Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
57/21.0GACDR.C2-A.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: ANTÓNIO AUGUSTO MANSO
Descritores: RECURSO EXTRAORDINÁRIO PARA FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
DECLARAÇÕES PARA MEMÓRIA FUTURA
ACÓRDÃO RECORRIDO
ACORDÃO FUNDAMENTO
TESTEMUNHA
VÍTIMA
Data do Acordão: 09/17/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO DE FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA (PENAL)
Decisão: VERIFICADA A OPOSIÇÃO DE JULGADOS
Sumário :
I - Para semelhantes realidades factuais, os dois acórdãos em confronto, recorrido e fundamento, decidiram a mesma questão de forma oposta, interpretando de forma diferente o disposto nas disposições conjugadas dos artigos 134.º, n.º 2, e artigo 356.º, n.º 6, ambos, do Código de Processo Penal.

II - O acórdão recorrido decidiu que a opção da testemunha (filha do arguido e ofendida), em julgamento por crime de violência doméstica, de não pretender prestar declarações, não tem efeitos retroativos nem afasta as declarações para memória futura”, anteriormente prestadas, momento em que lhe foi “garantido o exercício do direito a que se refere o artigo 134.º do Código de Processo Penal”.

III - Pelo contrário, concluiu o acórdão fundamento que a alteração da posição da vítima quanto ao direito de prestar ou não declarações, neste caso, manifestando não prestar declarações quando já o havia feito anteriormente, para memória futura, “impede que o tribunal possa aproveitar e valorar essas declarações” (art.º 356º, n.º 6 do CPP aplicável por força do disposto no art.º 33º, n.º 5 da Lei 112/2009, de 16.09).

IV - Sendo certo que tais normativos, conservaram a mesma redação durante o período temporal em que foram tomadas as decisões agora em análise, 15.09.2021 e 05.02.2025.

V - Por ser idêntica a situação de facto de que se ocupam os acórdãos em confronto e diversas as decisões, e ambas as decisões terem sido proferidas na vigência da mesma legislação, verificados, portanto, todos os pressupostos de admissibilidade do recurso, impõe-se concluir pelo prosseguimento do presente recurso, nos termos do disposto no artigo 441º, n.º 1 do CPP.

Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, na 3.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça

1- Relatório

1.1. O Ex.mo Procurador Geral Adjunto junto do Tribunal da Relação de Coimbra vem, ao abrigo do disposto no artigo 437º e 438º do Código de Processo Penal, interpor Recurso Extraordinário de Fixação de Jurisprudência do Acórdão proferido nestes Autos n.º 57/21.0GACDR.C2-A.S1, do Tribunal da Relação de Coimbra, a 05.02.2025, e transitado a 02.06.2025, com fundamento na oposição de julgados relativamente à mesma questão de Direito entre esse Acórdão e o exarado pelo Tribunal da Relação de Lisboa, a 15.09.2021, no âmbito do processo nº 20/21.1SXLSB.L1.S1-3.

1.2. Da motivação, retirou, a final, as seguintes conclusões (transcrição):


O Acórdão recorrido decidiu ser admissível, em processo por crime de violência doméstica, a valoração de declarações para memória futura prestadas por testemunha, filha do arguido, que ao ser ouvida em fase de julgamento se recusou a prestar depoimento, após ser advertida nos termos e para os efeitos previstos no art.º 134º, nºs 1, a) e 2 do Código de Processo Penal.


Indeferindo a pretensão formulada pelo arguido, em sede de recurso interposto de sentença condenatória proferida em primeira instância, de declaração de nulidade de tal sentença, na parte relativa à valoração das referidas declarações para memória futura para efeitos de prova dos factos por cuja prática foi condenado, desde logo por alegada violação do disposto no nº 6 do art.º 356º do Código de Processo Penal.


Mais se verifica ter sido anteriormente decidido, por Acórdão do Tribunal da

Relação de Lisboa exarado no Processo nº 20/21.1SXLSB.L1-3 datado de 15-09-2021 e já transitado, que as declarações para memória futura prestadas por testemunha, ofendida em processo por crime de violência doméstica, que se recusara a prestar depoimento em audiência, após ser advertida nos termos e para os efeitos previstos no art.º 134º, nºs 1, b) e 2 do Código de Processo Penal, não poderiam ser valoradas para efeitos de prova dos factos imputados ao arguido.


Sendo assim indeferida, com fundamento no disposto no nº 6 do art. 356º do Código de Processo Penal, a pretensão formulada pelo Ministério Público em sede de recurso, de declaração de nulidade da sentença absolutória proferida em primeira instância, por desconsideração das referidas declarações para memória futura para efeitos de prova da prática dos factos imputados ao arguido.


As decisões proferidas nestes Acórdãos dizem respeito a situações idênticas, nas quais uma testemunha que anteriormente prestara declarações para memória futura veio a ser ouvida em audiência de julgamento, tendo-se então validamente recusado a prestar depoimento.


Tendo sido proferidas ao abrigo da mesma legislação, desde logo o disposto no nº 6 do art.º 356º do Código de Processo Penal.


Estamos, assim, perante decisões assentes em soluções opostas para a mesma questão de direito, em concreto no que se refere à interpretação e aplicação da disposição legal em causa em processos por crime de violência doméstica.


Vindo por isso o Ministério Público interpor o presente recurso extraordinário, ao abrigo do disposto nos art.ºs. 437º e 438º do Código de Processo Penal, tendo em vista a resolução do conflito resultante desta oposição de julgados, através de fixação de jurisprudência no sentido que venha a ser considerado justo. Com o que será feita a costumada JUSTIÇA.”

1.3. Não se mostra que tenha sido junta resposta ao recurso.

1.4. O Ex.mo Procurador Geral Adjunto, no Supremo Tribunal de Justiça, pronunciou-se no sentido de que “[r]eunidos que estão, assim, todos os pressupostos de admissibilidade do recurso extraordinário de fixação de jurisprudência, incluindo o da oposição de julgados, emite-se parecer no sentido do seu prosseguimento nos termos do artigo 441.º, n.º 1, parte final, do Código de Processo Penal.”

1.5. Foram os autos aos vistos e à conferência.

Decidindo,

2. Fundamentação

2.1. Integra-se, o recurso extraordinário de fixação de jurisprudência, nas competências do Supremo Tribunal de Justiça, como tribunal de revista que cuida pela correta aplicação da lei por todos os tribunais judiciais.

Como referido no Ac. do STJ de 07.06.20231 “o recurso extraordinário para fixação de jurisprudência tem por finalidade a obtenção de uma decisão do Supremo Tribunal de Justiça que fixe jurisprudência, “no interesse da unidade do direito”, resolvendo o conflito suscitado (art.º 445.º, n.º 3, do CPP), relativamente à mesma questão de direito, quando existem dois acórdãos com soluções opostas, no domínio da mesma legislação, assim favorecendo os princípios da segurança e previsibilidade das decisões judiciais e, ao mesmo tempo, promovendo a igualdade dos cidadãos.

O que se compreende, até tendo em atenção, como se diz no ac. do STJ n.º 5/2006, publicado no DR I-A Série de 06.06.2006, que «A uniformização de jurisprudência tem subjacente o interesse público de obstar à flutuação da jurisprudência e, bem assim, contribuir para a certeza e estabilidade do direito.»

A previsibilidade das decisões judiciais e a confiança no sistema judiciário são também finalidades a alcançar com este recurso. “Trata-se de um recurso de carácter normativo destinado unicamente a fixar critérios interpretativos uniformes com a finalidade de garantir a unidade do ordenamento penal e, com isso, os princípios de segurança, da previsibilidade das decisões judiciais e a igualdade dos cidadãos perante a lei”, como se lê no Ac. do STJ de 13.01.20212.

O que está em causa não é, pois, a reapreciação da decisão de aplicação do direito ao caso no acórdão recorrido, transitado em julgado, mas verificar, partindo de uma factualidade equivalente, se a posição tomada no acórdão recorrido, quanto a certa questão de direito, seria a que o mesmo julgador tomaria, se tivesse que decidir no mesmo momento essa questão, no acórdão fundamento, e vice-versa3.

A admissibilidade do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência depende da verificação de pressupostos formais e de requisitos materiais/substanciais, a que se referem os artigos 437.º e 438.º do CPP citados.

Assim, entende-se que são requisitos formais, (i)a legitimidade do recorrente, (ii)o trânsito em julgado dos acórdãos conflituantes, (iii)interposição no prazo de 30 dias após o trânsito em julgado do acórdão recorrido, (iv)a invocação e junção de cópia do acórdão fundamento ou pelo menos identificação de publicação oficial onde tenha sido publicado, (v)justificação, de facto e de direito, do conflito de jurisprudência, e, por sua vez, são requisitos substantivos, a existência de (i)dois acórdãos do STJ tirados em processos diferentes, ou, (ii)um acórdão da Relação que, não admitindo recurso ordinário, não tenha decidido contra jurisprudência fixada e outro anterior de tribunal da mesma hierarquia ou do STJ, (iii)proferidos no domínio da mesma legislação, (iv)assentes em soluções opostas relativamente à mesma questão de direito(4)(5).

Sendo certo que todos os pressupostos, formais e substanciais exigidos para a admissibilidade do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência têm de se mostrar verificados à data da sua interposição, sob pena de rejeição, nos termos do art.º 441º, n.º 1, 1ª parte, do CPP.

Para o não especialmente regulado aplicam-se, subsidiariamente, as disposições que regulam os recursos ordinários (art.º 448º do CPP).

2.2. Requisitos formais.

No que respeita aos requisitos formais de admissibilidade do recurso de fixação da jurisprudência, entende-se que se mostram verificados.

Na verdade: (i)O Ministério Publico tem legitimidade para interpor este recurso (artigos 437.º, n.º 5 do C.P.P.); (ii) O recurso é tempestivo, uma vez que foi interposto no prazo de 30 dias, a contar do trânsito em julgado do acórdão proferido em último lugar. (iii) O recorrente invocou no recurso o acórdão fundamento e indicou o local onde se encontra publicado. (iv) O acórdão fundamento publicado na página da DGSI transitou em julgado, pelo que transitaram em julgado os dois acórdãos. (v) Justificou, ainda, o recorrente a oposição de julgados que, no seu entender, origina o conflito de jurisprudência.

2.3. Requisitos substanciais

Quanto aos requisitos substanciais de admissibilidade, deste recurso extraordinário, verifica-se a existência nos autos de dois acórdãos, um do Tribunal da Relação de Coimbra e outro do Tribunal da Relação de Lisboa que o recorrente entende terem julgado a mesma questão de direito, com decisões opostas, proferidos no domínio da mesma legislação.

Questão central a decidir é a existência de oposição de julgados, no sentido de que os acórdãos assentam em soluções opostas, de modo expresso e a partir de situações de facto idênticas.

Na opinião do recorrente tal decorre como resume no n.º 1 a 4 das conclusões onde defende que:

“1º.O Acórdão recorrido decidiu ser admissível, em processo por crime de violência doméstica, a valoração de declarações para memória futura prestadas por testemunha, filha do arguido, que ao ser ouvida em fase de julgamento se recusou a prestar depoimento, após ser advertida nos termos e para os efeitos previstos no art.º 134º, nºs 1, a) e 2 do Código de Processo Penal.

2º. Indeferindo a pretensão formulada pelo arguido, em sede de recurso interposto de sentença condenatória proferida em primeira instância, de declaração de nulidade de tal sentença, na parte relativa à valoração das referidas declarações para memória futura para efeitos de prova dos factos por cuja prática foi condenado, desde logo por alegada violação do disposto no nº 6 do art.º 356º do Código de Processo Penal.

3º. Mais se verifica ter sido anteriormente decidido – acórdão fundamento -, por Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa exarado no Processo nº 20/21.1 SXLSB.L1-3 datado de 15-09-2021 e já transitado, que as declarações para memória futura prestadas por testemunha, ofendida em processo por crime de violência doméstica, que se recusara a prestar depoimento em audiência, após ser advertida nos termos e para os efeitos previstos no art.º 134º, nºs 1, b) e 2 do Código de Processo Penal, não poderiam ser valoradas para efeitos de prova dos factos imputados ao arguido.


Sendo assim indeferida, com fundamento no disposto no nº 6 do art.º 356º do Código de Processo Penal, a pretensão formulada pelo Ministério Público em sede de recurso, de declaração de nulidade da sentença absolutória proferida em primeira instância, por desconsideração das referidas declarações para memória futura para efeitos de prova da prática dos factos imputados ao arguido.»

A verificação deste requisito substancial demanda que se analise, e se compare, em primeiro lugar, o essencial das decisões proferidas no acórdão recorrido e no acórdão fundamento sobre a questão objeto de recurso. E depois, que se decida pela existência, ou não, de oposição de julgados e consequente prosseguimento ou rejeição do recurso.

Acórdão recorrido

a. Como pode ver-se do acórdão recorrido, o arguido AA interpôs recurso da sentença do Juízo de Competência Genérica de ... que o condenou pela prática de um crime de violência doméstica (artigo 152.º, n.ºs 1, alínea a), 2, alínea a), 4 e 5 do Código Penal), insurgindo-se, no que aqui mais interessa, contra o facto de o tribunal ter formado a sua convicção com base, nomeadamente, nas declarações para memória futura da sua filha, BB, apesar de esta, em julgamento, se ter recusado a depor nos termos do disposto no artigo 134.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal.

A final, formulou as seguintes conclusões:

I. A convicção do Tribunal a quo para dar os factos como provados alicerçou-se essencialmente nas declarações da alegada vítima CC, bem como da filha do ex-casal prestadas em sede de declarações para memória futura.

II. A testemunha BB, filha do ex-casal, compareceu em sede de Audiência de Discussão e Julgamento, na qualidade de testemunha, sendo que, advertida do direito de se recusar a depor como testemunha, nos termos do disposto na al. a) do n.º 1 do art.º 134.º, a mesma optou por exercer esse direito

III. No caso em apreço, inexistiu qualquer oposição – por parte da Assistente/alegada vítima, do Ministério Público ou do Tribunal – à prestação de declarações por parte da testemunha BB, nomeadamente em virtude de já ter prestado declarações para memória futura, nem tão-pouco foi alegado ou conjeturado que a sua prestação em sede de audiência de discussão e julgamento pusesse em causa a sua saúde física ou psíquica, nem tão-pouco foi arguida qualquer irregularidade ou ilegalidade relativamente à notificação para prestar depoimento e à sua presença na qualidade de testemunha em sede audiência de discussão e julgamento, antes foi admitida sem qualquer oposição. nem a testemunha referiu que mantinha as declarações já prestadas.

IV. Simplesmente referiu a testemunha que, tendo o direito de não prestar depoimento (nos termos da al. a) do n.º 1 do art.º 134.º do CPP, naturalmente), não pretende prestar declarações, e quer remeter-se ao silêncio.

V. Ao Tribunal a quo estava vedada a apreciação das declarações para memória futura prestadas pela testemunha BB, pelo que, ao ter apreciado e considerado na Sentença proferida as declarações para memória futura da testemunha BB, estamos perante a nulidade de sentença, nos termos do disposto na al. c) do n.º 1 do art.º 379.º do CPP.

VI. Nessa senda, o Tribunal a quo violou os artigos 134.º, n.º 1, al. a), 271.º, n.º 8, e 356.º, n.º 6, todos do CPP, e art.º 33.º, n.º 7, da Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro, pois que numa correta aplicação do direito, nunca poderiam as declarações para memória futura prestadas pela testemunha BB ser consideradas como meio de prova na Sentença proferida pelo Tribunal a quo.

VII Estamos ainda perante erro notório na apreciação da prova, porquanto do próprio texto da decisão recorrida ressalta, com patente evidência, que o Tribunal a quo valorizou prova contra critérios legalmente fixados, designadamente por ter assentado convicção quanto à quase totalidade dos factos julgados provados na valoração de prova proibida.

VIII. Pelo que deve ser revogada a Sentença proferida pelo Tribunal a quo e substituída por outra que não considere as declarações para memória futura prestadas pela testemunha BB, o que se Requer a V. Exas. seja determinado, o que, em última instância, determina seja o Arguido AA absolvido dos presentes autos, quer em matéria penal, quer em matéria civil.”

b. O Tribunal da Relação de Coimbra julgou esta questão improcedente considerando, em síntese, que sendo a testemunha advertida aquando da prestação das declarações para memória futura da possibilidade de se recusar a depor e tendo exercido o direito de prestar depoimento, e não tendo a sua recusa a depor quando chamada em julgamento efeitos retroativos, nada impede o tribunal de analisar as referidas declarações para memória futura em conjugação com a restante prova produzida, com base na seguinte fundamentação mais relevante, conforme transcrição no parecer do Ministério Publico que se cita:

«(…) efetivamente o Tribunal a quo considerou, para efeitos de fundamentação da matéria de facto, as declarações para memória futura prestadas pela filha menor do arguido, BB, que terá presenciado parte dos factos consubstanciadores da violência doméstica perpetrados pelo progenitor sobre a sua mãe.

Vistos os autos verificamos, também, que a vítima BB foi arrolada na contestação apresentada pelo arguido e notificada para comparecer em audiência de julgamento onde exerceu a faculdade de não prestar depoimento, nos termos do n.º 1 al. b) do art.º 134.º do CPP.

(…)

Sabemos que a questão que ora se coloca não vem obtendo resposta uniforme na jurisprudência dos tribunais superiores (…)

E no sentido de que a recusa, nestas condições não pode ter efeitos retroativos, isto é, tornar inválida a prova já previamente adquirida o Acórdão do TRL de 20.04.2022, proferido no processo n.º 37/21.6 SXLSB.L1-3 e o Acórdão do TRP de 14.12.2022, proferido no processo n.º 82/21.1GBOAZ.P1, ambos disponíveis in www.dgsi.pt.

Assim, no Acórdão do TRL de 20.04.2022, que seguiremos de perto, escreve-se: "(…)

As declarações para memória futura constituem prova pré-constituída, adquirida em audiência de julga-mento antecipada parcialmente, a valorar após a produção da restante prova e sujeitas, tal como a grande maioria das provas, à livre apreciação do julgador.

Uma vez explicitada a prerrogativa nesta norma prevista, e exercido o direito de recusa a depor ou ao contrário a ele renunciar prestando depoimento, não pode mais tarde a testemunha que tem a qualidade de vítima, querer exercer em sentido diverso o mesmo direito com efeitos retroativos, pois ele já foi exercido.

Já produziu efeitos probatórios: as declarações uma vez prestadas constituem prova a valorar; são prova já constituída não podendo ser excluídas do universo probatório a valorar pelo juiz, por vontade da vítima.

As regras materiais e processuais sobre a validade ou aquisição da prova não podem nem estão dependentes da vontade dos particulares, sob pena de a justiça, um dos pilares do Estado de Direito Democrático, ser afinal, nada mais nada menos, que dependente da vontade e dos caprichos dos particulares, que poderiam colocar em marcha todo o aparelho judiciário para como qual castelo de cartas cair pela base sem qualquer efeito, pese embora todos os elementos constantes dos autos permitissem fazer justiça (seja ela condenatória ou absolutória).

O art.º 356.º do CPP não contém qualquer referência ao art.º 24.º do Estatuto da Vítima, legislação especial, razão pela qual não lhe é aplicável o seu n.º 6."

(…) sendo as declarações para memória futura uma antecipação da audiência impõe-se a observância de todas as regras a estas atinentes, incluindo naturalmente a advertência, prevista no art.º 134.º, n.º 1 al. b) do Código de Processo Penal - que como resulta do auto relativo à tomada de declarações para memória futura foi cumprido (…).

Concluímos, então, que tendo sido a testemunha advertida nesse momento, não pode mais tarde invalidar essa mesma prova afirmando, quando chamada a julgamento na qualidade de testemunha arrolada pela defesa, que não pretende prestar declarações. Essa sua manifestação de vontade poderá impedir a prova de alguns factos a que eventualmente poderia responder, no âmbito da matéria da contestação, mas não terá a virtualidade de destruir a prova que foi validamente produzida e adquirida em antecipação do julgamento, com o cumprimento de todas as formalidades previstas e designadamente com o cumprimento da advertência constante do art.º 134.º do Código de Processo Penal.

Socorrendo-nos mais uma vez do suprarreferido acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, concluímos como ali se fez: "Ou seja, a tomada de declarações para memória futura nos termos deste último normativo, 271.º, não prejudica a prestação de depoimento em audiência, sendo possível e não coloque em causa a saúde física ou psíquica do depoente. Significa que a prestação de declarações para memória futura só afastam o depoimento em audiência se o depoente o não puder fazer ou tal importe risco para a sua saúde.

Ao contrário o art.º 24.º, n.º 6 do Estatuto da Vítima, que regula a prestação de declarações para memória futura, de forma autónoma do art.º 271.º, é expresso na preferência por estas declarações e pela excecionalidade do depoimento em audiência, apenas podendo ter lugar o depoimento em audiência se tal for indispensável à descoberta da verdade e não puser em causa a saúde física ou psíquica de pessoa que o deva prestar.

Note-se que o art.º 271.º não exige qualquer avaliação da essencialidade da prestação do depoimento em audiência. É claro na opção por este.

Acresce que se bem se analisar o art.º 356.º, o mesmo não se refere às declarações para memória futura a que se refere e regula o art.º 24.º do Estatuto da Vítima.

Resumindo, podemos considerar assente:

Por força do disposto no art.º 24.º do Estatuto da Vítima, aplicável às vítimas de violência doméstica atento o disposto no seu art.º 2.º, estas têm o direito de prestar declarações para memória futura, com observância do ali preceituado, e não devem ser chamadas a depor em audiência a não ser que tal se mostre essencial para a descoberta da verdade e não puser em causa a saúde física ou psíquica de pessoa que o deva prestar (pressupostos cumulativos).

2 – As declarações para memória futura constituem prova pré-constituída, adquirida em audiência de julgamento antecipada parcialmente, a valorar após a produção da restante prova e sujeitas, tal como a grande maioria das provas, à livre apreciação do julgador.

Sendo audiência antecipada, como é, aberta especialmente com observância de todas as regras que regulam a audiência de julgamento adequadas a este instituto particular, deve ser observado o disposto no art.º 134.º do CPP quando a vítima tenha com o agente alguma relação de entre as aí previstas.

Estas conclusões impõem, quanto a nós, a seguinte conclusão: uma vez explicitada a prerrogativa nesta norma prevista, e exercido o direito de recusa a depor ou ao contrário a ele renunciar prestando depoimento, não pode mais tarde a testemunha que tem a qualidade de vítima, querer exercer em sentido diverso o mesmo direito com efeitos retroativos, pois ele já foi exercido. Já produziu efeitos probatórios: as declarações uma vez prestadas constituem prova a valorar; são prova já constituída não podendo ser excluídas do universo probatório a valorar pelo juiz, por vontade da vítima.

(…)

Finalmente e acima de tudo, o art.º 356.º do CPP não contém qualquer referência ao art.º 24.º do Estatuto da Vítima, legislação especial, razão pela qual não lhe é aplicável o seu n.º 6."

Deste modo, tendo sido a testemunha BB advertida aquando da prestação das declarações para memória futura da possibilidade de se recusar a depor e tendo exercido o direito de prestar depoimento, e não tendo a sua recusa a depor quando chamada em julgamento efeitos retroativos, nada impede o tribunal de analisar as referidas declarações para memória futura em conjugação com a restante prova produzida, como o fez o Tribunal a quo

E, julgou improcedente nesta parte o recurso interposto pelo arguido.

Acórdão fundamento

a. No acórdão fundamento, por seu turno, o arguido foi absolvido em 1.ª instância da prática de um crime de violência doméstica p. e p. pelo artigo 152.º, n.ºs 1, alíneas a) e c), e 2, do Código Penal, de que estava acusado e em que era vítima a sua ex-companheira.

Refere-se no acórdão que “[p]ara formar a sua decisão sobre a matéria de facto provada e não provada, o tribunal alicerçou-se na prova produzida na audiência de discussão e julgamento, analisada segundo as regras da lógica e da experiência comum (art. 127º, do Código de Processo Penal).

Foi muito pouca a prova verdadeiramente produzida no âmbito dos presentes autos. O arguido não prestou declarações. A testemunha ofendida usou da prerrogativa de não prestar declarações, pelo que à partida ficou muito comprometida a prova produzida em sede de audiência uma vez que seria a única testemunha de grande parte dos factos indiciariamente praticados pelo arguido.”

b. Interpôs o Ministério Público recurso da decisão, formulando, a final, as seguintes conclusões:

“I. O presente recurso tem por objecto a douta sentença absolutória proferida nos autos.

II. E funda-se no facto de o Tribunal a quo não ter valorado as declarações para memória futura prestadas pela ofendida, nem ter fundamentado a razão pela qual as não usou, nem tão pouco a elas se ter referido;

III. Com base no artigo 356º, nº 6 do C.P.Penal decidiu o Tribunal a quo mediante despacho anterior à prolação da sentença, permitir que a ofendida prestasse declarações não falando e, com isso, afastar as declarações para memória futura por si anteriormente prestadas;
IV. Efeito este aceite pelo Tribunal a quo, mas não por nós.

V. Para além do mais, o Tribunal a quo não fundamentou o despacho que admitiu o novo depoimento da ofendida,

VI. O que por si, constitui uma irregularidade (art. 123º do CPPenal) por falta de fundamentação nos termos do artigo 97º, nº 4 do C.PPenal e 205º, nº 1 da Lei Fundamental.

VII. O artigo 356º, nº 6 do C.P.Penal não foi estabelecido para inibir a leitura/valoração das declarações para memória futura, mas sim para situações em que o
depoimento da testemunha a poderá autoincriminar ou para os casos em que exista segredo profissional.

VIII. Já o artigo 271º, nº8 do C.P.Penal implica necessariamente que pretendendo a declarante prestar depoimento em audiência de julgamento, o faça efectivamente, prestando informações adicionais ou esclarecimentos ou até mesmo negando o que anteriormente disse,

IX. Dando assim cumprimento ao disposto no artigo 128º, nº 1 do CPPenal, X. Mas nunca para se remeter ao silêncio, como sucedeu no caso concreto.


XI. E esse silêncio nunca poderia ser interpretado como forma de “invalidar” as declarações para memória futura já por si prestadas,


XII. Nem para permitir a não valoração de tais declarações, que necessariamente tinham que ser apreciadas e valoradas (artigo 355º, nº 1 do CPPenal).


XIII. Tal falta de apreciação e valoração constitui uma nulidade nos termos do art. 120º, nº1, al. d) parte final do CPPenal.


XIV. Implicando igualmente uma nulidade da sentença nos termos do art. 379º, nº 1, al. c) do CPPenal.


XIV. No Acórdão nº 8/2017 de 21 de Novembro foi fixada a seguinte jurisprudência:


“As declarações para memória futura, prestadas nos termos do artigo 271.º do Código de Processo Penal, não têm de ser obrigatoriamente lidas em audiência de julgamento para que possam ser tomadas em conta e constituir prova validamente utilizável para a formação da convicção do tribunal, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 355.º e 356.º, n. º 2, alínea a), do mesmo Código.”(sublinhado nosso)


XV. Mas o Tribunal a quo não as teve como prova adquirida no processo, não as leu, não as considerou, mas também não disse que não as valorava, nem fundamentou tal opção. O que por si só constitui outra nulidade da sentença nos termos do artigo 120º, nº1, al. d) parte final, artigos 374º, nº 2 e 379º, nº 1, al. a) ambos do CPPenal.


XVI. Necessariamente o Tribunal a quo tinha que se pronunciar sobre elas (independentemente do despacho proferido aquando da audiência de julgamento), o que não fez.


XVII. A isto acresce que verificados os requisitos previstos no artigo 356.º, n.º 2, al. a) o C.P.Penal, o indeferimento da leitura das declarações assim prestadas perante o Juiz constitui também a nulidade prevista no último segmento normativo da alínea d) do n.º 1 do artigo 120.º do mesmo diploma legal, porquanto foram omitidas diligências reputadas como essências para a descoberta da verdade. - neste sentido Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 03.06.2015.


XVIII. Nesta conformidade e valorando as declarações para memória futura prestadas nos autos pela ofendida, concatenada com a demais prova (ainda que parca) produzida nos autos, deve o arguido ser condenado pela prática de um crime de violência doméstica agravada (p. e p. pelo artigo 152º, nº 1, als. a) e c) e nº 2 do Código Penal), em pena de prisão,


XIX. Ainda que suspensa na sua execução,


XX. E bem assim na pena acessória de proibição de contactos a que se refere o artigo 152º, nºs 4 e 5 do CPPenal,


XXI. E ainda na indemnização a que se referem os artigos se referem os artigos 82º- A, nº1 do Código de Processo Penal e 21º da Lei nº 112/2009 de 16 de setembro e,


XXII. Na obrigação de frequência pelo arguido de curso de prevenção para a violência doméstica.
Nestes termos e nos demais de direito aplicável, que Vossas Excelências doutamente suprirão, deve a sentença de que ora se recorre ser revogada, decidindo V. Exas. conforme for de Direito ou reenviando o processo para novo julgamento e determinando que o Tribunal a quo aprecie as declarações para memória futura proferidas pela ofendida, decidindo em conformidade.

c. O Tribunal da Relação de Lisboa negou provimento ao recurso, concluindo que “tendo sido a testemunha (…) advertida aquando da prestação das declarações para memória futura da possibilidade de se recusar a depor e tendo exercido o direito de prestar depoimento, e não tendo a sua recusa a depor quando chamada em julgamento efeitos retroativos, nada impede o tribunal de analisar as referidas declarações para memória futura em conjugação com a restante prova produzida, como o fez o Tribunal a quo”, com base na seguinte argumentação, como referido, também, no parecer do Ministério Publico que se cita:

«As declarações para memória futura, conforme dispõe o art.º 271.º do CPP, destinam-se a possibilitar que, determinados depoimentos possam vir a ser tidos em conta em sede de julgamento, o que não seria possível de outra forma por razões de doença grave ou deslocação para o estrangeiro de uma testemunha, que previsivelmente a impeça de ser ouvida em julgamento, bem como nos casos de vítima de crime de tráfico de pessoas ou contra a liberdade e autodeterminação sexual.

Nesses casos o Juiz de Instrução, a requerimento do MP, do arguido, do assistente ou das partes civis, pode proceder à sua inquirição no decurso do inquérito.

A este artigo e para o crime que está em causa nos autos, juntou o art.º 33.º da Lei 130/2015, de 04 de Setembro as vítimas dos crimes de violência doméstica, que o legislador considerou especialmente vulneráveis.

E assim, nos casos de crime de violência doméstica, a audição da vítima em declarações para memória futura poderá ocorrer a requerimento do Ministério Público ou da própria vítima.

Estabeleceu assim a lei um regime que concede legitimidade à vítima para requerer a sua própria audição antecipada, com vista a reforçar assim a sua proteção.

Ora no caso dos autos as declarações para memória futura foram recolhidas no exato dia em que o arguido assim foi constituído e ouvidas com indicação de que iria ser gravado para ser considerado em julgamento. Tais declarações não foram requeridas pela ofendida, tendo esta dito na altura que queria prestar declarações depois de advertida de que não era obrigada a prestar declarações tendo em conta que tinha sido companheira do arguido.

O crime de violência doméstica, punível com pena de prisão de máximo igual a cinco anos, integra a noção de criminalidade violenta definida no art°1°, j), do C.P.P.

Então há que considerar a ofendida uma vítima especialmente vulnerável (…).

Estas declarações são elementos de prova e garantem, quando são prestadas como aconteceu nos presentes autos, o princípio do contraditório.

A tomada das declarações para memória futura destina-se a que estas sirvam de prova (ainda que prova pré constituída), na audiência de julgamento, a quem não possa comparecer, e para que o "depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento" – art.º 271.º 1 CPP mas, não impedem que a ofendida volte a prestar declarações em audiência se o pretender ou, se quem dirige a audiência achar necessário para a descoberta da verdade material – art.º 271.º n.º 8 CPP.

Na verdade, tudo o que é dito na fase das declarações para memória futura, destina-se a ser tido em conta aquando da avaliação da prova, pelo Juiz de julgamento.

(…) aberta que foi a audiência de julgamento resulta da acta que a mandatária da ofendida requereu a audição desta e ainda, que não fossem lidas em audiência as declarações para memória futura prestadas pela mesma.

(…)

O tribunal determinou a audição da ofendida e, ainda, que não fossem reproduzidas as declarações (…) para memória futura juntas aos autos atendendo ao disposto no art.º 356.º n.º 6 CPP.

(…)

O artigo 356.º n.º 6 determina que "é proibida, em qualquer caso, a leitura do depoimento prestado em inquérito ou instrução por testemunha que, em audiência, se tenha validamente recusado a depor."

(…)

Vejamos então como interpretar o art.º 356.º n.º 6 CPP.

Se as declarações para memória futura são recolhidas a fim de proteger a vítima vulnerável da influência do arguido, da sujeição a vários interrogatórios, da exposição da vítima a audiências sucessivas e a contraditórios por vezes atentatórios da sua dignidade, as mesmas declarações têm em vista a impossibilidade de quem as presta de estar presente em audiência e ainda, por fim, a recolha de factos/prova, no auge dos acontecimentos.

Podem as mesmas ser usadas aquando da fase de julgamento e devem ser tidas em conta pelo Juiz que a ele preside, sem necessidade a nosso ver de serem lidas em audiência.

Vejamos agora qual o objetivo do legislador com a determinação do artigo 134.º do CPP que consagra o depoimento de parentes e afins e deve ser conjugado com as declarações da vítima, neste caso concreto, vitima de violência doméstica e companheira do arguido.

Determina o legislador neste seu artigo que

1 - Podem recusar-se a depor como testemunhas:

a) (...)

b) Quem tiver sido cônjuge do arguido, ou quem com ele conviver ou tiver convivido em condições análogas às dos cônjuges, relativamente a factos ocorridos durante o casamento ou a coabitação.

2 (...)

O Juiz, sob pena de nulidade, deve advertir o depoente de que pode recusar-se a depor.

O legislador o que nos diz com este dispositivo legal é que a prova não pode ser obtida a qualquer preço e que, há situações que devem ser tidas em conta já que os laços que se estabelecem entre quem é julgado e quem depõe, são de tal forma que podem levar até a um depoimento menos transparente, o que contribuirá em nada para a descoberta da verdade dos factos.

O legislador deu prevalência à relação especial da pessoa em relação ao arguido e não propriamente ao seu estatuto processual, enquanto interveniente processual.

(…)

O privilégio familiar constitui uma derrogação ao dever de declarar. É obrigado a responder, e a responder com verdade, a não ser que se queira recusar a depor por ter vivido com o arguido uma relação igual ou semelhante à dos cônjuges.

Nessa medida, o reconhecimento do direito de recusa em depor representa uma forte limitação à obtenção da prova e à administração da Justiça que, contudo, é compreensível e justificada. É evidente que quando o parente ou familiar do arguido, não obstante ter conhecimento dos factos e de o seu depoimento se poder revelar de extrema importância para a descoberta da verdade, se remete ao silêncio, recusando-se a depor, o arguido pode ser favorecido pelo silêncio.

(…)

Pode então colocar-se a pergunta: E tendo a ofendida/testemunha, sido correctamente advertida de que podia ter renunciado a depor, após dizer que quer depôr e prestar juramento, pode retratar-se mais tarde?

Tendo em conta que pode até em alguns casos desistir da queixa, poderá dizer que não quer depôr já que, de cada vez que é chamada a depor ou diz que quer depôr, deve ser advertida da possibilidade de renúncia a fazê-lo. E foi.

A lei portuguesa, consagra assim, a plena retratilidade relativamente a iniciativas processuais pretéritas como a queixa e as declarações livremente prestadas depois da advertência.

(…)

É pois, este, o sentido do dispositivo legal em causa. Sendo proibida, em qualquer caso, a leitura das declarações prestadas em inquérito ou instrução, onde se incluem as declarações para memória futura, tendo em conta que quem as presta pode vir a retratar-se e a desistir até de queixa, quando o legislador impede esta leitura, impede-a com o intuito firme de que as mesmas não possam servir de prova, nem serem consideradas porque assim não o quer o autor das mesmas.

(…)

A decisão sobre a tomada de declarações para memória futura não pode ser vista como um meio de evitar ou de propiciar que a vítima exerça o direito que o Código lhe atribui de se recusar a depor.

Ela tem esse direito em qualquer momento em que deva depor ou pretenda fazê-lo.

Na verdade, o art.º 356.º não inibe a leitura/valoração das declarações para memória futura, mas também não pode inibir o direito a recusar-se a depor acrescendo que a lei é rigorosa quando diz que é proibida, em qualquer caso, a leitura de depoimento nessas circunstâncias.

Poderia argumentar-se que o que o legislador pretendeu foi proibir a leitura nos casos de recusa a depor, mas não a apreciação das declarações prestadas para memória futura.

Mas, o que temos perante nós, já que entendemos que nem têm de ser lidas as declarações, e que sendo há que ficar a constar da acta a razão pelo que o foram, é que havendo proibição expressa de leitura das declarações de quem se recusa a depor, o legislador está (…) a impedir que essa prova seja valorada.

Há um reforço de não leitura já expresso pelo legislador no art.º 271.º n.º 8, no qual nos diz que a tomada de declarações nos termos dos números anteriores não prejudica a prestação de depoimento em audiência de julgamento, sempre que ela for possível e não puser em causa a saúde física ou psíquica de pessoa que o deva prestar, ou seja, não é necessário lê-las, mas não impede que se leiam.

E há um duplo travão a que tais declarações sejam valoradas como prova na situação dos autos, ou seja, quem as prestou recusa-se a depor em audiência e, se as declarações para memória futura são para ser utilizadas em audiência, como prova (no caso de quem as prestou não poder comparecer ou não puder prestar declarações), estando o seu autor presente e recusando-se a depor, há como que uma inutilidade superveniente das mesmas que o próprio anula retirando-se as mesmas do âmbito da apreciação da prova.»

d. Levando em conta todo o exposto, pode concluir-se, que a semelhança das situações de facto subjacentes aos acórdãos em confronto não oferece dúvidas.

O crime pelo qual os arguidos foram acusados em ambos os acórdãos é o mesmo, ou seja, um crime de violência doméstica.

Em ambos os acórdãos, como referido no douto parecer do Exmo. Procurador Geral Adjunto, a vítima aceitou prestar declarações para memória futura: no caso do acórdão recorrido, a filha do arguido (art.º 67º-A, n.º 1, al. a), subalínea iii, do CPP), e no caso do acórdão fundamento, a ex-companheira do arguido (art.º 67º-A, n.º 1, al. a), subalínea i, do CPP).

E, mais tarde, quando convocadas para julgamento, ambas se recusaram a prestar declarações ao abrigo do art.º 134º, n.º 2, alíneas a) e b) do CPP.

Em recurso, os Tribunais da Relação apreciaram “a questão de se saber se nessas hipóteses as declarações para memória futura podiam ser aproveitadas e valoradas para formar a convicção do tribunal.”

Entendeu o acórdão recorrido “que a opção da vítima em julgamento, de não pretender prestar declarações, não tem efeitos retroativos nem afasta as declarações para memória futura”, anteriormente prestadas, momento em que lhe foi “garantido o exercício do direito a que se refere o artigo 134.º do Código de Processo Penal”.

Pelo contrário, concluiu o acórdão fundamento que a alteração da posição da vítima quanto ao direito de prestar ou não declarações neste caso, manifestando não prestar declarações quando já o havia feito anteriormente, para memória futura, “impede que o tribunal possa aproveitar e valorar essas declarações”.

Ou seja, para semelhantes realidades factuais, os dois acórdãos em confronto, decidiram a mesma questão de forma diametralmente oposta interpretando de forma diferente o disposto nas disposições conjugadas dos artigos 134.º, n.º 2, e artigo 356.º, n.º 6, ambos, do Código de Processo Penal.

Sendo certo que tais normativos mantiveram a mesma redação durante o período temporal em que foram tomadas as decisões agora em análise.

Do exposto, por ser idêntica a situação de facto de que se ocupam os Acórdãos em confronto e diversas as decisões, e ambas as decisões terem sido proferidas na vigência da mesma legislação, verificados, portanto, todos os pressupostos de admissibilidade do recurso, impõe-se concluir pelo prosseguimento do presente recurso, nos termos do disposto no artigo 441º, n.º 1 do CPP.

III - Decisão.

Nestes termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes desta Secção do Supremo Tribunal de Justiça em:

-conceder provimento ao presente Recurso Extraordinário de Fixação de Jurisprudência interposto pelo Ministério Público.


*


Sem Custas.

*


Notifique e cumpra-se o disposto no artigo 442º do CPP

*


Lisboa, Supremo Tribunal de Justiça, 17 de Setembro de 2025

António Augusto Manso (Relator)

Antero Luis (Adjunto)

Maria Margarida Almeida (Adjunta)

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1-Ac. do STJ de 07.06.2023, proferido no proc. n.º 3847/20.8T9FAR-A.E1-A.S1.www.dgsi.pt.

2-proferido no proc. n.º 39/08.8PBBRG-K-A-A.S1, www.dgsi.pt.,

3-Ac. do STJ de 20.01.2021, proferido no processo n.º 454/17.6T9LMG-E.C1-A.S1, 3ª secção, in www.dgsi.pt.

4-Entre outros, Ac. do STJ de 13.01.2021, proferido no proc. n.º 39/08.8PBBRG-K-A-A.S1, www.dgsi.pt.

5-Exigia-se, ainda, antes, que o recorrente propusesse o sentido da jurisprudência a fixar – cfr. Assento n.º 9/2000, de 30 de Março de 2000, publicado no Diário da República, I Série - A, de 27.05.2000.

Exigência que foi eliminada pela jurisprudência fixada no Acórdão (AUJ) n.º 5/2006, de20 de Abril de 2006, publicado no Diário da República, I Série-A, de6.06.2006, no qual, reexaminando e reputando ultrapassada a jurisprudência daquele Assento, se estabeleceu que, “No requerimento de interposição do recurso extraordinário de fixação de jurisprudência (artigo 437.º, n.º 1, do Código de Processo Penal), o recorrente, ao pedir a resolução do conflito (artigo 445.º, n.º 1), não tem de indicar «o sentido em que deve fixar-se jurisprudência» (artigo442.º, n.º 2).