Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
119/19.4T8STR.E1.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: MARIA JOÃO VAZ TOMÉ
Descritores: RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
ACIDENTE DE VIAÇÃO
ACIDENTE DE TRABALHO
CÁLCULO DA INDEMNIZAÇÃO
DANOS PATRIMONIAIS
DANO BIOLÓGICO
PERDA DA CAPACIDADE DE GANHO
CUMULAÇÃO
NULIDADE DE ACÓRDÃO
OPOSIÇÃO ENTRE OS FUNDAMENTOS E A DECISÃO
Data do Acordão: 03/29/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I. Não padecendo de qualquer vício de construção lógica na fundamentação e mostrando-se os fundamentos que presidiram à decisão com ela consentâneos, o acórdão não se encontra ferido da nulidade prevista no art. 615.º, n.º 1, al. c), 1.ª parte, do CPC. 2.

II. De acordo com a jurisprudência dominante do STJ, nas situações em que o evento lesivo se reveste simultaneamente da natureza laboral e civil, traduzindo-se num acidente de trabalho e de viação, as indemnizações a atribuir ao lesado, em sede laboral e em sede cível, não são cumuláveis, mas sim complementares até ao ressarcimento da totalidade do dano. De resto, entende-se também que a responsabilidade pelo acidente de trabalho assume carácter subsidiário.

III. Verifica-se a existência de danos distintos, cujo ressarcimento se impõe, sem que haja lugar a qualquer dedução do montante indemnizatório atribuído no foro laboral na indemnização conferida na ação cível. Não pode falar-se de violação do princípio da integralidade do ressarcimento, segundo o qual o lesado não pode vir a encontrar-se numa posição patrimonial mais favorável do que aquela em que estaria se a lesão não houvesse ocorrido. O acidente não é fonte de lucro ou de enriquecimento para o lesado, não existindo uma dupla indemnização pelo mesmo dano. O montante obtido pelo lesado no foro laboral não repara o mesmo prejuízo que é pressuposto e medida da indemnização por si pretendida nesta ação. O ressarcimento concedido com base na incapacidade parcial permanente não obsta à indemnização do dano biológico: o lesado não peticiona, nesta ação, a indemnização do dano da incapacidade profissional.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça,



I – Relatório

1. A título de indemnização dos danos decorrentes de acidente de viação, AA, em ação declarativa sob a forma de processo comum, pediu a condenação da Ré Seguradoras Unidas, S.A., no pagamento da quantia de € 225.773,62 (duzentos e vinte cinco mil setecentos e setenta e três euros e sessenta e dois cêntimos), que integra as despesas implicadas pelo auxílio de terceira pessoa até 19 de março de 2018 (€ 3.340) e no período que medeia entre 19 de março de 2018 e 16 de janeiro de 2019 ( € 1.320), os danos causados no vestuário e no calçado (€ 150), assim como no relógio de pulso (€ 180), o preço da compra de automóvel automático (€ 10.000), a perda de salários (€ 10.783,62),  a incapacidade permanente parcial (€ 135.000) e os danos não patrimoniais (€ 65.000).

2. Relativamente ao pedido de indemnização por incapacidade permanente parcial, foi alegado o seguinte:

- desde o acidente o Autor nunca mais pôde trabalhar;

- o que se prevê aconteça até ao fim dos seus dias;

- o Autor ficou afetado por incapacidade parcial geral e permanente de 50% e de incapacidade permanente para a sua atividade profissional habitual;

- deve considerar-se um salário médio mensal de, pelo menos, € 1.250;

- atendendo à idade, o salário considerado, o histórico salarial anterior, a possibilidade de progressão na carreira, a evolução dos salários, a indemnização deve ser fixada em montante não inferior a € 135.000.

3. Decorridos os trâmites processuais legalmente previstos, o Tribunal de 1.ª Instância proferiu sentença que julgou a ação parcialmente procedente nos seguintes termos:

A) condena-se a Ré Seguradoras Unidas S.A. a pagar ao Autor AA, as seguintes quantias:

- €10.783,62 (dez mil setecentos e oitenta e três euros e sessenta e dois cêntimos) título de indemnização por perda de salários a qual acrescem juros de mora à taxa legal, contados desde a citação até integral pagamento;

- €23. 386,31 (vinte e três mil trezentos e oitenta e seis euros e trinta e um cêntimos) a título de indemnização por incapacidade permanente parcial, ao qual acrescem juros contados desde a data da prolação da sentença até integral pagamento;

- €40.000,00 (quarenta mil euros) a título de indemnização por danos morais, ao qual acrescem juros contados desde a data da prolação da sentença até integral pagamento;

B) Absolve-se a Ré dos demais pedidos deduzidos pelo Autor.”

4. Não conformado, o Autor interpôs recurso de apelação, pugnando pela revogação da decisão recorrida e pela sua substituição por outra que determinasse o seguinte:

- € 120.000 -  dano patrimonial profissional,

- € 102.000 - dano biológico (€52.000 + € 50.000),

- € 12.408 - diferenças salariais,

relegando para execução de sentença os gastos com medicação e creme nívea.

5. A Recorrida apresentou recurso subordinado, sustentando que os valores atribuídos a título de danos não patrimoniais (€ 40.000) e a título de incapacidade permanente parcial (€ 94.000, a que foi deduzido o montante de €70.613,69 arbitrado no foro laboral) são excessivos, devendo fixar-se antes nas quantias de € 25.000 e de € 70.000, respetivamente.

6. Por acórdão de 21 de setembro de 2021, o Tribunal da Relação de Évora decidiu o seguinte:

Nestes termos, decide-se:

- pela parcial procedência do recurso interposto pelo A, em consequência do que se revoga parcialmente a decisão recorrida, condenando-se a R a pagar ao A:

- a quantia de €100.000 (cem mil euros) a título de indemnização pela perda de capacidade de ganho decorrente do défice funcional permanente de integridade físico-psíquica, montante a que não se subtrai o valor da indemnização arbitrada no foro laboral;

- a quantia de €12.411,28 (doze mil quatrocentos e onze euros e vinte e oito cêntimos) referente a perdas salariais;

- a quantia apurar em sede de liquidação para indemnização das despesas com medicamentos para as dores e cremes de aplicação tópica, negando-se provimento às demais pretensões deduzidas, pelo que se mantém, no mais, a sentença recorrida;

- pela total improcedência do recurso interposto pela R.

Custas do recurso interposto pelo A pela Recorrida, na proporção do decaimento, sendo certo que o A beneficia do apoio judiciário.

Custas do recurso interposto pela R pela Recorrente”.

7. Não conformada, a Ré Generali Seguros, S.A.[1], interpôs recurso de revista, formulando as seguintes Conclusões:

1. No douto acórdão recorrido concluiu-se, peremptoriamente, que o Autor peticionou uma indemnização pela perda da capacidade de ganho e não uma indemnização pelo dano biológico.

2. Esta indemnização pela perda da capacidade de ganho tem, exactamente, a mesma natureza da indemnização fixada em sede de acidentes de trabalho para compensar a perda de rendimentos salariais associada ao grau de incapacidade laboral fixado no processo de acidentes de trabalho e compensado pela atribuição de um certo capital de remição.

3. Ambas se destinam a compensar o mesmíssimo dano.

4. Não são cumuláveis, mas antes complementares – artigo 17.º da Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro.

5. Contraditoriamente, o douto acórdão recorrido conclui, também, que não há lugar ao abatimento da quantia arbitrada no foro laboral na indemnização da perda da capacidade de ganho em sede acidente de viação, por se tratar de danos diferentes: o primeiro incapacidade, o segundo dano biológico.

6. Tal configura, desde logo, uma clara oposição entre os fundamentos e decisão proferida e, como tal, uma nulidade do acórdão recorrido, nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 1, alínea c), do artigo 615.º do CPC.

7. E uma claríssima ilegalidade, pois que, sem qualquer fundamento e contra lei o Autor está a ser indemnizado duas vezes pelo mesmo dano, ou seja, duas compensações pelo reflexo que as lesões sofridas tiveram na sua capacidade de ganho.

8. Foi correcta a decisão do Tribunal de Primeira Instância de reduzir o valor recebido em sede de AT no valor arbitrado na presente acção, ao mesmo tempo que foi errada a decisão proferida no douto acórdão recorrido.

9. Neste mesmo sentido vai a restante jurisprudência, nomeadamente deste Tribunal.

10. Deve o acórdão recorrido ser revogada e proferido douto acórdão que, dando procedência ao recurso interposto, declare que a indemnização pela perda da capacidade de ganho arbitrada nos presentes autos e a indemnização em sede de acidentes de trabalho têm a mesma natureza e se destinam a indemnizar os mesmos danos e, em consequência, determine a dedução desta indemnização na primeira, com as legais consequências, o que se requer.

11. Sempre deverá ser declarada a nulidade do douto acórdão por contradição entre os fundamentos e a decisão, com as legais consequências, o que se requer.

12. A douta decisão recorrida viola, entre outras normas e princípios de direito, o disposto nos artigos 483.º e 562.º e seguintes do Código Civil, no n.º 1, alínea c), do artigo 615.º do CPC e no artigo 17.º da Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro.

NESTES TERMOS,

E nos demais de direito, deve o presente recurso ser julgado procedente e de acordo com as presentes conclusões, assim se fazendo JUSTIÇA.

8. O Autor apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso interposto pela Ré e pela manutenção da decisão do Tribunal da Relação de Évora.

II – Questões a decidir

Atendendo às conclusões do recurso, que, segundo os arts. 608.º, n.º 2, 635.º, n.º 4 e 639.º, do CPC, delimitam o seu objeto, e não podendo o Supremo Tribunal de Justiça conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser em situações excecionais de conhecimento oficioso, estão em causa as seguintes questões:

- saber se o acórdão recorrido enferma de nulidade por contradição entre os fundamentos e a decisão, art. 615.º, n.º 1, al. c) do CPC;

- saber se no acórdão recorrido se verifica ou não erro de direito na aplicação do art. 17.º da Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro, na “cumulação” de indemnizações.

III – Fundamentação

A) De Facto

Foram considerados como provados os seguintes factos:

1. No dia ... de março de 2017, cerca das 09h 30m na Auto Estrada n.º 1, ao km 58,850 junto a ... perto no nó do ..., nesta comarca, ocorreu um acidente de viação envolvendo o veículo automóvel de matrícula ..-..-UI conduzido por BB, propriedade da S..., S.A. [Vide doc. de fls. 24 a 28]

2. O piso encontrava-se molhado por ter chovido ainda que ligeiramente e havia boa luminosidade e visibilidade.

3. Naquelas circunstâncias de lugar e tempo o veículo ..-..-UI circulava na A..., no sentido ..., ou seja no sentido .../..., pela faixa mais à direita.

4. Então ao preparar-se para tomar a faixa de meio para ultrapassar os veículos que o precediam, imprimindo ao veículo uma velocidade de cerca de 110 km/h

5. Quinou para a faixa da direita para retomar novamente a mesma faixa.

6. Mas os veículos que seguiam nessa faixa circulavam a uma velocidade menor que o UI.

7. O que o obrigou a travar bruscamente para evitar a colisão com os veículos que o precediam.

8. Mas tão rápida e bruscamente efetuou essas manobras que perdeu o controlo do veículo UI.

9. O qual entrou em despiste, fazendo peão e capotou.

10. Seguidamente, deslizou desgovernado pela estrada, por cerca de 50 metros para a sua esquerda, tendo embatido no rali separador central, acabando por se imobilizar, tombado, no lado esquerdo da faixa de rodagem.

11. O Autor, que seguia no banco traseiro, atrás do lugar do condutor junto a uma das janelas, cujo vidro partiu, bateu com a cabeça e o ombro esquerdo no chão e ficou com o membro superior esquerdo por baixo do veículo, tendo sido arrastado durante o acidente e por vários metros.

12. Após a imobilização do UI, O Autor ficou com este sobre o seu braço, suportando o seu peso, de tal forma que não conseguia libertar-se.

13. Foi com verdadeiro pânico e terror que assim esteve durante alguns minutos, suplicando que o libertassem, e dizendo mesmo que ia morrer.

14. Assistiu depois às tentativas que os colegas de viagem fizeram para levantar, em peso, a viatura, antes de o conseguirem efetivamente, sendo ela próprio que com a outra mão puxou a mão presa.

B) Das consequências do acidente

B) 1 – Lesões, tratamentos e sequelas

15. Em consequência do acidente e do local deste o Autor foi transportado pelo INEM para o Hospital .... [Vide doc. de fls. 29 a 32]

16. Ali foi-lhe diagnosticado:

- fratura-luxação exposta do punho esquerdo com cominutiva distal do cúbito esquerdo e com perda óssea ao nível da estiloide radial; dissociação escafo-lunar e instabilidade da rádio-cubital distal; esfacelo da face dorsal da mão e punho com secção dos tendões extensores EPL, EPB, ECRB, ECRL, EPI, EDC do 2º dedo;

- Amputação quase total do antebraço esquerdo junto ao punho;

- Traumatismo craniano frontal esquerdo com ferido inciso contusa; - TC-CE com hematoma epicraniano correspondente;

- Afundamento da lâmina papirácea esquerda;

-Alterações degenerativas C5-C6 com estenose foraminal e provável compromisso radicular. [Vide doc. de fls. 29 a 32]

17. Neste contexto foi submetido a intervenção cirúrgica de urgência pelas especialidades de ortopedia e cirurgia reconstrutiva com:

- Desbridamento de tecido desvitalizado;

- Redução da articulação rádico-cárpica, aparente integridade dos osso do carpo verificando-se contudo dissociação da escafo-lunar e lesão condral do escafoide;

- Estabilização com fixador externo (stryker) mono-planar com dois pinos a M2 e dois pinos à diáfise do rádio;

- Estabilização da rádio-cubital distal com fio de Kirschner 1,5;

- Tenorrafias dos tendões ELP, EPB, ECRB, ECRL, EPI, EDC do 2º dedo;

- Encerramento parcial do defeito cutâneo dorsal com retalhos traumático viáveis; - Aplicação de penso de vácuo. [Vide doc. de fls. 29 a 32]

18. O Autor ficou internado o Hospital ... em ... de 17 e 30 de Março de 2017, altura em que foi transferido para o Hospital ..., na sua área de residência. [Vide doc. de fls. 29 a 32]

19. No Hospital ..., onde ficou internado cerca de 3 semanas, foi operado no dia 11 de Abril, pelo serviço de cirurgia plástica para enxerto cutâneo, sendo a zona dadora a coxa esquerda. [Vide doc. de fls. 33 a 39 e relatório de perícia médico-legal de fls. 113 a 122]

20. Recebeu alta do serviço de cirurgia plástica do Hospital ... no dia 19 de Abril de 2017. [Vide doc. de fls. 33 a 39 e relatório de perícia médico-legal de fls. 113 a 122]

21. Seguidamente passou a ser acompanhado nos serviços clínicos da seguradora na Casa de Saúde .... [Vide doc. de fls. 33 a 39 e relatório de perícia médico-legal de fls. 113 a 122]

22. Nestes serviços clínicos retirou o fixador externo, fazendo consultas e curativos. [Vide doc. de fls. 33 a 39 e relatório de perícia médico-legal de fls. 113 a 122]

23. Fez fisioterapia durante 174 dias (de segunda a sexta-feira) na Clínica ... em ... [Vide doc. de fls. 40 a 44 e relatório de perícia médico-legal de fls. 113 a 122]

24. Teve alta clínica em 19 de Março de 2018. [Vide doc. de fls. 33 a 39 e relatório de perícia médico-legal de fls. 113 a 122]

25. Em consequência do acidente, tratamentos e intervenções cirúrgicas, o Autor ficou com as seguintes sequelas:

a) Membro superior esquerdo:

- Cicatrizes e deformidade marcada da face dorsal do antebraço e punho; - Cicatriz em V invertido da face antero-externa do cotovelo;

- Anquilose do punho e rigidez marcada dos dedos;

- Limitação da mobilidade do cotovelo, com anquilose da prono-supinação; - Limitação da mobilidade do ombro;

- Cicatrizes lineares paralelas o terço proximal do braço; b) Membro inferior esquerdo:

- Área distrófica de 5 por 4 cm de tamanho no terço média da face anterior da coxa, local de recolha do enxerto de pele. [Vide relatório de perícia médico-legal de fls. 113 a 122]

26. Para além das sequelas referidas o Autor tem dificuldades em dormir. [Vide relatório de perícia médico-legal de fls. 113 a 122]

27. Toma residualmente medicamentos para as dores. [Vide relatório de perícia médico-legal de fls. 113 a 122]

28. Tem dificuldade em realizar tarefas que impliquem o uso das duas mãos, como por exemplo:

- apertar botões da roupa e atacadores do calçado;

- vestir-se e tomar banho. [Vide relatório de perícia médico-legal de fls. 113 a 122] 29. O Autor necessita de aplicar creme “Nívea” para amaciamento das cicatrizes.

[Vide relatório de perícia médico-legal de fls. 113 a 122]

30. A data da consolidação médico legal das lesões sofridas pelo Autor foi fixada em 19 de Março de 2018; [Vide relatório de perícia médico-legal de fls. 113 a 122]

31. O Autor sofreu um período de Défice Funcional Temporário Total de 25 dias. [Vide relatório de perícia médico-legal de fls. 113 a 122]

32. O Autor sofreu um período de Défice Funcional Temporário Parcial de 332 dias; [Vide relatório de perícia médico-legal de fls. 113 a 122]

33. O Autor teve um período de Repercussão Temporária na Atividade Profissional Total de 357 dias; [Vide relatório de perícia médico-legal de fls. 113 a 122]

34. Sofreu um Quantum Doloris de grau 5/7; [Vide relatório de perícia médico-legal de fls. 113 a 122]

35. Um Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquico de 24,8474562416 pontos. [Vide relatório de perícia médico-legal de fls. 113 a 122]

36. As sequelas sofridas pelo Autor são, em termos de Repercussão Permanente na Atividade Profissional, impeditivas do exercício da atividade profissional habitual, sendo, no entanto compatíveis com outras profissões da área da sua preparação técnico-profissional. [Vide relatório de perícia médico-legal de fls. 113 a 122]

37. O Autor sofre ainda um Dano Estético Permanente de grau 3/7; [Vide relatório de perícia médico-legal de fls. 113 a 122]

38. As sequelas têm para o Autor uma Repercussão Permanente nas Atividades Desportivas e de Lazer de grau 4/7.[Vide relatório de perícia médico-legal de fls. 113 a 122]

B)2 – Prejuízos materiais, situação profissional

39. Em consequência do acidente a roupa que o Autor vestia (calças, camisola e camisa) de valor não concretamente apurado, ficou inutilizada.

40. Ficou ainda inutilizado um relógio de valor não concretamente apurado.

41. À data do acidente o Autor trabalhava para a S... S.A., exercendo aí a atividade de ... de 1ª categoria. [Vide doc. de fls.51]

42. O Autor auferia a remuneração anual de € 10.260,00 (€ 565,00 remuneração base + €190,30 subsídio de refeição), auferindo ainda prémios de produtividade, ajudas de custa e horas extraordinárias, de valor variável, sendo que no ano de 2017 até à data do acidente auferiu a remuneração mensal média de € 1.366,00. [Vide docs de fls. 51 a 55 e 91 a 99]

43. O Autor esteve sem trabalhar desde a data do acidente 27 de Março de 2017- até à data da alta – 19 de Março de 2018. [Vide relatório de perícia médico-legal de fls. 113 a 122]

44. Até 19 de Março de 2018 o Autor recebeu a título de incapacidade temporária por acidente de trabalho a quantia de €3.616,38.

45. Durante períodos não concretamente apurados o Autor trabalhou no estrangeiro por conta da sua entidade patronal, auferindo ajudas de custas, de valor não concretamente apurado.

B)3 – Vivência social do autor e transtornos psicológicos

46. O Autor nasceu a .../.../1959 [Vide certidão fls. 48 e 49] 47. O Autor tem a seu cargo dois filhos

48. A filha é estudante universitária e encontra-se no 2º ano do curso de Termalismo e Bem Estar. [Vide doc. de fls. 58 e 59]

49. O filho sofre de uma anomalia congénita.

50. O Autor temeu pela sua vida no momento do acidente e viveu momento de pânico e angústia bem como a sua família, tendo até sido noticiado nos meios de comunicação social que lhe iam amputar o braço.[Vide doc. de fls. 60 a 62]

51. No hospital e vendo a gravidade das lesões, o Autor receou que fosse necessária a amputação do membro superior esquerdo, o que lhe causou grande angústia e tristeza.

52. O Autor sofreu as dores das lesões provocadas pelo acidente.

53. O Autor sofreu o medo e a ânsia de duas intervenções cirúrgicas e os aborrecimentos e incómodos dos internamentos.

54. Até à data do acidente era o Autor que fazia praticamente todas as reparações em sua casa e zelava pela sua conservação, assim como também fabricava a horta.

55. O Autor dorme com o braço apoiado sobre uma almofada, com o braço estendido, pelo que passou a dormir só;

56. O que lhe causa transtorno e tristeza.

57. O Autor tem como habilitações literárias a antiga 4ª classe B) 4 – Do Processo de Acidentes de Trabalho

58. O acidente de que foi vítima o Autor foi considerado como acidente de trabalho. [Vide certidão de fls.101 a 105v]

59. O que deu origem, ao processo especial de acidentes de trabalho que correu termos no Juízo de Trabalho ... – Juiz ..., sob o nº 876/18.... [Vide certidão de fls. 101 a 105v]

60. No âmbito do referido processo foram considerados provados os seguintes factos:

- O sinistrado nasceu em .../.../1959.

- No dia 27 de Março de 2017, cerca das 09:45 horas, em ..., o sinistrado sofreu um acidente de trabalho, quando exercia as funções de ..., sob as ordens direcção e fiscalização da entidade empregador S..., S.A.

- O acidente ocorreu quando ao deslocar-se para o trabalho, sofreu um acidente de viação, estando sentado no banco atrás do condutor, com o acidente a carrinha capotou, o vido partiu, o membro superior esquerdo terá ficado por baixo e foi arrastado, resultando traumatismo do hemicorpo esquerdo.

- A responsabilidade infortunística-laboral encontrava-se integralmente transferida para a seguradora Seguradoras Unidas, S.A. mediante contrato de seguro titulado pela apólice dos autos, quanto ao aqui sinistrado.

- O sinistrado auferia a retribuição anual de €565,00 x 14 + 190,30 x 12 (total anual €10.260,60)

- O sinistrado teve alta em 19 de Março de 2018.

- Foram-lhe pagas todas as indemnizações e demais despesas acessórias que eram devidas até à data da alta.

- O sinistrado despendeu a quantia de €60,00 em deslocações obrigatórias para comparecer neste Tribunal e ao Gabinete Médico-Legal ....

- O sinistrado declarou não pretender por ora requerer subsídio de readaptação profissional. [Vide certidão de fls.101 a 105v]

61. Foi-lhe ainda atribuída uma Incapacidade Permanente para o Trabalho (IPP) de 50,5077% com Incapacidade Permanente Absoluta para o Trabalho Habitual (IPATH) [Vide certidão de fls.101 a 105v]

62. Tendo sido proferida sentença com o seguinte teor:

“A) Decido que o sinistrado AA no dia 27 de Março de 2017 sofreu um acidente de trabalho, em consequência do qual sofreu uma desvalorização permanente parcial para o trabalho de 50,5077% com IPATH (IPP de 50,5077% com IPATH);

B) Em consequência condeno a Seguradora “Seguradora Unidas, S.A.” a pagar ao sinistrado AA uma pensão anual, vitalícia e actualizável no valor de €6.130,72 (seis mil cento e trinta euros e setenta e dois cêntimos). Devida a partir de 20 de Março de 2018, a ser paga mensalmente até ao 3º dia de cada mês e no seu domicílio, correspondendo cada prestação a ¼ da pensão anual, acrescida de subsídio de férias e de Natal, no valor de ¼ cada da pensão anual, a serem pagos nos meses de Junho e Novembro de cada ano, respectivamente, bem como dos juros de mora desde a data do vencimento de cada prestação até integral pagamento;

C) Condeno a Seguradora “Seguradoras Unidas, S.A.” a pagar ao sinistrado AA a quantia de € 4.735,68 (quatro mil setecentos e trinta e cinco euros e sessenta e oito cêntimos) referente a subsídio de elevada incapacidade permanente relativo à incapacidade permanente absoluta para o trabalho habitual, acrescida dos juros legais de mora que se vencerem desde a data do trânsito em julgado da presente sentença a até efectivo e integral pagamento;

D) Condeno a Seguradora “Seguradoras Unidas, S.A.” a pagar ao sinistrado AA a quantia de €60,00, a título de despesas com deslocações a Tribunal e ao Gabinete Médico-Legal ..., acrescida de juros de mora à taxa legal desde 17-10-2018 até integral e efectivo pagamento.” [Vide certidão de fls.101 a 105v]

C) Da Responsabilidade

63. A responsabilidade civil pela circulação do veículo ..-..-UI estava assumida pela Segurador Unidas S.A mediante contrato de seguro titulado pela Apólice n.º ...54. [Vide doc. de fls. 81v]”.

B) De Direito

Tipo e objecto de recurso

1. Por sentença proferida a 1 de dezembro de 2020, a ação foi julgada parcialmente procedente e, consequentemente,

a) condenou-se a Ré Seguradoras Unidas, S.A., a pagar ao Autor AA:

- a quantia de € 10.783,62 (dez mil setecentos e oitenta e três euros e sessenta e dois cêntimos) a título de indemnização por perda de salários, à qual acrescem juros de mora à taxa legal, contados desde a citação até integral pagamento;

- o montante de € 23. 386,31 (vinte e três mil trezentos e oitenta e seis euros e trinta e um cêntimos), a título de indemnização por incapacidade permanente parcial, ao qual acrescem juros contados desde a data da prolação da sentença até integral pagamento;

- o valor de € 40.000,00 (quarenta mil euros), a título de indemnização por danos não patrimoniais, ao qual acrescem juros contados desde a data da prolação da sentença até integral pagamento.

2. Por acórdão de 2 de setembro de 2021, o Tribunal da Relação de ... decidiu considerar improcedente o recurso da Ré e conceder parcial procedência ao recurso interposto pelo Autor, condenando aquela a pagar a este:

- a quantia de € 100.000 (cem mil euros), a título de indemnização pela perda de capacidade de ganho decorrente do défice funcional permanente de integridade físico-psíquica, a que não subtraiu o valor da indemnização arbitrada no foro laboral;

- o montante de € 12.411,28 (doze mil quatrocentos e onze euros e vinte e oito cêntimos), pelas perdas salariais;

- o valor a apurar em sede de liquidação para indemnização das despesas com medicamentos para as dores e cremes de aplicação tópica;

- negando provimento às demais pretensões deduzidas, mantendo-se, no mais, a sentença recorrida.

3. É deste acórdão que a Ré interpõe recurso de revista.

4. O Autor apresentou contra-alegações, pugnando pela manutenção do decidido.

5. O Tribunal da Relação de Évora, em conferência, decidiu indeferir a nulidade invocada.

6. O recurso foi admitido pelo Senhor Relator no Tribunal da Relação de ... .

(In)admissibilidade do recurso

Atendendo ao valor da causa - € 225 773,62 -, ao valor da sucumbência (superior a € 15 000,00), à legitimidade da Ré/Recorrente e ao teor do acórdão recorrido, o presente recurso de revista é admissível, nos termos dos arts. 671.º, n.º 1, e 674.º, n.º 1, als. a) e c), do CPC.

Nulidade ou não do acórdão recorrido por contradição entre os fundamentos e a decisão

1. A Recorrente alega que o acórdão recorrido se encontra ferido de nulidade por contradição entre os fundamentos e a decisão, nos termos do art. 615.º, n.º 1, al. c), do CPC, porquanto este considera que não há lugar à dedução da quantia arbitrada no foro laboral na indemnização da perda da capacidade de ganho atribuída em sede de responsabilidade civil extracontratual decorrente de acidente de viação. De acordo com o Tribunal da Relação de Évora, está em causa o ressarcimento de danos diferentes: de um lado, o dano da incapacidade parcial permanente e, de outro, o dano biológico.

2. Conforme o o art. 615.º, n.º 1, al. c), do CPC,

1 - É nula a sentença quando:

(…)

c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;

(…)

3. Os vícios suscetíveis de originar a nulidade da sentença são de natureza formal, decorrendo da respetiva construção lógica e, por isso, não se confundem com o erro de julgamento. I.e., a sentença enferma de nulidade por oposição dos fundamentos com a decisão quando o raciocínio lógico se mostre viciado por os fundamentos de facto e de direito apresentados conduzirem, necessariamente, a uma decisão diferente ou oposta àquela alcançada. Por seu turno, verifica-se erro de julgamento no caso de, apesar da correção do raciocínio lógico-dedutivo, ocorrer uma subsunção incorreta dos factos ao direito.

4. Tem sido este o entendimento pacífico do Supremo Tribunal de Justiça a este propósito. Assim:

- no acórdão de 12 janeiro de 2022 (José Raínho), processo n.º 782/18.3T8BJA.E1.S1[2] encontra-se a seguinte fundamentação: “Sustenta a Recorrente, citando (na conclusão 7.a) a alínea c) do n.º 1 do art. 615.º do CPCivil, que o acórdão recorrido enferma de nulidade por contradição entre os fundamentos e a decisão. Isto (e se bem se entende) porque o acórdão recorrido defende a não acumulação das indemnizações por acidente de trabalho e de viação mas depois acaba por decidir que não há lugar ao abatimento do montante da indemnização (capital de remição) que foi atribuída ao Autor em sede de processo que correu pelo tribunal do trabalho. Mas é por demais óbvio que a anunciada nulidade não ocorre. Como tem sido reiteradamente afirmado na doutrina e na jurisprudência, não há que confundir entre nulidades de decisão e erros de julgamento (seja em matéria substantiva, seja em matéria processual). As primeiras (errores improcedendo) são vícios de formação ou atividade (referentes à autenticidade, à inteligibilidade, à estrutura ou aos limites da decisão, isto é, trata-se de vícios que afetam a regularidade da decisão ou do silogismo judiciário) da peça processual que é a decisão, nada tendo a ver com erros de julgamento (errores in iudicando), seja em matéria de facto seja em matéria de direito. As nulidades ditam a anulação da decisão por ser formalmente irregular, as ilegalidades ditam a revogação da decisão por ser destituída de mérito jurídico (ilegal). Ora, se é certo que o acórdão recorrido (pp. 21 e 22) defende que as indemnizações pelo simultâneo acidente de viação e de trabalho não são cumuláveis, menos certo não é que também entende que não estamos aqui perante uma situação de reparação do mesmo dano, além de que, a haver cumulação, é em sede de direito de regresso da seguradora laboral contra o lesado que a cumulação deve ser neutralizada. E foi por estas razões que decidiu não deduzir à indemnização que arbitrou aquilo (capital de remição) que o Autor recebeu em sede de acidente de trabalho. Portanto, a questão só poderia ser de error in iudicando (erro de decisão), assunto que nada tem a ver com a temática das nulidades de decisão {error in procedendo). O que significa que improcede imediatamente a arguição da nulidade do acórdão recorrido”.

- no acórdão de 21 de janeiro de 2021 (Tibério Nunes da Silva), processo n.º 3384/16.5T8GMR.G1.S1[3], foi elaborado o seguinte sumário: “I - A contradição entre os fundamentos e a decisão, que dá origem à nulidade prevista no art. 615.º, n.º 1, al. c), do CPC, ocorre quando a construção da sentença é viciosa, pois os fundamentos invocados pelo juiz conduziriam logicamente, não ao resultado expresso na decisão, mas a resultado oposto, não se confundindo uma tal situação com o eventual erro na avaliação dos elementos probatórios produzidos nem com a interpretação dos factos no exercício da subsunção ao direito. (…)”.

- no acórdão de 26 de janeiro de 2021 (Ana Paula Boularot), Incidente n.º 2350/17.8T8PRT.P1.S2[4], encontra-se o seguinte sumário: “I - Dispõe o art. 615.º, n.º 1, al. c), do CPC que a sentença (in casu acórdão) é nula quando «Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;». II - O vício a que se reporta o apontado segmento normativo implica, por um lado, que haja uma contradição lógica no aresto, o que significa, para a sua ocorrência, que a fundamentação siga um determinado caminho e a decisão opte por uma conclusão completamente diversa, e, por outro, que tal fundamentação inculque sentidos diversos e/ou seja pouco clara ou imperceptível. (…)”.

- no acórdão de 4 de fevereiro de 2021 (Nuno Pinto de Oliveira), processo n.º 22/17.2T8CLB.C1.S1[5], o sumário é o seguinte: “A autêntica contradição entre os fundamentos e a decisão, prevista no art. 615.º, n.º 1, al. d), do CPC, distingue-se do erro de julgamento - a contradição entre os fundamentos e a decisão corresponde a um vício formal, na construção lógica da decisão e o erro de julgamento, a um vício substancial, concretizado, p. ex., na errada subsunção dos factos concretos à correspondente hipótese legal”.

- no acórdão de 25 de maio de 2021 (Fernando Samões), processo n.º 558/20.8T8GMR.G1.S1[6], encontra-se o seguinte sumário: “I - Não padece de nulidades, por oposição dos fundamentos com a decisão, o acórdão que contém os fundamentos que conduzem logicamente à decisão e condena em custas na proporção do decaimento das partes. II - Não padece de nulidade por omissão de pronúncia o acórdão que conhece do objecto da apelação e é fundada em argumentos aduzidos pelos recorrentes. III - A nulidade por excesso de pronúncia radica no conhecimento de questões que não podiam ser julgadas por não terem sido suscitadas pelas partes, nem serem de conhecimento oficioso, pelo que não padece desse vício o acórdão que conhece do objecto da apelação e, na sua procedência, conhece do pedido reconvencional em substituição do tribunal recorrido. IV - O regime das nulidades destina-se apenas a remover aspectos de ordem formal que inquinem a decisão, não sendo adequado para manifestar discordância e pugnar pela alteração do decidido. (…)”.

5. Considerando que não enferma de qualquer vício de construção lógica na fundamentação e que os fundamentos que presidiram à decisão se mostram com ela consentâneos, não se afigura que o acórdão recorrido se encontre ferido da nulidade prevista no art. 615.º, n.º 1, al. c), 1.ª parte, do CPC.

6. Por conseguinte, o recurso de revista improcede nesta parte.

Do erro de direito na aplicação do art. 17.º da Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro e na cumulação de indemnizações

1. A Recorrente invoca que o acórdão recorrido padece de erro de direito na aplicação do art. 17.º da Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro, devendo, nesta parte, ser repristinada a sentença do Tribunal de 1.ª Instância.

2. No que ora releva, o acórdão recorrido determinou o seguinte:

Seguindo de perto o que se mostra exarado no Ac. do STJ de 11/07/2019[7], importa salientar que quando o acidente for, simultaneamente, de viação e de trabalho, as respetivas indemnizações não são cumuláveis, mas antes complementares, assumindo a responsabilidade infortunística laboral carácter subsidiário. A responsabilidade primeira é a que incide sobre o responsável civil. É essa responsabilidade que vai definir o quadro indemnizatório geral, sendo certo, no entanto, que, quanto ao mesmo dano concreto, não pode haver duplo ressarcimento.

As indemnizações fixadas em cada uma dessas jurisdições (civil e laboral) não se sobrepõem, completam-se. As indemnizações são independentes e dessa independência decorre que o tribunal em que for formulado o pedido de indemnização exerce a sua jurisdição em plenitude, decidindo e apurando, sem limitações, a extensão dos danos, e deixando ao critério do lesado a opção pela que melhor lhe convenha[8].

Ora, no processo especial por acidente de trabalho foi atribuída uma pensão anual, vitalícia e atualizável, decorrente da desvalorização permanente parcial para o trabalho de 50,5077%. Neste processo, está em causa a indemnização do dano biológico, embora no que respeita à repercussão desse dano na capacidade de ganho do lesado, enquanto dano patrimonial.

Logo, são de considerar como danos diferentes o que decorre da perda de rendimentos salariais, associado ao grau de incapacidade laboral fixado no processo de acidente de trabalho e compensado pela atribuição de certo capital de remição, e o dano biológico decorrente das sequelas incapacitantes do lesado que – embora não determinem perda de rendimento laboral - envolvem restrições acentuadas à capacidade do sinistrado, implicando esforços acrescidos, quer para a realização das tarefas profissionais, quer para as atividades da vida pessoal e corrente[9].

Nestes termos, inexistindo duplicação de indemnizações, não há lugar ao abatimento da quantia arbitrada no foro laboral a título de pensão anual e vitalícia”.

3. Por seu turno, de acordo com a sentença do Tribunal de 1.ª Instância:

Assim, o resultado “matemático” obtido através da consideração dos 24.84 pontos de incapacidade, pode/deve ser aumentado, em cerca de 50%, [Vide no mesmo sentido Ac. RP de 08/05/2014 processo nº 227/09.0TBRSD.P1) o que eleva o valor da indemnização a €81.652,50 valor este que, ainda deve ser actualizado dado o tempo que decorre desde a data da consolidação das lesões até ao fim da audiência final (3 anos e 9 meses), pelo que se considera adequado uma indemnização de €94.000,00 (noventa e quatro mil euros)

Este valor terá ainda que ser corrigido, descontado o que o Autor irá receber da sem sede de acidentes de trabalho, tendo em conta o capital remível que ascende a € 70.613,69, pelo que a título de indemnização por incapacidade parcial permanente o Autor tem o direito de receber a quantia de €94.000,00 - €70.613,69 = €23.386,31 (vinte e três trezentos e oitenta e seis euros e trinta e um cêntimos) a título de indemnização por incapacidade permanente parcial”.

4. De acordo com a jurisprudência dominante do Supremo Tribunal de Justiça, nas situações em que o evento lesivo se reveste simultaneamente da natureza laboral e civil, traduzindo-se num acidente de trabalho e de viação, as indemnizações a atribuir ao lesado, em sede laboral e em sede cível, não são cumuláveis, sendo antes complementares até ao ressarcimento da totalidade do dano. De resto, entende-se também que a responsabilidade pelo acidente de trabalho assume carácter subsidiário.

5. Assim:

- acórdão de 12 de janeiro de 2022 (José Raínho), processo n.º 782/18.3T8BJA.E1.S1[10] (“IV - Conquanto as indemnizações por acidente de viação e de trabalho não sejam cumuláveis (mas complementares), não há que deduzir à quantia indemnizatória estabelecida em sede cível a indemnização que o lesado recebeu a título de reparação pelo dano resultante do acidente de trabalho”);

- acórdão de 17 de novembro de 2021 (Ferreira Lopes), processo n.º 3496/16.5T8FAR.E1.S1[11] (“I - Sendo o acidente simultaneamente de viação e de trabalho, o recebimento pelo lesado de um certo capital de remissão no âmbito do processo por acidente de trabalho, não exclui o direito à indemnização pelo dano biológico, na sua vertente patrimonial, por serem distintos os danos a ressarcir. II - O capital de remissão visa ressarcir as perdas salariais associadas à incapacidade laboral fixada no processo por acidente de trabalho; a indemnização pelo dano biológico, além de compensar a perda de capacidade de ganho, visa ainda compensar o lesado pelas limitações funcionais que se reflectem na maior penosidade e esforço no exercício da actividade diária e na privação de futuras oportunidades profissionais.”);

- acórdão de 30 de abril de 2020 (Maria do Rosário Morgado), processo n.º 6918/16.1T8VNG.P1.S1[12] (“I - Os danos futuros decorrentes de uma lesão física não se reconduzem apenas à redução da sua capacidade de trabalho, já que, antes do mais, se traduzem numa lesão do direito fundamental do lesado à saúde e à integridade física. II - Quando o acidente reveste simultaneamente a natureza de acidente de viação e de trabalho, as indemnizações destinadas a ressarcir o mesmo dano não são cumuláveis, mas sim complementares. III - A indemnização devida ao sinistrado a título de perda da sua capacidade de ganho, no regime jurídico das prestações por acidente de trabalho, não contempla a compensação do dano biológico, consubstanciado na diminuição somático-psíquica e funcional do lesado”);

- acórdão de 5 de maio de 2020 (Raimundo Queirós), processo n.º 30/11.7TBSTR.E1[13] (“VII - A indemnização devida ao lesado/sinistrado a título de perda da sua capacidade de ganho, mesmo no caso de o autor ter optado pela indemnização arbitrada em sede de acidente de trabalho, não contempla a compensação do dano biológico, consubstanciado na diminuição somático-psíquica e funcional do lesado, com substancial e notória repercussão na sua vida pessoal e profissional, porquanto estamos perante dois danos de natureza diferente. VIII - A indemnização fixada em sede de acidente de trabalho tem por objecto o dano decorrente da perda total ou parcial da capacidade do lesado para o exercício da sua actividade profissional habitual, durante o período previsível dessa actividade e, consequentemente, dos rendimentos que dela poderia auferir. IX - Assim, visando, com o capital de remição da pensão anual - pago como indemnização atribuída a título de acidente de trabalho - reparar apenas a perda de capacidade geral de ganho reportada à profissão habitual, sem que, portanto, se tenha tido em conta a perda dessa capacidade de ganho na totalidade das suas componentes, não há que deduzir à indemnização pela perda da capacidade de ganho/dano biológico a quantia já paga no processo acidente de trabalho”).

- acórdão de 26 de fevereiro de 2019 (Graça Amaral), processo n.º 184/08.0TBSTB.E1.S1 (“I - As indemnizações decorrentes de acidente, que concomitantemente seja de viação e de trabalho, assentam em critérios distintos, possuindo cada uma delas a sua funcionalidade própria, assumindo-se, por isso, complementares até ao ressarcimento total do prejuízo causado. II - O dano biológico enquanto lesão da saúde, deverá ser reconduzido à categorização de dano-real (ou dano-evento) de consequências patrimoniais e não patrimoniais. III - A incapacidade funcional ou fisiológica centra-se na diminuição da condição física, resistência e capacidade de esforço por parte do lesado, com consequências inevitavelmente previsíveis (em termos de maior penosidade e desgaste físico) no desenvolvimento das actividades pessoais em geral. Nessa medida, a incapacidade permanente parcial constitui de per si um dano patrimonial que importa compensar e que se revela independente do ressarcimento da efectiva perda da capacidade de trabalho ou de ganho resultante de acidente de trabalho, ressarcida no âmbito do processo laboral. IV - A pensão anual e vitalícia atribuída no foro laboral ao sinistrado em consequência das lesões sofridas por acidente de trabalho (com base em IPP), não abarca o ressarcimento do mesmo, enquanto lesado nesse mesmo acidente, ao nível da responsabilidade civil por acidente de viação, a título de desvalorização funcional (IPP de 70%) de que se encontra afectado – dano biológico. V - Consequentemente, o montante da referida pensão não pode ser deduzido ao valor da indemnização fixada para compensação do dano biológico consubstanciado no deficit funcional do lesado.”);

- acórdão de 11 de julho de 2019 (Henrique Araújo), processo n.º 1456/15.2T8FNC.L1.S1[14] (“I - Em caso de acidente de viação e de trabalho, as respectivas indemnizações não são cumuláveis, mas antes complementares, assumindo a responsabilidade infortunística laboral carácter subsidiário. II - Na condenação da seguradora no pagamento da indemnização devida por acidente de viação não se deve deduzir a indemnização devida por acidente de trabalho já paga ao sinistrado em processo de acidente de trabalho.”).

6. O mesmo entendimento é perfilhado pela doutrina. Com efeito, “Dado que na indemnização devida pelo acidente de viação compreende tanto os danos patrimoniais como os não patrimoniais causados ao lesado, e apenas a dos danos patrimoniais pode ser deduzida no cálculo da indemnização devida pelo acidente laboral, seria conveniente que o tribunal, ao fixar o montante daquela indemnização, fizesse a discriminação da parte relativa aos danos patrimoniais e não patrimoniais.[15].

7. In casu, o Tribunal da Relação de Évora decidiu que a fixação do capital de remição no âmbito do acidente de trabalho repara um dano patrimonial correspondente às perdas salariais sofridas pelo lesado decorrentes da incapacidade parcial permanente determinada, enquanto a indemnização do dano biológico (que respeita, essencialmente, a danos futuros) atribuída na presente ação cível visa ressarcir, além da redução da capacidade de ganho, todas as limitações funcionais com que o lesado se pode vir a deparar, para além daquelas que se revelam na sua vida ativa e no desempenho da sua atividade profissional, como também aquelas que implicam esforço adicional ou acrescido no exercício tanto de tarefas profissionais como pessoais ou de lazer.

8. Verifica-se a existência de danos distintos, cujo ressarcimento se impõe, sem que haja lugar a qualquer dedução do montante indemnizatório atribuído no foro laboral na indemnização conferida na presente ação. É que não se pode falar de cumulação de indemnizações de carácter idêntico, pelo mesmo dano.  Não pode, por conseguinte, falar-se de violação do princípio da integralidade do ressarcimento, segundo o qual o lesado não pode vir a encontrar-se numa posição patrimonial mais favorável do que aquela em que estaria se a lesão não houvesse ocorrido. O acidente não é fonte de lucro ou de enriquecimento para o lesado, não existindo uma dupla indemnização pelo mesmo dano. O montante obtido pelo lesado no foro laboral não repara o mesmo prejuízo que é pressuposto e medida da indemnização por si pretendida nesta ação. O ressarcimento concedido com base na incapacidade parcial permanente não obsta à indemnização do dano biológico: o lesado não peticiona, nesta ação, a indemnização do dano da incapacidade profissional.

9. É esta a posição dominante no Supremo Tribunal de Justiça. Com efeito:

Ora, as duas indemnizações visam compensar danos distintos: a pensão vitalícia fixada no processo por acidente de trabalho corresponde á redução na capacidade de ganho do sinistrado, por incapacidade parcial permanente, como resulta do art. 10º, alínea b) da Lei nº 100/97 de 13.09, que aprovou o regime jurídico dos acidentes de trabalho e das doenças profissionais; a indemnização pelo dano biológico visa ressarcir, além da redução da capacidade de ganho, ainda as limitações funcionais do lesado, um dano que vai para além do tempo de vida activa, e o esforço acrescido no exercício das actividades profissionais e pessoais.

Neste sentido decidiu o Acórdão deste Tribunal de 11.12.2012 (Lopes do Rego), disponível em www.dgsi.pt:

“São de considerar como dano diferente o que decorre da perda de rendimentos salariais associado ao grau de incapacidade laboral fixado no processo por acidente de trabalho e compensado pela atribuição de um certo capital de remissão, e o dano biológico decorrente das sequelas incapacitantes do lesado, que envolvem restrições acentuadas à sua capacidade, implicando esforços acrescidos, quer para a realização das tarefas profissionais, quer para as actividades da vida pessoal e corrente.”

Deste modo não existe no caso vertente uma duplicação de indemnizações em favor do Autor susceptível, como tal, de provocar um injustificado enriquecimento deste”[16].

10. O ressarcimento do dano biológico consiste “na diminuição ou lesão da integridade psico-física da pessoa, em si e por si considerada, e incidindo sobre o valor homem em toda a sua concreta dimensão[17].

11. O mesmo se refira a propósito do entendimento dominante do Supremo Tribunal de Justiça a propósito do dano biológico. Assim:

IX - A afetação da integridade físico-psíquica (um dano-evento denominado como dano biológico ou dano na saúde) pode ter como consequência danos de natureza patrimonial e danos de natureza não patrimonial (danos-consequência). Está em causa um dano que corresponde ao efeito de uma ofensa sofrida pelo lesado e que exige de si maiores sacrifícios, maior penosidade no desempenho da sua atividade profissional habitual e, ainda, na sua vida pessoal, no desenvolvimento das tarefas e atividades quotidianas. É um dano corporal, na saúde (que afeta a integridade físico-psíquica do sujeito), futuro – as suas consequências ou sequelas projetam-se no futuro – e previsível – por corresponder à “evolução lógica, habitual e normal do quadro clínico constitutivo da sequela[18].

12. É um dano que subsiste independentemente da eventual perda ou redução de rendimentos. Trata-se, fundamentalmente, da proteção, pelo ordenamento jurídico, do bem jurídico saúde, entendida como estado de completo bem-estar físico, mental e social e não apenas como ausência de doença ou enfermidade.

13. Por conseguinte, não restam dúvidas sobre o acórdão recorrido não merecer qualquer censura.

IV – Decisão

Nos termos expostos, acorda-se em considerar improcedente o recurso de revista interposto pela Ré Generali Seguros, S.A., confirmando-se o acórdão recorrido.

Custas pela Recorrente.


Lisboa, 29 de Março de 2022


Maria João Vaz Tomé (relator)

António Magalhães

Jorge Dias

_______

[1] Refira-se, nesta sede, que a 1 de outubro de 2020 se concluiu o processo de fusão por incorporação das sociedades Generali – Companhia de Seguros, S.A., e Generali Vida – Companhia de Seguros, S.A., na Seguradoras Unidas, S.A.. Após a fusão, a Seguradoras Unidas, S.A., passou a denominar-se Generali Seguros, S.A..
[2] Não se encontra disponível para consulta.
[3]Disponível para consulta in http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/d4d157ee63fc0a4f8025867d00022ad0?OpenDocument.
[4]Disponível para consulta in http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/11c2c7adc0ddba8880258669005272d3?OpenDocument.
[5]Disponível para consulta in http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/7c29dd41ff76ee66802586b0003a3452?OpenDocument.
[6]Disponível para consulta in http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/b426da91094192f6802587900059adc7?OpenDocument&ExpandSection=1.
[7] Proc. n.º 1456/15.2T8FNC.L1.S1 (Henrique Araújo).
[8] Cfr. Ac. STJ de 07/04/2005, proc. n.º 05B592.
[9] Cfr. Ac. STJ de 11/12/2012, proc. n.º 40/08.1TBMMV.C1.S1.
[10] Não se encontra disponível para consulta.
[11]Disponível para consulta in http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/ccfce62e025cea8c80258790005c1715?OpenDocument&ExpandSection=1. [12]Disponível para consulta in https://jurisprudencia.csm.org.pt/ecli/ECLI:PT:STJ:2020:6918.16.1T8VNG.P1.S1/.
[13]Disponível para consulta in https://jurisprudencia.csm.org.pt/ecli/ECLI:PT:STJ:2020:30.11.7TBSTR.E1.S1/.
[14]Disponível para consulta in  http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/0333b81b829a55b580258434004bf06b?OpenDocument&ExpandSection=1.
[15] Cf. Adriano Pais da Silva Vaz Serra, “O Instituto dos “Assentos” e a função jurídica dos Supremos Tribunais”, in Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 111.º, 1979, p. 331.
[16] Cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17 de novembro de 2021 (Ferreira Lopes), processo n.º 3496/16.5T8FAR.E1.S1.
[17] Cf. João António Álvaro Dias, Dano Corporal, Quadro Epistemológico e Aspectos Ressarcitórios, Coimbra, Almedina, 2001, p. 272.
[18] Cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12 de janeiro de 2021 (Maria João Vaz Tomé), processo n.º 2787/15.7T8BRG.G1.S1 – disponível para consulta in http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/b86826d97ecc3324802586710054d9b7?OpenDocument.