Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
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| Nº Convencional: | 5.ª SECÇÃO | ||
| Relator: | ORLANDO GONÇALVES | ||
| Descritores: | RECURSO PER SALTUM ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS CRIME EXAURIDO CONCURSO DE INFRAÇÕES | ||
| Data do Acordão: | 03/24/2022 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
| Decisão: | NEGADO PROVIMENTO. | ||
| Indicações Eventuais: | TRANSITADO EM JULGADO. | ||
| Sumário : | I - Embora a jurisprudência do TJ se tenha mostrado dividida quanto à aplicação da figura do crime exaurido ou de trato sucessivo aos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual, atualmente e desde há alguns anos atrás, consolidou-se jurisprudência, cremos que unanimemente, no sentido da integração da pluralidade de condutas integradoras de crimes de abuso sexual de crianças, na figura do concurso efetivo de crimes previsto no art.30.º, n.º1 do Código Penal, afastando-se a possibilidade de subsunção a outras figuras, designadamente ao crime de trato sucessivo. II - Em parte alguma o tipo penal de crime de abuso sexual de criança permite que se possa entender apenas como um único crime a prática repetida de diversos atos sexuais de relevo, em diversos dias, ao longo de vários meses ou anos, em momentos temporalmente distintos e fundada em sucessivas resoluções criminosas. A estrutura do tipo penal não contempla a reiteração, mas a punição da prática de «ato sexual», ou seja, de cada ato sexual, pelo que à pluralidade de atos sucede-se a pluralidade de sentidos de ilicitude típica. III - Por outro lado, se no caso da sucessão de vários crimes contra bens eminentemente pessoais, o legislador afastou no art. 30.º, n.º 3 do CP, a punição do agente em termos de crime continuado, em que um dos pressupostos é a diminuição sensível da pena, por maioria de razão não se poderá unificar num único crime “de trato sucessivo”, as diversas condutas do agente, quando este nem sequer preenche os pressupostos do crime continuado, pois o sentido de ilicitude e de censura são agravados com as sucessivas violações do bem jurídico, facilitadas pela fragilidade da vítima em resultado da sua idade. IV - Como bem realça Paulo Pinto de Albuquerque, o julgador ao punir crimes contra bens eminentemente pessoais como um único crime de trato sucessivo, ficcionando um dolo inicial que engloba todas as ações, praticaria uma fraude ao propósito do legislador. | ||
| Decisão Texto Integral: | Proc. n.º 500/21.9PKLSB.L1.S1 Recurso Penal
Acordam, em Conferência, na 5.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça
I - Relatório
1. Nos autos de processo comum, com intervenção do tribunal coletivo n.º 500/21...., do Tribunal Judicial da Comarca ..., Juízo Central Criminal ... - Juiz ..., sob acusação do Ministério Público, foi submetido a julgamento o arguido AA, devidamente identificado, imputando-se-lhe a prática de factos pelos quais teria cometido, em autoria material e em concurso real, 4 crimes de abuso sexual de menores, p. e p. no art.171.º, n.º 1, agravados pelo disposto no artigo 177.º, n.º 1, alínea c), ambos do Código Penal, e 6 crimes de abuso sexual de menores, p. e p. no art.171.º n.ºs 1 e 2, agravados pelo disposto no art.177.º, n.º 1, alínea c), ambos do Código Penal.
O Ministério Público requereu em conformidade com o disposto no art.69.º-C, n.º 2, do Código Penal, a aplicação ao arguido da pena acessória de proibição de assumir a confiança de menor, em especial a adoção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores, por um período a fixar entre cinco e vinte anos e, ainda, em conformidade com o disposto no art.69.º-B n.º 2 do mesmo Código requereu que lhe seja aplicada a pena acessória de proibição de exercer a profissão, emprego, funções ou atividades públicas ou privadas, cujo exercício implique contacto regular com menores, por um período fixado entre 5 e 20 anos.
O assistente-demandante BB, em representação e na qualidade de legal representante da sua filha menor, CC, aderiu à acusação deduzida pelo Ministério Público contra o arguido AA, e deduziu pedido de indemnização contra o arguido-demandado pedindo a condenação deste a pagar-lhe a quantia de € 50.000,00, acrescida de juros à taxa legal.
2. Realizada a audiência de julgamento, o Tribunal Coletivo, por acórdão proferido a 22 de outubro de 2021, decidiu: A – Condenar o arguido AA na pena parcelar de 2 anos e 6 meses de prisão, pela prática, em autoria material e em concurso real de infrações, por cada um dos 10 dos crimes de abuso sexual de criança agravado, p. e p., nos artigos 171.º n.º 1 e 177.º n.º 1 alínea c) do Código Penal; A1 – Condenar o arguido AA em cúmulo jurídico de penas nos termos do artigo 77.º do Código Penal na pena única de 8 (oito) anos de prisão. A2 – Condenar o arguido AA na pena acessória de proibição de assumir a confiança de menor, em especial a adoção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores pelo período de 8 (oito) anos, nos termos do artigo 69.º-C n.º 2 do Código Penal. A3 – Condenar o arguido AA na pena acessória de proibição exercer a profissão, emprego, funções ou atividades públicas ou privadas, cujo exercício implique contacto regular com menores pelo período de 8 (oito) anos, nos termos do artigo 69.º-B n.º 2 do Código Penal. B – Absolver o arguido AA pela prática, em autoria material e em concurso real de infrações, de 6 crimes de abuso sexual de menores, p. e p., no artigo 171.º n.º 1 e n.º 2, agravados pelo disposto no artigo 177.º n.º 1 alínea c), ambos do Código Penal; e C – Condenar o demandado-arguido AA a pagar à demandante-assistente CC a quantia de € 15.000,00 (quinze mil euros), a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora vincendos, contados à taxa anual de 4% e devidos desde a data de prolação do presente acórdão até integral pagamento.
3. Inconformado com o acórdão dele interpôs recurso diretamente para o Supremo Tribunal de Justiça o arguido AA, concluindo a sua motivação do modo seguinte (transcrição):
1. O Recorrente tomou, desde o primeiro dia, uma única resolução, a de manter com a vítima, relações de cariz sexual. 2. Além de estar verificado o elemento determinante da resolução única do Recorrente, de praticar uma pluralidade de atos sucessivos, mais se verifica que as condutas foram homogéneas e próximas no tempo, tendo perdurado por um período de cinco meses. 3. O Recorrente decidiu, assim e de uma só vez, coagir a vítima a consigo manter relações de natureza sexual, pelo que, os diversos atos realizados, de forma sucessiva e reiterados por um período de cinco meses, integram um único crime de trato sucessivo. 4. A reiteração da conduta deve repercutir-se na medida da pena, a partir do grau de ilicitude e intensidade do dolo reveladas. 5. O Tribunal a quo errou na determinação da norma aplicável, pois, para quantificação do número de crimes de que foi vítima a menor CC, aplicou o disposto no art.º 30.º, n.º 1, do CP, quando devia ter considerado a unificação dos vários atos sucessivos num só crime de trato sucessivo, repercutindo a reiteração da conduta, na medida da pena. 6. Em obediência ao disposto no art.º 71.º, n.ºs. 1 e 2, do CP, impõem-se uma redução das penas parcelares aplicadas, para um quantum próximo dos seus mínimos, porquanto, o Recorrente beneficia de múltiplas atenuantes da sua conduta. 7. A determinação da pena única, nunca deverá exceder os cinco anos de prisão, por este quantum se mostrar suficiente para assegurar as exigências de prevenção geral e especial. 8. O Tribunal a quo ao decidir como decidiu, quer na fixação das penas parcelares, quer na determinação da pena única, violou, por erro de interpretação, o disposto no art.º 71.º, do CP. 9. Sendo justa, proporcional e suficiente para assegurar as exigências de prevenção geral e especial, a fixação de uma pena de cinco anos de prisão NESTES TERMOS deve o presente recurso ser julgado integralmente procedente, com todas as legais consequências.
4. O Ministério Público no Juízo Central Criminal da Comarca ... respondeu ao recurso, pugnando pelo seu não provimento e manutenção da decisão recorrida,
5. A Ex.ma Procurador-Geral-Adjunta neste Supremo Tribunal emitiu parecer no sentido de que o recurso deverá improceder, mantendo-se o acórdão recorrido nos seus precisos termos.
6. Cumprido o disposto no art.417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, não houve resposta.
7. Colhidos os vistos, foram os autos presentes à Conferência.
II Fundamentação
8. Com relevo para a decisão do recurso, consigna-se no acórdão recorrido: Factos provados: Da acusação. 1. A menor CC nasceu em .../.../2011 e é filha de BB e de DD. 2. A menor reside na Rua ..., ..., em Lisboa, juntamente com o progenitor e a namorada deste, os dois filhos desta e dois irmãos, desde finais do ano de 2020. 3. No mesmo Pátio, mas na ..., reside a avó paterna da menor, EE, a tia FF, a GG, o tio HH, o II e num quarto arrendado nesta mesma habitação, reside o arguido juntamente com JJ, sua namorada. 4. Anteriormente, a menor residia com a progenitora e o companheiro desta, passando, contudo, fins de semana alternados na residência do progenitor, frequentando nessas alturas a residência da avó paterna, local onde costumava jogar dominó com os tios, irmãos e com o arguido. 5. Em data não concretamente apurada mas situada no final do ano de 2020, quando a menor se encontrava sozinha no interior do quarto onde pernoita a tia FF, na residência da avó paterna, o arguido aí se dirigiu. 6. Depois, o arguido abeirou-se da menor perguntando-lhe se podia tocar no "pipi", como a menor disse que não, o arguido de forma a convence-la a aceitar prometeu que lhe compraria batatas fritas, tendo a menor recusado novamente. 7. Após, o arguido, pese embora a menor não quisesse, beijou por diversas vezes a boca daquela. 8. Em datas não concretamente apuradas, mas que ocorreram no inicio do ano de 2021, por diversas vezes o arguido acompanhou a menor desde a residência da avó até à residência do progenitor da menor. 9. Nessas alturas, o arguido, aproveitando o facto de se encontrar sozinho com a menor, beijava-a na boca, por vezes, acariciava-lhe, com as mãos, os seios e a vulva, por cima e por baixo da roupa que a menor trajava. 10. Noutras vezes, o arguido, quando encontrava a menor sozinha na rua junto das residências supra aludidas, beijava-a na boca, acariciava-lhe, com as mãos, os seios e a vulva, por cima e por baixo da roupa que a menor trajava. 11. Em datas não concretamente apuradas mas que ocorreram, no ano de 2021, em datas anteriores a 05.04.2021, aproveitando o facto de se encontrar sozinho com a menor na residência da avó desta, quando se encontravam sentados no sofá, o arguido, por diversas vezes, beijou a menor na boca, e acariciou-lhe, com as mãos, os seios e a vulva, por cima e por baixo da roupa que a menor trajava. 12. Em datas não concretamente apuradas mas que ocorreram, no ano de 2021, em datas anteriores a 05.04.2021, aproveitando o facto de se encontrar sozinho com a menor na residência da avó desta, no corredor da habitação, o arguido, por diversas vezes, beijou a menor na boca, e acariciou-lhe, com as mãos, os seios e a vulva, por cima e por baixo da roupa que a menor trajava. 13. Noutra ocasião, no período de tempo supra indicado, na casa da avó da avó da menor, o arguido beijou a menor na boca, acariciou-lhe os seios e a vagina, baixou as calças e as cuecas que a menor trajava e introduziu-lhe os dedos na vagina aí os manipulando. 14. Noutro dia, ocorrido no período temporal indicado, quando a menor se encontrava sozinha no interior do quarto da sua avó, na residência aludida, o arguido aí se dirigiu e sentou-se na cama com a menor. 15. Depois, o arguido beijou a menor na boca, acariciou-lhe os seios e a vulva. 16. Em data não concretamente apurada, mas ocorrida no ano de 2021, antes de 05/04/2021, quando se encontrava sozinho com a menor na residência do progenitor daquela, o arguido sentou-se com a menor no sofá e após, beijou-a na boca. 17. Depois, o arguido e acariciou-lhe os seios e a vulva com as mãos. 18. Na noite de 28 de Março de 2021, a hora não concretamente apurada, a menor encontrava-se no interior da residência da avó paterna, supra aludida, juntamente com a sua tia KK. 19. A dada altura, a tia da menor ausentou-se de casa, indo até ao pátio, tendo o arguido se apercebido que a menor havia ficado sozinha na residência. 20. Na sequência, o arguido entrou na habitação e perguntou à menor se estava sozinha, ao que aquela respondeu que sim. 21. Aí, o arguido empurrou o corpo da menor para cima do sofá da sala, prometeu-lhe dar-lhe 4 euros, e de seguida, beijou a menor na boca, acariciou-lhe os seios e a vulva com as mãos. 22. Para que a menor não contasse a ninguém os actos que o arguido praticava consigo contra a sua vontade, o arguido dizia que lhe compraria batatas fritas, gomas e bolachas e que lhe daria dinheiro, sendo que caso não permitisse que aquele fizesse o que queria ou caso contasse a alguém o ocorrido, não lhe daria nada. 23. Por vezes, após praticar os actos descritos com a menor e já sem a presença da menor, o arguido manipulava com as mãos o seu pénis erecto, friccionando-o até ejacular. 24. Como consequência directa das condutas mantidas pelo arguido, a menor sentiu dores na vagina e na vulva e foi observada no centro de saúde Mónicas, local onde efectuou recolha de sangue para análise. 25. A análise parasitológica efectuada resultou positiva para a bactéria Trichomonas vaginalis, resultante de contacto sexual. 26. O arguido bem sabia que a ofendida CC era menor de idade, o que sabia não só pela fisionomia daquela mas também porque conhecia a menor desde os seus 5 anos de idade por residir na habitação da avó paterna daquela, e que, por tal motivo, a mesma não tinha capacidade para se autodeterminar sexualmente procurando com as condutas supra descritas satisfazer os seus instintos libidinosos, o que logrou, aproveitando-se em todas as suas condutas do ascendente físico e da relação de proximidade que sobre a mesma detinha. 27. Para além disso, o arguido tinha conhecimento de que os actos que praticou perturbavam o bem-estar emocional, a formação e estruturação da personalidade da menor, prejudicando o seu normal desenvolvimento físico e psicológico ao longo dos anos, o que logrou, constrangendo-a por todas as vezes a manter consigo contacto físico sexual, actuando sempre contra a sua vontade. 28. Com os actos que praticou, o arguido agiu com o propósito concretizado de incomodar, perturbar e constranger a ofendida na sua esfera íntima e sexual, perturbando e desestabilizando a sua personalidade e auto estima, o que sabia ser consequência da sua conduta, tendo-o conseguido. 29. Agiu, também, em todas as condutas descritas com o propósito de satisfazer os seus instintos libidinosos, o que conseguiu. 30. Agiu, em todos os momentos, livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei. Factualidade relativa à inserção familiar, socioprofissional e antecedentes criminais do arguido. 31. O arguido é o mais velho de uma fratria de três irmãos germanos, tendo o seu processo de desenvolvimento decorrido no seio do agregado de origem, numa dinâmica normativa e preocupada com a passagem de normas e valores sociais. 32. A mãe faleceu quando o arguido contava 22 anos de idade, vítima de doença. 33. A subsistência do agregado era assegurada pelos salários auferidos pelo pai, como polidor de móveis, pela mãe como doméstica e pela pensão de sobrevivência que foi atribuída ao arguido, por volta dos 14 anos de idade, devido a problemas de visão. 34. O ambiente familiar foi estruturado e normativo, ainda assim, deparou-se com algumas dificuldades na contenção do comportamento do arguido que aderiu ao consumo de produtos estupefacientes. 35. No seguimento desta adição realizou tratamento inicial de desabituação em regime de internamento e, posteriormente, em programa de desabituação com Metadona, mantendo-se abstinente há cerca de 20 anos. 36. Ingressou no sistema de ensino em idade normal, abandonado a escola após ter terminado o 4.º ano de escolaridade, devido problemas de saúde, designadamente, problemas de visão congénitos, que se agravaram aos 4 anos de idade devido a uma queda do primeiro andar para o exterior do prédio onde vivia. 37. O seu percurso laboral foi desinvestido, prejudicado pela sua problemática de saúde que se mantinha evolutiva. 38. Neste âmbito, por volta dos 16/17 anos de idade frequentou um curso de formação profissional de calceteiro e um curso de formação profissional de panificação. 39. Apesar disso, não consolidou um percurso laboral em qualquer das áreas. 40. Posteriormente, ainda realizou alguns biscates no sector da restauração. 41. Por volta dos 20 anos de idade estabeleceu relacionamento afectivo, do qual nasceram 2 filhos, actualmente de 34 e 33 anos de idade. 42. O relacionamento gratificante ao início, veio a terminar devido à sua adição ao consumo de estupefacientes. 43. Há cerca de 14 anos iniciou um relacionamento conjugal com a actual companheira, 20 anos mais velha, sendo uma relação satisfatória, não obstante, o recluso tem uma relação extraconjugal, com uma senhora mais nova. 44. O arguido e a companheira têm uma vida sexual normal. 45. Ao nível da saúde, depois da anterior adição a estupefacientes, aderiu ao consumo de bebidas alcoólicas em excesso há cerca de 4/5 anos, não manifestando comportamentos desajustados decorrentes desta adição, ainda assim, o consumo de álcool promove-lhe ansiedade e exaltação. 46. Ao nível da visão, encontra-se invisual do olho direito e possuir apenas cerca de 10 por cento da visão no olho esquerdo. 47. À data dos factos, o arguido vivia com a companheira num apartamento arrendado. 48. O agregado subsistia com base nos proventos das pensões de reforma e de biscates que o arguido realizava pontualmente no sector da restauração. 49. O seu quotidiano era condicionado pela sua problemática de visão que influenciou a sua aquisição de competências escolares e o seu percurso laboral. 50. A relação intrafamiliar é coesa e satisfatória, apenas sendo referenciada alguma crispação, após o consumo de álcool por parte do arguido, comportamento face ao qual evidencia alguma desvalorização. 51. No meio residencial é conhecido e beneficiava de boa aceitação por parte da população dado ser a zona onde sempre viveu. 52. No Estabelecimento Prisional ..., onde se encontra desde 20/08/2021, tem mantido um comportamento adequado aos normativos e uma postura de respeito com pares e funcionários. 53. Beneficia de apoio sociofamiliar da companheira e filho, consubstanciado em visitas e apoio económico às suas necessidades e mantem o acompanhamento às suas necessidades de saúde. 54. A presente situação não afectou particularmente a sua condição, na medida em que continua a ter apoio familiar da companheira, da irmã LL e do filho mais velho, MM, não exercia actividade laboral e mantem o apoio médico às suas vulnerabilidades de saúde no estabelecimento prisional. 55. A situação familiar foi afectada pela sua prisão, na medida em que no seguimento de um processo de desalojamento, a companheira sentiu necessidade de recorrer a apoio institucional da Santa Casa da Misericórdia ..., para suprimir necessidades económicas habitacionais e alimentares, dada a ausência de outro apoio. 56. O arguido tem o seguinte registo criminal: 57. - por sentença de 22/01/2018, transitada em julgado a 08/02/2018, proferida no processo 92/17.... do Juiz ... do Juízo Local de Pequena Criminalidade ..., foi condenado na pena de 1 ano de prisão, suspensa na sua execução por igual período, pela prática de um crime de tráfico de quantidades diminutas e de menor gravidade, p. e p., no artigo 25.º alínea a) do Decreto-Lei n.º 15/93 de 22/01, por factos ocorridos a 20/05/2017. Do pedido de indemnização cível. 58. O demandado infligiu sofrimento na demandante, quer a nível físico, quer a nível psicológico, mormente em consequência dos actos levados a cabo e que ocorreram de modo reiterado. 59. A menor demandante foi incomodada constantemente pelo demandado-arguido, que procurava por ela, com intenção de satisfazer os seus instintos libidinosos. 60. A menor era uma criança alegre, viva, que gostava de brincar, descontraída e social. 61. Brincava com outras crianças da sua idade. 62. A menor demandante teve sofrimento com estes factos. 63. Sente-se envergonhada e tem falta de confiança, fruto da situação que viveu. 64. A menor demandante não contou a ninguém o que o demandado-arguido vinha fazendo ao longo do tempo. 65. Gradualmente, tornou-se uma criança introvertida e perdeu a auto estima e a vivacidade que a caracterizavam. 66. Deixou de querer brincar com outras crianças, ficava em silêncio na cama, ou no sofá em vez de conviver com a sua família e amigos. 67. Deixou de estudar e de ser uma aluna concentrada nas suas tarefas escolares. 68. E assim tem permanecido. 69. A menor demandante ficou ainda mais deprimida, triste e a sentir muita vergonha e medo que o que lhe aconteceu volte a suceder. 70. Tem comportamentos agressivos que antes não tinha – frequentes "birras" em que se recusa a fazer o que lhe solicitam. 71. A menor demandante foi assistida na APAV por psicóloga, a Dra. NN. 72. E encontra-se a aguardar consulta de psicologia no Hospital ....
9. Âmbito do recurso O âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação (art.412.º, n.º1 do Código de Processo Penal). São apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respetivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das de conhecimento oficioso.[1] Face às conclusões da motivação do recorrente AA as questões a decidir são duas: - a qualificação jurídica dos factos; e - a dosimetria das penas.
10. Apreciando.
10.1. Da qualificação jurídica dos factos O arguido AA defende que o Tribunal a quo errou ao aplicar o disposto no art.30.º, n.º1 do Código de Processo Penal na quantificação do número de crimes, pois os factos por si praticados deveriam ter sido unificados por via da figura do “crime de trato sucessivo”, que tem sido abordada pela jurisprudência e pela doutrina. Argumenta para o efeito, no essencial: (i) no crime de trato sucessivo há um dolo único a abranger todas as condutas sucessivamente praticadas, unidade de resolução, a par da homogeneidade das condutas e da sua proximidade temporal; (ii) o crime de trato sucessivo teve uma das suas primeiras abordagens jurisprudenciais num acórdão do STJ de 5-5-1993 e a sua figura continua a ser frequentemente aplicada, apesar de nos crimes sexuais ter vindo a verificar-se algum recuo na sua aplicação; (iii) considerando a matéria de facto provada, não restam dúvidas que o arguido tomou, desde o primeiro dia a resolução de manter com a vítima relações de cariz sexual, e as sucessivas condutas que realizou com a menor CC foram homogéneas e próximas no tempo, perdurando por um período de cinco meses. Vejamos. 10.2. O art.171.º do Código Penal, sob a epígrafe «Abuso sexual de crianças», estabelece, com interesse para a presente decisão: «1 - Quem praticar ato sexual de relevo com ou em menor de 14 anos, ou o levar a praticá-lo com outra pessoa, é punido com pena de prisão de um a oito anos.». O legislador visa com este tipo penal proteger a criança de condutas de natureza sexual, mesmo sem coação, pois dada a sua pouca idade presume-se “juris et de jure”, que não tem capacidade de autodeterminação sexual, assumindo que condutas sexuais com ou em menores de 14 anos de idade, prejudicam gravemente o desenvolvimento da sua personalidade, em particular no âmbito sexual. Perante esta motivação do legislador, entende-se que o abuso sexual de criança constitui um crime de perigo abstrato, “…na medida em que a possibilidade de um perigo concreto para o desenvolvimento livre, físico ou psíquico, do menor ou o dano correspondente podem vir a não ter lugar, sem que com isto a integração pela conduta do tipo objetivo de ilícito fique afastada”.[2] O elemento decisivo do tipo objetivo de ilícito é constituído pelo conteúdo sexual do ato, mais concretamente, pelo “ato sexual de relevo” praticado com ou em menor de 14 anos de idade.
O “ato sexual de relevo” será todo aquele comportamento que de um ponto de vista essencialmente objetivo pode ser reconhecido por um observador comum como possuindo carácter sexual e que em face da espécie, intensidade ou duração ofende em elevado grau a liberdade de determinação sexual da vítima. A vontade da vítima não é elemento do tipo objetivo, preenchendo-se independentemente da existência ou não do consentimento da criança. O crime de abuso sexual de crianças, imputado ao arguido, é de natureza dolosa, pelo que o tipo subjetivo de ilícito exige o conhecimento e vontade de preenchimento de todos os elementos do tipo objetivo do ilícito, designadamente a realização voluntária do ato sexual de relevo, com conhecimento ou representando como possível a idade da menor inferior a 14 anos. 10.3. Sendo este o tipo penal pelo qual o arguido foi condenado, coloca-se agora a questão de saber se as condutas descritas nos factos provados integram um crime único – “crime de trato sucessivo” -, como defende o recorrente ou uma pluralidade de crimes. O acórdão recorrido enfileirou pela existência de uma pluralidade de crimes de abuso sexual de criança, ao consignar: “Resta, ainda, apurar se, tendo a conduta do arguido preenchido, por 10 vezes o tipo previsto nos artigos 171.º n.º 1 e 177.º n.º 1 alínea c), ambos do Código Penal, praticou dessa forma 10 crimes. No Código Penal adoptou-se o critério teleológico para distinguir entre unidade e pluralidade de infracções, atendendo-se ao número de tipos de crimes efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente (cfr., artigo 30.º n.º 1 do Código Penal). Em síntese pode afirmar-se que a realização plúrima de tipos de crimes pode constituir: a) um concurso aparente de infracções, se da interpretação da lei penal resultar que só uma norma jurídico penal tem aplicação; b) um só crime, se ao longo de toda a realização criminosa tiver persistido o dolo ou resolução inicial; c) um só crime na forma continuada, se toda a actuação não obedeceu ao mesmo dolo, mas este tiver interligado por factores externos que arrastaram o agente para a reiteração das condutas; d) um concurso efectivo de infracções, se não se verificar qualquer dos casos anteriores. No caso em apreço, a conduta do arguido infringiu de forma plural o mesmo preceito jurídico-legal. No caso em apreço, a conduta do arguido infringiu de forma plural idêntico preceito jurídico-penal, com lesão de idêntico bem jurídico pessoal e diversas resoluções criminosas. Pelo que é de concluir que o arguido praticou uma pluralidade de infracções criminais.”. Vejamos. O art.30.º do Código Penal, sob a epígrafe «Concurso de Crimes e Crime Continuado», estabelece o seguinte: «1- O número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efetivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente. 2- Constitui um só crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente. 3- O disposto no número anterior não abrange os crimes praticados contra bens eminentemente pessoais.». Como norma fundamental na matéria do «concurso de crimes» cumpre fazer-lhe uma breve referência. É pacífico, na doutrina e na jurisprudência, que o critério do concurso efetivo de crimes, a que alude o art.30.º, n.º1 do Código Penal, reside na pluralidade de tipos legais de crime violados pela conduta do agente e a ela concretamente aplicáveis, sem curar de saber se tal conduta se analisou em um único ato (concurso ideal) ou numa pluralidade de atos (concurso real). A pluralidade de tipos legais de crime violados pela conduta do agente, tanto decorre da violação de uma pluralidade de tipos abstratos, como da violação plúrima do mesmo tipo abstrato. Uma vez que uma pluralidade de atos pode violar um só tipo penal e um só ato pode violar diversas vezes o mesmo tipo penal abstrato, impõe-se saber quando poderá dizer-se que estamos perante a violação plúrima do mesmo tipo abstrato. Na doutrina são várias as respostas. Assim, Eduardo Correia apela (em caso de dolo) ao critério da “pluralidade de juízos de censura”, traduzido numa pluralidade de resoluções autónomas, de resoluções de cometimento dos crimes.[3] Em sentido próximo, Figueiredo Dias, apelou, num primeiro momento, ao critério da “pluralidade de resoluções no sentido de nexos finais”, por considerar que esta expressão tem a vantagem de não fazer apelos aos juízos de culpa, mantendo o critério dentro de parâmetros de relevância do ilícito-típico.[4] Atualmente, defende este insigne Professor que a determinação da unidade ou pluralidade de crimes deve assentar num outro critério, que apelida de “critério da unidade ou pluralidade de sentidos sociais de ilicitude do comportamento global”, sustentando que “…é a unidade ou pluralidade de sentidos de ilicitude típica, existentes no comportamento global do agente submetido à cognição do tribunal, que decide em definitivo da unidade ou pluralidade de factos puníveis e, nesta aceção, de crimes”.[5] O n.º 2 do art.30.º do Código Penal, também regula situações que têm a ver com a pluralidade de crimes, mas que o legislador unificou em um só crime – crime continuado –, no pressuposto da existência de uma relação que, de fora, e de maneira considerável, facilitou a repetição da atividade criminosa, tornando cada vez menos exigível ao agente que se comporte de maneira diferente, isto é, de acordo com o direito.[6] Os pressupostos do crime continuado são a homogeneidade da forma de execução do crime; a a lesão do mesmo bem jurídico; e a persistência de uma situação exterior que facilita a execução e que diminui consideravelmente a culpa do agente. Como bem salienta Paulo Pinto de Albuquerque, a este propósito, “A diminuição sensível da culpa só tem lugar quando a ocasião favorável à prática do crime se repete sem que o agente tenha contribuído para essa repetição. Isto é, quando a ocasião se proporciona ao agente e não quando ele ativamente a provoca.”[7]. Em virtude da nova redação dada ao n.º3 do art.30.º do Código Penal, que lhe foi dada Lei n.º 40/2010, de 3 de setembro - «O disposto no número anterior não abrange os crimes praticados contra bens eminentemente pessoais »-, que eliminou a referência «salvo tratando-se da mesma vítima», tornou-se claro que não é hoje admissível a existência de um crime continuado de abuso sexual de uma mesma criança. É que, como “bens eminentemente pessoais” a que alude este n.º 3, que afastam a existência do crime continuado e apontam para o concurso efetivo, “…devem seguramente considerar-se aqueles que são protegidos pelos tipos legais de crime contidos no Título I da PE do CP: a vida, a vida intrauterina, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual, a honra, a reserva da vida privada, o direito à palavra e à imagem.”.[8] 10.4. Para além do crime continuado, a nossa ordem jurídica contempla outras modalidades de crime por atenção à duração e estrutura da ação criminosa. Fá-lo no âmbito do processo penal, para fixação do momento em que cessa a ação criminalmente punida, já que é esse o momento “a quo”, a partir do qual se procede à contagem do prazo de prescrição do procedimento criminal. Assim, atentando na previsão legal constante do art.119º do Código Penal, os crimes, para além de continuados, podem ser, permanentes, em que ocorre uma persistência temporal da ação criminosa, que se mantém una, e habituais, em que a ação criminosa envolve a prática de vários atos homogéneos. Os crimes habituais são, na lição de Figueiredo Dias, “aqueles em que a realização do tipo incriminador supõe que o agente pratique determinado comportamento de uma forma reiterada”, exemplificando com os crimes de lenocínio e de aborto agravado.[9] Nos crimes habituais existe um crime único com pluralidade de atos, ou seja, a consumação do crime protrai-se no tempo. A própria estrutura do tipo incriminador supõe a reiteração. Como refere José Lobo Moutinho, correspondem a casos especiais em que a estrutura do facto criminoso se apresenta, ou pode apresentar, mais complexa do que sucede habitualmente e se desdobra numa multiplicidade de atos semelhantes, que se vão praticando ao longo do tempo, mediante intervalos entre eles.[10] A figura do crime de trato sucessivo, por vezes também denominados de crimes de empreendimento, prolongados, protelados, protraídos e exauridos, tendo origem em alguma jurisprudência do S.T.J., especialmente a partir da década de oitenta, a propósito essencialmente de processos relativos ao crime de tráfico de estupefacientes, alargou-se posteriormente aos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual.[11] Tem na sua base a ideia de que quando ocorre uma execução repetida ao longo de um período considerável de tempo se torna arbitrária qualquer contagem, considerando-se então que se estará perante «crimes prolongados, protelados, exauridos ou de trato sucessivo», em que se convenciona que há um só crime - apesar de se desdobrar em várias condutas que, se isoladas constituiriam um crime tanto mais grave, no quadro da sua moldura penal, quanto mais repetido. Os pressupostos do crime de trato sucessivo, de acordo com a corrente jurisprudencial que defende esta figura jurídica, são a existência de uma “unidade resolutiva”, “homogeneidade na conduta” do agente, e “conexão temporal entre os atos praticados”. Existirá um único crime quando o comportamento do agente tem na sua base uma unidade resolutiva (que se não se confunde com resolução criminosa única), que move o agente para a prática reiterada de atos que, isoladamente considerados, já integrariam a prática do crime. Sintetizando o sentido desta jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, pode ler-se no sumário do acórdão de 29-11-2012[12]: «I - Quando os crimes sexuais são atos isolados, não é difícil saber qual o seu número. Mas, quando os crimes sexuais envolvem uma repetitiva atividade prolongada no tempo, torna-se difícil e quase arbitrária qualquer contagem. II - O mesmo sucede com outro tipo de crimes que, tal como o sexo, facilmente se transformam numa “atividade”, como, por exemplo, com o crime de tráfico de droga. Pergunta-se, por isso, se nesses casos de “atividade criminosa”, o traficante de rua que, por exemplo, se vem a apurar que vendeu droga diariamente durante um ano, recebendo do «fornecedor» pequenas doses de cada vez, praticou, «pelo menos», 200, 300 ou 365 crimes de tráfico [o que aparenta ser uma contagem arbitrária ou, pelo menos, “imaginativa”] ou se praticou um único crime de tráfico, objetiva e subjetivamente mais grave, dentro da sua moldura típica, em função do período de tempo durante o qual se prolongou a atividade. III - A doutrina e a jurisprudência têm resolvido este problema, de contagem do número de crimes, que de outro modo seria quase insolúvel, falando em crimes prolongados, protelados, protraídos, exauridos ou de trato sucessivo, em que se convenciona que há só um crime – apesar de se desdobrar em várias condutas que, se isoladas, constituiriam um crime - tanto mais grave [no quadro da sua moldura penal] quanto mais repetido. IV - Ao contrário do crime continuado [cuja inserção doutrinária também nasceu, entre outras razões, da dificuldade em contar o número de crimes individualmente cometidos ao longo de um certo período de tempo], nos crimes prolongados não há uma diminuição considerável da culpa, mas, antes em regra, um seu progressivo agravamento à medida que se reitera a conduta [ou, em caso de eventual «diminuição da culpa pelo facto», um aumento da culpa enquanto negligência na formação da personalidade ou de perigosidade censurável»]. Na verdade, não se vê que diminuição possa existir no caso, por exemplo, do abuso sexual de criança, por atos que se sucederam no tempo, em que, pelo contrário, a gravidade da ilicitude e da culpa se acentua [ou, pelo menos, se mantém estável] à medida que os atos se repetem. V - O que, eventualmente, se exigirá para existir um crime prolongado ou de trato sucessivo será como que uma «unidade resolutiva», realidade que se não deve confundir com «uma única resolução», pois que, «para afirmar a existência de uma unidade resolutiva é necessária uma conexão temporal que, em regra e de harmonia com os dados da experiência psicológica, leva a aceitar que o agente executou toda a sua atividade sem ter de renovar o respetivo processo de motivação» (Eduardo Correia, 1968: 201 e 202, citado no “Código Penal anotado” de P. P. Albuquerque). VI - Para além disso, deverá haver uma homogeneidade na conduta do agente que se prolonga no tempo, em que os tipos de ilícito, individualmente considerados são os mesmos, ou, se diferentes, protegem essencialmente um bem jurídico semelhante, sendo que, no caso dos crimes contra as pessoas, a vítima tem de ser a mesma.». 10.5. Esta jurisprudência nunca foi pacífica, como se verifica do voto de vencido, do Cons. Manuel Braz, aposto neste acórdão, em que afirmou, seguindo Lobo Moutinho [Da unidade à pluralidade de crimes no direito penal português», Universidade Católica, 2005, 617-620 e nota 1854], «que o “crime de trato sucessivo” será reconduzível ao crime habitual, ou seja, “aqueles em que a realização do tipo incriminador supõe que o agente pratique determinado comportamento de uma forma reiterada, até ao ponto de ela poder dizer-se habitual”. Não é, a unidade de resolução que pode conferir a uma reiteração de atos homogéneos o cariz de crime de trato sucessivo, que se identifica com a categoria legal do crime habitual, mas somente a estrutura do respetivo tipo incriminador, que há-de supor a reiteração. O entendimento de um crime como sendo crime habitual tem necessariamente que decorrer, atento o princípio constitucional da legalidade criminal (art.29.º, n.º 1, da CRP), do tipo legal de crime previsto na legislação. Assim, e em conclusão, sustenta-se neste voto de vencido: “Parece claro que tanto os tipos de crime de abuso sexual de crianças e de abuso sexual de menores dependentes como o de violação não contemplam aquela «multiplicidade de atos semelhantes» que está implicada no crime habitual nem, por isso, a sua realização supõe um comportamento reiterado. Cada um dos vários atos do arguido foi levado a cabo num diverso contexto situacional, necessariamente comandado por uma diversa resolução e traduziu-se numa autónoma lesão do bem jurídico protegido. Cada um desses atos não constituiu um momento ou parcela de um todo projetado nem um ato em que se tenha desdobrado uma atividade suposta no tipo, mas um “todo”, em si mesmo, um autónomo facto punível. Deve por isso entender-se que, referentemente a cada grupo de atos, existe, usando palavras de Figueiredo Dias, «pluralidade de sentidos de ilicitude típica» e, portanto, de crimes (ob. cit., página 989). O percurso argumentativo assumido no voto de vencido neste acórdão de 29-11-2012, foi posteriormente desenvolvido em inúmeros acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça. Assim, exemplificativamente: - o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 20 de Fevereiro de 2019 (processo n.º 234/15.3JAAVR.S1- 5.ª), sublinhou que «Em boa verdade o chamado crime de trato sucessivo mais não é do que uma tentativa de ampliar a nossa construção jurídica do crime continuado, despojando-o da marca essencial que assume no nosso ordenamento jurídico-penal, que é a realização plúrima da ação típica no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente (art.º 30.º,n.º 2 do Código Penal). É aí que reside a verdadeira marca identitária do crime continuado [Germano Marques da Silva, Direito Penal Português, Teoria do Crime, UCE, 2015, pág. 431.], que se manifesta designadamente nos casos de pluralidade de resoluções, (se bem que a continuação criminosa não seja incompatível com a verificação de um dolo conjunto ou dolo continuado [Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, tomo I, 2.ª edição, 2.ª reimpressão, Coimbra Editora, 2012, pág. 1039.]), dado que, como escreve Mezger, “…o característico do crime continuado é precisamente sucumbir cada vez de novo à tentação” [Edmund Mezger, Tratado de Derecho Penal, tomo II, Madrid, 1955, pág. 358.].”. - O acórdão do STJ de 27-11-2019 ( proc. n.º 784/18.0JAPRT.G1.S1), indicando abundante jurisprudência no mesmo sentido, sustenta que “A jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça é presentemente unânime ao afastar a figura do «trato sucessivo» dos casos de crimes contra a autodeterminação sexual, dando-se nota no acórdão de 11-09-2019, proferido no processo n.º 1032/18.8JAPRT.S1-3.ª Secção[17], de que «os casos em que o comportamento do agente preenche vários tipos de crime contra a autodeterminação sexual ou preenche várias vezes estes mesmos tipos de crime reconduzem-se à previsão do n.º 1 do art.30.º do CP, pois pune-se a prática de “ato sexual”, de cada “ato sexual”, não se incluindo no tipo qualquer forma de reiteração».[13] - O acórdão de 22-03-2018 (Proc. n.º 467/16.5PALSB.L1-S1) acentua, no mesmo sentido, que “…a redação do art.171º e do art.172º, ambos do CP, não revela nada de que se possa retirar que se está perante um crime habitual. “Quem praticar ato sexual de relevo (…)”, ou “Quem praticar ou levar a praticar ato (…)” são as expressões usadas, sempre no singular, omitindo-se qualquer plural como acontece por exemplo nos arts. 152º, ou 152º-A, do CP, com o conceito “maus tratos” ou a expressão “de modo reiterado ou não”. A pretensão do recorrente de caracterizar parte do seu comportamento (seis primeiros crimes), como uma unidade criminosa, contraria pois a configuração que o tipo assumiu entre nós. Na verdade, este não engloba, logo à partida, tanto a prática de um, como de mais actos criminosos. Mas, além disso, essa seria uma postura que iria contra a vontade do legislador, claramente patente na nova redação do art.30º, nº 3 do CP. Acresce que o elemento subjetivo do tipo reclamaria uma unidade de resolução (que não uma resolução única), em que a prática de cada ato é precedida de uma nova decisão sem ser necessária a renovação do processo de motivação. Nada na factualidade provada, conjugada com a experiência da vida, impõe no caso o preenchimento de tal elemento subjectivo, enquanto dolo continuado, ou conjunto, ou global.”. - Por fim, criticando a aplicação da figura do crime de trato sucessivo aos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual de criança, quando envolvem uma repetitiva atividade prolongada no tempo, consigna-se no sumário do acórdão do STJ de 4-5-2017 (Proc. 110/14.7JASTB.E1.S1): “III - Tratando-se no presente caso de crimes contra bem jurídico eminentemente pessoal, como é o bem jurídico da autodeterminação sexual da criança e do menor dependente logo por força do disposto no art.30.º, n.º 3, do CP, bem andou o acórdão recorrido que considerou não ser o caso dos autos subsumível à figura do crime continuado, ainda que o argumento utlizado para chegar a esta conclusão tenha sido tão-só o da existência de uma pluralidade de resoluções criminosas. IV- Devemos concluir que houve uma pluralidade sucessiva de crimes contra a autodeterminação sexual do ofendido praticados ao longo de um período excessivamente longo de tempo, cerca de mais de 10 anos — entre 2002/2003 (cf. facto provado 3) e até ....05.2014 (cf. facto provado 7). V - Porém, é com base nesta ideia de sucessão de crimes idênticos contra a mesma vítima, e num certo e delimitado período temporal, que o Supremo Tribunal de Justiça tem considerado que estamos perante o que vem designando de “crime de trato sucessivo”, e por isso o acórdão recorrido acabou por condenar o arguido em apenas um crime de abuso sexual de criança e um crime de abuso sexual de menor dependente. Ou seja, a jurisprudência portuguesa, acaba por unificar, à margem da lei, várias condutas numa única, considerando que há uma unidade de resolução (que abarca todas as resoluções parcelares que ocorrem aquando da prática de cada sucessivo ato integrador de um tipo legal de crime), mas em que, à medida que se prolonga no tempo, produz uma agravação da culpa do agente. VI - É esta conduta prolongada, protraída, no tempo que levou à sua designação como crime prolongado, embora a caracterização do crime como prolongado dependa de a conduta legal e tipicamente descrita se poder considerar como sendo uma conduta prolongada — ora, a conduta, por exemplo, do crime de abuso sexual de criança, ainda que este seja repetido inúmeras vezes, está limitada temporalmente; os atos consubstanciadores daquele abuso, isto é, a prática de “acto sexual de relevo” (cf. arts. 171.º e 172.º, ambos do CP) ocorrem num certo período e quando sucessivamente repetidos, tem entendido alguma jurisprudência, como integrando um mesmo crime de abuso sexual. VII - Porém, ideia de sucessão de condutas que parece querer-se atingir com a designação de “trato sucessivo” implica necessariamente que haja uma sucessão de tipos legais de crime preenchidos e, portanto, segundo a lei, uma punição em sede de concurso de crimes. A unificação de todos os crimes praticados em apenas um crime, quando o tipo legal de crime impõe a punição pela prática de cada ato sexual de relevo, e sem que legalmente esteja prevista qualquer figura legal que permita agregar todos estes crimes, constitui uma punição contra a lei, desde logo, por não aplicação do regime do concurso de crimes. Isto é, não podendo unificar-se a prática de todos aqueles atos no crime continuado, previsto no art. 30.º, n.º 2, do CP, por força do disposto no art. 30.º, n.º 3, do CP, então apenas nos resta aplicar o disposto no art.30.º, n.º 1, do CP. Entender que tendo sido o mesmo tipo legal de crime preenchido diversas vezes pela conduta do arguido, ainda assim devemos entender como estando apenas perante um único crime, será decidir contra legem. VIII - Além do mais, a designação de “trato sucessivo” constitui uma designação com um significado juridicamente muito preciso e decorrente do Código de Registo Predial (cf. art. 34.º) pretendendo-se documentar o trato, a traditio da coisa, sucessivamente; ora, num crime sexual não há traditio. IX - E crime exaurido ou consumido dá a ideia de que logo no primeiro ato se consuma, tornando irrelevantes os atos sucessivos. Ora, o exaurimento do crime assume importância em todos aqueles casos em que, após a consumação, ocorre a terminação do crime, sendo relevante a desistência da tentativa entre um e outro momento. Mas a prática de um crime sexual seguida da de outros crimes sexuais não impede a consumação de um crime sexual em cada um dos atos. X - O “crime de trato sucessivo” tal como tem sido caracterizado pela jurisprudência corresponde ao crime habitual, ou seja, “aqueles em que a realização do tipo incriminador supõe que o agente pratique determinado comportamento de uma forma reiterada, até ao ponto de ela poder dizer-se habitual” (Figueiredo Dias). No entanto, o entendimento de um crime como sendo crime habitual tem necessariamente que decorrer, atento o princípio constitucional da legalidade criminal (art.29.º, n.º 1, da CRP), do tipo legal de crime previsto na lei. XI - A punição de uma certa conduta a partir da reiteração, sem possibilidade de análise individual de cada ato, apenas decorre da lei, ou dito de outro modo, do tipo legal de crime. Ora, unificar diversos comportamentos individuais que têm subjacente uma resolução distinta sem que a lei tenha procedido a essa unificação constitui uma clara violação do princípio da legalidade, e, portanto, uma interpretação inconstitucional do disposto nos arts. 171.º e 172.º, ambos do CP. XII - Em parte alguma os tipos legais de crime de abuso sexual de criança e de abuso sexual de menor dependente permitem que se possa entender apenas como um único crime a prática repetida em diversos dias, ao longo de vários anos — mais de 10 —, em momentos temporalmente distintos, e fundada em sucessivas resoluções criminosas, de diversos atos sexuais de relevo. XIII - Casos há em que não é possível apurar o número exato de condutas praticadas pelo arguido. Ou seja, sobra a pergunta: tendo conseguido a prova dos atos de abuso sexual, mas sem prova precisa do número de vezes e do momento temporal, o arguido deve ser absolvido dos crimes que praticou? Ou quantos crimes devem ser-lhe imputados? Enquanto se mantiver a legislação que temos, cabe fazer a prova do maior número possível de atos individuais, devendo ser excluídos, em nome do princípio in dubio pro reo, aqueles cuja prova se não consegue obter de forma segura. (Com orientação similar, e da mesma relatora, cfr. Ac. STJ de 20/4/2016, Proc. 657/13.2JAPRT.P1.S1). 10.6. Em suma, embora a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça se tenha mostrado dividida quanto à aplicação da figura do crime exaurido ou de trato sucessivo aos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual, atualmente e desde há alguns anos atrás, consolidou-se jurisprudência, cremos que unanimemente, no sentido da integração da pluralidade de condutas integradoras de crimes de abuso sexual de crianças, na figura do concurso efetivo de crimes previsto no art.30.º, n.º1 do Código Penal, afastando-se a possibilidade de subsunção a outras figuras, designadamente ao crime de trato sucessivo. Esta secção do Supremo Tribunal de Justiça, sufraga este entendimento ora uniforme, pelos pertinentes argumentos que esta corrente apresenta. Realçamos apenas, que em parte alguma o tipo penal de crime de abuso sexual de criança, atrás descrito, permite que se possa entender apenas como um único crime a prática repetida de diversos atos sexuais de relevo, em diversos dias, ao longo de vários meses ou anos, em momentos temporalmente distintos e fundada em sucessivas resoluções criminosas,. A estrutura do tipo penal não contempla a reiteração, mas a punição da prática de «ato sexual», ou seja, de cada ato sexual, pelo que à pluralidade de atos sucede-se a pluralidade de sentidos de ilicitude típica. Por outro lado, se no caso da sucessão de vários crimes contra bens eminentemente pessoais, o legislador afastou no art.30.º, n.º3 do Código Penal, a punição do agente em termos de crime continuado, em que um dos pressupostos é a diminuição sensível da pena, por maioria de razão não se poderá unificar num único crime “de trato sucessivo”, as diversas condutas do agente, quando este nem sequer preenche os pressupostos do crime continuado, pois o sentido de ilicitude e de censura são agravados com as sucessivas violações do bem jurídico, facilitadas pela fragilidade da vítima em resultado da sua idade. Como bem realça Paulo Pinto de Albuquerque, o julgador ao punir crimes contra bens eminentemente pessoais como um único crime de trato sucessivo, ficcionando um dolo inicial que engloba todas as ações, praticaria uma fraude ao propósito do legislador. [14] No caso em apreciação, cada ato sexual de relevo, que repetidamente o arguido AA impôs à menor, representou para o arguido, para a ofendida e para a comunidade, um novo e diverso atentado à sexualidade da menor, pelo que o crime de trato sucessivo, numa situação como esta não pode ter lugar. Assim, não integrando a factualidade dada como provada a prática, pelo arguido, de um só crime de abuso sexual de criança agravado, na forma de trato sucessivo, na pessoa da ofendida CC, mas sim, em concurso real e efetivo, 10 crimes de abuso sexual de criança agravado, improcede esta primeira questão.
11. Da dosimetria das penas Por fim, sustenta o recorrente que em obediência ao disposto no art.71.º, n.ºs 1 e 2 do Código Penal, se impõe uma redução das penas parcelares que lhe foram aplicadas para um quantum próximo dos seus mínimos legais, bem como da pena única, que nunca poderá exceder os cinco anos de prisão. Alega, para o efeito, que beneficia de múltiplas atenuantes da sua conduta, como a confissão, o arrependimento, a existência de um único antecedente criminal referente a crime de diferente natureza, a sua idade e o seu estado de saúde. Uma pena única não superior a 5 anos de prisão mostra-se suficiente para assegurar as exigências de prevenção geral e especial, uma vez que a conduta criminosa do ora recorrente não radica na sua personalidade, nem é reconduzível a uma tendência, mas fruto de circunstâncias anteriores. Vejamos. O art.71.º, n.º1 do Código Penal dispõe, quanto ao critério geral da determinação da medida concreta da pena, que esta é feita, dentro dos limites definidos na lei, em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, devendo o tribunal atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele. A culpa do agente consiste no juízo de censura dirigido ao agente pelo facto deste ter atuado em desconformidade com a ordem jurídica quando podia, e devia, ter atuado em conformidade com esta, sendo uma desaprovação sobre a conduta do agente. Como bem refere Figueiredo Dias, o facto punível não se esgota com a ação ilícita-típica, necessário se tornando sempre que a conduta seja culposa, “isto é, que o facto possa ser pessoalmente censurado ao agente, por aquele se revelar expressão de uma atitude interna pessoal juridicamente desaprovada e pela qual ele tem por isso de responder perante as exigências do dever-ser sociocomunitário.”[15] O juízo de censura, ou desaprovação, é suscetível de se revelar maior ou menor sendo, por natureza, graduável e dependendo sempre das circunstâncias concretas em que o agente desenvolveu a sua conduta, traduzindo igualmente um juízo de exigibilidade determinado pela vinculação de cada um a conformar-se pela atuação de acordo com as regras estipuladas pela ordem jurídica superando as proibições impostas. As exigências de prevenção remetem-nos para o objetivo último das penas, que é a proteção, o mais eficaz possível, dos bens jurídicos fundamentais (art.40.º do Código Penal). Esta proteção implica a utilização da pena como instrumento de prevenção geral, servindo primordialmente para manter e reforçar a confiança da comunidade na validade e na força de vigência das normas do Estado na tutela de bens jurídicos e, assim, no ordenamento jurídico-penal (prevenção geral positiva ou de integração). A prevenção geral radica no significado que a “gravidade do facto” assume perante a comunidade, isto é, no significado que a violação de determinados bens jurídico penais tem para a comunidade e visa satisfazer as exigências de proteção desses bens na medida do necessário para assegurar a estabilização das expectativas na validade do direito. A reintegração do agente na sociedade está ligada à prevenção especial ou individual, isto é, à ideia de que a pena é um instrumento de atuação preventiva sobre a pessoa do agente, com o fim de evitar que no futuro, ele cometa novos crimes, que reincida. É a prevenção geral positiva que fornece uma moldura de prevenção geral positiva dentro de cujos limites podem e devem atuar considerações de prevenção especial. Entre o ponto ótimo e o ponto ainda comunitariamente suportável de medida de tutela dos bens jurídicos, podem e devem atuar pontos de vista de prevenção especial de socialização, sendo estes que vão determinar, em último termo a medida da pena. Nesta tarefa, importa atender aos fatores de medida da pena, que na linguagem do art.71.º, n.º2 do Código Penal «…depuserem a favor do agente ou contra ele», considerando, designadamente, as suas várias alíneas. As circunstâncias gerais enunciadas exemplificativamente neste n.º2 do art.71.º do Código Penal, são, no ensinamento de Figueiredo Dias, elementos relevantes para a culpa e para a prevenção e, “ por isso, devem ser consideradas uno actu para efeitos do art.72.º-1; são numa palavra, fatores relevantes para a medida da pena por força do critério geral aplicável.”. Para o mesmo autor, esses fatores podem dividir-se em “Fatores relativos à execução do facto”, “Fatores relativos à personalidade do agente” e “Fatores relativos à conduta do agente anterior e posterior ao facto”. Podemos agrupar, nas alíneas a), b), c) e e), parte final, do n.º 2 do art.71.º, do Código Penal, os fatores supra mencionados relativos à execução do facto; nas alíneas d) e f), os fatores relativos à personalidade do agente; e na alínea e), os fatores relativos à conduta do agente anterior e posterior ao facto.[16] Por respeito à eminente dignidade da pessoa a medida da pena não pode ultrapassar a medida da culpa (art.40.º, n.º 2 do C.P.), designadamente por razões de prevenção. A culpa tem aqui uma função limitadora do intervencionismo estatal. 11.1 Retomando o caso concreto. Cada um dos 10 crimes de abuso sexual de criança agravado, previsto nos artigos 171.º, n.º1 e 177.º, n.º1, alínea c), do Código Penal, imputados ao arguido AA, é punível com pena de prisão de 1 ano e 4 meses a 11 anos e 4 meses. É dentro destes limites da moldura penal que importa verificar, em primeiro lugar, se o Tribunal a quo na determinação das penas parcelares, violou, por excessivas, o disposto no art.71.º, n.ºs 1 e 2 do Código Penal. No que respeita aos “Fatores relativos à execução do facto”, o Supremo Tribunal de Justiça entende que o grau de ilicitude dos factos foi elevado, pois a vítima dos 10 crimes de abuso sexual praticados pelo arguido tinha apenas 9 anos de idade e os crimes foram praticados num período de cerca de 5 meses. No modo de execução dos vários crimes de abuso sexual de criança, encontramos beijos na boca da criança, carícias com as mãos nos seios e na vulva, por cima e por baixo da roupa que a menor trajava, chegando a baixar-lhe as calças e as cuecas e a introduzir-lhe os dedos na vagina aí os manipulando. A motivação que levou o arguido a causar, repetidamente atos sexuais de relevo sobre a criança, foi a satisfação dos seus instintos libidinosos. O grau de violação dos deveres impostos ao arguido, é intenso, tendo em conta que os factos foram praticados essencialmente na residência da avó paterna da menor, aproveitando um local onde a vítima se deveria sentir protegida, para mais impunemente ir dando satisfação aos seus atos ilícito-típicos. As consequência destas condutas para a criança são de elevada gravidade, na medida em que com os seus repetidos atos de natureza sexual não só lhe infligiu sofrimento físico, causando-lhe dores na vagina e na vulva, como a infetou, em resultado de contacto sexual, com a bactéria Trichomonas vaginalis, e lhe infligiu sofrimento psicológico, alterando o seu comportamento social, tornando-a uma criança introvertida, agressiva e com perda da auto estima e a vivacidade que a caracterizavam, necessitando de assistência psicológica, tal como resulta descrito nos pontos n.ºs 66 a 72 da factualidade dada como provada. Por fim, agiu com dolo direto e intenso na pluralidade de atos praticados contra a criança. No que respeita aos «Fatores relativos à conduta do agente anterior e posterior ao facto», que integram a alínea e), n.º2 do art.71.º do Código Penal, anotamos que apresenta uma condenação anterior pela prática de um crime diverso – crime de tráfico de quantidades diminutas e de menor gravidade, p. e p., no artigo 25.º alínea a) do Decreto-Lei n.º 15/93 de 22/01, por factos ocorridos a 20/05/2017 – tendo-lhe sido aplicada, por sentença em julgado a 08/02/2018, uma pena de 1 ano de prisão, suspensa na sua execução por igual período. Beneficia de confissão dos factos provados, mas não de arrependimento ou de reparação dos danos causados à vítima. Nos “Fatores relativos à personalidade do agente” assume preponderância a acumulação de dez crimes de abuso sexual de criança, num período de cerca de 5 meses, em que demonstra uma elevada falta de preparação para manter uma conduta adequada ao direito, a exigir forte ressocialização. No que respeita às condições pessoais e económicas do arguido AA, resulta da factualidade dada como provada que é de modesta condição social e situação económica. Beneficia de apoio sociofamiliar da companheira e filho, e tem problemas de saúde, designadamente de visão congénitos, que se agravaram ao longo dos anos, encontrando-se invisual do olho direito e apenas com cerca de 10 por cento da visão no olho esquerdo. No Estabelecimento Prisional tem mantido um comportamento adequado aos normativos, como é comum a quem não queira ser objeto a sanções e uma postura de respeito com pares e funcionários. Considerando o grau de perigosidade do arguido que resulta da globalidade dos factos provados, entendemos que as razões de prevenção especial são elevadas. As razões de prevenção geral são muito elevadas nos crimes contra a liberdade sexual de crianças, pela forte censura e repugnância que este tipo de crimes causa na sociedade, pelo que importa reforçar a ideia da validade dos bens jurídicos inerentes às normas violadas. Perante estes elementos objetivos relevantes para a culpa e para a prevenção, entendemos que é também elevada a culpa do arguido. Tendo em consideração as circunstâncias valoradas na determinação das penas, as finalidades por estas prosseguidas, os princípios que lhe presidem e as molduras penais correspondentes a cada um dos crimes praticados, mencionadas no acórdão recorrido, não se encontra fundamento para discordar das penas parcelares de 2 anos e 6 meses de prisão aplicadas ao arguido, por alegado excesso, quando elas se situam praticamente 1 ano acima dos seus limites mínimos e bem longe dos seus limites máximos de 11 anos e 4 meses de prisão. O Supremo Tribunal de Justiça entende que a fixação de penas inferiores às penas parcelares aplicadas ao ora recorrente não respeitariam o disposto nos artigos 18.º, n.º 2 da CRP e 40.º e 71.º do Código Penal. 11.2. Vejamos, agora, se a pena conjunta de 8 anos de prisão aplicada ao recorrente, é excessiva, não devendo superar os 5 anos de prisão. Nos termos do art.77.º Código Penal, «1. Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa pena única. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente. 2. A pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.». Doutrina e jurisprudência coincidem em especificar que no cúmulo jurídico, a pena conjunta é definida dentro de uma moldura cujo limite mínimo é a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes e o limite máximo resulta da soma das penas efetivamente aplicadas, emergindo a medida concreta da pena da imagem global do facto imputado e da personalidade do agente. O agente é sancionado, não apenas pelos factos individualmente considerados, numa visão atomística, mas especialmente pelo conjunto dos factos, enquanto reveladores da gravidade da ilicitude global da conduta do agente e da sua personalidade. A pena conjunta do concurso será encontrada em função das exigências gerais de culpa e de prevenção, fornecendo a lei, para além dos critérios gerais de medida da pena contidos no art.71º.º, n.º1, um critério especial estabelecido no art.77.º, nº 1, 2ª parte, ambos do Código Penal.[17] Os parâmetros indicados no art.71.º do Código Penal, servem apenas, porém, de guia para a operação de fixação da pena conjunta, não podendo ser valorados novamente, sob pena de se infringir o princípio da proibição da dupla valoração, a menos que tais fatores tenham um alcance diferente enquanto referidos à totalidade de crimes.[18] Na busca da pena do concurso, explicita Figueiredo Dias, na obra que vimos citando, que “Tudo deve passar-se como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique. Na avaliação da personalidade – unitária – do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma «carreira») criminosa, ou tão só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta”. E acrescenta que “de grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização).” Como refere ainda, na doutrina, OO, com o sistema da pena conjunta, perfilhado neste preceito penal, deve olhar-se para a possível conexão dos factos entre si e para a necessária relação de todo esse bocado de vida criminosa com a personalidade do seu agente.[19] As conexões ou ligações fundamentais na avaliação da gravidade da ilicitude global, são as que emergem do tipo e número de crimes, dos bens jurídicos individualmente afetados, da motivação, do modo de execução, das suas consequências e da distância temporal entre os factos. É evidente que condutas muito gravosas para a comunidade, como as integradas no terrorismo, criminalidade violenta, criminalidade especialmente violenta ou criminalidade altamente organizada, [definidas no art.1.º, alíneas f) a m)] exigem, por respeito do princípio da proporcionalidade e exigências de prevenção, uma menor compressão das penas parcelares, na formação da pena única, do que condutas de agentes inseridas na chamada média ou pequena criminalidade. No caso, as condutas do arguido integram a criminalidade especialmente violenta. Ínsita nos factos ilícitos unificados no âmbito da pena de concurso, a personalidade do agente, é um fator essencial à formação da pena única. A revelação da personalidade global do agente, o seu modo de ser e atuar em sociedade, emerge essencialmente dos factos ilícitos praticados, mas também das suas condições pessoais e económicas e da sensibilidade à pena e suscetibilidade de ser por ela influenciado. Sendo as necessidades de prevenção mais exigentes quando o ilícito global é produto de tendência criminosa do agente, do que quando esse ilícito se reconduz a uma situação de pluriocasionalidade, a pena conjunta deverá refletir esta singularidade da personalidade do agente. Presentes os critérios e finalidades que se acabam de expor, anotamos, antes do mais que o recorrente não especifica argumentos visando a redução da pena única em que foi condenado em cúmulo jurídico. No caso concreto, a moldura de punição situa-se entre 2 anos e 6 meses de prisão (mínimo legal) e os 25 anos de prisão (máximo legal). No que respeita à ilicitude global da conduta do arguido AA, entendida como juízo de desvalor da ordem jurídica sobre um comportamento, por este lesar e pôr em perigo bens jurídico-criminais, a mesma é elevada, tendo em conta as conexões entre todos os crimes de abuso sexual de criança, com repetição, durante cerca de 5 meses, de condutas de elevada gravidade, desde logo, pela pouca idade (9 anos) da vítima, em que demonstrou características de personalidade altamente censuráveis, reveladoras de particular necessidade de socialização, tanto mais que agiu com dolo direto e intenso e não beneficia de arrependimento sincero e de reparação dos danos causados à menor, circunstâncias que permitiriam demonstrar que no futuro não irá praticar novos factos contra a liberdade e autodeterminação sexual de crianças. Ponderando em conjunto a gravidade dos factos e a sua relacionação com a personalidade do recorrente a que se fez referência, concluímos que a pena conjunta fixada em 8 anos de prisão pelo Tribunal a quo, numa moldura de punição entre 2 anos e 6 meses e 25 anos de prisão, mostra-se justa, adequada às finalidades de prevenção, e proporcional à culpa e personalidade do arguido/ recorrente, pelo que mantemos a mesma. Deste modo, improcede esta questão e, consequentemente, o recurso.
Decisão
Nestes termos e pelos fundamentos expostos acordam os juízes do Supremo Tribunal de Justiça em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido AA e manter o douto acórdão recorrido. Custas pelo recorrente, fixando em 6 Ucs a taxa de justiça (art. 513º, nºs 1 e 3, do C. P.P. e art.8.º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III, anexa) * (Certifica-se que o acórdão foi processado em computador pelo relator e integralmente revisto e assinado eletronicamente pelos seus signatários, nos termos do art.94.º, n.ºs 2 e 3 do C.P.P.).
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Lisboa, 24 de março de 2022
Orlando Gonçalves (Relator) Adelaide Sequeira (Adjunta) Eduardo Loureiro (Presidente)
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[2] Cf. Figueiredo Dias, in “Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, Coimbra Editora, 2.ª edição, pág.835. [15] Cf. “Temas básicos da doutrina penal”, Coimbra Ed., pág. 230. [17] Cf. “Direito Penal Português, “As Consequências Jurídicas do Crime”, Editorial Notícias, 1993, pág.290/2. [18] Cf. Figueiredo Dias, obra cit., pág. 292. [19] Cf. “Revista Portuguesa de Ciência Criminal”, Ano 16, n.º1, , pág. 155 a 166 e acórdão do STJ, de 09-01-2008, CJSTJ 2008, tomo 1.
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