Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
15682/21.1YIPRT-A.L1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: RICARDO COSTA
Descritores: ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
RECURSO DE APELAÇÃO
RECURSO DE REVISTA
REJEIÇÃO DE RECURSO
RECLAMAÇÃO
RECLAMAÇÃO PARA A CONFERÊNCIA
ESGOTAMENTO DOS RECURSOS
CONSTITUCIONALIDADE
ESTADO DE DIREITO
Data do Acordão: 12/13/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NÃO TOMAR CONHECIMENTO DO OBJECTO DO RECURSO.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO.
Sumário :

O acórdão do Tribunal da Relação que se pronuncia em Conferência sobre a admissibilidade do recurso de apelação, no âmbito do incidente de reclamação do despacho do juiz da 1.ª instancia que não admitiu o recurso interposto (art. 643º, 4, 2.ª parte, 652º, 3, do CPC), julga em definitivo a questão da inadmissibilidade ou da subida do recurso de apelação (únicos resultados decisórios admitidos pelo art. 643º, 4, 1.ª parte, do CPC), sem que para contrariar essa definitividade decisória possa ser usada a faculdade admitida pelo art. 652º, 5, b), na relação com os arts. 671º, 1 e 2, do CPC.

Decisão Texto Integral:


Processo n.º 15682/21.1YPRT-A.L1.S1

Revista – Tribunal recorrido: Relação de Lisboa, ... Secção

Acordam em Conferência na 6.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça

I) RELATÓRIO


1. «Banco Comercial Português, S.A.» intentou procedimento especial de injunção contra AA, distribuído como acção especial para cobrança de obrigações pecuniárias, peticionando a sua condenação no pagamento da quantia de € 359,51, mais juros de mora no montante de 21,34, acrescida de juros vencidos até pagamento integral.

2. Foi proferida em 16/2/2022 sentença que declarou a extinção da instância por inutilidade superveniente da lide, nos termos do art. 277º do CPC, tendo em conta a informação dada pelo Autor sobre o pagamento extra-judicial pelo Réu-Requerido da quantia em dívida; fixou-se o valor da causa em € 380,85.

3. Inconformado, o Réu-Requerido apresentou recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Lisboa (TRL).

4. Foi proferido despacho de não admissão do recurso pelo Juiz ... do Juízo Local Cível ..., nos termos do art. 642º, 1, a), do CPC, em 23/4/2022, com a seguinte fundamentação:
“(…) atendendo ao valor da causa, o qual é manifestamente inferior ao valor da alçada deste Tribunal, o recurso ordinário não é admissível, nos termos do artigo 629.º, n.º 1, primeira parte, do Código de Processo Civil, sendo certo que também não se encontra (…) numa das situações previstas nas alíneas dos n.os 2 e 3 do artigo 629.º do Código de Processo Civil.”

5. Na sequência, o Réu-Requerido deduziu Reclamação ao abrigo do regime predisposto pelo art. 643º do CPC.

6. Distribuído no tribunal superior, o Senhor Juiz Desembargador do TRL proferiu decisão singular em 12/7/2022, a indeferir liminarmente a Reclamação, por manifestamente improcedente.

7. Após reclamação para a Conferência deduzida pelo Reclamante, o TRL proferiu acórdão (ex vi arts. 643º, 4, 2ª parte, 652º, 3, CPC) em 22/9/2022, “mantendo-se a decisão reclamada”.

8. Sem se resignar, o Reclamante interpôs recurso de revista normal e de revista excepcional para o STJ desse acórdão, tendo por base o previsto no art. 671º, 2, e 672º, 1, a) e c), do CPC (neste último caso alegando contradição em relação a dois acórdãos do STJ e três acórdãos das Relações), tendo em vista, em particular, revogar a decisão recorrida e proferida no âmbito da Reclamação enquadrada e regida pelo art. 643º do CPC, assim como declarar as nulidades processuais que alega em relação à sentença proferida em 1.ª instância e ao acórdão recorrido e não poderiam deixar de ser conhecidas e declaradas em função do despacho que considerou que a acção não tinha valor para recurso.
O Senhor Juiz Desembargador Relator do TRL proferiu despacho de admissão do recurso, com a simples menção: “Subam os autos.”

9. Foi proferido despacho pelo aqui Relator no exercício da competência e para os efeitos do art. 655º, 1, ex vi art. 679º, do CPC, confrontando as partes com as circunstâncias processuais que obstariam à admissibilidade e conhecimento do objecto do recurso de revista:

“O acórdão da Relação proferido em conferência que confirma o despacho singular do Relator de não admissão do recurso de apelação, em sede de Reclamação do despacho do juiz de 1.ª instância que rejeitou esse mesmo recurso de apelação, resulta de uma impugnação própria, constante dos arts. 641º, 6, 643º, 3 e 4, e 652º, 3, 1.ª parte, do CPC, e autónoma em face das previsões recursivas dos arts. 671º e 672º do CPC, o que conferirá o carácter de definitividade decisória a esse acórdão da Relação, por ser insusceptível de qualquer outra impugnação no âmbito restrito do incidente de Reclamação ex art. 643º do CPC.”

10. O Recorrente pronunciou-se e sustentou que o recurso deveria ser conhecido nas questões alegadas na revista, sendo julgado procedente por provado, alegando no mesmo sentido anterior, sem, porém, responder aos termos que fundamentaram o despacho de não admissão do recurso de apelação, confirmado pelo acórdão recorrido, nem aos termos descritos no despacho proferido no âmbito do art. 655º do CPC.


Foram dispensados os vistos nos termos legais.

Cumpre apreciar e decidir, desde logo sobre a admissibilidade da revista. 

II) APRECIAÇÃO DO RECURSO E FUNDAMENTAÇÃO

Questão prévia da admissibilidade do recurso

11. O acórdão da Relação proferido em Conferência que confirma o despacho singular do Relator em 2.ª instância de não admissão do recurso de apelação, em sede de Reclamação do despacho do juiz de 1.ª instância que rejeitou esse mesmo recurso de apelação, resulta de uma impugnação própria, constante dos arts. 641º, 6, 643º, 3 e 4, e 652º, 3, 1.ª parte, do CPC. Um acórdão da Relação que confirma a decisão da 1.ª instância e do Relator em 2.ª instância, ligados pelo resultado decisório comum de rejeição do recurso de apelação dessa decisão de 1.ª instância, segue a disciplina e a lógica do regime do incidente de reclamação, estabelecido no art. 643º do CPC, assim como os seus desfechos possíveis e excludentes de nova impugnação: “ou o recurso é admitido e o relator requisita o processo ao tribunal recorrido; ou o despacho de não recebimento de recurso é mantido e[,] então, o processo incidental é remetido ao tribunal reclamado, para o processo prosseguir aí os seus termos”[1].

12. Uma vez proferido tal acórdão, a decisão recorrida não pode ser enquadrada em qualquer das situações previstas para a revista, normal ou excepcional, tal como previstas nos arts. 671º, 1, 2, e 672º, 1 e 2, do CPC.

O STJ, em Decisão Singular de 12/2/2018 (art. 652º, 1, h), ex vi art. 679º, CPC)[2], asseverou tal conclusão, com clareza e argumentação plural que merecem concordância, uma vez que a recorribilidade nos termos gerais prevista nesse normativo – com especial atendibilidade do art. 671º, 1 e 2, do CPC – não pode ser de todo e aqui admitida.

Atentemos.

“No CPCivil de 1939 a impugnação do despacho de rejeição do recurso era passível de um recurso de queixa a interpor para o Presidente do Tribunal hierarquicamente superior, o qual passou a ser extensível ao despacho que retivesse o recurso, cfr artigo 689º daquele diploma legal, cfr JAReis, Código de Processo Civil Anotado, Volume V, reimpressão, 340/351.  

Posteriormente, com a aprovação do CPCivil de 1961, eliminou-se aquela terminologia, passando a designar-se reclamação, e se o Presidente indeferisse a reclamação, a sua decisão era definitiva, artigo 689º, nº2; se a deferisse, o processo baixava à instância recorrida para que fosse admitido o recurso ou mandasse subir o recurso retido, embora aquele despacho não fizesse caso julgado formal, podendo o Tribunal de recurso decidir em sentido contrário, artigo 689º, nº2.        

Na reforma de 2007, manteve-se o nomen juris de reclamação, mas estruturalmente passou a ter uma configuração de recurso: a competência para o conhecimento da reclamação passou a impender sobre o Relator do Tribunal que seria competente para julgar o recurso, artigo 688º, nos 3 e 4; se o Relator admitisse o recurso, solicitava o processo ao Tribunal recorrido, podendo subsequentemente a conferência não o admitir, por sugestão dos Adjuntos, artigo 708º; se o Relator, por despacho singular, não admitisse o recurso, a parte prejudicada por esse despacho podia reclamar para a conferência, nos termos do artigo 700º, nº3, cfr. Armindo Ribeiro Mendes, Recursos em Processo Civil, Reforma de 2007, 109/113.      

O CPCivil de 2013 manteve a reclamação com a mesma estrutura de recurso, cfr. artigo 643º.

Assim.


(…)
Esta estrutura de recurso que ora é atribuída à reclamação, porquanto a mesma é julgada pelo Colectivo que julgaria o recurso se o mesmo tivesse sido admitido, obsta à recorribilidade da decisão, sem prejuízo de poder haver recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade para o Tribunal Constitucional, nos termos do artigo 75º-A da LTC, cfr. Amâncio Ferreira, ibidem; Armindo Ribeiro Mendes, ibidem; Cardona Ferreira, Guia de Recursos em Processo Civil, 4ª edição, 121; José Lebre de Freitas, Armindo Ribeiro Mendes, Código de Processo Civil Anotado, Volume 3º, 46; José Lebre de Freitas, Armindo Ribeiro Mendes, Código de Processo Civil Anotado, Volume 3º, Tomo I, 2ª edição, 72/76.
Ora, não sendo possível a Revista, por o Tribunal da Relação não ter admitido o recurso interposto, o Acórdão produzido em Conferência não se afigura impugnável, nos termos do artigo 671º, nº1 do CPCivil, por o mesmo não ter conhecido do mérito da causa.
De outra banda, também se não verifica qualquer das situações a que se referem as várias alíneas do nº 2 do artigo 671º, do CPCivil, já que não estamos perante uma decisão interlocutória, de estrita natureza incidental e que verse unicamente sobre a relação processual, mas antes face a uma decisão final proferida no âmbito de procedimento de reclamação.”

13. Estas mesmas razões foram sufragadas pelos recentes Acs. do STJ (nomeadamente desta Secção), de 17/12/2019[3], 19/5/2020[4], 13/10/2020[5], 26/1/2021[6], 28/4/2021[7], 17/11/2021[8], de 13/9/2022[9] e de 9/11/2022[10].

Julgaram consensualmente que, consistindo o presente objecto recursivo, exclusivamente, na reapreciação do acórdão da Relação de confirmação do despacho singular de não admissão do recurso de apelação, tal objecto está manifestamente excluído de pronúncia nesta sede, nomeadamente por via do art. 671º, 1, do CPC – e muito menos por via do art. 672º, pois de revista ainda se trata, ainda que na modalidade excepcional para a dupla conformidade das decisões das instâncias, que aqui não se discute: não é de nenhum acórdão da Relação que reaprecie a decisão de 1.ª instância que se interpõe revista –, justamente por, independentemente das razões que fundaram a decisão do acórdão recorrido, assumir o carácter jusprocessual da definitividade decisória.

14. Em suma, como se concluiu no Ac. do STJ de 10/11/2020[11]:


(i) o incidente da reclamação prevista no artigo 643.º do CPC apresenta-se como um expediente de impugnação que versa sobre a não admissão de recurso e visa em exclusivo o efeito adjectivo-processual de modificação pelo tribunal ad quem do despacho de não admissão do recurso pelo tribunal a quo; uma vez proferido acórdão em Conferência, por efeito de nova reclamação da decisão do Relator que confirmara o despacho de 1.ª instância de não admissão do recurso de apelação, de acordo com o previsto nos arts. 643º, 4, 2.ª parte, e 652º, 3, do CPC, estamos perante decisão definitiva e insusceptível de qualquer outra impugnação;

na medida em que também concorre para esta conclusão;

(ii) a esta decisão inserida no incidente de reclamação e tomada a final em Conferência não se aplica a previsão do art. 652º, 5, b), do CPC («recorrer nos termos gerais»), enquanto faculdade de recurso de revista permitida nos termos gerais do art. 671º para as decisões proferidas no âmbito do art. 652º, 3, do CPC, pois nem estamos perante o elenco de decisões da Relação abrangidas pelo n.º 1 – em particular, às que se referem como colocando nesse campo «termo ao processo»[12] –, nem sequer perante uma decisão da Relação que aprecie decisão interlocutória proferida pela 1.ª instância que incida exclusivamente sobre a relação processual (como parece ter sido a base da pretensão do Reclamante, ao aludir ao art. 671º, 2) – antes uma decisão final e definitiva de 2.ª instância no âmbito restrito do incidente de Reclamação.

15. Tal solução não coloca qualquer vício de inconstitucionalidade, nomeadamente à luz da “igualdade de armas” das partes e da tutela jurisdicional efectiva que a CRP consagra (arts. 13º, 20º, 1 e 4), como inúmeras vezes e em oportunidades diversas de discussão processual tem sido reiterado por este STJ.
Com efeito, é entendimento aceite na doutrina e na jurisprudência constitucional que o legislador tem um amplo poder de conformação na concreta modelação processual, neste caso aplicado aos regimes de impugnação recursiva, desde que não se estabeleçam mecanismos arbitrários ou desproporcionados de compressão ou negação do direito à prática desses actos (incidente aqui na impugnação recursiva).
Não é aqui o caso. Ao invés, toda a fundamentação aqui aduzida, que concorre para a rejeição de recurso em conformidade com o regime próprio da Reclamação em sede de inadmissibilidade de recurso, não configura uma situação de negação de acesso à justiça que afronte os princípios basilares de um Estado de Direito (particularmente o de «respeito e garantia de efectivação dos direitos e liberdades fundamentais», tal como prescrito no art. 2º da CRP). A Constituição faculta ao legislador um grande espaço de definição e é desejável que assim o faça nesta matéria da impugnação recursiva (em geral e em especial) e das condições básicas que os interessados têm que conhecer e cumprir para a ela ter acesso, sob pena de frustração dos interesses visados – vistos e compreendidos, numa globalidade sistemática e racional, os arts. 641º, 1 a 3, 5, 6, 643º, 652º, 3 a 5, e 671º, 1 e 2, do CPC.

III) DECISÃO

Em conformidade, acorda-se em não tomar conhecimento do objecto do recurso de revista.

Custas a cargo do Recorrente, sem prejuízo do benefício de apoio judiciário.

STJ/Lisboa, 13 de Dezembro de 2022

Ricardo Costa (Relator)

António Barateiro Martins

Luís Espírito Santo


SUMÁRIO DO RELATOR (arts. 663º, 7, 679º, CPC).

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[1] Ac. do STJ de 24/10/2013, processo n.º 7678/11.8TBCSC-A.L1.S1, Rel. OLIVEIRA VASCONCELOS, para o regime estabelecido no art. 688º do CPC de 1961, in www.dgsi.pt.
[2] Processo n.º 181/95.7TMSTB-E-E1.S2, Rel. ANA PAULA BOULAROT, in www.dgsi.pt.
[3] Processo n.º 2589/17.6T8VCT-A.G1-A-S1, Rel. MARIA DA GRAÇA TRIGO, in www.dgsi.pt.
[4] Processo n.º 361/04.2TBSCD-S.C1.S1, Rel. MARIA DA ASSUNÇÃO RAIMUNDO, in https://jurisprudencia.csm.org.pt/ecli/ECLI:PT:STJ:2020:361.04.2TBSCD.S.C1.S1/.         
[5] Processo n.º 4044/18.8T8STS-B.P1, Rel. GRAÇA AMARAL, in www.dgsi.pt, com uma nota decisiva e pertinente para a pretensão da aqui Recorrente:
“a especificidade da situação não se coaduna com as pretensões delineadas pelo Recorrente manifestadas e elencadas nas conclusões do recurso (que o Recorrente pretendia ver conhecidas no recurso de apelação que interpôs e que não foi admitido), uma vez que as mesmas (…) extravasam o âmbito da questão que processualmente se mostra passível de conhecimento nesta sede e que se reconduz, unicamente, em primeira linha (questão prévia) à admissibilidade legal do próprio recurso agora interposto”.

[6] Processo n.º 19477/16.6T8SNT-B.L1.S1, Rel. MARIA OLINDA GARCIA, sendo 1.º Adjunto o aqui Relator, in www.dgsi.pt.

[7] Processo n.º 206/14.5T8OLH-W.E1.S1, Rel. RICARDO COSTA, in www.dgsi.pt.

[8] Processo n.º 8385/16.0T8VNG-H.P1-A.S1. Rel. RICARDO COSTA, in www.dgsi.pt.
[9] Processo n.º 23178/09.3YYLSB-G.L1-A.S1, Rel. MARIA CLARA SOTTOMAYOR, in www.dgsi.pt.
[10] Processo n.º 3972/19.8T8GMR-A.G1-A.S1, Rel. GRAÇA AMARAL, sendo 2.º Adjunto o aqui Relator, ainda inédito.

[11] Processo n.º 2657/15.9T8LSB-S.L1-A.S1, Rel. RICARDO COSTA, in www.dgsi.pt.
[12] Concordante, ABRANTES GERALDES, Recursos no novo Código de Processo Civil, 5.ª ed., Almedina, Coimbra, 2018, sub art. 671º, nt. 507 – pág. 353.