Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
13600/21.6T8PRT.P1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: CATARINA SERRA
Descritores: RECURSO DE REVISTA
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
PRESSUPOSTOS
REJEIÇÃO DE RECURSO
NULIDADE DE ACÓRDÃO
RECLAMAÇÃO PARA A CONFERÊNCIA
INCONSTITUCIONALIDADE
DIREITO AO RECURSO
Data do Acordão: 09/14/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: RECLAMAÇÃO INDEFERIDA
Sumário :
I. O recurso ordinário só é admissível quando a causa tenha valor superior à alçada do tribunal de que se recorre e a decisão impugnada seja desfavorável ao recorrente em valor superior a metade da alçada desse tribunal (cfr. artigo 629.º, n.º 1, do CPC).

II. Sem prejuízo dos casos em que o recurso é sempre admissível, não é admitida revista normal do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1.ª instância (cfr. artigo 671.º, n.º 3, do CPC).

Decisão Texto Integral:

ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


Reclamante: AA

1. BB e CC, na qualidade de actuais proprietárias do imóvel em causa e senhorias, intentaram a presente acção declarativa com processo comum contra AA, pedindo que seja declarada a caducidade de contrato de arrendamento e que o réu a final seja condenado a entregar-lhes o respectivo locado.

Mais pediram a condenação do réu a pagar-lhes, a título de indemnização, o valor de € 95, correspondente à renda mensal acordada, por cada mês decorrido desde a data em que devia ter ocorrido a entrega do imóvel – ou seja, Janeiro de 2020 – até à efectiva restituição do locado.

2. Em 17.02.2022 foi proferida sentença em que se decidiu:

Pelo exposto, julgo a presente acção parcialmente procedente e, consequentemente:

- Julgo cessado, por caducidade, ocorrida em 13-6-2020, o contrato de arrendamento junto como doc. nº 3 à petição, celebrado em 1-9-1973, entre DD e EE, o qual teve por objecto a habitação sita no nº 132 da Rua do ; e

- Condeno o R. AA a restituir às AA. BB e CC, livre de pessoas e bens, o referido imóvel.

Mais absolvo o R. dos restantes pedidos formulados pelas AA.”.

3. O réu veio interpor recurso desta decisão.

4. Foi, então, proferida decisão singular onde se julgou o recurso improcedente e se confirmou a decisão proferida.

5. Nos termos do artigo 652.º, n.º 3, do CPC, veio o apelante AA requerer que sobre a matéria da decisão recorrida recaísse um acórdão.

6. Em 10.11.2022, o Tribunal da Relação do Porto proferiu Acórdão em Conferência, em que decidiu:

Pelas razões expostas, acorda-se em julgar improcedente a presente reclamação para a Conferência”.

7. Não conformado, o réu AA veio interpor recurso de revista.

No requerimento de interposição de recurso enquadra o recurso “nos termos do disposto nos arts. 652.º, n.º 5, al. b) e 671.º, n.º 1 e n.º 3 – 1.ª parte (“recurso é sempre admissível”), que remete para o art.º 629.º, n.º 3, al. a), e 674.º, n.º 1, alíneas a), e c), 675.º, n.º 1 e 677.º, todos do C.P.C.”.

Enuncia as conclusões seguintes:

A. Vem o presente recurso da circunstância do aqui Recorrente não se conformar com o, aliás, douto Acórdão proferido a fls… dos presentes autos, sob a Ref.ª 16173113, de 10.11.2022, que decidiu pela confirmação do despacho reclamado.

Com efeito, e desde logo,

B. Tendo sido notificado do teor do Acórdão, aqui recorrido, veio o aqui Recorrente, nos termos do disposto no artigo 615.º, n.º 1, alíneas b), c) e d) do C.P.C., por remissão do artigo 666.º do mesmo CPC, arguir a NULIDADE daquele douto Acórdão, o que fez por requerimento remetido ao Venerando Tribunal da Relação do Porto, a 23.12.2022;

C. Não obstante, até à presente data, não se pronunciou aquele Venerando Tribunal sobre a arguida nulidade, pelo que, sem prejuízo da mesma, e de forma a acautelar o seu direito ao recurso, importa ao aqui Recorrente, nos termos do art.º 674.º, n.º 1, al. c) do CPC, motivar o seguinte recurso de revista.

ASSIM,

DO FUNDAMENTO DE REVISTA, NOS TERMOS DA AL. A) DO N.º 1 DO ART.º 674.º DO CPC

D. Com todo o devido e merecido respeito, que é muito, analisado o douto Acórdão ora proferido, temos para nós que o mesmo se encontra “ferido” de Nulidade, na medida em que naquele, e desde logo, se verificam ambiguidades e obscuridades que importa clarificar e, ainda, não foi tomado conhecimento de questão que se deveria conhecer.

E. Com efeito, parece-nos que este Venerando Tribunal não analisou devidamente «o caso em análise», deixando de analisar a questão que lhe foi apresentada pelo aqui Recorrente, pois, na verdade, «o caso em análise» não era o “primeiro” momento de transmissão do arrendamento – com a morte do pai do aqui Recorrente – mas, sim, o momento da morte da transmitente – a mãe do aqui Recorrente.

F. Deste modo, ao se ter limitado o Venerando Tribunal da Relação ao conhecimento da transmissão do arrendamento aquando do óbito do pai do Recorrente, incorre em nulidade, nos termos da alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, pois que, não apreciou a questão colocada. O que, aqui se invoca para todos os devidos e legais efeitos.

G. Acresce que, sem prejuízo, veio «ainda assim» aquele Venerando Tribunal da Relação a considerar que «a aplicação do referido regime transitório não enferma de inconstitucionalidade».

H. Ora, mais uma vez, padece, desta feita neste trecho, a decisão daquele Venerando Tribunal de nulidade, nos termos das alíneas b) e d) do CPC, porquanto, salvo o devido respeito, se entende que não se encontram especificados os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão, tendo, por conseguinte, deixado de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar.

I. Isto porque, desde logo, com todo o devido e merecido respeito, entende o Recorrente que o douto Acórdão em apreço não cuidou de analisar dos argumentos que no sentido da propalada inconstitucionalidade foram trazidos aos autos pelo Recorrente, antes, de forma singela, se limitando, a referir que não era vislumbrada qualquer violação dos princípios constitucionais, mas, sem explicar o porquê.

J. Seja, “impunha-se” que aquele Venerando Tribunal que, para além da mera referência à conclusão chegada, se tivesse “debruçado” especificamente sobre os factos trazidos pelo Apelante e sobre os normativos em apreço,

K. Motivo pelo qual, modestamente se entende estarmos agora perante manifesta Nulidade do douto Acórdão proferido, nos termos do disposto no artigo 615º, nº 1, alíneas b) e d) do C.P.C.

L. Impondo-se, por isso, o reconhecimento da Nulidade do mesmo, nos termos das alíneas b), c) e d) do nº 1 do artigo 615º do C.P.C., as quais, aqui, constituem fundamento de revista, nos termos da al. c) do n.º 1 do art.º 674.º do CPC.

OUTROSSIM, SEM PRESCINDIR,

DO FUNDAMENTO DE REVISTA, NOS TERMOS DA AL. A) DO N.º 1 DO ART.º 674.º DO CPC

M. As questões suscitadas no recurso de Apelação eram as seguintes:

1ª) A revogação da decisão recorrida por errada interpretação e aplicação ao caso concreto das normas dos artigos 12º do Código Civil e 57º, nº1 do NRAU, aprovado pela Lei nº6/2006 de 27.02;

2ª) A aplicação ao caso do disposto no art.º 1106º do Código Civil;

3ª) A violação do disposto no art.º 65º da CRP.

N. Pronunciando-se sobre tais questões, o Acordão ora recorrido considerou que « Deste modo, a lei aplicável ao caso em análise é pois a que vigorava em finais de 2010 e inícios de 2011, ou seja, à data da morte do primitivo arrendatário EE. A lei aplicável é, assim, o NRAU, na versão introduzida pela Lei nº 6/2006, de 27/2. E sendo assim, na hipótese dos autos valem as razões que sustentam as decisões proferidas nos acórdãos desta Relação do Porto de 7.10.2019, no processo 2346/18.2T8GDM.P1 e de 12.10.2021, no processo 2749/19.5T8MTS.P1., ambos publicados em www.dgsi.pt.».

O. O que, salvo o devido respeito, não se aceita!

P. Com efeito, e ao invés do sustentado pelo Venerando Tribunal da Relação do Porto, no que respeita à transmissão da posição contratual de arrendatário, importa ao aqui Réu discordar, com a devida vénia, de uma tal posição, quanto à aplicação do art.º 57.º do NRAU a esta segunda transmissão do contrato de arrendamento.

Q. É que, se é verdade que a situação jurídica aqui em causa teve a sua origem no aventado contrato de arrendamento, celebrado entre os antecessores das Autoras e o pai do aqui Réu, em 01/09/1973, certo é que, tal relação somente perdurou no tempo até à morte do arrendatário, seja, aquando da transmissão do contrato de arrendamento para a mãe do aqui Réu.

R. Com efeito, o regime normativo do arrendamento urbano sofreu alteração a nível legislativo, ficando revogados, os art.ºs 1083.º a 1120.º, do Código Civil – cfr. art.º 3.º, do diploma preambular do Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de Outubro –, tendo essas regras passado a integrar um corpo regimental unitário (doravante designado RAU).

S. Posteriormente, foi aprovado o Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU), aprovado pela Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro, o qual entrou em vigor no dia 28 de Junho de 2006, conforme se extrai do teor do art.º 65.º, n.º 2, desse mesmo diploma legal, exceptuando o disposto nos art.ºs 63.º e 64.º, da mesma Lei, que entraram em vigor no dia 28 de Fevereiro de 2006 (cfr. seu art.º 65.º, n.º 1).

T. Neste âmbito, importa antes do mais atentar no regime contido no art.º 12.º, do Código Civil, o qual, sob a epígrafe “Aplicação das leis no tempo. Princípio Geral”, determina o seguinte:

“1. A lei dispõe para o futuro; ainda que lhe seja atribuída eficácia retroactiva, presume-se que ficam ressalvados os efeitos já produzidos pelos factos que a lei se destina a regular. 2. Quando a lei dispõe sobre as condições de validade substancial ou formal de quaisquer factos ou sobre os seus efeitos, entende-se, em caso de dúvida, que só visa os factos novos; mas, quando dispuser directamente sobre o conteúdo de certas relações jurídicas, abstraindo dos factos que lhes deram origem, entender-se-á que a lei abrange as próprias relações já constituídas, que subsistam à data da sua entrada em vigor.”

U. Assim, em matéria de sucessão de leis no tempo, veio o legislador estabelecer, no art.º 12.º, do Código Civil, os princípios basilares a ter presente nesse domínio, distinguindo dois tipos de leis ou normas: aquelas que dispõem sobre os requisitos de validade (substancial ou formal) de quaisquer factos ou sobre os efeitos de quaisquer factos (1.ª parte) e aquelas que dispõem sobre o conteúdo de certas situações jurídicas e o modelam sem olhar aos factos que a tais situações deram origem (2.ª parte). As primeiras só se aplicam a factos novos, ao passo que as segundas se aplicam às situações jurídicas constituídas antes da lei nova mas subsistentes ou em curso à data do seu início de vigência (Oliveira Ascensão, “O Direito – Introdução e Teoria Geral”, FCG, 1980, págs. 422 e ss.).

V. Assim, in casu, tendo presente que o contrato em apreço data de 1973, isto é, de data anterior à da entrada em vigor do RAU, era-lhe este aplicável por força do disposto no art.º 12.º, n.º 2, 2.ª parte, do Código Civil, pois veio tal regime dispor directamente sobre o conteúdo das relações jurídicas locatícias, abstraindo-se dos factos que lhes deram origem, e abrangendo, em consequência, as próprias relações já constituídas e subsistentes à data da sua entrada em vigor.

W. Do leque das normas transitórias e finais contidas na mencionada Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro (cfr. seus art.ºs 26.º a 65.º), extrai-se com clareza que se acompanhou no essencial o regime contido no art.º 12.º, do Código Civil, e que o propósito inequívoco do legislador foi o de aplicar a todos os contratos de arrendamento urbano, habitacionais e não habitacionais, celebrados antes e depois da sua entrada em vigor, o mesmo e único regime jurídico, ressalvadas algumas pontuais excepções.

X. Impõe-se, por isso, concluir que a regra, no que tange ao regime de aplicação da lei no tempo contido na Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro, é a de que o NRAU se aplica aos contratos celebrados após a sua entrada em vigor, mas também às relações contratuais anteriormente constituídas que subsistam nessa data.

Y. No entanto, a aplicação do NRAU às relações contratuais constituídas anteriormente à sua data de início de vigência comporta duas excepções, a saber:

- A excepção que resulta das normas transitórias dos art.ºs 26.º a 58.º, da Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro, de acordo com o que prevê o seu art.º 59.º, n.º 1 in fine;

- A excepção atinente às normas supletivas contidas no NRAU, que só se aplicam aos contratos celebrados antes da entrada em vigor da nova lei quando não sejam em sentido oposto aos de norma supletiva vigente aquando da celebração do contrato, caso em que é essa a norma aplicável, atento o teor do art.º 59.º, n.º 3, da Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro.

Z. Não se verificando nenhuma das excepções legalmente contempladas que permitem arredar a aplicação do NRAU aos contratos celebrados antes da sua entrada em vigor, ter-se-ia que entender, por isso e em face do que preceitua o art.º 12.º, n.º 2, 2.ª parte, do Código Civil, conjugado com o art.º 59.º, n.º 1, 2.ª parte, da Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro, ser o NRAU aplicável desde 28 de Junho de 2006 aos contratos de arrendamento urbano celebrados antes da sua entrada em vigor, nos quais se integraria o contrato em análise.

AA. Não obstante, o legislador previu certamente a desarmonia que geraria com a imposição de um novo regime legal às relações contratuais locatícias estabelecidas anteriormente à data de entrada em vigor da «nova lei», mas ainda subsistentes aquando desse início de vigência, cujos termos se não regeram por esse inovador regime.

BB. Assim, quanto aos contratos celebrados antes e durante a vigência do RAU, são aplicáveis as normas do artigo 57.º do NRAU, por força das normas transitórias estatuídas nos artigos 26.º n.º 2 e 28.º n.º 1 do mesmo diploma, pelo que:

- o Contrato de Arrendamento não caduca por morte do inquilino primitivo – leia-se pela morte da pessoa que originalmente celebrou o contrato de arrendamento com o senhorio – quando sobrevivam, neste caso, o «a) Cônjuge com residência no locado».

CC. Razão pela qual, nos termos do art.º 57.º do NRAU, em 2011, transmitiu-se para a mãe do aqui Réu, o contrato de arrendamento em causa,

DD. Considerando-se, pois, esta nova relação contratual já constituída depois da entrada em vigor do NRAU, - sendo este o busílis da questão nos autos - e, quanto a estes, contratos celebrados depois da entrada em vigor do NRAU, são lhes aplicáveis as regras previstas no artigo 1106.º do Código Civil, que estatui que o arrendamento para habitação não caduca por morte do inquilino quando lhe sobreviva:

a) Cônjuge com residência no locado;

b) Pessoa que com ele vivesse em união de facto há mais de um ano;

c) Pessoa que com ele vivesse em economia comum há mais de um ano.

EE. Isto para dizer que: neste preciso âmbito, dentro da previsão da alínea c) do art.º 1106.º do CC – sendo esta a disposição aplicável por estarmos perante uma relação contratual nascida no inicio de 2011 - por morte da mãe do aqui Réu, transmitiu-se para este o arrendamento que a mesma mantinha desde 2011, com as aqui Autoras.

FF. Na verdade, à data do falecimento de sua mãe, o aqui Réu residia há mais de um ano, com a mesma, sendo que, aliás, tendo o aqui Réu 46 anos de idade, e sendo solteiro, sempre partilhou a residência com os seus pais (Cfr. documentos juntos com a contestação apresentada), vivendo em economia comum com a sua mãe, à data da morte desta.

Deste modo,

GG. Por todo o exposto, e sempre com a devida vénia, é nosso entendimento de que a solução encontrada pelo Venerando Tribunal da Relação do Porto contende com a interpretação e aplicação nos artigos 57.º do NRAU e com os artigos 12.º e 1106.º do C.C.,

HH. Pois que, antes deverá ser de acolher a interpretação de que, o apuramento da verificação das condições necessárias para que a transmissão do arrendamento opere a favor do aqui Recorrente deverá reportar-se ao momento da morte da transmitente – a sua mãe - e não do arrendatário primitivo.

II. Não tendo sido esta a interpretação do Dign.º Tribunal “a quo” temos que se mostra violado o artigo 65.º da nossa Lei Fundamental, sendo que, tal direito à habitação constitucionalmente consagrado reconduz-se à garantia de que a ninguém será vedado o direito a uma morada decente.

JJ. Assim sendo, na situação vertente, certo é que a interpretação colhida pelo Venerando Tribunal da Relação, no douto Acórdão ora recorrido, coloca em causa tal direito, pois que, o Réu vê assim comprometido um local condigno para viver com a sua família.

KK. Termos em que, por tudo o exposto, e sob pena de inconstitucionalidade, deverá ser revogada a decisão proferida e, consequentemente, ser substituída por outra que julgue improcedente a acção apresentada contra o aqui Recorrente, com todas as devidas e legais consequências.

Em suma,

LL. Por tudo o exposto, entende-se que, por um lado, padece o douto Acordão ora recorrido em Nulidade, nos termos das alíneas b), c) e d) do nº 1 do artigo 615º do C.P.C., o que, aqui, constitui fundamento de revista, nos termos da al. c) do n.º 1 do art.º 674.º do CPC.

MM. Além de ser, ainda, fundamento de revista, nos termos da al. a) do n.º 1 do art.º 674.º, a violação ou errada interpretação/aplicação de lei substantiva, concretamente, os artigos 57.º do NRAU e os artigos 12.º e 1106.º do C.C., do que se mostra, pois, violado o artigo 65.º da nossa CRP”.

8. As autoras responderam às alegações, dizendo, em conclusão, o seguinte:

1. Em face do valor da causa e da circunstância de existir dupla conforme, o recurso não é admissível, conforme prevêem os arís. 629°, n.° 1 e 671°, n.D3doCPC.

2. Inadmissibilidade essa que não é afastada pelo disposto no art. 629°, n,° 3, do CPC, que apenas admite a possibilidade de recurso, independentemente do valor da causa, para a Relação e não para o Supremo Tribunal de Justiça,

3. A questão de saber se o contrato de arrendamento se transmite ou caduca por morte do primitivo arrendatário encontra soiução consoante a lei vigente ao tempo em que se verifica o facto jurídico relativo à morte do arrendatário, conforme já decidido por este Venerando Tribunal,

4. No caso dos autos, tendo o arrendatário falecido entre o final de 2010 e início de 2011, a lei aplicável é o NRAU, na redacção introduzida pela Lei 6/2006 de 27 de Fevereiro, concretamente o seu art. 57°.

5. Aquando da morte do cônjuge sobrevivo do primitivo arrendatário, cônjuge esse a quem se transmitiu o arrendamento, nos termos das ais, c), d), n.° 1 do dito art. 57°, tal contrato não se transmite para o seu filho, o aqui R. Recorrente, dado que não se verificam os requisitos previstos nas ais. d) ou e) do n.° 1 do mesmo art, 57° do NRAU.

6. Inexistindo qualquer nova relação contratual aquando da morte do primitivo arrendatário, como pretende o R, Recorrente.

7. Não padece, pois, o douto Acórdão recorrido de qualquer nulidade ou violação da lei substantiva ou inconstitucionalidade”.

9. Em 9.03.2023 o Tribunal da Relação do Porto proferiu Acórdão em Conferência em que decidiu indeferir o pedido de reforma do Acórdão anteriormente proferido formulado pelo réu/apelante AA.

10. Em 28.04.2023, o Exmo. Senhor Desembargador proferiu despacho determinando a subida do recurso a este Supremo Tribunal.

11. Em 15.05.2023, proferiu a ora Relatora um despacho expressando fundadas dúvidas à admissibilidade do recurso e, atendendo a que as recorridas já se haviam pronunciado, determinando que se cumprisse, quanto ao recorrente, o disposto no artigo 656.º, n.º 2, do CPC (ex vi do artigo 655.º, n.º 2, do CPC).

12. No exercício deste direito, veio o recorrente expor o seguinte:

1. O aqui Recorrente, inconformado com o Acórdão proferido pelo Venerando Tribunal da Relação do Porto, dele veio interpor recurso, que é de Revista, para o Egrégio Supremo Tribunal de Justiça, nos termos do disposto nos arts. 652.º, n.º 5, al. b) e 671.º, n.º 1 e n.º 3 – 1.ª parte (“recurso é sempre admissível”), que remete para o art.º 629.º, n.º 3, al. a), e 674.º, n.º 1, alíneas a), e c), 675.º, n.º 1 e 677.º, todos do C.P.C.

Com efeito,

2. Tal Acórdão foi proferido na sequência de, nos termos do n.º 3 do artigo 652.º do CPC, o aqui Recorrente ter requerido que sobre a matéria da decisão recorrida recaísse um acórdão.

3. Sendo que «A reclamação deduzida é decidida no acórdão que julga o recurso» e, «do acórdão da conferência pode a parte que se considere prejudicada … recorrer nos termos gerais» - ns.º 4 e 5 do artigo 652.º do CPC.

4. Logo, recorrendo às normais gerais, em sede de recursos, temos o n.º 3 do artigo 671.º do CPC que, afastando a regra da irrecorribilidade nos termos da dupla conforme, determina a admissibilidade da revista nos casos em que o recurso é sempre admissível;

5. E, o recurso é sempre admissível, por força do artigo 629.º, n.º 3 do CPC, independentemente do valor da causa e da sucumbência,

6. O que, modestamente, significa que, estando em causa acção em que se aprecia a validade, subsistência ou cessação de contrato de arrendamento, deve entender-se que tal recurso é admissível não só para a Relação mas também para o Supremo Tribunal de Justiça.

7. Isto para dizer que, no caso vertente, além de não ocorrer inadmissibilidade de recurso por motivo respeitante à alçada do tribunal de que se recorre, está também afastada a irrecorribilidade pela situação de dupla conforme, por se tratar situação em que é sempre admissível recurso nos termos gerais”.

13. Na sequência proferiu, em 7.06.2023, a presente Relatora despacho em que pode ler-se:

Como se assinalou no despacho de 15.05.2023, decorre do exposto que o Tribunal de 1.ª instância decidiu julgar a acção parcialmente procedente, declarando o contrato de arrendamento cessado por caducidade e condenando o réu à restituição do imóvel.

Deve destacar-se a seguinte passagem da sentença:

“Fixo à presente acção o valor de 4 750 €, nos termos do art. 298º, nº 1, do CPC, considerando o valor renda mensal de 95 €, multiplicado por dois anos e meio, acrescido da indemnização peticionada”.

Tendo o réu apelado desta decisão, o Tribunal da Relação do Porto decidiu, numa primeira fase, por decisão sumária e, depois, por Acórdão de Conferência, julgar o recurso do réu improcedente e confirmar aquela decisão.

Tendo em conta a passagem da sentença acima destacada, logo se verifica que o presente recurso se depara com um obstáculo fundamental à sua admissibilidade, decorrente do valor da acção.

Dispõe-se no artigo 629.º, n.º 1, do CPC que:

“O recurso ordinário só é admissível quando a causa tenha valor superior à alçada do tribunal de que se recorre e a decisão impugnada seja desfavorável ao recorrente em valor superior a metade da alçada desse tribunal, atendendo-se, em caso de fundada dúvida acerca do valor da sucumbência, somente ao valor da causa”.

Ora, o valor da presente acção é (manifestamente) inferior à alçada do Tribunal recorrido (€ 30.000) (cfr. artigo 44.º, n.º 1, da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto).

Acresce que se verifica a situação prevista no artigo 671.º, n.º 3, do CPC, ou seja, o Acórdão da Relação confirmou, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1.ª instância.

Assim, ainda que não se registasse o obstáculo primeiramente referido, sempre ocorreria o impedimento à admissibilidade do recurso conhecido como dupla conforme.

O recorrente vem insistir na admissibilidade do recurso, voltando a expor as suas razões, que, no essencial, se resumem a um único argumento – de que o recurso é sempre admissível, por força do artigo 629.º, n.º 3 do CPC, independentemente do valor da causa e da sucumbência.

No despacho de 15.05.2023 já se havia antecipado os esclarecimentos necessários a demonstrar a improcedência deste argumento. Esclareceu-se, então, que a situação de “recurso sempre admissível”, invocada pelo recorrente e fundada no artigo 629.º, n.º 3, al. a) do CPC, não se verificava pois o que está em causa é um recurso para o Supremo Tribunal de Justiça e não para a Relação.

Explicou-se ainda – e reitera-se agora – que as nulidades (bem como, aliás, as inconstitucionalidades) arguidas pelo recorrente em nada alteram a conclusão da inadmissibilidade do recurso.

Dispõe-se no artigo 615.º, n.º 4, do CPC:

“As nulidades mencionadas nas alíneas b) a e) do n.º 1 só podem ser arguidas perante o tribunal que proferiu a sentença se esta não admitir recurso ordinário, podendo o recurso, no caso contrário, ter como fundamento qualquer dessas nulidades”.

Quer isto dizer que a arguição de nulidades não é fundamento exclusivo do recurso, só podendo ser apreciada pelo Tribunal ad quem quando o recurso é admissível e devendo, no caso contrário, ser apreciada pelo Tribunal a quo.

Diga-se, de qualquer forma, que o Tribunal a quo já as apreciou por Acórdão de Conferência de 9.03.2023.

Pelo exposto, decide-se julgar inadmissível o presente recurso de revista.

Custas pelo recorrente”.

14. O recorrente vem agora requerer que sobre a matéria recaia um acórdão, nos termos e para os efeitos do artigo 652.º, n.º 3, do CPC.

Apresenta a seguinte argumentação:

1. Sempre com o devido e merecido respeito, permite-se o aqui Reclamante, discordar do entendimento explanado pela Veneranda Senhora Juiz Conselheira deste Egrégio Tribunal, Relatora nestes autos de processo, quando concluiu «inadmissível o presente recurso de revista».

2. Isto porque, entendeu aquela Veneranda Ex.ma Senhora Juiz Relatora que o valor da presente causa, de €: 4.750,00, é manifestamente inferior à alçada do Tribunal recorrido e como tal regista-se um obstáculo à admissibilidade do dito recurso de revista.

3. E mesmo que assim não fosse, sempre ocorreria um outro obstáculo, como seja, a existência de “dupla conforme”.

4. Ora, não podendo aceitar tal entendimento, não resta senão apresentar a respectiva impugnação, nos termos previsto no n.º 3 do art.º 652.º do CPC, requerendo, pois, que sobre a matéria em causa recaia um acórdão.

Senão vejamos,

5. Desde logo, vem sustentada na decisão singular, ora objecto de reclamação, no facto de a alçada da presente acção não permitir recurso de revista.

6. No entanto, salvo o devido respeito, a discordância do aqui Recorrente é patenteada no facto de se entender que assim não poderá colher, por ser outra a solução que deverá merecer acolhimento.

Com efeito,

7. A questão a debater no presente recurso resume-se à aplicação e interpretação do disposto nos artigos sobre a admissibilidade de recurso.

8. Logo, recorrendo às normais gerais, em sede de recursos, temos o n.º 3 do artigo 671.º do CPC que, afastando a regra da irrecorribilidade nos termos da dupla conforme, determina a admissibilidade da revista nos casos em que o recurso é sempre admissível;

9. E, o recurso é sempre admissível, por força do artigo 629.º, n.º 3 do CPC, independentemente do valor da causa e da sucumbência,

10. O que, modestamente, significa que, estando em causa acção em que se aprecia a validade, subsistência ou cessação de contrato de arrendamento, deve entender-se que tal recurso é admissível não só para a Relação mas também para o Supremo Tribunal de Justiça.

11. Isto para dizer que, no caso vertente, além de não ocorrer inadmissibilidade de recurso por motivo respeitante à alçada do tribunal de que se recorre, está também afastada a irrecorribilidade pela situação de dupla conforme, por se tratar situação em que é sempre admissível recurso nos termos gerais.

12. Com efeito, preceitua o n.º 3 do art.º 629.º do CPC que, «Independentemente do valor da causa e da sucumbência, é sempre admissível recurso para a Relação:

a) Nas ações em que se aprecie a validade, a subsistência ou a cessação de contratos de arrendamento, com exceção dos arrendamentos para habitação não permanente ou para fins especiais transitórios;

b) Das decisões respeitantes ao valor da causa nos procedimentos cautelares, com o fundamento de que o seu valor excede a alçada do tribunal de que se recorre;

c) Das decisões de indeferimento liminar da petição de ação ou do requerimento inicial de procedimento cautelar.»

13. Mais, preceitua o n.º 3 do artigo 671.º do CPC que: «Sem prejuízo dos casos em que o recurso é sempre admissível, não é admitida revista do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1.ª instância, salvo nos casos previstos no artigo seguinte.»

Donde,

14. Sempre com o devido e merecido respeito, temos por certo que, na decisão sumária em análise, não se acolheu a correta interpretação dos artigos supra referidos,

15. Pois que, no caso vertente, deveria ser acolhida interpretação no sentido de se mostrarem preenchidos os requisitos específicos previstos no n.º 3 do art.º 629.º do CPC,

16. Essa interpretação normativa dos referidos preceitos legais, tal qual defendida pela Ex.ma Senhora Conselheira Relatora, afronta o direito de acesso ao Direito e tutela judicial efectiva, e o princípio da igualdade, constitucionalmente consagrados nos artigos 20º e 13º da CRP.17. Por todo o exposto, e sempre com a devida vénia, é nosso entendimento de que a solução aqui sufragada pela Ex.ma Senhora Relatora na decisão sumária reclamada, contende com a interpretação e aplicação dos preceitos supra referidos,

18. Devendo, por conseguinte, ser proferido douto Acórdão que determine a admissibilidade do recurso de revista em causa”.


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Não apresentando o reclamante argumentos novos ou distintos, nem na substância nem – diga-se – sequer na formulação, dos já apreciados e respondidos em momento anterior, adere-se e remete-se para a fundamentação do despacho reclamado, devendo considerar-se aqui, para todos os efeitos, reproduzidas as considerações aí tecidas.

A propósito do alegado “afrontamento”, pela decisão a que se adere, ao direito de acesso ao Direito e à tutela judicial efectiva e ao princípio da igualdade, portanto a propósito da alegada violação das normas constitucionais respectivas (cfr. conclusão 16 da reclamação) cumpre apenas acrescentar o seguinte: as restrições ao direito ao recurso em geral (como é, por exemplo, a respeitante ao valor da acção, prevista no artigo 629.º, n.º 1, do CPC) e ao recurso de revista em especial (como é, por exemplo, a respeitante à inexistência de dupla conforme, prevista, a contrario, no artigo 671.º, n.º 3, do CPC) são restrições concebidas, pretendidas e assumidas pela lei e plenamente conformes à Constituição da República Portuguesa.

Como tem sido recordado em numerosos Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça1, é o próprio Tribunal Constitucional quem afirma que este tipo de restrições ao direito de recurso não elimina nem não limita, de modo desproporcionado ou, em todo o caso, intolerável, o direito de recurso.

Com efeito, o Tribunal Constitucional vem-se pronunciando desde há tempo no sentido de que “a Constituição, maxime, o direito de acesso aos tribunais, não impõe ao legislador ordinário que garanta sempre aos interessados o acesso a diferentes graus de jurisdição para defesa dos seus direitos2, pelo que “o legislador ordinário tem liberdade para alterar as regras sobre a recorribilidade das decisões judiciais, aí se incluindo a consagração, ou não, da existência dos recursos, conquanto, como tem sustentado parte da doutrina […] não suprima em bloco ou limite de tal sorte o direito de recorrer de modo a, na prática, inviabilizar a totalidade ou grande maioria das impugnações das decisões judiciais, ou, ainda, que proceda a uma intolerável e arbitrária redução do direito ao recurso […]3.

Pelo exposto, confirma-se o despacho reclamado e mantém-se a decisão de inadmissibilidade da revista.


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Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC, sem prejuízo do apoio judiciário de que eventualmente beneficie.

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Catarina Serra (relatora)

Rijo Ferreira

Cura Mariano

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1. Cfr. só para um exemplo, o Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 10.11.2022 (Proc. 6798/16.7T8LSB-C.L1-A.S1).

2. Cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 431/02, de 22 de Outubro de 2002.

3. Cfr. Acórdão Tribunal Constitucional n.º 100/99, de 10 de Fevereiro de 1999, cuja doutrina foi confirmada, recentemente, por exemplo, pelo Acórdão n.º 657/2013, de 8 de Outubro de 2013.