Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
498/18.0YRLSB.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: MARGARIDA BLASCO
Descritores: RECLAMAÇÃO
ARGUIÇÃO DE NULIDADES
EXTRADIÇÃO
FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
PRINCÍPIO DA IGUALDADE
INCONSTITUCIONALIDADE
Data do Acordão: 05/14/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: EXTRADIÇÃO/ M.D.E.
Decisão: INDEFERIDA A RECLAMAÇÃO.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I - Da nulidade do acórdão por falta de fundamentação, quanto à não aplicabilidade do regime do art. 135.º, n.º 1 da Lei n.º 23/2007, de 04-07 ao processo de extradição, nos termos do art. 379.º, n.º 1, al. a), e art. 374.º, n.º 2, ex vi art. 425.º, n.º 4, todos do CPP. A falta de fundamentação não se confunde, ou não pode ter a mesma dimensão compreensiva, da falta de convencimento que essa fundamentação opera no destinatário. Para este, a fundamentação pode não ser suficiente para os fins que prossegue e que anseia da decisão do órgão jurisdicional, mas esta perspectiva não pode obumbrar o fim constitucional do dever de fundamentação. Por outro lado, a fundamentação de uma decisão tem que ser analisada globalmente, com todo o seu contexto e coerência. Não se pode, pois, descontextualizar a decisão e retirar parágrafos desgarrados dos demais, retirando-lhes o sentido e mascarando a sua percepção, quiçá, por forma a transformá-los em narrativas “incoerentes” e “infundadas”, facilmente “criticáveis”, para assim, lograr o seu vencimento. Tendo-se assumido que os fins/propósitos/interesses são distintos em ambos os processos (expulsão e extradição), conforme se assumiu no acórdão, não se impunha apreciar a questão da violação do princípio da igualdade convocada pela recorrente, na medida em que não se defendeu o argumentado pela recorrente que se estava perante duas situações iguais com tratamento desigual. O Tribunal apreciou, de forma concisa, aquele argumento apresentado pela recorrente e fundamentou, até diríamos, prolixamente a questão (de fundo) em apreço, isto é, se havia ou não motivo bastante, face à situação pessoal e familiar da mesma, para recusa da extradição. E, da mesma forma o fez, relativamente ao argumento apresentado pela recorrente quanto à não aplicabilidade do regime do artigo 135.º, n.º 1, da Lei n.º 23/2007, de 04.07 ao processo de extradição.

II - Nulidade do acórdão por omissão de pronúncia, nos termos do art.. 379.º, n.º 1, al. c), ex vi art. 425.º, n.º 4, ambos do CPP. Omissão de pronúncia verifica-se, quando o tribunal deixou de se pronunciar sobre questão que devia ter apreciado, seja esta questão suscitada, no recurso, pelos sujeitos processuais, ou seja a mesma de conhecimento oficioso. Verifica-se que questão é o dissídio ou o problema concreto a decidir que directamente contendam com a substanciação da causa de pedir e do pedido e que só existe omissão de pronúncia quando não se pondera a questão e impunha-se conhecer da mesma. Este Tribunal assumiu que a interpretação seguida pelo Tribunal da Relação, cuja decisão manteve, era uma interpretação em total consonância com o disposto no art. 16.º, da Lei n.º 144/99 e com a CRP, pelo que, por um lado, não se impunha emitir pronúncia sobre a inconstitucionalidade da interpretação aventada pela recorrente, na medida em que essa interpretação não foi defendida pelo Tribunal (pelo contrário, foi negada pelo Tribunal, com o fundamento que a qualificação jurídica dos factos feita pelo Estado requerido não permite que seja imputado ao Extraditando, pelo Estado requerente, crime diverso daquele que foi solicitada a sua extradição pelo Estado Requerente), e, por outro lado, foi assumido expressamente que a interpretação seguida pelo acórdão da Relação (com aquela qualificação jurídica dos factos/ilícitos penais) era uma interpretação em consonância com o citado art. 16.º, da LCJ e a CRP. O Tribunal ao assumir expressamente que o acórdão recorrido (do Tribunal da Relação) na interpretação que seguiu e assumiu quanto à qualificação jurídica dos factos constantes no pedido de extradição efectuou uma interpretação em total consonância com o disposto nos arts. 31.º e 16.º, ambos da Lei n.º 144/99 e arts. 2.º e 14.º, ambos do Tratado e de acordo com a nossa Constituição, emitiu pronúncia no sentido de inexistir qualquer inconstitucionalidade na interpretação feita.
Decisão Texto Integral:
Processo n.º 498/18.0YRLSB.S1

(Extradição)

(arguição de nulidade)

Acordam, em conferência, na 5.ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça

I.

1. Por acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 23 de Abril de 2020, foi decidido negar provimento ao recurso interposto pela arguida AA, mantendo integralmente a decisão recorrida, esta proferida pelo Tribunal da Relação de Lisboa (TRL) em 28.11.2019, que deferiu o pedido de extradição, autorizando a extradição, para a China, da sua nacional, para efeitos de procedimento criminal pelos factos e crimes referidos no pedido de extradição formulado pela República Popular da China.

2. Vem agora a arguida AA, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 374.º, n.º 2 e 379.º, n.º 1, als. a) e c), aplicáveis ex vi do artigo 425.º, n.º 4, e no artigo 105.º, n.º 1, todos do Código de Processo Penal (CPP), arguir a nulidade do acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, o que faz nos termos e com os fundamentos seguintes, que aqui se transcrevem:

(…)

II. DA FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO.

5.A páginas 9 do recurso que interpôs junto desse Venerando Tribunal – - Conclusão R -, sustenta a Recorrente o seguinte:

«Mais;

Nos termos do art.º 135.º, n.º 1 da Lei n.º 23/2007, de 4 de Julho (Entrada, Permanência, Saída e Afastamento de Estrangeiros do Território Nacional), “[N]ão podem ser afastados coercivamente ou expulsos do País os cidadãos estrangeiros que: c) Tenham filhos menores, nacionais de Estado terceiro, residentes em território português, relativamente aos quais assumam efectivamente responsabilidades parentais e a quem assegurem o sustento e a educação”».

Ora, não se vislumbram razões para serem conferidos tratamentos distintos ao processo de extradição e ao processo de expulsão, uma vez que, pese embora sejam processos distintos na sua génese, os interesses conflituantes em ambos os casos são precisamente os mesmos: de um lado, a tutela da família e a protecção do superior interesse dos filhos menores; do outro, o interesse de ordem pública.

É, pois, absolutamente incongruente que uma pessoa que, por exemplo, haja cometido um crime grave em território nacional não possa ser expulsa quando se verifique a circunstância acima referida, e, de outra banda, uma pessoa que haja cometido um crime de menor gravidade no Estado requerente da extradição seja extraditada sem mais.

Trata-se de uma clara violação do princípio da igualdade, previsto no art.º 13.º da CRP, porquanto duas situações iguais são tratadas de forma desigual”.

6.Face a tal argumentário, limitou-se esse Venerando Tribunal a referir, a páginas 49, o seguinte: “[C]umpre, ainda referir que o processo de extradição tem fins e propósitos distintos da decisão de expulsão prevista na Lei n.º 23/2007, de 04.07, e, nessa medida, não é convocável nesta sede, o disposto no artigo 135.º, n.º 1, da Lei n.º 23/2007, de 04.07”.

7.Ora, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 374.º, n.º 2 do CPP, “[A]o relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal” (sublinhado nosso).

8.A ausência das menções prescritas no referido preceito legal consubstancia, de harmonia com o disposto no art.º 379.º, n.º 1, al. a) do CPP, aqui aplicável ex vi do art.º 425.º, n.º 4 do mesmo diploma legal, uma nulidade.

9.Ora, o art.º 374.º, n.º 2 do CPP prevê, por um lado, o dever de fundamentação – o qual decorre directamente do comando constitucional vertido no art.º 205.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa (CRP) – e, por outro, os requisitos a que deve obedecer tal fundamentação.

10. Neste sentido, veja-se o Ac. do Tribunal da Relação do Porto de 15.02.2019[1], onde se pode ler: “O dever de fundamentação das decisões judiciais consagrado na nossa Lei Fundamental - artigo 205º da Constituição da República Portuguesa - é uma garantia incontestável do conceito de Estado de direito democrático, assumindo, no domínio do processo penal, uma função estruturante das garantias de defesa dos arguidos. O objetivo de tal dever de fundamentação, imposto pelos sistemas democráticos, é permitir, (…), «a sindicância da legalidade do ato, por uma parte, e serve para convencer os interessados e os cidadãos em geral acerca da sua correção e justiça, por outra parte, mas é ainda um importante meio para obrigar a autoridade decidente a ponderar os motivos de facto e de direito da sua decisão, atuando por isso como meio de autodisciplina». Com efeito, é através da fundamentação que se revelam as razões da decisão, permitindo aos respetivos destinatários e à comunidade a compreensão dos juízos de valor e da apreciação que o julgador levou a cabo. (…). Vistos os fins da fundamentação, estamos com a doutrina e a jurisprudência que defendem que quer a total ausência de fundamentação, quer a parcial ausência de fundamentação devem ser entendidas como falta de fundamentação, pois inexiste meia fundamentação. (…)” (sublinhados nossos).

11. No caso em apreço, a fundamentação adoptada quanto à questão suscitada é assaz insuficiente, não permitindo que a Recorrente fique concretamente esclarecida quanto à motivação que subjaz ao supratranscrito trecho decisório.

12. E é insuficiente por recorrer a um enunciado genérico não especificado[2], enunciado que não permite desvendar o percurso lógico-dedutivo que preside à convicção firmada[3].

13. Note-se que, fazendo-se alusão aos diferentes fins e propósitos do processo de extradição e da decisão de expulsão, nada se concretiza, afinal, quanto a tais supostas diferenças entre os institutos, não se compreendendo quais as razões de facto e de direito que levam esse Venerando Tribunal a entender em sentido oposto ao do propugnado pela Recorrente.

14. A dúvida quanto às referidas razões de facto e de direito é ainda maior quando, a páginas 50 e ss. do acórdão, se faz referência e dá lugar de destaque ao acórdão do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH), de 16 de Maio de 2017, proferido no âmbito do processo Hamasevic vs Denmark, no qual se apreciou uma decisão de expulsão e não uma decisão de extradição.

15. Ora, a referência ao aludido acórdão do TEDH serve o propósito de enunciar “(…) um conjunto de critérios a atender quando se faz uma interferência na vida privada ou familiar de uma pessoa (…)”.

16. Tais critérios, pensados para a figura da expulsão, são aplicados por esse Venerando Tribunal para sustentar, em processo de extradição, que “(…) inexiste uma interferência no direito à vida familiar daquela manifestamente arbitrária ou desproporcionada (…)”.

17. Face ao que antecede, alvitrar-se-á que as diferenças entre um processo de extradição e uma decisão de expulsão, na perspectiva dos fins, não são, no próprio entender desse Venerando Tribunal, tão notáveis quanto poderia induzir o trecho supratranscrito.

18. Por outro lado, nada se esclarece quanto à questão de saber se estaremos ou não perante duas situações iguais que merecem um tratamento desigual, em violação do princípio da igualdade, previsto no art.º 13.º da CRP – questão ex professo suscitada no recurso e relativamente à qual esse Venerando Tribunal não se pronuncia.

19. As insuficiências supra descritas equivalem, no sentido supra propugnado, à falta de fundamentação, pelo que o acórdão em apreço padece, nos termos conjugados dos arts. 374.º, n.º 2 e 379.º, n.º 1, al. a), aplicáveis ex vi do art.º 425.º, n.º 4, todos do CPP, de nulidade, vício que se requer seja declarado.

III.DA OMISSÃO DE PRONÚNCIA.

20. A páginas 14 – Conclusão EE – do recurso que interpôs junto desse Venerando Tribunal, a Recorrente suscita “(…) a inconstitucionalidade da norma constante do art.º 16.º, n.º 2, a contrario, da Lei n.º 144/99, se interpretada no sentido de ser permitido ao Estado requerido alterar a qualificação jurídica dos factos, de molde a permitir que ao Extraditando seja imputado crime diverso daquele por que foi solicitada a sua extradição pelo Estado requerente, por violação dos arts. 20.º, n.º 4, in fine e 32.º da CRP”.

21. Pese embora trate da questão relativa à incorrecta qualificação jurídica dos factos imputados no pedido de extradição – cfr. páginas 67 e ss. – esse Venerando Tribunal não se pronunciou sobre a questão relativa à invocada inconstitucionalidade, nenhuma menção lhe tendo dedicado.

22. Isto, ao contrário do que sucede com uma outra inconstitucionalidade invocada pela Recorrente, a qual se encontra apreciada nos seguintes termos: “ii. Bem como não procede a alegação da recorrente sobre a inconstitucionalidade das normas constantes do artigo 18.º, n.º 2 da Lei n.º 144/99 e do artigo 4.º, al. b) do Tratado entre a República Portuguesa e a República Popular da China sobre Extradição, se interpretadas e aplicadas no sentido de ser admitida a extradição de uma pessoa que tenha filhos menores, nacionais de Estado terceiro, residentes em território português, relativamente aos quais assuma efectivamente responsabilidades parentais e a quem assegure o sustento e a educação (por violação do disposto nos artigos 13.º, 36.º. n.º 6, 67.º, 68.º e 69.º da CRP)” (cfr. páginas 83 e 84 do acórdão).

23. Ora, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 379.º, n.º 1, al. c) do CPP, aplicável ex vi do art.º 425.º, n.º 4 do mesmo diploma legal, a decisão é nula “[Q]uando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar (…)”.

24. Como se deixou consignado em Ac. desse Venerando Tribunal de 24.10.2012[4], “(…)

a omissão de pronúncia constitui uma patologia da decisão que consiste numa ncompletude [ou num excesso] da decisão, analisado por referência aos deveres de pronúncia e decisão que decorrem dos termos das questões suscitadas e da formulação do objecto da decisão e das respostas que a decisão fornece. Quando se configura a existência de omissão está subjacente uma omissão do tribunal em relação a questões que lhe são propostas. (…) A omissão de pronúncia significa, fundamentalmente, ausência de posição ou de decisão do tribunal sobre matérias em que a lei imponha que o juiz tome posição expressa. Tais questões que o juiz deveria apreciar são aquelas que os sujeitos processuais interessados submetem à apreciação do tribunal (artigo 660, nº 2 do CPC), e as que sejam de conhecimento oficioso, isto é, de que o tribunal deve conhecer, independentemente de alegação e do conteúdo concreto da questão controvertida, quer digam respeito à relação material, quer à relação processual” (sublinhados nossos).

25. Ao não se pronunciar sobre a inconstitucionalidade invocada, não a decidindo, o acórdão em apreço omite conhecer e pronunciar-se sobre problema expressamente suscitado pela Recorrente, o qual se reveste de manifesta importância para a questão de saber se, afinal, a norma constante do art.º 16.º, n.º 2, a contrario, da Lei n.º 144/99, quando interpretada no sentido de ser permitido ao Estado requerido alterar a qualificação jurídica dos factos, de molde a permitir que ao Extraditando seja imputado crime diverso daquele por que foi solicitada a sua extradição pelo Estado requerente, está ou não ferida de inconstitucionalidade, por violação dos arts. 20.º, n.º 4, in fine e 32.º da CRP.

26. A invocada inconstitucionalidade, a verificar-se, tem reflexo directo e necessário na decisão final.

27. Conclui-se, consequentemente, que a questão de inconstitucionalidade acima descrita, expressamente suscitada no recurso, não mereceu ponderação e decisão por parte desse Venerando Tribunal, que assim omitiu conhecer e pronunciar-se acerca de questão que deveria ter decidido.

28. Em consequência, o acórdão em apreço incorreu em omissão de pronúncia padecendo, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 379.º, n.º 1, al. c) do CPP, aplicável ex vi do art.º 425.º, n.º 4 do mesmo diploma legal, de nulidade, vício que também se requer seja declarado.

(…)

2. Após a dispensa de vistos, foram os autos remetidos a conferência.

II.

3. Apreciemos.

3.1. Da nulidade do acórdão por falta de fundamentação, quanto à não aplicabilidade do regime do artigo 135.º, n.º 1 da Lei n.º 23/2007, de 04.07 ao processo de extradição, nos termos do artigo 379.º, n.º 1, al. a), e artigo 374.º, n.º 2, ex vi artigo 425.º, n.º 4, todos do CPP

Defende a recorrente, em síntese, que a fundamentação adoptada no acórdão do STJ quanto à questão suscitada (à não aplicabilidade do regime do artigo 135.º, n.º 1, al. c) da Lei n.º 23/2007, de 04.07 ao processo de extradição) é assaz insuficiente, não permitindo que a recorrente fique concretamente esclarecida quanto à motivação que subjaz ao trecho decisório.

Vejamos.

Sob a epígrafe “Nulidade da sentença” dispõe o artigo 379.º do CPP, que:

“1 - É nula a sentença:

a). Que não contiver as menções referidas no n.º 2 e na alínea b) do n.º 3 do artigo 374. ° [...]”

Por sua vez, dispõe o artigo 374.º do CPP que:

“1 - A sentença começa por um relatório, que contém:

a). As indicações tendentes à identificação do arguido;

b). As indicações tendentes à identificação do assistente e das partes civis;

c) A indicação do crime ou dos crimes imputados ao arguido, segundo a acusação, ou pronúncia, se a tiver havido;

d) A indicação sumária das conclusões contidas na contestação, se tiver sido apresentada.

2 - Ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.”

Dispõe o artigo 425.º, n.º 4, do CPP que é correspondentemente aplicável aos acórdãos proferidos em recurso o disposto no artigo 379.º do mesmo diploma.

Face aos normativos atrás enunciados, e para o que agora interessa, é nulo o acórdão em que lhe falte a exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito, que fundamentam a decisão.

Como tem sido reiteradamente sublinhado na jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça, não estando em causa o objecto do processo, mas a decisão recorrida, impõe-se que, por dupla via de remissão dos artigos 425.º, n.º 4, e 379.º do CPP, as exigências de pronúncia e fundamentação dos acórdãos dos tribunais superiores, proferidos em recurso, decorrentes da aplicação do n.º 2 do artigo 374.º do CPP, devam sofrer as adaptações devidas, em função do objecto e do âmbito do recurso.

O artigo 379.º conjugado com o artigo 374.º, ambos do CPP, concretiza o desiderato constitucional do artigo 205.º, .º 1, da Constituição da República Portuguesa (CRP), que impõe a fundamentação “na forma prevista na lei”, em sintonia e como parte integrante do conceito de Estado de direito democrático e da legitimação da decisão judicial e da garantia do direito ao recurso, por respeito às garantias de defesa do condenado (artigo 32.º, n.º 1, da CRP) e de acesso à tutela jurisdicional efectiva (artigo 20.º, n.º 4, da CRP), no sentido de que se assegure um julgamento equitativo, como vem sendo reconhecido pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem e se apresenta consagrado, em termos amplos, no artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH).

Do mesmo modo, na materialização do referido preceito constitucional, também o artigo 97.º, n.º 5, do CPP dispõe que "Os actos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão."

O dever de fundamentação, na dimensão que lhe é conferida enquanto princípio fundamental decorrente do artigo 205.º, n.º 1, da CRP, e como manifestação do direito a um processo equitativo, nos termos do artigo 6.º da CEDH, implica que o tribunal de recurso, conhecendo das questões que lhe são colocadas, explicite os motivos pelos quais julga procedente ou improcedente o recurso.

Este dever de fundamentação insere-se numa exigência do moderno processo penal, com dupla finalidade: extraprocessualmente, ao constituir condição de legitimação externa da decisão, pela possibilidade que permite de verificação dos pressupostos, critérios, juízos de racionalidade e de valor e motivos que a determinaram, e intraprocessualmente, realizar o objectivo de reapreciação da decisão por via do sistema de recursos.

Também a doutrina, Paulo Saragoça da Matta, inA livre apreciação da prova e o dever de fundamentação da sentença”, Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, coordenação científica de Maria Fernanda Palma, Almedina, 2004, pág. 255, refere que a exigência de motivação acaba por ter uma função dupla, pré e pós judicatória – naquela primeira fase permite ao julgador exercer um auto-controlo do acerto dos seus próprios juízos; na segunda fase permite à comunidade, e ao destinatário das medidas a tomar pelo sistema penal, compreender os critérios seguidos pelo julgador e aferir da respectiva legitimidade, razoabilidade e aceitabilidade.

Com efeito, tal dever constitucional impõe que a fundamentação seja vista de uma perspectiva substancial e não de uma perspectiva puramente formal.

Este dever de fundamentação, mais não é, que um dever geral e comum de percepção do sentido das decisões por todos aqueles que delas tomem conhecimento ou que delas sejam destinatários. Assim esse dever de fundamentação satisfaz-se com a exposição concisa, mas, tanto quanto possível, completa dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão do tribunal.

A falta de fundamentação não se confunde, ou não pode ter a mesma dimensão compreensiva, da falta de convencimento que essa fundamentação opera no destinatário. Para este, a fundamentação pode não ser suficiente para os fins que prossegue e que anseia da decisão do órgão jurisdicional, mas esta perspectiva não pode obumbrar o fim constitucional do dever de fundamentação[5].

Conforme a requerente descreve no artigo 3.º do seu requerimento, interpôs recurso junto do STJ “invocando (i) as graves e irreversíveis consequências que adviriam da extradição para a Recorrente e seus dependentes; (ii) o desrespeito pela regra da especialidade; (iii) a inexistência de dupla incriminação; (iv) a reduzida intervenção da Recorrente nos factos; (v) a ausência de prestação de garantias de que, uma vez entregue, não será aplicada pena de prisão perpétua ou de duração indefinida; e (vi) a inexistência de garantias jurídicas de salvaguarda dos Direitos Humanos.

Foram, assim, 6 (seis), as questões identificadas pela Recorrente[6] no âmbito do recurso do acórdão da Relação, para o STJ. São as questões suscitadas que definem o objecto do dever de pronúncia e o dever de fundamentação por banda do Tribunal[7]. Ao contrário do defendido pela requerente, no seu requerimento, a (in)aplicabilidade do regime do artigo 135.º, n.º 1, da Lei n.º 23/2007, de 04.07 ao processo de extradição não é uma “questão”, mas sim um dos “argumentos” para a apreciação da “questão identificada em (i) relativa às graves e irreversíveis consequências que adviriam da extradição para a Requerente e seus dependentes, entendendo que isso era motivo bastante para a recusa da extradição”. Conforme se assumiu no Acórdão do STJ de 11.09.2019, proferido no Proc. n.º 881/16.6JAPRT.P1.S1- 3.ª Secção[8] “I -Ao STJ não compete conhecer de toda a argumentação aduzida, mas apenas chamar à colação os fundamentos para decidir das questões pertinentes e, se assim for, não existe qualquer nulidade de falta de fundamentação ou omissão de pronúncia.”

Posto isto, importa desde já referir que não vislumbramos, contrariamente ao que a recorrente alega, qualquer falta de fundamentação no acórdão em crise, na apreciação e decisão das questões suscitadas no recurso que interpôs.

Este Tribunal, no seu acórdão, conheceu da questão suscitada em (i)as graves e irreversíveis consequências que adviriam da extradição para a Recorrente e seus dependentes” e pronunciou-se de forma clara e suficiente sobre as razões de direito que conduziram à decisão, ou seja, não haver motivo bastante para recusa da extradição.

A questão identificada como (i) pela recorrente, no requerimento de arguição de nulidades, foi objecto de vários argumentos, os quais se encontram explanados nas conclusões nos pontos A) a V), sendo que nas conclusões O), P), Q) e R) a recorrente chama a colação o instituto do artigo 135.º, n.º 1 da Lei n. º 23/2007 de 04.07, conforme resulta das seguintes conclusões:

“O) A extradição da Recorrente acarretaria consequências muito mais amplas e devastadoras do que o hipotético cumprimento de uma pena de prisão na China – a única consequência normal decorrente do processo de extradição; representaria um risco incomensurável para os seus filhos.

P) De acordo com o art.º 135.º, n.º 1 da Lei n.º 23/2007, de 4 de Julho, não podem ser expulsos do país cidadãos estrangeiros que tenham filhos menores, residentes em território português, relativamente aos quais assumam responsabilidades parentais e a quem assegurem o sustento e a educação.

Q) Não se vislumbram razões para serem conferidos tratamentos distintos ao processo de extradição e ao processo de expulsão, uma vez que, pese embora sejam processos distintos na sua génese, os interesses conflituantes em ambos os casos são precisamente os mesmos: de um lado, a tutela da família e a protecção do superior interesse dos filhos menores; do outro, o interesse de ordem pública.

R) É incongruente que uma pessoa que, por exemplo, haja cometido um crime grave em território nacional não possa ser expulsa quando se verifique a circunstância acima referida, e, de outra banda, uma pessoa que haja cometido um crime de menor gravidade no Estado requerente da extradição seja extraditada, sem mais. Trata-se de uma violação do princípio da igualdade, previsto no art.º 13.º da CRP.”

Ora, o acórdão que agora é posto em crise pronunciou-se de forma clara e suficiente sobre a questão suscitada considerando quais as razões, num raciocínio lógico e dedutivo, que levaram o Tribunal a considerar não haver motivo bastante para recusa da extradição, conforme se evidencia em alguns trechos que aqui, a título exemplificativo, se indicam:

“(…) Tem sido entendimento maioritário da jurisprudência deste STJ, que não se enquadra como motivo de recusa de extradição prevista no artigo 18.º, n.º 2, da LCJ “circunstâncias graves para a pessoa visada em razão de outros motivos de carácter pessoal”, o facto do extraditando ter família (filhos) a residir no nosso País. Tem-se decidido no sentido que o afastamento da família é uma consequência “inevitável” da extradição (e, consequentemente, da suspeita da prática de um crime) e que não se sobrepõe ao superior interesse da cooperação internacional no prosseguimento da boa administração da justiça. (…)

Cumpre referir que nos presentes autos, não se está a autorizar a Extradição da recorrente (mãe), para o cumprimento de uma pena de prisão, mas sim para procedimento criminal. Desconhece-se a que medida de coação vai ser sujeita e, se a final, será condenada numa pena de prisão efectiva, pelo que, se desconhece, em concreto, se a progenitora ficará automaticamente privada da vida familiar com os seus filhos (admitindo que é opção de os progenitores enviar os seus filhos para a China).

Entendemos, deste modo, que a instabilidade/ruptura familiar provocada pela Extradição da Recorrente para China, não constitui motivo bastante para recusa de extradição nos termos do artigo 6.º, al. f) da LCJ e/ou artigo 4.º, al. b), do Tratado, na medida em que a circunstância que motiva a rotura familiar foi criada pela Extraditanda (suspeita da prática de crimes na China, de onde é nacional) e apenas a ela é imputável (ter-se colocado em fuga do País onde cometeu os alegados crimes).

A entendermos que a constituição e/ou aumento da família em Portugal, é motivo de recusa de Extradição, ficariam criadas condições para a impunibilidade de quem conscientemente praticava crimes (v.g. no País de onde é nacional) e se quisesse furtar à acção da justiça.

Cumpre, ainda, referir que o processo de extradição tem fins e propósitos distintos da decisão de expulsão prevista na Lei n.º 23/2007, de 04.07, e, nessa medida, não é convocável nesta sede, o disposto no artigo 135.º, n.º 1, da Lei n.º 23/2007, de 04.07.

Veja-se neste sentido, Acórdão do STJ de 16-11-2017, Proc. n.º 1321/17.9YRLSB.S2 - 5.ª Secção, Carlos Almeida (relator): “III - O julgamento ou a execução da eventual pena aplicada em Portugal só poderiam ser equacionados se a extradição viesse a ser recusada, para o que não existe fundamento, e se tal fosse requerido pela República Federativa do Brasil (arts. 79.º e 95.º, n.º 2, da Lei 144/99, de 31-08), o que também não se verifica. A situação pessoal e familiar do extraditando não releva para o efeito, sendo inaplicável a um pedido de extradição uma norma relativa às condições de expulsão de um estrangeiro em Portugal”.

Pelo que, não procede, nesta parte, a alegação da recorrente.”

Conforme supra se referiu, inexiste qualquer falta de fundamentação quanto às questões suscitadas pela recorrente no recurso interposto, sendo que só sobre estas se impõe o dever de fundamentação e não quanto a quaisquer argumentos e/ou opiniões ou teses doutrinárias que tenham sido expendidas pela requerente em defesa da sua pretensão.

Conforme se referiu no Acórdão do STJ de 17-06-2015, Proc. n.º 1149/06.1TAOLH-A.L1.S1 - 3.ª Secção, acessível in www.dgsi.pt., o Tribunal só tem que se pronunciar e fundamentar as suas decisões “quanto às questões suscitadas, e já não sobre os motivos ou razões que os sujeitos processuais alegam em sustentação das questões que submetem à apreciação do tribunal, entendendo-se por questão o dissídio ou problema concreto a decidir e não os simples argumentos, razões, opiniões ou doutrinas expendidos pela parte em defesa da sua pretensão.”.

Mas, também cumpre salientar que inexiste falta de fundamentação ou fundamentação insuficiente quanto à apreciação do argumento aduzido pela recorrente quanto à não aplicabilidade do regime do artigo 135.º, n.º 1 da Lei n.º 23/2007, de 04.07 ao processo de extradição.

Senão, vejamos.

A recorrente quando chamou à colação o regime do artigo 135.º, n. º1, da Lei n.º 23/2007, de 04.07, argumentou que os interesses conflituantes em ambos os processos (de expulsão e de extradição) eram os mesmos: de um lado, a tutela da família e a protecção do superior interesse dos filhos menores; do outro, o interesse de ordem pública.

Em resposta ao alegado/argumentado pela recorrente, o Tribunal assumiu que o STJ tem decidido no sentido que o afastamento da família é uma consequência “inevitável” da extradição (e, consequentemente, da suspeita da prática de um crime) e que esse interesse não se sobrepõe ao superior interesse da cooperação internacional no prosseguimento da boa administração da justiça.

E, de seguida assumiu que os fins e propósitos do processo de extradição são distintos da decisão da expulsão e, nessa medida, não era convocável nessa sede (extradição) o regime do artigo 135.º, n.º 1 da Lei n.º 23/2007, de 04.07, tendo inclusive, convocado jurisprudência do STJ que assim já tinha decidido nesse sentido (Acórdão do STJ de 16-11-2017, Proc. n.º 1321/17.9YRLSB.S2 - 5.ª Secção, Carlos Almeida (relator): “III - O julgamento ou a execução da eventual pena aplicada em Portugal só poderiam ser equacionados se a extradição viesse a ser recusada, para o que não existe fundamento, e se tal fosse requerido pela República Federativa do Brasil (arts. 79.º e 95.º, n.º 2, da Lei 144/99, de 31-08), o que também não se verifica. A situação pessoal e familiar do extraditando não releva para o efeito, sendo inaplicável a um pedido de extradição uma norma relativa às condições de expulsão de um estrangeiro em Portugal”.

Verifica-se que o Tribunal, no acórdão agora posto em causa, no início da sua fundamentação começa por dizer, e repete-se, que o fim/propósito da decisão de extradição é o superior interesse da cooperação internacional no prosseguimento da boa administração da justiça. E, quando aborda a decisão de expulsão assume que esta tem fins e propósitos distintos do processo de extradição. Sendo o fim e o propósito do processo/decisão de extradição o superior interesse da cooperação internacional no prosseguimento da boa administração da justiça, conforme se assumiu, e o fim e propósito da decisão de expulsão é distinto, só se pode extrair que a decisão de expulsão não tem como fim o superior interesse da cooperação internacional no prosseguimento da boa administração da justiça e, devido a isso, não é convocável nessa sede (extradição) o disposto no artigo 135.º da Lei n.º 23/2007, de 04.07.

Por outro lado, a fundamentação de uma decisão tem que ser analisada globalmente, com todo o seu contexto e coerência. Não se pode, pois, como pretende e o faz a recorrente, descontextualizar a decisão e mormente retirar parágrafos desgarrados dos demais, retirando-lhes o sentido e mascarando a sua percepção, quiçá, por forma a transformá-los em narrativas “incoerentes” e “infundadas”, facilmente “criticáveis”, para assim, lograr o seu vencimento.

A recorrente quando convoca o artigo 135.º, n.º 1, da Lei n.º 23/2007 argumenta que os interesses conflituantes nas duas decisões (expulsão e extradição) são iguais. O Tribunal em resposta ao argumentado pela recorrente, diz que os interesses conflituantes/fins e propósitos nos dois processos são distintos, sendo que na decisão de extradição está em causa o superior interesse da cooperação internacional no prosseguimento da boa administração da justiça e, devido a isso, não é convocável nessa sede (extradição) o disposto no artigo 135.º da Lei n.º 23/2007, de 04.07.

Tendo-se assumido que os fins/propósitos/interesses são distintos em ambos os processos (expulsão e extradição), conforme se assumiu no acórdão, não se impunha apreciar a questão da violação do princípio da igualdade convocada pela recorrente, na medida em que não se defendeu o argumentado pela recorrente que se estava perante duas situações iguais com tratamento desigual. Tal é evidente de modo lídimo.

Acresce que o Tribunal foi claro a assumir que inexistia qualquer violação do artigo 13.º da CRP, quando concluiu na página 55 do acórdão que “Por tudo o que atrás se expôs, entendemos que a interferência no direito à vida familiar da Requerente provocada pela autorização da Extradição afigura-se justificada e não é manifestamente arbitrária ou desproporcionada, e, nessa medida, não é violadora de qualquer preceito constitucional e/ou do artigo 8.º da CEDH, inexistindo fundamento ponderoso para recusa facultativa nos termos do artigo 18.º, n.º 2 da LCJ e artigo 4.º, al. b), do Tratado.

Pelo que entendemos que as normas constantes do artigo 18.º, n.º 2 da Lei n.º 144/99 e do artigo 4.°, al. b) do Tratado entre a República Portuguesa e a República Popular da China sobre Extradição, se interpretadas e aplicadas no sentido de ser admitida a extradição de uma pessoa que tenha filhos menores, nacionais de Estado terceiro, residentes em território português, relativamente aos quais assuma efetivamente responsabilidades parentais e a quem assegure o sustento e a educação (por violação do disposto nos artigos 13.°, 36.º, n.°.6, 67.°, 68.° e 69.° da CRP), não sofrem da alegada inconstitucionalidade.”

O dever de fundamentação existe para permitir aos destinatários de uma sentença/acórdão entenderem os motivos pelos quais se decide uma questão improcedente ou procedente, ou seja, porque se tomou aquela decisão e não outra, não se exigindo que se aprecie, de forma exaustiva, todos os elementos argumentativos aduzidos pelos intervenientes processuais.

O Tribunal apreciou, de forma concisa, aquele argumento apresentado pela recorrente e fundamentou, até diríamos, prolixamente a questão (de fundo) em apreço, isto é, se havia ou não motivo bastante, face à situação pessoal e familiar da mesma, para recusa da extradição.

E, da mesma forma o fez, relativamente ao argumento apresentado pela recorrente quanto à não aplicabilidade do regime do artigo 135.º, n.º 1, da Lei n.º 23/2007, de 04.07 ao processo de extradição. Não se pode confundir fundamentação sucinta ou concisa, com falta ou insuficiência de fundamentação, quando, inclusive, o próprio legislador apela a exposições concisas (artigo 374.º, n.º 2, do CPP).

Cumpre salientar, ainda, e por último, que o Tribunal convocou o acórdão do TEDH de 16.05.2017 proferido no Processo Hamasevic vs Denmark (recurso nº 25748/15), por a arguida ter chamado à colação a violação do artigo 8.º da CEDH - todavia foi feita clara referência que se tratam de decisões distintas (decisão de extradição e decisão de expulsão), conforme resulta inequívoco da página 50 do acórdão e que aqui se transcreve para melhor compreensão: “Consideramos relevante quanto a esta matéria, o acórdão do TEDH de 16.05.2017 proferido no Processo Hamasevic vs Denmark (recurso nº 25748/15), - embora o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) estivesse a apreciar uma decisão de expulsão e não uma decisão de extradição, cuja génese é totalmente distinta - que apresentou um conjunto de critérios a atender quando se faz uma interferência na vida privada ou familiar de uma pessoa, à luz do artigo 8.º da CEDH.” (negrito nosso).

Conforme bem se assumiu no Acórdão do STJ de 11.01.2018, proferido no Proc. n.º 259/17.4YPRT.P1.S1 – 3.ª Secção[9]VI - A falta de fundamentação não se confunde, ou não pode ter a mesma dimensão compreensiva, da falta de convencimento que essa fundamentação opera no destinatário. Para este a fundamentação pode não ser suficiente para os fins que prossegue e que anseia da decisão do órgão jurisdicional, mas esta perspectiva não pode obumbrar o fim constitucional do dever de fundamentação enquanto dever geral e comum de percepção do sentido das decisões por todos aqueles que delas tomem conhecimento ou que delas sejam destinatários.

Por tudo o que atrás se referiu, foi exposto de forma clara, coerente e suficiente o iter cogniscitivo que levou o Tribunal a decidir a questão como decidiu (improcedente), ou seja, foram suficientemente expostos os motivos de facto e de direito que determinaram a improcedência da questão, incluindo o motivo devido ao qual o tribunal não considerou convocável em sede de processo de extradição, o disposto no artigo 135.º, n.º 1 da Lei n.º da Lei n.º 23/2007, de 04.07.

Pelo exposto, o acórdão de 23.04.2020 não padece de qualquer nulidade, por falta de fundamentação, nos termos do artigo 379.º, n.º 1, al. a), do CPP, razão pela qual, é improcedente esta questão suscitada pela recorrente no seu requerimento.

3.2. Nulidade do acórdão por omissão de pronúncia quanto a “(…) a inconstitucionalidade da norma constante do art.º 16.º, n.º 2, a contrario, da Lei n.º 144/99, se interpretada no sentido de ser permitido ao Estado requerido alterar a qualificação jurídica dos factos, de molde a permitir que ao Extraditando seja imputado crime diverso daquele por que foi solicitada a sua extradição pelo Estado requerente, por violação dos arts. 20.º, n.º 4, in fine e 32.º da CRP”, nos termos do artigo. 379.º, n.º 1, al. c), ex vi artigo 425.º, n.º 4, ambos do CPP.

Defende a recorrente que o Tribunal omitiu pronúncia sobre uma questão que tinha obrigação de conhecer.

Alega, para o efeito, que na Conclusão EE – do recurso que interpôs junto desse Supremo Tribunal, a recorrente suscita “(…) a inconstitucionalidade da norma constante do art.º 16.º, n.º 2, a contrario, da Lei n.º 144/99, se interpretada no sentido de ser permitido ao Estado requerido alterar a qualificação jurídica dos factos, de molde a permitir que ao Extraditando seja imputado crime diverso daquele por que foi solicitada a sua extradição pelo Estado requerente, por violação dos arts. 20.º, n.º 4, in fine e 32.º da CRP”, não tendo o Tribunal se pronunciado sobre a questão relativa à invocada inconstitucionalidade (nenhuma menção lhe tendo dedicado).

De acordo com o artigo 379.º do CPP, aplicável ex vi artigo 425.º, n. º4 do CPP: “1- É nula a sentença: c). Quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.”

Omissão de pronúncia verifica-se, quando o tribunal deixou de se pronunciar sobre questão que devia ter apreciado, seja esta questão suscitada, no recurso, pelos sujeitos processuais, ou seja a mesma de conhecimento oficioso.

A jurisprudência do STJ é unânime quanto a esta questão: “Só existe omissão de pronúncia quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões cujo conhecimento lhe era imposto por lei apreciar ou que lhe tenham sido submetidas pelos sujeitos processuais, sendo que, quanto à matéria submetida pelos sujeitos processuais, a nulidade só ocorre quando não há pronúncia sobre as questões, e já não sobre os motivos ou razões que os sujeitos processuais alegam em sustentação das questões que submetem à apreciação do tribunal, entendendo-se por questão o dissídio ou problema concreto a decidir e não os simples argumentos, razões, opiniões ou doutrinas expendidos pela parte em defesa da sua pretensão[10];” Ou seja, “As questões a decidir não se confundem com considerações, argumentos, motivos, razões ou juízos de valor produzidos pelas partes: a estes não tem o tribunal que dar resposta especificada ou individualizada, mas apenas aos que directamente contendam com a substanciação da causa de pedir e do pedido. Não ocorre a nulidade, por omissão de pronúncia, se não forem consideradas, na sentença, linhas de fundamentação jurídica que as partes hajam invocado.[11]

Conforme refere o Acórdão do STJ de 23.04.2015, Revista n.º 2651/07.3TBSXL.L1.S1 - 7.ª Secção[12]A omissão de pronúncia circunscreve-se à não apreciação de questões em sentido técnico, questões essas que o tribunal tenha o dever de conhecer com vista à decisão da causa e de que não haja conhecido, apesar de não estarem prejudicadas pelo tratamento dado a outras”.

Posto isto, verifica-se que questão é o dissídio ou o problema concreto a decidir que directamente contendam com a substanciação da causa de pedir e do pedido e que só existe omissão de pronúncia quando não se pondera a questão e impunha-se conhecer da mesma.

Inexiste a alegada omissão de pronúncia. Senão vejamos.

O Tribunal não apreciou a inconstitucionalidade nos moldes em que a recorrente a suscitou, porque não tinha que a conhecer. O Tribunal só tinha obrigação de conhecer da alegada inconstitucionalidade aventada pela recorrente, se considerasse que o Tribunal da Relação tinha feito uma interpretação da “norma constante do art.º 16.º, n.º 2, a contrario, da Lei n.º 144/99, no sentido de ser permitido ao Estado requerido alterar a qualificação jurídica dos factos, de molde a permitir que ao Extraditando seja imputado crime diverso daquele por que foi solicitada a sua extradição pelo Estado requerente, por violação dos arts. 20.º, n.º 4, in fine e 32.º da CRP”.

Diga-se, ainda, que no acórdão em crise não se defendeu a interpretação aventada pela recorrente.

Bem pelo contrário. Defendeu-se que a qualificação jurídica dos factos feita pelo Estado requerido não permite que seja imputado ao Extraditando crime diverso daquele pelo qual foi solicitada a sua extradição pelo Estado Requerente. Como obriga e, em consonância com a Lei.

Resulta inequívoco tal posição assumida no acórdão (cuja nulidade agora foi suscitada), nomeadamente, na página 62: “O Tribunal receptor do pedido, conforme resulta do artigo 46.º, n.º 3, in fine, da LCJ não faz prova nem julgamento dos factos imputados (constantes do pedido de extradição) e, nessa medida, a qualificação jurídica que faz desses factos nenhuma repercussão tem ou pode ter no Estado que irá prosseguir com o procedimento criminal. (sublinhado nosso). E na página seguinte (63):” Posição diversa do Estado emissor sempre obstaria a regra da especialidade que, como é sabido, obsta à perseguição criminal e condenação dos extraditandos por factos diferentes daqueles pelos quais é pedida a extradição e em referência às normas incriminadoras indicadas no pedido (aí claramente definidas), ou seja, à condenação por factos e/ou crimes distintos puníveis com penas mais graves. (negrito nosso)

Como se disse no acórdão recorrido e com o qual concordamos: “E, como decorre do já expendido, a qualificação jurídica dos factos imputados ao Extraditando no pedido não pode ser alterada pelo Estado requerente, não podendo o Estado requerente imputar aos extraditandos crimes diversos dos indicados nem punição diversa dos indicados no pedido de extradição. Tal constituiria flagrante violação da regra da especialidade que, como bem se refere na douta resposta do Mº Pº citando douta e pertinente jurisprudência “é um dos princípios estruturantes de todo o processo de cooperação internacional que não se limita, apenas, à extradição … fazendo … parte daquele conjunto de axiomas impostos pela simples coexistência relevante da comunidade internacional no sentido de que a entrega por extradição de um delinquente obriga o Estado requerente a conter o seu procedimento, a sua perseguição penal, nos precisos limites da acusação específica pelo crime predefinido e não por qualquer outro”... desempenhando a especialidade uma função de garantia sucessiva, ou seja, garantia da extradição efectuada, destinada a assegurar o cumprimento das obrigações que os Estados, com o pedido de extradição, de modo implícito mas inequívoco, se comprometem a observar (no Estado para o qual uma pessoa tenha sido extraditada não pode ser julgada, salvo consentimento do Estado requerido, senão pelo crime pelo qual tenha sido extraditado)”.

Acresce que este Tribunal assumiu que a interpretação seguida pelo Tribunal da Relação, cuja decisão manteve, era uma interpretação em total consonância com o disposto no artigo 16.º da LCJ (Lei n.º 144/99) e com a Constituição, conforme resulta claro do parágrafo da página 70 do acórdão (agora em crise) : “Em conclusão: dado que à luz do nosso ordenamento penal, os factos constantes do pedido de extradição imputados à Recorrente, são puníveis como ilícitos penais com pena de prisão superior a 1(um) ano, inexiste no acórdão recorrido qualquer violação do princípio da dupla incriminação e/ou desrespeito pela regra da especialidade, tendo sido efectuada uma interpretação em total consonância com o disposto nos artigos 31.º e 16.º, ambos da LCJ e artigos 2.º e 14.º, ambos do Tratado e de acordo com a nossa Constituição”. (negrito nosso).

Concluímos assim que, por um lado, não se impunha emitir pronúncia sobre a inconstitucionalidade da interpretação aventada pela recorrente, na medida em que essa interpretação não foi defendida pelo Tribunal (pelo contrário, foi negada pelo Tribunal, com o fundamento que a qualificação jurídica dos factos feita pelo Estado requerido não permite que seja imputado ao Extraditando, pelo Estado requerente, crime diverso daquele que foi solicitada a sua extradição pelo Estado Requerente), e, por outro lado, foi assumido expressamente que a interpretação seguida pelo acórdão da Relação (com aquela qualificação jurídica dos factos/ilícitos penais) era uma interpretação em consonância com o artigo 16.º da LCJ e a Constituição.

O Tribunal ao assumir expressamente que o acórdão recorrido (do Tribunal da Relação) na interpretação que seguiu e assumiu quanto à qualificação jurídica dos factos constantes no pedido de extradição efectuou uma interpretação em total consonância com o disposto nos artigos 31.º e 16.º, ambos da LCJ e artigos 2.º e 14.º, ambos do Tratado e de acordo com a nossa Constituição (negrito e sublinhado nosso), emitiu pronúncia no sentido de inexistir qualquer inconstitucionalidade na interpretação feita ao artigo 16.º, da LCJ.

Por tudo o que atrás se expôs, o Tribunal não omitiu qualquer pronúncia e consequentemente inexiste qualquer nulidade, por omissão de pronúncia, no acórdão de 23.04.2020, pelo que preclude, também nesta questão, a pretensão da recorrente.

III.

Destarte, acordam na 5.ª Secção deste Supremo Tribunal de Justiça em:
a) Indeferir o pedido formulado pela requerente AA;
b) Sem custas (artigo 73.º, nº 1 da Lei n.º 144/99, de 31/08), sem prejuízo do disposto no artigo 26.º, n.º 2, a) do mesmo diploma.

Processado e revisto pela relatora, nos termos do disposto no artigo 94.º, n.º 2 do CPP.

 14 de Maio de 2020

Margarida Blasco – Relatora

Helena Moniz
 

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[1] Proferido no âmbito do processo n.º 108/10.4PEPRT-H. P1 e disponível em www.dgsi.pt.

[2] Neste sentido, vide, o Ac. do Tribunal da Relação do Porto de 10.02.2016, proferido no âmbito do processo n.º 1244/12.8PWPRT.P1 e disponível em www.dgsi.pt.

[3]  Vide, Ac. do Tribunal da Relação do Porto de 01.10.2014, proferido no âmbito do processo n.º 9051/09.9TDPRT.P2 e disponível em www.dgsi.pt, em cujo sumário se lê: “I – A fundamentação da sentença tem uma tripla finalidade: legitimação democrática do exercício da jurisdição e maior confiança do cidadão na justiça; o autocontrolo da autoridade judiciária que profere a decisão, e garantir o exercício do direito de defesa na dedução do recurso. II - Através da indicação das provas opera-se o controle da conformidade legal dos meios de prova utilizados, de modo a que só seja usada prova legal e licita; III – No exame critico o tribunal deve explicar a convicção adquirida e qual o caminho percorrido para a atingir, permitindo ao tribunal superior saber o porquê da decisão tomada e assim se a decisão tomada emerge de um procedimento de convicção lógico e racional, e decisão sobre os factos não foi arbitrária, dominada por meras impressões ou se afastou das regras da experiência;”.

[4]  Proferido no âmbito do processo n.º 2965/06.0TBLLE.E1 e disponível em www.dgsi.pt.

[5] (Sic) Acórdão do STJ de 23-05-2018, Proc. n.º 630/13.0PBGMR.1.S2 - 3.ª secção, sumário disponível em www.stj/jurisprudência/acórdãos/sumários de acórdãos/Criminal - Ano de 2018.
[6] O Tribunal, no acórdão em crise, considerou terem sido 5(cinco) as questões suscitadas pela Recorrente, porque agrupou numa só questão a alegada “Não verificação do requisito da dupla incriminação e desrespeito pela regra da especialidade”.
[7]Cfr Acórdão do STJ de 19-02-2020, Proc. n.º 118/18.3JALRA.C1.S1 - 3.ª secção, ainda inédito “IX - O art. 374.º, n.º, 2 do CPP sobre os requisitos da sentença dispõe que: Ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.(…) XI - Desde que a motivação explique o porquê da decisão e o processo lógico-formal que serviu de suporte ao respectivo conteúdo, inexiste falta ou insuficiência de fundamentação para a decisão.”
[8] Sumário disponível em www.stj/jurisprudência/acórdãos/sumários de acórdãos/Criminal - Ano de 2019.
[9] Sumário disponível em www.stj/jurisprudência/acórdãos/sumários de acórdãos/Criminal - Ano de 2018.
[10] Sic Acórdão do STJ de 17-06-2015, Proc. n.º 1149/06.1TAOLH-A. L1. S1 - 3.ª Secção, acessível in www.dgsi.pt.
[11] Sic Acórdão do STJ de 09-12-2014, Revista n.º 75/07.1TBCBT.G1.S1 - 1.ª Secção, acessível in www.stj.pt/jurisprudencia/sumários de acórdão/ Civil - Ano de 2014.
[12] Acessível in www.stj.pt/jurisprudencia/sumários de acórdão/ Civil - Ano de 2015.