ª e 9.ª.

J. Do próprio contrato não resulta - tão-pouco da prova produzida - que a cláusula 9.ª do contrato de arrendamento, ou mesmo até a 8.ª, dispunham para outra data que não a da celebração do mesmo, não sendo feita qualquer referência no dito contrato quanto à aplicação no tempo dessa cláusula.

K. A vontade do senhorio era a de que o clausulado acordado passaria a vigorar a partir da data da celebração do contrato.

L. Considerar o contrário é extravasar a vontade do próprio senhorio.

M. Senhorio esse já falecido à data da instauração da presente ação e, por esse motivo, impossibilitado de demonstrar o seu real intento.

N. Refere a cláusula 9.ª do dito contrato o seguinte: “o inquilino não poderá fazer quaisquer obras de alteração no local arrendado sem autorização prévia por escrito do senhorio, nem levantar quaisquer benfeitorias por si realizadas, ainda que autorizadamente, nem por elas pedir indemnização ou alegar retenção”.

O. Com efeito, não se encontra demonstrado ou sequer alegado que as partes previamente à celebração do contrato tivessem discutido a possibilidade de realização de obras no imóvel.

P. Podendo tal ter ocorrido noutra altura qualquer.

Q. Razão pela qual, da mesma forma que se conclui que «não se afigura que tenham, senhorio e inquilina, pretendido que tais cláusulas respeitassem pelo menos àquelas concretas obras (iniciais) de reparação/beneficiação do r/c, ou que a A. tivesse renunciado antecipadamente a ser indemnizada por elas.»,

R. Poder-se-á de outro modo concluir que o senhorio aquando da celebração do contrato quis salvaguardar o dever de indemnizar a inquilina por quaisquer benfeitorias que viessem a ser realizadas no locado, uma vez que poderia já naquela altura o senhorio prever que as mesmas viessem a acontecer.

S. Assim sendo, discorda-se da interpretação contida na decisão recorrida e respeitante às normas previstas no Código Civil quanto à interpretação e integração dos negócios jurídicos, designadamente art.ºs 236.º e ss.do CC.

T. E isto porquanto e de acordo com aqueles preceitos legais, quer da declaração negocial, no caso o contrato de arrendamento, quer da factualidade dada como provada, não se pode concluir que outra foi a vontade do senhorio que não a que consta do clausulado do respetivo contrato de arrendamento.

U. Além do mais, dispõe o art.º 238.º, n.º 1 do CC que «Nos negócios formais não pode a declaração valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso.».

V. Ora, a vontade das partes foi a que consta do contrato de arrendamento, designadamente cláusulas 8.ª e 9.ª daquele, e não outra.

W. O interesse do senhorio sempre foi salvaguardar a sua posição enquanto tal, desde logo de quaisquer benfeitorias realizadas no locado.

X. Assim, de parte alguma resulta que o facto de o senhorio ter acompanhado e vistoriado as obras realizadas pela inquilina no locado facultaria a esta o direito a qualquer indemnização.

Y. Nenhuma expectativa foi criada à inquilina nesse sentido.

Z. É esta e não outra a interpretação a fazer do conteúdo da famigerada cláusula 9.ª do contrato, tendo por isso plena validade e aplicabilidade ao caso sub judice.

AA. Por estes motivos se considera que não se nos afigura abusiva a pretensão das Recorrentes em se quererem prevalecer de uma cláusula plenamente válida, não estando aqui em causa qualquer exercício ilegítimo de um direito, nos termos do art.º 334.º do CC.

BB. Desta feita, e à luz do contrato de arrendamento celebrado entre senhorio e inquilina, as obras realizadas por esta, ora recorrida foram ilicitamente feitas.

CC. Por outro lado e quanto à natureza das benfeitorias realizadas no imóvel, considera o douto acórdão que se trata de benfeitorias necessárias e úteis.

DD. Ora, salvo melhor entendimento, incorreu o Tribunal da Relação de Lisboa em errónea interpretação e consequente aplicação dos artigos 204.º, 216.º e 1273.º todos do CC a que faz referência.

EE. Com efeito, nos termos e para os efeitos do art.º 1074.º, n.º 3 do CC o arrendatário apenas pode executar quaisquer obras quando o contrato o faculte ou quando seja autorizado, por escrito, pelo senhorio.

FF. Ora, no caso sub judice nem o contrato faculta – cf. cláusula 9.ª do contrato de arrendamento - a execução das obras, nem houve qualquer autorização escrita pelo senhorio.

GG. Ora, na inexistência de autorização escrita por parte do senhorio, as obras têm-se como ilicitamente feitas, não tendo direito a qualquer compensação, nos termos e para os efeitos do art.º 1074.º, n.º 5 do CC.

HH. Além do mais, contrariamente ao doutamente decidido, a prova da natureza das benfeitorias realizadas cabia à Recorrida que se limitou a juntar uma lista de alterações genéricas que terá efetuado no locado, designadamente na casa de banho, cozinha, quarto, despensa, colocou azulejos novos, um esquentador, um forno e placa de fogão, trabalhos de eletricidade, tendo ainda mudado a fechadura.

II. Por conseguinte, e tendo em conta os normativos aplicáveis às benfeitorias da matéria assente não resulta que as obras realizadas tratem de benfeitorias necessárias e úteis.

JJ. Acresce que, tendo em conta que a fração arrendada foi entregue em perfeitas condições de habitabilidade, não sendo necessário proceder-se a quaisquer obras de conservação/reparação.

KK. Ora, nenhuma das obras cuja realização foi dada como provada constitui benfeitoria necessária, na medida em que não tiveram como objetivo salvaguardar perda ou deterioração do imóvel.

LL. Assim sendo, e se tivermos como base o famigerado caderno de encargos junto pela Recorrida facilmente se chega à conclusão que as benfeitorias peticionadas, a serem consideradas benfeitorias, são benfeitorias úteis ou voluptuárias.

MM. Assim, nos termos e para os efeitos do art.º 1273.º e 1275.º ambos do CC, o possuidor de má fé perde o direito, desde logo, às benfeitorias voluptuárias que haja feito e no que às benfeitorias úteis concerne, a lei prevê que o locatário proceda ao levantamento das mesmas, pelo que deverá a recorrida agir em conformidade.

NN. Finalmente, e quanto ao direito de retenção, o qual obteve procedimento na douta decisão recorrida, diga-se que escassa é a fundamentação para tal tomada de posição.

OO. Ora, estando nos presentes autos em causa um contrato de arrendamento celebrado entre as partes cuja cessação dos seus efeitos ocorreu por oposição à renovação em 31 de agosto de 2017 - há quase 3 anos atrás – e ainda que durante esses 3 anos não houve qualquer pagamento de renda.

PP. É por demais evidente que a recorrida se encontra a ocupar ilegitimamente o imóvel, não tendo qualquer título que legitime a sua permanência no mesmo.

QQ. Tendo sido as Recorrentes obrigadas – uma vez que a desocupação não aconteceu - a lançar mão do procedimento especial de despejo que corre termos no Balcão Nacional do Arrendamento com o proc. n.º 3129/17.2…, atualmente suspenso a aguardar o encerramento dos presentes autos.

RR. Desta forma, o inquilino despejado, ainda que credor de indemnização, não goza do direito de retenção do local arrendado.

SS. Tão-pouco dá o direito de retenção direito à utilização da coisa retida.

TT. Neste sentido veja-se o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, proc. n.º 869/09.3TBCVL.C1, de 15/03/2011 e que diz o seguinte:

UU. “Ao comodatário, munido do direito de retenção, se é lícito reter o bem objeto do contrato, já não poderá gozar e tirar dele gratuitamente todas as utilidades que pode proporcionar, enquanto não estiver pago do seu crédito, sob pena de vir a indemnizar o comodante pelo correspondente benefício segundo as regras do enriquecimento sem causa”.

VV. Acresce que, dispõe o art.º 756.º do CC que não há direito de retenção a favor dos que tenham realizado de má-fé as despesas de que proveio o seu crédito.

WW. Sendo este o sentido que tem vindo a ser adotado pela jurisprudência conforme acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, proc. n.º 123/08.8TBIDN.C1, de 20/06/2012):

“Na sentença recorrida decidiu-se bem, com apelo a regras do Código Civil e do artº 14º do DL n.º 385/88, que o Autor não poderia, alicerçado na realização de benfeitoria útil, pedir a respetiva indemnização às RR., dizendo-se: «o Autor não pode reclamar o valor das benfeitorias porquanto as mesmas, embora sendo úteis, foram realizadas sem o consentimento escrito do senhorio, ainda que, resulte dos autos que obteve o seu consentimento, não resulta que o mesmo foi reduzido a escrito, ónus que incumbia ao Autor provar, e que não logrou demonstrar, a que acresce que também, não existiu o processo administrativo para suprir essa falta de autorização, como resulta do nº 1 do artigo 14º do Decreto-Lei n.º 385/88, pelo que a falta do consentimento previsto na lei impede o exercício do direito de reclamar qualquer indemnização e, nomeadamente, qualquer direito de retenção, como resulta dos artigos 756º, alínea b), 1036º e 1046º, nº 1, todos do Código Civil.»

XX. Desta feita, se alguém tem levado vantagem com a presente demanda é sem dúvida a recorrida que continua a dispor livremente de um bem que não é seu, estando as recorrentes impedidas de usufruir dos rendimentos que do arrendamento do imóvel podem advir.

YY. Razões pelas quais deve ser declarado que não existe nos presentes autos direito de retenção sobre o imóvel arrendado.

8. Nas contra-alegações, a A. pugnou pela confirmação do acórdão recorrido e . 

9. A A., por sua vez, interpôs recurso subordinado, assim concluindo:

AA. Como está assente nos factos provados n.ºs 12 e 13, o tio da A. e das RR. - de quem estas vieram a ser herdeiras, após repudio do pai delas, que havia sido instituído herdeiro universal - autorizou e incentivou, em 2001, a A. a fazer as obras em causa, acompanhando-as e fiscalizando-as, assegurando-lhe que lhe transmitiria o direito de propriedade sobre a mesma ou que a cedência do imóvel duraria enquanto esta fosse viva. Nesse pressuposto, a A. deixou de comprar outro imóvel, optando por realizar as obras (cfr. facto provado n.º 13).

BB. Em 31/05/2001, o tio da A. outorgou testamento através do qual deixava a A. em legado parte do prédio, estabelecendo que, logo que constituída a propriedade horizontal, o legado passaria a incidir sobre o r/c. Mas, em novembro de 2003, celebrou novo testamento em que instituiu como herdeiro universal outro sobrinho (cfr. factos provados n.ºs 6 e 7).

CC. Só em 2004 é que a A. ficou a saber que não estava contemplada no novo testamento do tio, mas, após isso, este assegurou-lhe que ela podia ficar vitaliciamente no andar. Só após o falecimento do tio é que a A. tomou conhecimento que não tinha título para ficar no andar que não o que fora constituído pelo arrendamento celebrado, o qual naturalmente não lhe conferia esse direito vitalício – cfr. factos provados n.ºs 15 e 16.

DD. Assim sendo, não restam dúvidas de que o tio da A. induziu-a a fazer determinada opção - deixar de comprar outro imóvel que tinha em vista, optando por realizar as obras do andar dos autos - com base num compromisso - o de que a cedência do imóvel duraria pelo menos enquanto a A. fosse viva - que não cumpriu, e que renovou, mesmo quando mudou o testamento, continuando a assegurar à A. o direito à ocupação vitalícia do andar, o que continuou a não cumprir.

EE. A questão ora em apreço têm a ver com a eventual responsabilidade gerada por estes compromissos no âmbito do regime da culpa in contrahendo, ou seja, da chamada responsabilidade pré-contratual, a qual tem assento no art. 227.º, n.º 1 do CC, o que foi devidamente equacionado no art. 45.º da p.i. e na apelação, bem como nas decisões das instâncias.

FF. Todavia, o acórdão ora recorrido - na linha da sentença da 1.ª instância - considera que não houve preliminares de qualquer outro negócio que não o testamento e o arrendamento celebrado, sendo o testamento livremente revogável e estando o arrendamento sujeito a um regime legal de natureza imperativa.

GG. Não se discute que o testamento é um acto livremente revogável e por isso mesmo não é na circunstância de o senhorio ter alterado a sua vontade testamentária que assenta o pedido relativo à responsabilidade pré-contratual. Também se sabe (e é incontroverso) que o contrato de arrendamento está sujeito a regras imperativas que não dependem da vontade as partes.

HH. Aquilo que não se aceita é a argumentação de que, perante a matéria assente, não se afigure que o senhorio/tio se tenha comprometido a assegurar contratualmente a utilização vitalícia da A. do locado dos autos fora do âmbito do contrato de arrendamento existente.

II. Diz-se no acórdão recorrido que, à data da celebração do contrato e até 2006, vigorava o regime do arrendamento urbano, aprovado pelo DL 321-B/90, de 15 de outubro, ao abrigo do qual o contrato de arrendamento apenas cessava nas condições previstas nos seus arts. 63.º a 73.º. É assim, mas é também certo que, sob esse regime legal, o senhorio podia denunciar o contrato, designadamente quando necessitasse dele para sua habitação ou dos seus descendentes em primeiro grau.

JJ. Ora, tendo em conta a idade do tio da A. e a circunstância de poder ser vasto o leque de eventuais herdeiros no quadro do novo testamento, é evidente que não estava assegurado o direito à cedência vitalícia do andar a favor da A., com o que o tio/senhorio se comprometeu quer aquando da realização das obras (facto provado n.º 12), quer quando, em 2004, a A. ficou a saber que já não estava contemplada no seu testamento (facto provado n.º 15).

KK. Assim sendo, não pode pôr-se em dúvida que o direito da A. à utilização vitalícia do andar não estava assegurado com o contrato de arrendamento celebrado.

LL. O tio da A. poderia ter estabelecido a favor da A. um direito de uso e habitação, ou um arrendamento perpétuo (ainda que este, por força do regime do art. 1025.º do CC, se devesse considerado reduzido a 30 anos), ou mesmo um comodato vitalício (não é controverso que o comodato possa ser vitalício, cfr. ac. do STJ, de 17/05/2017, proferido no proc. n.º 1117/13.7TVLSB.L1.S1) ou qualquer outro contrato atípico que garantisse à A. a utilização perpétua do r/c em apreço, soluções que serviriam o desiderato de assegurar à A. o direito a uma cedência vitalícia do andar nos autos (ou, pelo menos, por 30 anos, por força do regime imperativo supra mencionado).

MM. Mas nada disso o tio da A. fez, deixando-a na expectativa de que encontraria uma solução adequada para assegurar o direito a favor da A.com que se comprometera, no que ela acreditou, naturalmente por força da relação de confiança que tinha com o tio.

NN. Talvez o tio tivesse sido manipulado por outros familiares, que não o deixaram assegurar aquilo a que ele se comprometera, mas isso é impossível de apurar, pelo que temos que nos bastar com a verificação de uma violação objetiva de um dever de boa-fé, ostensivamente postergado.

OO. E é precisamente a violação desse dever de boa-fé – e da confiança com base na qual a A. estabeleceu as suas opções – que gera a responsabilidade civil pré-contratual em que se funda o recurso subordinado.

PP. Dispõe o art. 280.º do CC que é nulo o negócio jurídico cujo objeto seja física e legalmente impossível, contrário à lei ou indeterminável, o que, no caso dos autos, não acontecia com nenhuma das hipóteses negociais suprarreferidas na conclusão LL.

QQ. É certo que o negócio prometido não estava devidamente determinado, mas não era indeterminável, uma vez que aquilo que se pretendia – aquilo com que o tio da A. se comprometeu e ela aceitou, acreditando nele – era a celebração de um negócio jurídico (unilateral ou bilateral) que assegurasse à A. o direito à cedência vitalícia do r/c dos autos.

RR. Ora, se existe responsabilidade pré-contratual mesmo em relação a um negócio afetado originariamente por uma impossibilidade física ou legal, mais facilmente se compreende que essa responsabilidade também há-de existir relativamente a um negócio indeterminado, mas determinável, cujo conteúdo essencial está identificado (ou seja, a cedência vitalícia da utilização do andar a favor da A.), e cuja concreta determinação só não teve lugar porque o inadimplente faltou culposamente ao seu compromisso.

SS. Deste modo, in casu, existe obrigação de indemnizar o lesado, devendo a indemnização colocar o lesado na situação em que estaria se não tivesse acreditado, sem culpa, na boa-fé ou atuação correta da contraparte, o que abrange quer o valor do que despendeu em virtude da promessa da contraparte, quer as vantagens que deixou de auferir, ou os negócios que deixou de celebrar, porque confiou na expectativa que lhe foi criada.

TT. Assim sendo, as RR. – como sucessoras dessa contraparte – devem indemnizar a A. por dois prejuízos:

a) Por um lado, pelas despesas da A. com as obras de reparação/beneficiação do andar, no montante de € 35.875,41 (cfr. factos provados n.ºs 10 e 11, diminuídos das verbas já descontadas pelo acórdão recorrido); porém, nesta parte, a questão só se coloca a título subsidiário, para a hipótese, apenas cautelarmente colocada, do recurso das RR. ser julgado procedente;

b)  Por outro lado, pelo dano da A. ter renunciado à compra do andar que tinha em vista adquirir e a cujo propósito renunciou, tendo em conta o compromisso assumido pelo tio/senhorio – cfr. factos provados n.ºs 12, 13 e 15.

UU. Quanto a este prejuízo relativo à compra do andar, deve ter-se em conta a factualidade dada como assente nos factos provados n.ºs 17 e 18. Neste contexto, e sendo impossível fazer a reconstituição natural do prejuízo, cujo valor exato não pode ser averiguado, o Tribunal julgará equitativamente, dentro dos limites que teve por provados, nos termos do art. 566.º, n.º 3, do CC, julgando-se adequado fixar uma indemnização em € 100.000,00.

VV. Deve, por isso, ser dado provimento ao recurso subordinado e julgado procedente o pedido formulado em sede de responsabilidade pré-contratual das RR., as quais devem ser condenadas a pagar à A. o montante de € 35.875,41, quanto aos valor das obras realizadas (ora colocado a título subsidiário, apenas para a hipótese academicamente colocada de proceder o recurso de revista das RR.), bem como o montante de € 100.000,00, pelo prejuízo decorrente de a A. ter renunciado à compra do andar que tinha em vista adquirir, tendo em conta o compromisso assumido pelo tio/senhorio, acrescidos de juros de mora à taxa legal contados desde a citação e até efetivo e integral pagamento.


***

10. Como se sabe, o âmbito objetivo do recurso é definido pelas conclusões apresentadas (arts. 608.º, n.º2, 635.º, nº4 e 639º, do CPC), pelo que só abrange as questões aí contidas.

Sendo assim, no âmbito da revista interposta pelas RR., as questões de que cumpre conhecer consistem em saber se:

a) - A A. tem direito a receber uma compensação pela realização de obras no imóvel;

b) - A A. tem direito de retenção sobre o locado, enquanto não lhe for pago o valor devido pelas ditas obras;

Por sua vez, no âmbito do recurso subordinado interposto pela A, as questões de que cumpre conhecer consistem em saber se:

c) - Se, em sede de responsabilidade pré-contratual, as RR. devem ser condenadas a pagar à A. o  montante de € 100.000,00, a título de indemnização por ter prescindido de comprar um andar, tendo em conta o compromisso assumido pelo seu tio;

d) Se, em caso de procedência do recurso principal, as RR. devem ser condenadas, em sede de responsabilidade pré-contratual, a pagar à A. o montante de € 35.875,41, correspondente ao prejuízo decorrente da realização das obras.

e) Como questão prévia, importa apreciar se o recurso subordinado interposto pela A. é de admitir.

***

II – Fundamentação de facto

11. As instâncias deram como provados os seguintes factos:
1)  "DD e a A. acordaram nos termos do contrato de arrendamento, denominado "Contrato de Arrendamento de Renda Livre", encimado da indicação "Edição da Associação … de Proprietários", com cópia a fls. 13 a 16 e 86 dos autos, cujo teor se dá por reproduzido ";[2]

2)     Nos termos desse acordo, DD, proprietário, cedeu à A. o r/c da Rua …, n.° 8, em … .

3)     O acordo mostra-se datado de 1-3-2001.

4)      Nos termos do art.° 9.° do acordo, o inquilino não poderá fazer quaisquer obras de alteração no local arrendado sem autorização prévia por escrito do(s) Senhorio(s), nem levantar quaisquer benfeitorias por si realizadas, ainda que autorizadamente, nem por elas pedir indemnização ou alegar retenção.
4-A) "Nos termos do art. 8o do mesmo acordo «O Inquilino obriga-se a conservar, no estado em que atualmente se encontram, descrito em anexo (este não preenchido), as instalações e canalizações de água, luz, aquecimento, esgotos e demais equipamentos do local arrendado, pagando à sua custa todas as reparações decorrentes de culpa ou negligência sua, bem como manter em bom estado os respetivos soalhos, alcatifas, forros, pinturas e vidros, ressalvado o desgaste proveniente da sua normal e prudente utilização e decurso do tempo" e nos termos do art. 10° «o(s) Senhorio(s) poderá(ão) fazer quaisquer obras em beneficio do local arrendado, ainda que se trate de mera conservação ou reparação, sem necessidade de autorização do Inquilino para vistoria ou acesso ao mesmo, pessoalmente ou por mandatários seus.» "[3]

5)      A renda manteve-se inalterada em € 250,00.

6)     Em 31-05-2001, DD outorgou testamento público através do qual deixava à A. em legado 20/100 do prédio, estabelecendo que logo que constituída a propriedade horizontal, o legado passaria a incidir sobre o r/c (doe. 4, conforme fls. 18 e 19);

7)      Em 13-11-2003, DD celebrou novo testamento, em que instituiu como herdeiro universal EE (doe. 1, a fls. 10 e 11).

8)     DD faleceu em 9 de agosto de 2016.

9)    EE repudiou a herança, tendo suas filhas, as RR., sido encabeçadas na titularidade daquela.

10)    No decurso do ano de 2001, a A. gastou no imóvel a verba correspondente a € 36 796, 44, assim discriminada (em escudos):

-      116.913$00, na reparação/beneficiação da casa de banho (doc. 7);

-      12.227$00, na reparação/beneficiação da casa de banho (doc. 8);

-      58.563$00, em azulejos (doc. 9);

-      61.800$00, num esquentador (doc. 11);

-       82.500$00, num forno e placa de fogão (doc 12);

-       859.632$00, na reparação/beneficiação da cozinha (doc. 13);

-       87.050$00, em diversas obras de reparação/beneficiação (doc. 14);

-   2.620.000$00, em trabalhos de reparação/beneficiação da casa-de-banho, hall de entrada e corredor (doc. 15);

-        1.213.000$00, na reparação/beneficiação da cozinha (doc. 16);

-       527.000$00, na reparação/beneficiação do quarto do fundo e da despensa (doc. 16);

-    1.070.000$00, em diversas obras de reparação/beneficiação (doc. 17);

-       627.500$00, em trabalhos de eletricidade (doc. 18);

-       40.350$00, na mudança da fechadura (doc. 19).

11)     As obras contribuíram para a valorização do imóvel em valor não concretamente determinado, não inferior a esse quantitativo.

12)   DD autorizou e incentivou a A. a fazer as obras, acompanhando-as e fiscalizando-as, assegurando-lhe que lhe transmitiria o direito de propriedade sobre a mesma ou que a cedência do imóvel duraria enquanto esta fosse viva.

13)    A A. deixou de comprar outro imóvel nesse pressuposto, optando por realizar as obras.

14)     A partir de finais de 2003 ou em 2004, EE foi viver com DD, tendo este e a pessoa com quem vivia passado a ter intervenção na gestão do imóvel.

15)    Em 2004 a A. ficou a saber que já não estava contemplada no testamento de DD, tendo-lhe este, porém, assegurado que poderia ficar vitaliciamente no andar.

16)       A A. só após o falecimento de DD tomou conhecimento de que não tinha título para ficar no andar, que não aquele constituído pelo arrendamento.

17)       Um andar equivalente àquele em que a A. habita tinha em 2001 um valor de € 175 000,00 e tem hoje um valor não inferior a € 450 000,00.

18)   A A. deixou de ter condições para adquirir um imóvel nas mesmas circunstâncias, atento o aumento dos preços do imobiliário e por dificuldade em recorrer a crédito bancário.

19)      Ao longo dos anos, a A. foi pagando as rendas correspondentes ao uso do andar em dinheiro, transferências bancárias, cheques e compensação com valores de obras.
20) "A A. vivia desde 1994 na parte esquerda do r/c dos autos, só tendo passado a ocupar todo o andar em 2001, tendo sido nessa altura que se concretizaram as obras em causa ".[4]
21) "A 2" Ré CC, na qualidade de cabeça-de-casal da herança aberta por óbito de DD, comunicou à A., por carta de 18.12.2016, e por referência ao andar dos autos, a "oposição à renovação automática do contrato (...) pelo que o contrato caducará quando atingido o termo do prazo da sua renovação, maxime 31/08/2017. Devendo V.Exa entregar o locado, livre de pessoas e bens, imediatamente após o prazo aludido. (...)."[5].

12. Por sua vez, deu-se como não provado que:

- A A. só após o falecimento de DD tenha tomado conhecimento de que este não assegurara aquilo com que alegadamente se comprometera, no que diz respeito à alteração do testamento;

- A A. tenha omitido o pagamento das rendas referentes aos meses de janeiro de 2013 a dezembro de 2015.


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III – Fundamentação de direito

13. Questão prévia: da admissibilidade do recurso subordinado

Muito embora coloque dúvidas sobre a sua admissibilidade, a A. veio interpor recurso subordinado, visando a condenação das RR., com fundamento em responsabilidade civil pré-contratual, a pagar-lhe o montante de € 100.000,00, pelo prejuízo decorrente de a A. ter prescindido de comprar um andar para morar, atenta a relação de confiança que tinha com o tio e do compromisso que, perante si, o mesmo reiteradamente assumiu.

Por outro lado, a título subsidiário, prevenindo a hipótese de a revista principal proceder, pede que as RR. sejam condenadas, com fundamento em responsabilidade pré-contratual, a pagar-lhe o montante de € 35.875,41, correspondente ao valor das obras por si realizadas no r/c, bem como dos juros de mora à taxa legal contados desde a citação e até efetivo e integral pagamento.

Importa, pois, antes de mais, apreciar se o recurso subordinado é de admitir.

Vejamos.

A 1.ª instância, depois de analisar as pretensões da A. segundo as várias soluções plausíveis de direito, (v.g. em sede de direito sucessório, direito dos contratos, responsabilidade contratual, extracontratual ou culpa in contrahendo) julgou totalmente improcedente a ação, considerando, designadamente, inexistir fundamento para a tutela da confiança invocada pela autora, sendo que relativamente à indemnização por obras realizadas no locado concluiu que, mesmo no plano da relação locatícia, não assistia à A. o direito à peticionada indemnização, por ter sido estipulado no contrato de arrendamento a inexistência desse direito. Em face disso, decaiu igualmente o invocado direito de retenção.

Relativamente ao pedido reconvencional considerou-se ter ficado provado que o valor das rendas estava liquidado, pelo que também foi julgado improcedente.

Por sua vez, a Relação, na apelação interposta pela A., entendeu merecer concordância o juízo feito pela 1.ª instância, no sentido de inexistir fundamento para o pedido de condenação das RR. no pagamento de € 100.000,00, designadamente com base em responsabilidade pré-contratual.

Porém, quanto ao pedido de indemnização pela realização de obras, divergindo do entendimento plasmado na sentença, considerou que a cláusula 9ª do contrato de arrendamento devia ser interpretada por forma a não excluir o direito a indemnização por benfeitorias, sob pena de se verificar uma situação de abuso de direito.

Em face do que julgou a apelação parcialmente procedente e condenou as RR. a pagar à A., pelas obras realizadas que classificou como benfeitorias necessárias/úteis, a quantia que vier a ser liquidada posteriormente até ao limite máximo de € 35.875,41, reconhecendo ainda à A. o direito de retenção sobre o imóvel, até efetivo pagamento daquele valor.

Neste contexto, no que concerne à admissibilidade do recurso subordinado, afigura-se-nos dever distinguir-se em função dos pedidos formulados e do sentido decisório das instâncias.

Assim:

a) - Relativamente ao pedido de condenação no pagamento da indemnização de € 100.000,00, verifica-se - como a própria autora/recorrente tinha, aliás, antecipado - o obstáculo da dupla conforme.

Importa, inclusive, sublinhar que, não obstante a recorrente invocar jurisprudência pretérita do Supremo Tribunal de Justiça que afastava esse impedimento, tal matéria foi objeto de decisão pelo Pleno das secções cíveis deste Tribunal (cf. AUJ n.º 1/2020, publicado no DR I Série de 30.1.2020), que uniformizou jurisprudência no seguinte sentido: “O recurso subordinado de revista está sujeito ao nº 3 do artº 671º do Código de Processo Civil, a isso não obstando o nº 5 do artº 633º do mesmo Código.”.

Por conseguinte, acolhendo a doutrina fixada pelo mencionado acórdão uniformizador, tendo ambas as instâncias julgado improcedente aquele pedido, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, é manifesto não ser admissível o recurso subordinado, nessa parte.

Nem se diga, como faz a recorrente, que a não admissão do recurso subordinado viola o princípio da igualdade e o direito a um processo equitativo, já que, como tem sido reafirmado pelo Tribunal Constitucional, o legislador ordinário goza de ampla margem na conformação concreta do direito ao recurso, desde que não suprima, pura e simplesmente, a faculdade de recorrer, podendo estabelecer e delimitar os respetivos pressupostos de admissibilidade e demais aspetos do regime (vide, entre outros, os recentes acórdãos do TC n.º 23/2020, n.º 153/2019 e n.º 512/2018, in www.tribunalconstitucional.pt

b) - Relativamente ao pedido de pagamento de indemnização pela realização de obras no r/c, a autora/recorrente veio pedir que, no caso da revista principal proceder, se mantenha a condenação de € 35.875,41, embora com fundamento na responsabilidade pré-contratual.

A este respeito, afigura-se-nos que se tratará mais de um caso de ampliação do âmbito do recurso a pedido da ora recorrida, nos termos previstos no art. 636.º, n.º 1, do CPC, do que de um recurso subordinado, por não existir a um verdadeiro decaimento da autora nesta pretensão que justifique a interposição de recurso, ainda que como subordinado .

Ora, não obstante o erro na qualificação, no caso de procedência da revista principal, aquela pretensão recursória (condenação das RR. em indemnização pela realização das obras), será objeto de apreciação por este Tribunal, considerando o invocado fundamento (culpa in contrahendo), em que a parte vencedora decaiu, nos termos previstos no art. 636º, nº1, do CPC.


***

14. A questão central nesta revista consiste em saber se a A. tem, ou não, o direito a  ser indemnizada, a título de benfeitorias, pelas obras que, enquanto arrendatária, realizou no r/c do prédio  identificado nos autos.

Vejamos, então.

No contrato de arrendamento, datado de 1.3.2001, foi clausulado que “o inquilino não poderá fazer quaisquer obras de alteração no local arrendado sem autorização prévia por escrito do(s) Senhorio(s), nem levantar quaisquer benfeitorias por si realizadas, ainda que autorizadamente, nem por elas pedir indemnização ou alegar retenção.”

Do elenco factual dado como provado não resulta, porém, que o senhorio tenha autorizado por escrito a realização das obras em causa.

Provou-se, no entanto, que o senhorio “autorizou e incentivou a A. a fazer as obras, acompanhando-as e fiscalizando-as, assegurando-lhe que lhe transmitiria o direito de propriedade sobre a mesma ou que a cedência do imóvel duraria enquanto esta fosse viva.” - cf. ponto 12, da fundamentação de facto.

Trata-se de matéria de facto dada como provada pelas instâncias e que, no caso em apreço, não cabe a este Supremo Tribunal sindicar.

Ora, como veremos, não obstante, ter sido clausulado que a autorização do senhorio devia ser reduzida a escrito, a inexistência dessa formalidade não afeta a validade da convenção verbal firmada entre as partes.

Em primeiro lugar, importa ter presente que o Regime do Arrendamento Urbano (RAU), aprovado pelo DL 321-B/90, de 15 de Outubro, vigente à data da outorga do contrato, embora proclamasse a regra da sujeição do arrendamento urbano à forma escrita, não invalidava, por razões formais, os contratos celebrados verbalmente (cf. art. 7º, do RAU e o art. 1069º, do CC), configurando, como se sabe, aquela exigência apenas um requisito de prova.

De igual modo, a razão de ser determinante da forma estipulada no contrato para a realização de obras no arrendado encontra a sua justificação na maior facilidade concedida às partes em demonstrar a conformidade da sua atuação com o programa contratual, face às consequências que poderiam advir do seu eventual incumprimento.

Recorde-se, a propósito, que as estipulações verbais (acessórias) só estão sujeitas à forma legal prescrita para a declaração se as razões da exigência especial da lei lhes forem aplicáveis (art. 221º, nº2, do CC), situação que, como se disse, não se verifica. Para além disso, resulta expressamente dos factos provados (v. ponto 12), o motivo que levou o senhorio a conceder à inquilina a aludida autorização, numa manifestação inequívoca de que tal correspondia à sua vontade (art. 221º, nº1, do CC).

Tudo isto para concluir que o acordo verbal entre o senhorio e a inquilina, ora autora, nos termos do qual aquele lhe concedeu autorização para efetuar obras no locado não se mostra inquinado por vício que o invalide.

A idêntica solução se chegaria, aplicando o regime introduzido pelo Novo  Regime do Arrendamento Urbano (NRAU), aprovado pela Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro, em que, muito embora afirmando a sujeição do arrendamento urbano à forma escrita, admite que se prove por qualquer forma admitida em direito, em determinadas condições (art. 1069º, do CC).

Configurando-se como documento de prova, é também neste contexto que deve ser interpretado o nº2, do art. 1074º, do CC, ao exigir a redução a escrito da autorização do senhorio para a realização de obras pelo inquilino normativo que, nesta revista, as recorrentes invocam tendo em vista afastar a validade da convenção verbal das partes.

Como, a propósito, se escreveu num recente acórdão deste Supremo, proferido no processo n.º 5455/15.6T8LSB.L1.S1, desta mesma secção, (Maria dos Prazeres Beleza), em que se discutia a validade de uma autorização tácita concedida pelo senhorio para a realização de obras no locado, quando o contrato previa a redução a escrito dessa autorização, “a razão de ser da necessidade de autorização escrita é a proteção das partes uma em relação à outra – do arrendatário, face às consequências da realização de obras ilícitas, fundamento de resolução do contrato e de eventual pedido de indemnização; do senhorio, perante a eventualidade de o inquilino, “quando acionado, para retardar o seu despejo,  invocar a realização de obras de conservação,  pelas quais pede, em reconvenção, que seja indemnizado, subindo o valor da causa e a sua manutenção no prédio no exercício de um direito de retenção”  (Pinto Furtado, Comentário  cit., pág. 355). Ou seja, para além da facilidade de prova, não estão presentes as razões que levam ao afastamento do princípio da liberdade de forma e a imposição de forma legal.”.

Reafirma-se, portanto, não haver fundamento para invalidar o acordo verbal aqui posto em causa.

Acresce que:

No contexto dos autos, a invocação pelas RR. da cláusula contratual em questão (v. ponto 12, dos factos provados) configuraria – tal como acertadamente se decidiu no acórdão recorrido - abuso de direito.

Com efeito:

O art. 334º, do CC estabelece que «é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito».

A aplicação do abuso de direito depende obviamente da prova dos competentes factos constitutivos, e, neste particular, exige-se dos Tribunais o maior critério e precisão na aplicação do instituto, a fim de não introduzir no sistema acrescidos fatores de insegurança jurídica.[6]

Como se sabe, o abuso de direito pressupõe manifesto excesso ou desrespeito clamoroso dos limites axiológico-materiais do direito invocado, sendo naturalmente exigível a prova desse excesso – v. Teixeira de Sousa, As Partes, o Objeto e a Prova, na Ação Declarativa, 201.

Tais limites advêm de conceitos tão indeterminados, quanto os da função social e económica, os bons costumes e a boa fé.

O «venire contra factum proprium», que é precisamente uma das formas do abuso de direito, assenta numa situação objetiva de confiança, reveladora de que o titular do direito aceita o «status quo» definitivamente – o chamado comportamento concludente.

No caso dos autos, como se referiu no acórdão sob impugnação, “o que se verifica é que o direito reclamado pela A. por benfeitorias por si realizadas no locado respeita a obras de reparação/beneficiação que, contribuindo para a valorização do imóvel, ali empreendeu no mesmo ano em que celebrou o contrato de arrendamento respetivo (2001), sendo que tais obras foram autorizadas pelo proprietário DD que a incentivou a realizá-las e que as acompanhou e fiscalizou, assegurando-lhe que lhe transmitiria o direito de propriedade daquele espaço ou que a cedência do mesmo duraria enquanto esta fosse viva, tendo sido nesse pressuposto que a A. as levou a cabo (pontos 10 a 13 supra).

Deste modo, e uma vez gorado o propósito que presidiu a essa realização com o reclamado pedido de entrega do r/c pelas RR., atuais proprietárias do imóvel (ponto 21 supra agora aditado), afigura-se abusivo que as mesmas possam prevalecer-se da indicada cláusula 9ª para obstar a que a A. invoque o seu direito a benfeitorias relativamente às ditas obras.

A não ser assim, existiria uma evidente e ilegítima desproteção da A. que empreendeu aquelas concretas obras de reparação/beneficiação do r/c confiada na sua definitiva permanência no mesmo (convicta até, no decurso de 2001, de que a respetiva propriedade lhe seria transmitida - cfr. pontos 1 a 7 e 12 a 16, supra) e incentivada pelo proprietário do imóvel, vendo-se agora despojada do mesmo e as RR., em contrapartida, beneficiadas com os melhoramentos assim introduzidos.

Seria tal cenário despropositado nos concretos contornos do caso e contrário às mais elementares regras da boa fé contratual.

Donde, concluímos que, à luz do disposto no art. 334 do C.C., não podem as RR. obstar à pretensão da A. neste tocante com fundamento na indicada cláusula 9ª do contrato de arrendamento.”.

A A. tem, por conseguinte, direito a uma compensação pelas obras que licitamente fez no locado, nos termos aplicáveis às benfeitorias realizadas pelo possuidor de boa fé (cf. art. 120º, nº3, do RAU e, atualmente, art. 1074º, nº5, do CC).

Vejamos, agora, em que termos.[7]

Na definição legal (art. 216º, do CC), benfeitorias são todas as despesas feitas para conservar ou melhorar a coisa.

Como resulta do art. 216º, nº3, do mesmo Código, as benfeitorias classificam-se em necessárias (as que têm por fim evitar a perda, destruição ou deterioração da coisa); úteis (as que, não sendo indispensáveis para a sua conservação, lhe aumentam, todavia, o valor) e voluptuárias (as que, não sendo indispensáveis para a sua conservação nem lhe aumentando o valor, servem apenas para recreio do benfeitorizante).

A qualificação das benfeitorias tem consequências importantes no regime de outros institutos.

Segundo dispõe o art. 1273º, nº1, do CC tanto o possuidor de boa fé como o de má fé têm direito a ser indemnizados das benfeitorias necessárias que hajam feito, e bem assim a levantar as benfeitorias úteis realizadas na coisa, desde que o possam fazer sem detrimento dela.

Por sua vez, estabelece o nº2, do mesmo artigo que, quando, para evitar o detrimento da coisa, não haja lugar ao levantamento das benfeitorias, satisfará o titular do direito ao possuidor o valor delas, calculado segundo as regras do enriquecimento sem causa.

Tem sido entendido que o disposto naquele preceito legal “só se aplica, de modo direto, à posse propriamente dita, e não à mera detenção ou posse precária. É de notar, porém, que o normativo é mandado aplicar em vários destes casos.”.[8]

Estão, designadamente, nesta situação o locatário, o usufrutuário, o comodatário e o donatário, a quem a lei confere direitos equiparados ao possuidor em nome próprio (cf. arts. 1074º, 1046º, 1138º, 1450º e 2177º, todos do CC).

De todo o modo, mesmo que assim não fosse, o direito do detentor no que respeita a «obras» realizadas na coisa, suportadas pelo seu património, poderia ancorar-se em redor da disciplina subsidiária do enriquecimento sem causa (arts. 473º e ss., do CC).

Dito isto.

As «obras» realizadas no local arrendado pela autora, atento o disposto nos pontos 10 e 11 da factualidade provada (com exceção das que foram excluídas pela decisão recorrida), e à luz do critério legal plasmado no art. 216º, do CC devem ser qualificadas – como acertadamente se entendeu no acórdão recorrido - como benfeitorias necessárias e/ou úteis, por estarem em causa despesas de reparação indispensáveis para a conservação da coisa ou, pelo menos, por terem contribuído para a sua valorização.

Por seu turno, ainda que (algumas delas) devam ser  qualificadas como benfeitorias úteis, não se provou que possam ser levantadas sem detrimento do prédio, onde foram implantadas.

Está, assim, aberto o caminho para a autora obter o valor correspondente calculado segundo as regras do enriquecimento sem causa (art. 1273º, do CC), a liquidar posteriormente, tal como se reconheceu no acórdão recorrido.

Em face do exposto, é inquestionável que à A. assiste o direito de retenção sobre o locado, nos termos expressamente consagrados no art. 754º, do CC.

Improcede, pois, o recurso interposto pelas RR., ficando, consequentemente, prejudicado o conhecimento da ampliação do objeto do recurso, requerida pela A./recorrida, a título subsidiário.

IV – Decisão

15. Nestes termos, acorda-se em negar a revista.

 Custas pelas recorrentes.

Lisboa,  10.9.2020

Relatora: Maria do Rosário Correia de Oliveira Morgado

1º Adjunto: Oliveira Abreu

2º Adjunto: Ilídio Sacarrão Martins

Nos termos e para os efeitos do disposto no art. 15º-A, do Decreto-Lei nº 20/2020, atesto que, não obstante a falta de assinatura, os Senhores Juízes Conselheiros Adjuntos deram o correspondente voto de conformidade.

(Ilídio Sacarrão Martins)

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[1] Este montante foi posteriormente reduzido em € 785,61.
[2] Redação introduzida pela Relação.
[3] Matéria aditada pela Redação.
[4] Matéria aditada pela Relação.
[5] Matéria aditada pela Relação.
[6] Cf. Menezes Cordeiro, Da Boa Fé, 770 e ss.
[7] Segue-se, aqui, de perto, o acórdão da mesma relatora proferido em 20.11.2019, no processo nº 401/13.4T2AND.P1.S3, publicado in www.dgsi.pt.
[8] Pires de Lima e Antunes Varela, CC anotado, Vol. II, Coimbra Editora, 1984, pág. 44.