Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
19/16.0YGLSB-J.S3
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: ANTÓNIO GAMA
Descritores: RECLAMAÇÃO
NULIDADE
INDEFERIMENTO
Data do Acordão: 06/17/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: ACLARAÇÃO INDEFERIDA.
Sumário :
I- Um requerimento a arguir nulidade, mas manifestamente improcedente, não é, só por si, fundamento de condenação em taxa sancionatória excecional, principalmente quando se decidiram questões em matéria com relativa novidade e complexidade.
Decisão Texto Integral:




Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça

I.

1. Notificados do acórdão que decidiu recurso interposto da decisão que decretou o arresto vieram os arrestados AA e BB, «arguir nulidade» com os seguintes fundamentos (transcrição):

(…)

3.A folhas 105 do douto acórdão, colhe-se a seguinte decisão:

“Na parcial procedência do recurso de AA e BB, revoga-se a decisão recorrida na parte em que decreta o arresto preventivo para garantia de confisco/perda clássica; revoga-se ainda da decisão recorrida na parte em que decreta o arresto para garantia de confisco/perda alargada no valor de 81.089,35€. No mais improcede o recurso.” (sublinhados nossos).

4.Porém, no acórdão prolatado em 15-04-2021, entendeu o Venerando STJ:

(a) Não existir fundamento legal para a perda clássica (pag. 97 § 51);

(b) Não existir fundamento legal para a perda alargada (pags. 101 e 102, §§ 61 e 62);

5.Ora, se assim foi entendido, isto é, tendo o Venerando STJ decidido inexistirem os pressupostos para o arresto para garantia, quer em perda de clássica, quer em perda alargada, não poderia a decisão ser a de o recurso ser julgado apenas parcialmente, mas totalmente procedente. Aliás,

6. Do discurso de fundamentação do douto acórdão, no que aos Recorrentes diz respeito, parece fluir a ideia da procedência total, salva uma parte em que, salvo o devido respeito, se afigura ter-se o Tribunal equivocado, com efeito na redacção da decisão final. Assim,

7.Colhe-se a folhas 102 e 103 do acórdão:

“…é contabilizada para o efeito da perda alargada, quantia que é, segundo o MP, o resultado de um concreto crime de fraude fiscal cuja autoria é imputada a ambos os arguidos. Manda o rigor que se diga, relativamente às parcelas de €6.487,41 (ano de 2016) e €5.869,00 (ano de 2017) nem sequer há crime; a existir ilícito, segundo o MP, há apenas ilícito contra-ordenacional. Por simplificação de raciocínio, o resultado de um concreto crime de fraude fiscal, cuja coautoria é imputada aos arguidos, não pode entrar nas contas da perda alargada, quer porque a fraude fiscal não pertence ao catálogo (art.º 1.º, Lei 5/2002), quer fundamentalmente porque, apurando-se que o valor em causa resulta de um concreto crime, cuja autoria se imputa aos requeridos, não há lugar ao funcionamento de qualquer presunção de que aquele valor ser proveniente de actividade criminosa. De outro modo a ficção sobrepunha-se à verdade processual” (sublinhados nossos).

8. E a folhas 103 do acórdão consta o § 62 onde se lê:

“Procede parcialmente o recurso dos recorrentes AA e BB, pelo que o arresto para garantir a perda alargada pelo valor de €133.009,49 não pode subsistir para garantia do montante global liquidado, mas apenas pela diferença (€133.009,49-€81.089,35=€51.920,14)”

9.Ou seja, o Tribunal subtraiu o valor em perda alargada (133.099,49€) – relativamente ao qua entendeu inexistirem os pressupostos – o valor da perda clássica (81.089,49] e manteve o arresto pela diferença.

10. Mas se o Tribunal já tinha entendido inexistirem os pressupostos de ambos os termos não havia fundamento lógico nem jurídico para apurar uma diferença.

11. Atento o exposto, impõe-se que o douto acórdão seja rectificado extraindo-se a única conclusão logica do seu percurso argumentativo: declarando-se a total procedência do recurso e ordenando-se o levantamento do arresto.

12. Sem prejuízo do exposto, e para a hipótese, que se tem por meramente académica de o presente requerimento não proceder, ocorrendo provimento parcial, impunha-se identificar os bens relativamente aos quais o arresto seria levantado.

13. É que, estando em causa contas bancárias e imóveis, a indeterminação determinará que, na prática, não possa ser dada execução ao levantamento.

14. Já que, na falta de indicação precisa do Tribunal sobre quais dos bens a serem desembaraçados, não será possível que tal suceda, já que não está deferido, nem às instituições bancárias nem as Conservatórias de Registo Predial o poder de escolher de entre os bens a desembaraçar quais os que o são e quais os que não o são.

2. Respondeu o M.º P.º sustentando em conclusão que (transcrição):

1 -A nulidade invocada não encontra respaldo na previsão do artigo 379.º do CPP ou em qualquer outra norma do CPP, pelo que não deverá ser dada por verificada, em obediência ao princípio da tipicidade consagrado no artigo 118.º deste diploma legal;

2 -O parágrafo 61 do Acórdão reproduz matéria alegada pelos recorrentes e o parágrafo 62 não conclui “Não existir fundamento legal para a perda alargada”, expressão em que o arguente fundamenta a alegada contradição entre a fundamentação e a decisão;

3 -O Acórdão também não padece de qualquer obscuridade ou ambiguidade a impor a sua correção ou de qualquer irregularidade que gere impedimento ao cumprimento/concretização do seu dispositivo – até porque a decisão de arresto autonomizou os bens que deveriam garantir a perda clássica e os bens que deveriam garantir a perda ampliada;

4-Devendo mesmo os requerentes ser condenados no pagamento de taxa sancionatória excecional, nos termos e com os fundamentos previstos nos artºs 521.º do CPP, 531.º do CPC e 10.º do Regulamento das Custas Processuais, vista a natureza manifestamente improcedente do seu requerimento e a sua imprudente/temerária actuação.

3. Colhidos os vistos e realizada conferência importa decidir.

O direito:

1. O Código de Processo Penal contém regras próprias sobre a matéria das nulidades em geral e da sentença em particular, pelo que está vedado o chamamento do CPC via artigo 4.ºdo CPP, como realça o M.º P.º.

2. O que pretendem os requerentes é uma correção do acórdão. Dispõe o art. 425.º/4, CPP, que é correspondentemente aplicável aos acórdãos proferidos em recurso o disposto nos artigos 379.º e 380.º. E, em matéria correção do acórdão, dispõe o art. 380.º/1, CPP, que o tribunal procede, oficiosamente ou a requerimento, à correção da sentença quando (a) fora dos casos previstos no artigo anterior, não tiver sido observado ou não tiver sido integralmente observado o disposto no artigo 374.º; (b) a sentença contiver erro, lapso, obscuridade ou ambiguidade cuja eliminação não importe modificação essencial.

3. Começa por se referir que não é correta a transcrição do acórdão que fazem os requerentes no ponto 3. do seu pedido de correção. No acórdão consta «… revoga-se ainda a decisão» e não como por lapso referem os reclamantes «… revoga-se ainda da decisão».

4. No juízo dos reclamantes o erro do tribunal consiste no seguinte:

3.A folhas 105 do douto acórdão, colhe-se a seguinte decisão (agora expurgada do lapso dos reclamantes):

“Na parcial procedência do recurso de AA e BB, revoga-se a decisão recorrida na parte em que decreta o arresto preventivo para garantia de confisco/perda clássica; revoga-se ainda a decisão recorrida na parte em que decreta o arresto para garantia de confisco/perda alargada no valor de 81.089,35€. No mais improcede o recurso.” (sublinhados nossos).

4.Porém, no acórdão prolatado em 15-04-2021, entendeu o Venerando STJ:

(a) Não existir fundamento legal para a perda clássica (p. 97 § 51);

(b) Não existir fundamento legal para a perda alargada (p. 101 e 102, §§ 61 e 62);

5.Ora, se assim foi entendido, isto é, tendo o Venerando STJ decidido inexistirem os pressupostos para o arresto para garantia, quer em perda de clássica, quer em perda alargada, não poderia a decisão ser a de o recurso ser julgado apenas parcialmente, mas totalmente procedente.

5. Recuperemos o que foi dito na decisão recorrida:

(…)

§ 51 Procede nesta parte o recurso dos arguidos AA e BB, a originar revogação da decisão na parte em que decretou o arresto para garantir o confisco/perda clássica, por falta de verificação do requisito periculum in mora.

§ 61 Uma primeira nota para esclarecer que o arresto tendo em vista a garantia do confisco/perda alargada apenas foi decretado em relação ao AA. Alegam os recorrentes AA e BB que o MP «imputou ao AA a prática do crime de abuso de poder, p. e p. pelo art. 382.º, CP e do crime de corrupção passiva para ato ilícito, p. e p. pelo artigo 373.º, CP, imputando a título de vantagem patrimonial indevida integrante desse tipo, apenas e tão só a solicitação de bilhetes para dois ou três jogos de futebol [artigos 952 a 956 (fls. 12177) 979, (fls. 12180), 984 a 996 (fls. 12181 a 12183), 1556 a 1565 e 1574 (fls. 12.246 a 12248), 1589 (fls 12.250)]. Imputa ainda ao AA e à BB em coautoria a prática do crime de fraude fiscal, p. e p. pelo artigo 103.º/1/b/2/3, RGIT, referindo a folhas 12.711 dos autos (artigos 4694 a 4697), que tal decorre do facto de os rendimentos (pelos quais vem a pedir a perda alargada…) decorrem de rendimentos do trabalho dependente da Recorrente mulher não declarados. Ou seja, para o MP, como “vantagem indevida” para efeitos de integração do tipo da corrupção, o recorrente marido teria solicitado bilhetes para o futebol e para integrar o crime de fraude fiscal, o MP sustenta que não foram declarados rendimentos do trabalho dependente da Recorrente mulher; todavia, requereu, e viu-lhe deferido, o arresto em perda alargada, nos termos dos artigos 1.º, 7.º e 10.º da Lei n.º 5/2002, de 11/01, de bens que, a constituírem produto de crime, o seriam apenas, na perspetiva do MP, do crime de fraude fiscal, nada tendo a ver com o crime de corrupção, pelo que a douta decisão a quo, decretando o arresto de bens como garantia da perda alargada fê-lo ao arrepio dos preceitos indicados na alínea anterior, já que o crime de fraude fiscal não permite tal».

§ 62. No essencial, assiste razão aos recorrentes AA e BB, pois é contabilizada para o efeito da perda alargada, quantia que é, segundo o M.º P. º, o resultado de um concreto crime de fraude fiscal cuja coautoria é imputada a ambos os arguidos. Manda ainda o rigor que se diga, relativamente às parcelas de €6.487,41 (ano de 2016) e €5.869,00 (ano de 2017) nem sequer há crime; a existir ilícito, segundo o M.º P.º, há apenas ilícito contraordenacional. Por simplificação de raciocínio, o resultado de um concreto crime de fraude fiscal, cuja coautoria é imputada aos arguidos, não pode entrar nas contas da perda alargada, quer porque a fraude fiscal não pertence ao catálogo (art. 1.º, Lei 5/2002), quer fundamentalmente porque, apurando-se que o valor em causa resulta de um concreto crime, cuja autoria se imputa aos requeridos, não há lugar ao funcionamento de qualquer presunção de aquele valor ser proveniente de atividade criminosa. De outro modo a ficção sobrepunha-se à verdade processual. O regime da Lei 5/2002 é excecional, consagra um meio específico do regime particular – e particularmente drástico – de resposta, preventiva e repressiva à criminalidade organizada e económico-financeira (MANUEL COSTA ANDRADE /MARIA JOÃO ANTUNES, RPCC 27, 2017, p. 141) que só deve ser aplicado nos seus precisos termos. Como já referimos, resultando os bens ou vantagens, de um crime concreto, quer seja do catálogo (art. 1.º, Lei 5/2002), quer não seja do catálogo, ficam sujeitos ao regime geral da perda dos instrumentos, produtos ou vantagens do crime (art. 109º e ss. CP), não sendo necessário presumir a sua proveniência de uma qualquer atividade criminosa. O confisco alargado não afasta o regime geral, sendo uma medida complementar ou adicional, que visa preencher uma lacuna legal. O mesmo deve acontecer com os seus lucros, juros, ou outras vantagens, que só devem ser imputados no património incongruente (art. 7.º/3, L 5/2002) quando não for possível proceder ao seu confisco direto (art. 111.º/3, CP, JOÃO CONDE CORREIA, Da proibição…, p. 109 (221) aqui seguido de muito perto).

6. O decidido foi «pedido» na interposição de recurso pelos agora requerentes. Depois, resulta claro clarinho que nos §§ indicados pelos reclamantes, não se diz não existir fundamento legal para a perda alargada, diz-se apenas § 62 que «no essencial, assiste razão aos recorrentes AA e BB, pois é contabilizada para o efeito da perda alargada, quantia que é, segundo o M.º P. º, o resultado de um concreto crime de fraude fiscal cuja coautoria é imputada a ambos os arguidos». E depois que «o resultado de um concreto crime de fraude fiscal, cuja coautoria é imputada aos arguidos, não pode entrar nas contas da perda alargada, quer porque a fraude fiscal não pertence ao catálogo (art. 1.º, Lei 5/2002), quer fundamentalmente porque, apurando-se que o valor em causa resulta de um concreto crime, cuja autoria se imputa aos requeridos, não há lugar ao funcionamento de qualquer presunção de aquele valor ser proveniente de atividade criminosa». E é em consequência desta procedência parcial do recurso, repete-se «pedido» pelos requerentes, que se afirma no § 63 «que o arresto para garantir a perda alargada pelo valor de €133.009,49, não pode subsistir para garantia do montante global liquidado, mas apenas pela diferença (€133.009,49 - €81 089,35) = €51.920,14)». A subtração está explicada e é muito clara, basta que os recorrentes prestem atenção aos diversos quadros nomeadamente a que refere a vantagem patrimonial indevidamente obtida por não pagamento de IRS, segundo a liquidação do requerente do arresto.

7. Conclui-se que o acórdão não contém erro, lapso ou qualquer obscuridade, improcedendo a pretensão dos requerentes.

8. Subsidiariamente dizem os requerentes que se impunha identificar os bens relativamente aos quais o arresto seria levantado. É que, estando em causa contas bancárias e imóveis, a indeterminação determinará que, na prática, não possa ser dada execução ao levantamento. Sem razão como veremos.

9. Como sabem os requerentes, decretado o arresto abrem-se duas vias de defesa: recurso ou oposição (art. 228.º/3, CPP, art. 372.º/1/a/b). O recurso visa sindicar a existência dos fundamentos do procedimento de arresto, quando o recorrente entenda, face aos elementos apurados, que ele não devia ter sido deferido. Com a oposição pretende-se invalidar os fundamentos de facto que serviram de suporte ao decretamento da providência ou obter a redução da mesma aos justos limites, alegando os arrestados os factos que no seu entendimento afastariam os fundamentos da providência e/ou determinariam a sua redução (art. 372.º/1/b/3, CPC, acs. STJ 06-06-2000 e 31-10-2017, disponíveis em www.dgsi.pt).

10. Os recorrentes, em tempo oportuno escolheram o meio processual que reputaram adequado, no caso o recurso. O que pretendem agora, num enviesamento processual inadmissível, é obter tutela estranha ao âmbito do recurso.

11. Improcede também esta pretensão dos recorrentes.

12. Finalmente, apesar do exposto, não é caso de desencadear o incidente para eventual pagamento de taxa sancionatória excecional. Nos termos do art. 531.º, CPC, ex vi art. 521.º/1, CPP, por decisão fundamentada do juiz pode ser excecionalmente aplicada uma taxa sancionatória – variável entre 2 e 15 UC art. 10.º, RCP – quando o ato processual praticado pelo sujeito processual penal seja manifestamente improcedente e o requerente não tenha agido com a prudência ou a diligência devida. A taxa sancionatória excecional visa contribuir para a economia processual e celeridade da justiça, valores processuais relevantes (art. 32.º/2, CRP), instituindo um mecanismo de penalização dos intervenientes processuais que por motivos dilatórios, são causa de entropia nos tribunais com recursos e requerimentos manifestamente infundados, quando se sabe de antemão que são insuscetíveis de conduzir ao resultado pretendido. Pese embora o requerimento seja manifestamente improcedente estamos convencidos, dada a extensão, novidade e relativa complexidade da matéria, que os requerentes não atuaram com intuitos dilatórios.

13. Visto o disposto nos arts. 513.º e 524.º, CPP, e art. 8.º tabela III anexa ao Regulamento das Custas Processuais é adequada a condenação dos recorrentes em duas UC.

Decisão:

Indefere-se a arguição de nulidade.

Custas pelos requerentes fixando-se a taxa de justiça em 2 UC.

Lisboa, Supremo Tribunal de Justiça 17.06.2021

António Gama (Relator)

João Guerra