Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
168/05.0TBWC.E3.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: MARIA DA GRAÇA TRIGO
Descritores: MATÉRIA DE FACTO
IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO
PODERES DA RELAÇÃO
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
DIREITO ADJETIVO
APRECIAÇÃO DA PROVA
REAPRECIAÇÃO DA PROVA
NOVA APRECIAÇÃO APÓS ANULAÇÃO PELO STJ
BAIXA DO PROCESSO AO TRIBUNAL RECORRIDO
Data do Acordão: 07/04/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA
Sumário :
Não tendo o TR levado a cabo a apreciação crítica dos meios de prova indicados pela apelante, e, como tal, não tendo formado uma convicção própria e autónoma relativamente à decisão da matéria de facto, considera-se verificada a invocada violação do disposto no art. 662.º, n.º 1, do CPC.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


I – Relatório

1. AA e BB propuseram, em 2005, acção de interdição/inabilitação por anomalia psíquica contra CC.

A autora BB faleceu em ...-...-2006, tendo sido determinado, por despacho de 16-03-2006 (fls. 277 e 278), que não haveria lugar à suspensão da instância por se ter considerado tratar-se de litisconsórcio voluntário activo.

O réu faleceu em ...-...-2012, tendo sido determinado, por despacho de fls. 1235, o prosseguimento da acção.

Após múltiplas vicissitudes, e prosseguindo a acção de acordo com o novo regime do maior acompanhado (cfr. art. 26.º, n.º 1, da Lei n.º 49/2018, de 14 de Agosto), veio a ser proferida sentença que julgou a acção improcedente.

A autora AA interpôs recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Évora que julgou o recurso improcedente, confirmando a sentença recorrida.

2. Inconformada, vem a autora apelante interpor recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, formulando as seguintes conclusões:

«1. O presente recurso é interposto do Acórdão proferido em 18 de Dezembro de 2023, em processo especial de acompanhamento de maior (distribuído em 2005 como interdição/inabilitação), declarado não urgente por despacho da 1ª Instância, de 22-2-2021 e com o valor da ação: € 30.000,01 fixado na sentença de 1ª instância de 05-12-2022.

2. A jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, tem considerado que é admissível o Recurso de revista no processo de acompanhamento de maior, nos termos gerais, sendo que o art. 901.º do Código de Processo Civil não deve interpretar-se a contrario sensu.

3. É admissível, no recurso de Revista em processo de acompanhamento de maior, julgar os vícios no processo de formação da decisão da Relação, ou seja o modo de exercício dos poderes do Artº 662 do CPC pelo Tribunal da Relação de Évora no Acórdão de 18 de Dezembro de 2023, dado que tal previsão preenche a previsão normativa de “lei de processo” para os efeitos do artigo 674.º, n.º 1, al. b), do CPC.

4. O presente recurso de Revista deve ser, admitido, pois é, por uma lado, fundamentado na questão de ilegalidade adjetiva da decisão proferida pelo Tribunal da Relação por vícios no processo de formação da decisão da Relação, e, por outro lado, fundamenta-se também na violação, no facto 38º da matéria assente, da força probatória da certidão judicial de fls. 2153 a 2168, o que preenche igualmente a previsão de admissibilidade nos termos do 674.º, n.º 1, al. a), do CPC.

5. No recurso de apelação, a Recorrente requereu a reapreciação da matéria de facto fixada na sentença de 1.ª instância, pelo Tribunal a quo, por via da correção de concretos pontos da matéria de facto dada como provada, bem como pelo aditamento de um conjunto de factos julgados não provados, sendo admissível julgar o modo de exercício destes poderes, por não uso dos poderes do art. 662.º/1 e 2 do CPC) que são violações de direito adjetivo, para os efeitos do artigo 674.º, n.º 1, al. b), do CPC.

6. O Acórdão recorrido, que julgou improcedente a impugnação da matéria de facto, não avaliou, de forma alguma, a decisão proferida sobre a matéria de facto pela 1.ª instância, porquanto a prova produzida (ou a produzir) impunha decisão e atuação diversa ao Tribunal da Relação, violando a decisão recorrida, deste modo, o disposto nos artigos 411.º, 413.º, 640.º e 652 e 662.º todos do CPC.

5. O presente recurso visa, assim, nesta parte, sindicar a improcedência da requerida modificação da matéria de facto, com fundamento na violação e/ou errada aplicação da lei de processo pelo Tribunal da Relação de Évora, nos termos do disposto no artigo 674.º, n.º 1, al. b), do CPC.

6. Afirma-se no Acórdão de 18-12-23 que a pretensão da Recorrente foi a impugnação de toda a matéria de facto dada como provada, abrangendo ainda os factos não provados, o que não corresponde à realidade até porque não foi impugnado o 28º mas sim o 38º, o que resulta numa incorreta e desconforme reapreciação da matéria de facto pelo Tribunal da Relação, inequívoco é que inexiste, neste caso, uma situação de dupla conforme que obste à admissão da presente Revista.

7.Para além do mais, não visa este recurso a reapreciação pelo Supremo Tribunal de Justiça da decisão anteriormente proferida sobre a matéria de facto, a qual lhe está subtraída, mas apenas e tão só a apreciação dos motivos que estiveram na base da decisão quanto à reapreciação da matéria de facto pelo Tribunal a quo, matéria esta que se cinge a questões de aplicação do direito processual e, por isso, ora sindicáveis.

8. O Tribunal da Relação consigna no Acórdão de 18-12-23 que está inviabilizada a alteração da decisão da matéria de facto, nos termos pretendidos pela Recorrente, sem fundamentar a improcedência da Apelação, justifica-se assim, a Revista para controlo do uso dos poderes de reapreciação da matéria de facto pela Relação.

9. A presente Revista fundamenta-se nos vícios no processo de formação da decisão da Relação que é uma questão que emerge “ex novo” no acórdão da Relação e, por isso, em tal hipótese, quando se recorre de revista do uso (ou não uso) que a Relação fez de tais poderes, não se verifica uma conformidade decisória com o decidido na 1.ª Instância que obste ao recurso de revista.

10. Acresce a admissibilidade da Revista, a via do disposto no artigo 674.º, n.º 1 al. a), do CPC, porquanto ocorreram, na ótica da Recorrente, três ofensas da uma disposição expressa de Lei que fixa a força de determinado meio de prova (por documento autêntico e certidão).

11. O Acórdão de ..-..-.., confunde o artº 28 dos factos assentes com a impugnação do Artº 38 da matéria provada, cometendo o vicio de violação da Lei substantiva a que se refere o Artº 674.º, n.º 1 al. a), do CPC, ao aderir à matéria de facto da 1º instância, viola por isso o Artº 371 do C.Civil, na parte da força probatória de documentos autênticos (certidão judicial do Tribunal do Redondo) ao confundir o nome das Herdades (em vez de usar as descrições prediais) dando como provado em 38º, contra a força probatória de certidão judicial, que foi a venda da Herdade da ... que deu origem ao processo 202/11.4...

12. Existe o mesmo vicio de violação da Lei substantiva a que se refere o Artº 674.º, n.º 1 al. a), do CPC, quando é omitida na matéria de facto do Acórdão de ..-..-.. que a Herdade da ... não podia ter dado origem ao processo 202/11.4..., pois foi vendida em 2019 pela testemunha Eng. DD, por € 700.000,00, mediante a outorga de Escritura Pública, no Cartório Notarial de EE, em ..., e junta durante o julgamento, na sessão de 7-04-22, admitida por despacho de 3-5-22, mas foi ignorada na sentença final e no Acórdão da Relação.

13. Devido à troca dos nomes das Herdades em 38 da matéria assente, as Instâncias também olvidaram que foi junta aos autos em 7-4-22, c/ a Refª ......12, uma escritura publica outorgada em 10 de Abril de 1967, na qual o Pai do Requerido, FF, e a mãe GG, reservaram para si o usufruto e para o Recorrido/Requerido CC, ficou a nua-propriedade da Herdade do ....

14. Ao confundir a Herdade do ... com a Herdade da ..., o Tribunal nem sequer retirou quaisquer consequências da junção da referida escritura publica outorgada em 10 de Abril de 1967, a qual foi admitida por despacho de em 3-5-2022.

15. Sendo que se verifica aqui a situação a que se alude no acórdão do STJ de 02-11-2023, ou seja a troca do Artº 38º pelo Artº 28º da matéria assente (que não foi sequer objecto de recurso da matéria de facto) constitui um erro processual e adjetivo ex novo do Tribunal da Relação, passível de configurar o “não uso” e que este Supremo pode escrutinar, é um erro suscetível de ser “caçado” a partir do próprio texto do Acórdão da Relação e que está espelhado no próprio texto/conteúdo do Acórdão recorrido.

16. Ora, da confusão do nome das Herdades resulta, desde logo a adulteração completa da fundamentação da prova, pois passaram despercebidas ao Tribunal da Relação, os preços de venda das mesmas, a prova pericial sobre o valor e a existência de “encargos” e ainda a reincidência do R./Recorrido nos negócios ruinosos.

17. A Herdade da ... foi vendida em 2006 num contexto de doenças graves e cronicas, omitidas na fundamentação da decisão, tudo para pagar responsabilidades de terceiros, não apuradas concretamente.

18. A Herdade do ... foi vendida em 2010, que deu origem a litígio ainda hoje pendente no processo 202/11.4...

19. Não se vislumbra onde o Tribunal foi buscar a prova da necessidade extrema das vendas de duas Herdades, avaliadas por perícias judiciais em mais de 1 milhão de Euros, não se trata aqui da realização de negócios apenas “menos vantajosos” do ponto de vista económico ou de extrema necessidade em vender, trata-se de negócios objetivamente leoninos e desastrosos, que as instâncias ignoraram mas que o tempo se encarregou de demonstrar os efeitos nefastos que recaíram sobre o património do Recorrido/R.

20. Em face do facto provado em 33º não se compreende como é que o Tribunal da relação não faz uso dos poderes do art. 662.º/1 e 2 do CPC, quando está provado por documentos autênticos que o Recorrido/Requerido, CC, outorga uma escritura de justificação e invoca usucapião tendo de pagar mais impostos, quando na realidade já era proprietário do imóvel desde o ano de 1967, conforme escritura junta em 7-4-22.

21. Em suma, deve ser admitido o recurso de Revista, pois foram invocados os vícios no processo de formação da decisão da Relação, designadamente, “(i) a manifesta falta de uso dos poderes-deveres previstos no artigo 662.º do CPC e são fatores que inquinam, por completo, o processo de “formação da decisão” da Relação” e ainda (ii) violação de normas de direito probatório que fixam a força probatória plena de determinados meios de prova e que deveriam ter sido considerados como tal, mas foram desprezados dando origem ao erro de troca do Artº 28 que não foi impugnado, omitindo-se a impugnação em apelação do facto 38 da matéria assente.

22. A afirmação no Acórdão recorrido de que está inviabilizada a alteração da decisão da matéria de facto, nos termos pretendidos pela Recorrente, que alegadamente e na interpretação do Douto Acórdão, pretendia que um segundo julgamento sobre a matéria em discussão, enferma de inconstitucionalidade dos artigos conjugados 640º 652 e 662 do CPC, designadamente, por violação, dos artigos 2.º, 12.º/1, 20.º/1 e 4, 202 e 205 da CRP.».

Não foram apresentadas contra-alegações.

II – Admissibilidade do recurso

1. Tendo em consideração a natureza dos presentes autos, importa ter presentes as normas constantes dos arts. 901.º, 891.º, n.º 1, e 988.º, n.º 2, todos do Código de Processo Civil.

Dispõe o art. 901.º:

“Da decisão relativa à medida de acompanhamento cabe recurso de apelação, tendo legitimidade o requerente, o acompanhado e, como assistente, o acompanhante.”.

Como este Supremo Tribunal teve oportunidade de afirmar, designadamente no acórdão de 14-01-2021 (proc. n.º 4285/18.5T8MTS.P1.S1)1, disponível em www.dgsi.pt, assim sumariado:

“I - Na interpretação do art. 901.º do CPC deve atender-se a que, estando em causa, nas acções de acompanhamento de maiores, o direito à capacidade civil, consagrado nos n.os 1 e 4 do art. 26.º da CRP, se justifica plenamente a possibilidade de o STJ sindicar as decisões da Relação quanto às quais não se verifica dupla conforme, tal como sucede, em geral, nos demais processos especiais.

II - Assim, e uma vez que a letra do art. 901.º do CPC não o exclui, entende-se que não vigora neste tipo de processos um princípio de irrecorribilidade para o STJ, sendo de concluir que o sentido útil da norma legal será o de regular especificamente a legitimidade para recorrer de decisão relativa a medida de acompanhamento de maior.”.

De acordo com esta orientação, há que considerar, em abstracto, ser o presente recurso de revista admissível, não configurando o disposto no mencionado art. 901.º do CPC um obstáculo a tal admissibilidade.

Questão diversa, e que também se coloca nos presentes autos, é a de saber se o disposto no art. 988.º, n.º 2, do CPC - que prescreve que “das resoluções proferidas segundo critérios de conveniência e oportunidade não é admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça” - se aplica ao caso sub judice.

Está em causa o âmbito da remissão operada pelo n.º 1 do art. 891.º do CPC (norma aplicável ao caso dos autos – cfr. art. 26.º, n.º 1, da Lei n.º 49/2018, de 14 de Agosto), no qual se prevê que “o processo de acompanhamento de maior tem carácter urgente, aplicando-se-lhe, com as necessárias adaptações, o disposto nos processos de jurisdição voluntária no que respeita aos poderes do juiz, ao critério de julgamento e à alteração das decisões com fundamento em circunstâncias supervenientes.”.

Este Supremo Tribunal já se pronunciou, igualmente, sobre esta matéria nos seguintes termos:

“A remissão do art. 891º, 1, do CPC (norma do processo especial de “acompanhamento de maiores”) para o «disposto nos processos de jurisdição voluntária no que respeita aos poderes do juiz, ao critério de julgamento e à alteração das decisões com fundamento em circunstâncias supervenientes» não afasta a irrecorribilidade para o Supremo Tribunal de Justiça das resoluções (acórdãos) tomadas segundo critérios de conveniência ou oportunidade, nos termos do art. 988º, 2, do CPC, ainda que essa referência à restrição de recorribilidade para o STJ não conste expressamente do art. 891º do CPC. O art. 988º, 2, do CPC relaciona-se e é consequência do antecedente art. 987º do CPC, que diz respeito ao critério de julgamento, expressamente constante como aplicável no âmbito da remissão do art. 891º; uma vez aplicável, se se verificar que, nesse critério de decisão, a base consistir no recurso a critérios de conveniência ou oportunidade (2.ª parte do art. 987º do CPC), em vez de critérios de legalidade estrita, aplica-se a inadmissibilidade em regra da revista imposta pelo art. 988º, 2. Não é o caso quando se discute a resolução judicial superveniente – art. 988º, 1, ex vi art. 891º, CPC; art. 1948º, a), CCiv.) – de remoção do acompanhante de maior, antes tutor, no sentido de substituir essa remoção pela manutenção do primitivamente nomeado (então) tutor (escrutínio dos critérios legais dos arts. 146º, 1, e 1948º, 1, CCiv.).” (sumário do acórdão de 10-11-2020, proc. n.º 122/11.2T2ALB-D.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt).

Não existindo razões para divergir deste entendimento, cumpre aferir se a decisão recorrida foi ou não proferida segundo critérios de conveniência e oportunidade.

Ora, analisado o acórdão recorrido, resulta que o mesmo se pronunciou sobre o preenchimento dos pressupostos legais de que depende a medida de acompanhamento de maior, tendo concluído que, face aos factos apurados nos autos, tais pressupostos não se mostravam preenchidos.

Se é certo que o tribunal levou a cabo uma ponderação casuística dos factos apurados nos autos, é também evidente que o fez por apelo às normas jurídicas aplicáveis que analisou, interpretou e ponderou como fundamento da decisão final propugnada.

Verifica-se, assim, que a fundamentação do acórdão recorrido, muito embora marcado pela ponderação casuística, sempre necessária ao caso, não deixou de ter como referencial o quadro legal aplicável e os pressupostos de que depende o acompanhamento de maior.

Conclui-se, deste modo, que a decisão colocada em crise pela recorrente foi proferida segundo critérios de legalidade, o que permite equacionar a admissibilidade do presente recurso à luz das demais normas processuais aplicáveis.

2. Constata-se que o acórdão recorrido confirmou, sem voto de vencido nem fundamentação essencialmente diferente, a sentença de 1.ª instância, o que configura uma situação de dupla conformidade decisória, em tese, impeditiva da admissibilidade de recurso de revista por via normal (cfr. art. 671.º, n.º 3, do CPC).

Sucede que, como resulta da leitura das alegações de recurso em conjugação com as respectivas conclusões, a recorrente invoca a violação por parte do Tribunal da Relação dos poderes elencados no art. 662.º do CPC, alegação que permite descaracterizar a referida dupla conformidade decisória. Neste sentido, cfr., exemplificativamente, os acórdãos deste Supremo Tribunal de 26-11-2020 (proc. n.º 11/13.6TCFUN.L2.S1), de 16-12-2020 (proc. n.º 277/12.9TBALJ-B.G1.S1), de 17-12-2020 (proc. n.º 7228/16.0T8GMR.G1.S1) e de 14-09-2021 (proc. n.º 864/18.1T8VFR.P1.S1), consultáveis em www.dgsi.pt.

Resulta, assim, que, na parte em que a recorrente imputa ao Tribunal da Relação a violação do disposto no art. 662.º do CPC, o presente recurso de revista é admissível.

O mesmo não se pode afirmar quanto à imputada violação de normas de direito probatório material. Efectivamente, este Supremo Tribunal tem entendido, de forma consolidada, que a violação de normas de direito probatório material (que não sejam imputadas ex novo ao Tribunal da Relação) não tem a virtualidade de descaracterizar a dupla conformidade decisória para efeitos de admissibilidade do recurso de revista. Neste sentido se pronunciou o acórdão de 23-01-2020 (proc. n.º 44/16.0T8VVD.G1.S1), não publicado, que concluiu que “a alegada violação de preceitos de direito probatório material não tem aptidão para descaracterizar a dupla conforme, não constituindo uma questão nova ou susceptível de ser imputada ex novo à Relação.”. Cfr. ainda, entre outros, os acórdãos do STJ de 13-10-2022 (proc. n.º 12426/18.9T8PRT.P1-A.S1), de 11-03-2021 (proc. n.º 389/10.3TBCPV.P2.S1) e de 21-09-2021 (proc. n.º 2380/08.0TBSTB.P2.S1), disponíveis em www.dgsi.pt.

No caso dos autos, a violação de normas de direito probatório material imputada ao acórdão recorrido mostra-se abrangida pela dupla conformidade decisória impeditiva do recurso de revista, na medida em que não resulta de qualquer inovação introduzida pelo tribunal recorrido.

Por fim, cumpre apenas esclarecer que a invocada inconstitucionalidade, quando reportada à violação das normas de direito probatório material, se mostra igualmente abrangida pela dupla conforme, razão pela qual não pode ser conhecida em sede de recurso de revista. Neste sentido, cfr. o acórdão de 26-11-2020 (proc. n.º 11/13.6TCFUN.L2.S1), disponível em www.dgsi.pt.

Em face do exposto, conclui-se que o presente recurso apenas é admissível para apreciação da invocada violação do disposto no arts. 662.º do CPC.

III – Fundamentação de facto

1. Na Conservatória do Registo Civil ..., a Autora BB, nascida em ...-...-1915, consta registada como filha de HH e de II.

2. Na Conservatória do Registo Civil ..., a Autora AA, nascida em ...-...-1925, consta registada como filha de HH e de II.

3. Na Conservatória do Registo Civil de ..., o Réu CC, nascido em ...-...-1940, consta registado como filho de FF e GG.

4. Na Conservatória do Registo Civil de ..., o Réu consta registado como neto paterno de HH e II.

5. Na Conservatória do Registo Civil de ... consta registado que FF faleceu no dia ...-...-1988.

6. Conservatória do Registo Civil de ... consta registado que GG faleceu no dia ...-...-2005.

7. O Réu é o único herdeiro dos seus progenitores.

8. Na data referida em 6, o Réu encontrava-se gravemente doente, tendo sido internado por se apresentar extremamente fragilizado.

9. Após a data referida em 6, o Réu foi submetido a tratamentos clínicos diversos, rendo-lhe sido diagnosticada insuficiência renal, infeção urinária, celulite da perna esquerda, hipertiroidismo, bócio com compressão da traqueia, edema pulmonar, hipertensão central arterial cardiopatia isquémica e hipertrofia prostática.

10. JJ e KK ocupam a Herdade da ..., sita no concelho de ..., freguesia de ..., durante vários anos, tendo para tanto celebrado com o Réu um “contrato de cedência gratuita de exploração datado de 14 de Dezembro de 1994, pelo prazo de seis anos com inicio em 1 de Janeiro de 1996 e termo em 31 de Dezembro de 2000, prorrogável por igual período se as partes estiverem de acordo”.

11. O Réu constituiu-se fiador das obrigações assumidas pela sua afilhada JJ e pelo marido dela KK num empréstimo que estes contraíram na Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de ....

12. Os afiançados não cumpriram com as obrigações a que estavam adstritos.

13. O Réu viveu sempre com a sua progenitora, GG, até à data do óbito desta anteriormente mencionada em 6.

14. Até à data do decesso de GG, era o Réu que assegurava a administração dos bens, negociando contrato de compra e venda de pastagens dos prédios rústicos e as rendas dos arrendamentos dos prédios urbanos, as quais lhe eram pagas diretamente e pelas quais emitiu recibos.

15. A Autora AA prestou assistência ao Réu e à sua progenitora na residência onde estes habitavam.

16. O Réu, desde muito novo revelou dificuldades de aprendizagem, tendo a sua vida sido centrada no seu agregado familiar constituído pelos seus progenitores.

17. Os progenitores do Réu, mesmo após atingir a idade adulta, revelaram uma atitude de proteção quanto ao primeiro.

18. O Réu sofreu internamento hospitalar entre 10-01-2005 e 11-02-2005.

19. Apresentava gastroenterite, desidratação, falência renal prerrenal transitória, septicemia, infeção urinária por E. coli, úlcera e duodenite e hiperrogia prostática com retenção urinária.

20. Foi observado pelo serviço de psiquiatria da clínica médica e de diagnóstico de ..., em ...-...-2005.

21. Na sequência do mencionado em 20, foi prestada a seguinte informação clínica:

“O Sr. CC tem sido observado no centro de psiquiatria apresenta um quadro involutivo com alteração de humor. Sofre de várias doenças orgânicas que têm originado estados confusionais e limitação das capacidades cognitivas tornando-se difícil apreciar a realidade dos factos, significados e consequências. Apesar de conservar alguma capacidade de memória antiga, o pensamento é mais concreto com níveis de difícil abstracção, por exemplo, na interpretação de provérbios e/ ou expressões que conhece. Tem necessidade de cuidados de terceiros mesmo para tarefas práticas de orientação terapêutica e outras atitudes de decisão em situações difíceis. Neste contexto existe um processo involutivo que se tem agravado com limitações das capacidades funcionais e (…) numa incapacidade de avaliação das decisões não sendo capaz de gerir os bens e a própria pessoa continuando a necessitar de terceiros”.

22. Entre ... e ...de 2005, apurou-se em estudos complementares, realizados ao Réu no Hospital de ..., o seguinte:

“(…) sinais de hipertrofia ventricular. Eco renal: má diferenciação cortiço medular. (…) TAC tórax: deslocação do mediastino a esquerda por aumento do globo tirodeio direito com glândula homogénea e calcificações grosseiras, o lobo esquerdo também acrescentado com as mesmas características. No mediastino superior há importante estreitamento lateral da traqueia compatível com bócio sem adenopatias”.

23. Em consequência dos factos provados n.ºs 18 a 22, o Réu o período de tempo a que se seguiu a necessitar de cuidados de terceiros, encontrando-se fisicamente debilitado.

24. Por força do contrato mencionado no facto provado n.º 10, JJ e KK não pagaram, ao Réu, rendas da exploração da parte rústica da Herdade da ....

25. O Réu não possuia liquidez para honrar as obrigações que garantiu.

26. O Réu sempre foi poupado e muito cioso dos seus bens, em especial do dinheiro.

27. Em 09-02-2006, no Cartório Notarial de ..., foi outorgada escritura pública na qual, na qualidade de primeiro e segundo outorgantes, respetivamente, “PRIMEIRO: CC solteiro, maior, natural da freguesia de ..., concelho de ..., onde é residente na Rua ..., titular do bilhete de identidade número ....56 emitido em .../.../2005 pelos SIC de ..., NIF .......40” e “SEGUNDO: LL casado, natural da freguesia de ..., concelho de ..., residente na Avenida ..., em ..., titular do bilhete de identidade número ....43 emitido em .../.../2005 pelos SIC de ..., o qual outorga como procurador e em representação de DD, solteiro, maior, natural da freguesia de ..., concelho de ..., residente na mesma morada, NIF .......30, no uso de poderes que lhe foram conferidos por uma procuração que arquivo”.

28. Do teor da escritura pública referida em 27. dos factos provados consta, de entra o mais, o seguinte:

“Verifiquei a identidade dos outorgantes pelos seus referidos bilhetes de identidade.

E pelo primeiro outorgante foi dito:

Que pela presente escritura, pelo preço já recebido de duzentos e cinquenta mil euros, vende ao representado do segundo livre de ónus ou encargos, o prédio misto, denominado Herdade da ..., sito na freguesia de ..., concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o número cento e sessenta e três, e aí registado a seu favor pela inscrição G-um, com a área total de quinhentos e noventa e seis mil oitocentos e oitenta e quatro metros quadrados, com a parte rústica inscrita na respetiva matriz sob parte do artigo 113, secção E e a parte urbana, destinada exclusivamente a habitação, inscrita sob o artigo 131, com o valor patrimonial tributário de € 105.341,81, correspondendo o preço de duzentos mil euros à parte rústica e cinquenta mil euros à parte urbana.

Que não possuí outros prédios rústicos contíguos ao ora vendido. Pelo segundo outorgante foi dito:

Que aceita para o seu representado esta venda nos termos exarados. Disseram os outorgantes:

Que, para a transmissão ora efectuada, não recorreram à intervenção de qualquer mediadora imobiliária.

Mais declararam, os outorgantes, sob sua inteira responsabilidade:

Que o prédio ora alienado está ocupado por JJ, que passou a explorar a parte rústica e a residir na parte urbana ao abrigo de um contrato de cedência gratuita de exploração, que o aqui primeiro outorgante celebrou com ela em catorze de Dezembro de mil novecentos e noventa e quatro, pelo prazo de seis anos com início em um de Janeiro de mil novecentos e noventa e cinco e termo em trinta e um de Dezembro de dois mil, prorrogável por igual período de tempo se as partes estivessem de acordo.

Que a partir da indicada data termo a cessionária continuou residir no prédio e a explorá-lo sem qualquer título e contra a vontade do cedente.

Que por carta datada de quinze de Setembro de dois mil e cinco que enviou à cessionária em dezasseis de Setembro de dois mil e cinco registada e com aviso de recepção e que a mesma recebeu em dezassete de Setembro de dois mil e cinco, o cedente informou-a, designadamente, de que ela deveria devolver-lhe o prédio improrrogavelmente até ao dia trinta e um de Dezembro de dois mil e cinco.

Que apesar disso a cessionária não devolveu o prédio até esta data.

Que todas as diligências e despesas, extrajudiciais e judiciais necessárias para a desocupação e devolução das partes rústica e urbana do prédio, livres de pessoas, coisas, máquinas e animais, serão da exclusiva responsabilidade do representado do segundo outorgante, sem que daí decorra nenhum direito do mesmo ao respectivo reembolso, qualquer indemnização ou sequer à redução do preço da compra venda.

Que o primeiro outorgante fez nesta data entrega ao segundo outorgante dos originais do contrato de cedência, da carta de notificação da cessionária e do talão de registo da mesma e do respectivo aviso de recepção.

Assim o outorgaram.”.

29. Em 09-02-2006, data da outorga da escritura pública referida em 27. dos factos provados, LL e DD tinham conhecimento que havia sido proposta a presente ação.

30. O Réu, através da escritura pública referida em 27. dos factos provados, procedeu à venda da Herdade da ... num contexto de ansiedade e intranquilidade face às responsabilidades assumidas pelo mesmo supra mencionadas em 11. dos factos provados.

31. No período entre novembro de 2005 e janeiro de 2006 o valor médio do metro quadrado da Herdade da ... correspondia a 1,12€/m2.

32. No período referido em 31., o valor de mercado da Herdade da ..., livre de quaisquer ónus ou encargos, correspondia a € 669.500,00.

33. Em 13-12-2010, no Cartório Notarial de Reguengos de ..., foi outorgada escritura pública, na qual intervieram, na qualidade de “Primeiro”, “Segundo” e “Terceiro” outorgantes, os seguintes:

“PRIMEIRO

CC, NIF ... ... .40, solteiro maior, residente na Rua ..., ..., natural da freguesia de ..., concelho de ..., portadora do bilhete de identidade número ....56 de .../.../2005, emitido pelos SIC de ....

SEGUNDO

a) MM, casado, residente no ..., freguesia de ..., concelho de ..., de onde é natural, portador do bilhete de identidade número .....80 de .../.../2004, emitido pelos SIC de ...;

b) NN, casado, residente na Rua dos ... ..., e natural da freguesia de ...), concelho de ..., portador do bilhete de identidade número .....60 de .../.../2000, emitido pelos SIC de ...; e

c) OO, divorciado, natural da freguesia de ..., concelho de ..., onde reside na Rua ..., portador do bilhete de identidade número ....53 de .../.../2005, emitido pelos SIC de ....

TERCEIRO

PP, NIF ... ... .30, casado com QQ, (NIF ... ... .61) sob o regime da separação de bens, residente na Rua ..., ..., natural da freguesia e concelho do ..., portador do bilhete de identidade número......19 de .../.../2004 emitido pelos SIC de ....”.

34. Do teor da escritura pública referida em 33. dos factos provados consta, de entre o mais, o seguinte:

“Pelo primeiro outorgante foi dito:

PRIMEIRO

Que, com exclusão de outrem, é dono e legítimo possuidor dos seguintes imóveis, sitos na freguesia de ... (...), concelho do ...:

VERBA UM

Prédio misto, denominado "...", com a área total de vinte e três hectares e mil e sessenta e quatro centiares, composto a parte urbana por rés-do-chão e primeiro andar destinado a habitação, com cavalariça, com a área de implantação de cento e quinze vírgula setecentos e vinte e cinco metros quadrados, com uma dependência com sessenta e seis vírgula quatrocentos quarenta e cinco metros quadrados, e parte rústica por cultura arvense, olival, mato, construção rural e logradouro, a confrontar do Norte e Poente com RR, Sul com Fronteira, e Nascente com SS; inscrito na respectiva matriz urbana sob o artigo 804, em nome do justificante e na matriz rústica sob o artigo 7, secção 001, em nome do justificante e GG, com o valor patrimonial respectivamente de e 11.205,00 e € 13.283,60 e o atribuído de vinte e quatro mil quatrocentos e oitenta e oito euros e sessenta cêntimos.

VERBA DOIS

Prédio rústico, denominado "...", com a área de sete mil setecentos e cinquenta metros quadrados, composto por olival, a confrontar do Norte e Poente com RR, Sul com Fronteira, e Nascente com SS, inscrito na matriz rústica sob o artigo 8, secção 001, em nome do justificante, com o valor patrimonial e atribuído de trezentos e setenta e cinco euros e quarenta cêntimos.

SEGUNDO

Que os identificados imóveis não se encontram descritos na Conservatória do Registo Predial do ....

TERCEIRO

Que os mencionados prédios foram adquiridos por ele primeiro outorgante, em dia e mês que não pode precisar do ano de mil novecentos e setenta, por doação verbal de seus pais, FF e GG, residentes que foram em ..., já falecidos.

QUARTO

Que, em virtude disto, não é detentor de qualquer título formal que legitime o domínio dos referidos prédios.

QUINTO

Que, não obstante isso, ele justificante, passou a exercer sem interrupção todos os poderes de facto inerentes ao direito de propriedade, desde a referida aquisição, tendo procedido a obras de conservação, usufruindo de todas as utilidades por eles proporcionadas, colhendo os frutos, pagando sempre as respectivas contribuições ou impostos, com ânimo de quem exercita direito próprio, sendo reconhecido como seu dono por toda a gente, fazendo-o de boa fé, por ignorar lesar direito alheio, pacificamente porque sem violência, contínua e publicamente, à vista e com conhecimento de todos e sem oposição de ninguém, e tudo isto por lapso de tempo superior a vinte anos.

SEXTO

Que, dadas as características de tal posse, adquiriu os citados imóveis por usucapião, título esse que, por sua natureza, não é susceptível de ser comprovado pelos meios normais.

SÉTIMO

Que, para suprir tal título, recorre à presente justificação para fins de primeira inscrição no registo predial.

Declararam os segundos outorgantes:

Que por serem verdadeiras, confirmam plenamente as declarações que antecedem.

Adverti os outorgantes de que incorrem nas penas aplicáveis ao crime de falsas declarações perante oficial público se. dolosamente e em prejuízo de outrem, tiverem prestado ou confirmado declarações falsas.

Declarou ainda o primeiro outorgante:

Que, pelo preço global já recebido de cinquenta mil euros, vende ao terceiro outorgante, PP, os atrás indicados prédios, e ainda os seguintes, também sitos na citada freguesia de ...(...):

VERBA TRÊS

Prédio misto, denominado "...", com a área total de vinte e cinco hectares e sete mil e dezasseis centiares, composto a parte urbana por três divisões que se destinam a cavalariça, cocheira e cabana de bois, com a área de implantação de trezentos e trinta vírgula oitenta metros quadrados, com uma dependência com vinte e três vírgula vinte metros quadrados, e parte rústica por cultura arvense, olival e construção rural, inscrito na respectiva matriz urbana sob o artigo 803, e na matriz rústica sob o artigo 9, secção 001, (anteriormente inscrito sob parte do artigo 6, secção Q), com o valor patrimonial respectivamente de € 18.560,88 e € 12.367,20;

Que este prédio se encontra descrito na Conservatória do Registo Predial do ... sob o número três mil e noventa e sete, a folhas quarenta e nove verso do livro B-dez, definitivamente registado a favor dele primeiro outorgante pela inscrição dois mil setecentos e vinte e oito do livro G oito;

Que sobre o indicado imóvel se encontra registado usufruto a favor de FF e GG, pela inscrição duzentos do livro F um, usufruto esse já extinto, em virtude do falecimento dos usufrutuários.

VERBA QUATRO

Prédio rústico, denominado "...", com a área de cento e cinquenta metros quadrados, composto por cultura arvense, a confrontar do Norte e Poente com RR, Sul com Fronteira, e Nascente com SS, inscrito na matriz rústica sob o artigo 10, secção 001, (anteriormente inscrito sob parte do artigo 6, secção Q), com o valor patrimonial de € 3,40.

Que este prédio foi desanexado do prédio atrás identificado, descrito na dita Conservatória sob o número três mil e noventa e sete, a folhas quarenta e nove verso do livro B-dez, em virtude de se encontrar fisicamente separado do mesmo pela Albufeira ....

Que do indicado preço de cinquenta mil euros, corresponde: catorze mil e oitocentos euros, ao artigo urbano 804; dez mil euros ao artigo 7, secção 001; trezentos euros, ao artigo 8, secção 001; dez mil euros, ao artigo 803; catorze mil e oitocentos euros, ao artigo 9, secção 001, e; cem euros, ao artigo 10, secção 001.

Declarou o terceiro outorgante:

Que aceita este contrato nos termos exarados.”.

35. O valor de transação da Herdade do ... à data da escritura pública referida em 33. dos factos provados ascendia a € 235.590,00, correspondendo o valor do metro quadrado a € 4,75/m2

36. Atualmente, o valor de transação da Herdade do ... corresponde a € 268.000,00.

37. O Réu, através da escritura pública referida em 33. dos factos provados, procedeu à venda da Herdade do ... a fim de assegurar liquidez para proceder ao pagamento das mais valias decorrentes da alienação da Herdade da ....

38. A venda da Herdade da ... deu origem à ação judicial de preferência contra o Réu com o n.º de processo 202/11.4... a qual corre os seus termos no Juízo de Competência Genérica do Redondo.

39. O Réu TT veio a falecer em ...-...-2012.

IV – Fundamentação de direito

1. Lidas e interpretadas as alegações de revista, verifica-se que a recorrente imputa ao Tribunal da Relação a violação do disposto no art. 662.º do CPC por considerar, em síntese, que o Tribunal procedeu a uma leitura pouco cuidada do recurso de apelação e que não realizou uma efectiva reapreciação da matéria de facto por apelo aos meios de prova indicados pela recorrente e disponíveis no processo.

Ora, como se sabe, a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça no âmbito da decisão relativa à matéria de facto visa garantir, essencialmente, o cumprimento das normas de direito probatório material, sendo as decisões da Relação, tomadas a abrigo dos n.ºs 1 e 2, do art. 662.º do CPC, irrecorríveis (cfr. art. 662.º, n.º 4, do CPC).

Contudo, e nas palavras de Abrantes Geraldes (Recursos em Processo Civil, 6.ª ed. Almedina, Coimbra, 2020, pág. 358), “esta delimitação não é totalmente rígida. Com efeito, é admissível recurso de revista quando sejam suscitadas questões relacionadas com o modo como a Relação aplicou as normas de direito adjectivo conexas com a apreciação da impugnação da decisão sobre a matéria de facto, maxime quando seja invocado pelo recorrente o incumprimento de deveres previstos no art. 662º” ou quando se trate de “sindicar a decisão da matéria de facto nas circunstâncias referidas no art. 674º, nº 3, e apreciar criticamente a suficiência ou insuficiência da matéria de facto provada e não provada em conexão com a matéria de direito aplicável, nos termos do art. 682º, nº 3.”.

Tem sido este o entendimento que tem vindo a ser seguido, de forma reiterada e constante por este Supremo Tribunal. Neste sentido, veja-se o acórdão de 03-11-2021 (proc. n.º 4096/18.0T8VFR.P1.S1), disponível em www.dgsi.pt, onde se afirma que “ao STJ permite-se verificar se o uso dos poderes conferidos pelo art. 662º, 1 e 2, do CPC foi exercido dentro da imposição de reapreciar a matéria de facto de acordo com o quadro e os limites configurados pela lei para o exercício de tais poderes (deveres) – não uso ou uso deficiente ou patológico –, que, no essencial e no que respeita ao n.º 1 do art. 662º, resultam da remissão do art. 663º, 2, para o art. 607º, 4 e 5, do CPC”.

Importa, contudo, salientar que o poder de apreciar o cumprimento das regras adjectivas respeitantes à reapreciação da matéria de facto, não se confunde, em caso algum, com a sindicância do percurso probatório percorrido pelo Tribunal da Relação, nem tampouco da consistência da argumentação enunciada pelo tribunal recorrido. De facto, “não cabe ao tribunal de revista intrometer-se na apreciação do mérito da análise probatória realizada nem tão pouco na aferição da sua consistência. (…) ao tribunal de revista não [compete] sindicar o eventual erro desse julgamento nos domínios da apreciação e valoração da prova livre nem da livre e prudente convicção do julgador” (acórdão de 30-11-2021, proc. n.º 212/15.2T8BRG-B.G1.S1, não publicado).

Feitas estas considerações, cumpre apreciar o caso dos autos, sendo de afirmar, desde já, que assiste razão à ora recorrente.

Compulsado o recurso de apelação, verifica-se que a ora recorrente nele impugnou a matéria de facto quanto aos factos provados e não provados. De forma esquemática, sem qualquer pretensão de esgotamento das questões então suscitadas pela apelante, assinale-se que a mesma pugnou pela:

- Alteração do facto n.º 8 provado2, invocando a prova documental constante dos autos (documentos de fls. 692, 698 e 693) e bem assim a prova testemunhal (UU, VV, WW, MM, XX, YY, ZZ);

- Alteração do facto n.º 9 provado, pugnando pelo aditamento da menção aos tratamentos a que foi sujeito o requerido (“É omitida a operação à próstata do requerido e a necessidade de tratamentos ao bócio mergulhante de devido ao Hipertiroidismo, além da fibrilhação auricular e a necessidade de tomar comprimidos de iodo e com possibilidade de intervenção cirúrgica e a aguardar consulta no Hospital ...”);

- Alteração do facto n.º 183 provado, indicando para o efeito os documentos de fls. 689 e 693 e 2128 a 2132;

- Eliminação do facto provado n.º 14, invocando, para o efeito, os testemunhos de AAA, UU, BBB, CCC, DDD, EEE e FFF e ainda a natureza conclusiva do facto;

- Contradição entre os factos n.ºs 20 e 21 provados e os factos não provados d), i), k), m), n), f), u), v), w) e z), pugnando pela transição destes factos não provados para o elenco de factos provados; invocando, para o efeito, prova documental (documento de fls. 509 e 510, 688, 673 a 677, 682 a 694, 2128 a 2132) o depoimento de ZZ, WW, GGG, AAA, UU, YY, DDD, BBB, EEE, HHH, MM e XX;

- Alteração do facto n.º 384, invocando para o efeito o documento de fls. 2153 a 2168 e os depoimentos de ZZ, HHH e MM; neste âmbito, pugnou, ainda, a recorrente por uma nova ponderação da factualidade constante dos pontos U), V), W), X), Y) e Z) por referência à Herdade do ...;

- Eliminação do facto n.º 10, invocando total ausência de prova, invocando, para o efeito, documentos de fls. 2125, 2120, 2141 a 2147 e o depoimento de III;

- Alteração dos factos n.ºs 11 e 12 e al. s) do elenco de factos não provados, com recurso ao teor do ofício de 12-02-2015 (“a informação sobre o montante da dívida paga pelo fiador e aqui R. CC”);

- Contradição entre o ponto s) não provado e o facto n.º 25 provado;

- Contradição entre os factos provados n.ºs 25 e 26 e 30, pugnando pela alteração da redacção do facto n.º 305, com recurso aos extractos de fls. 1997 a 2118 e depoimento de WW;

- Alteração dos factos n.ºs 31 e 32, atenta a sua natureza conclusiva “e para esclarecer se o teor do contrato de cedência cabe na expressão: livre de quaisquer ónus ou encargos, considerando a venda da Herdade em 2019 por € 700.000,00”;

- Transição da al. n) não provada para o elenco de factos provados, invocando, para o efeito, o depoimento de JJJ, UU e documentos de fls. 1247 e 1248;

- Transição das als. a), b), c), d) e) f), g), h), j), k), l), m), n) e y) não provadas para o elenco de factos provados, invocando, para o efeito, os depoimentos de ZZ, UU e GGG.

Em sede de impugnação da matéria de facto a apelante, ora recorrente, analisou a prova produzida, transcrevendo o teor dos depoimentos das diversas testemunhas ouvidas em sede de julgamento, conjugando tais depoimentos, em determinados casos, com a prova documental igualmente produzida nos autos.

Ora, perante esta impugnação da matéria de facto, o Tribunal da Relação deixou escrito que:

“In casu, toda a prova produzida foi analisada, no seu conjunto, de modo crítico e livremente, tenha ou não emanado da parte que devia produzi-la (artigo 413.°, do Código de Processo Civil) tendo como critério fundamental a liberdade da sua apreciação, com grande rigor, ponderação e isenção, por parte do julgador.

Destarte, o recorrente não evidencia quaisquer meios probatórios constitutivos de prova impositiva das decisões pretendidas, o que implica necessariamente a improcedência da impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto.

Mas ainda que assim não fosse dir-se-á claramente que quer os elementos relevados quer os depoimentos evidenciados, não denotam de modo algum declarações infirmativas da convicção adquirida pelo tribunal, aliás a recorrente nem consegue apresentar transcrições demonstrativas da descredibilização dos depoimentos, e depoimentos que muito menos constituem, como exige a norma do artigo 640º, n.º 1, al. b), do CPC, prova determinativa, impositiva da decisão pretendida pela recorrente.

O que a apelante pretende, claramente sem qualquer apoio na prova produzida, é uma decisão diversa sobre os factos assentes e não provados, para assim pugnar pelo vencimento da sua pretensão, o que obviamente não pode lograr alcançar com tal impugnação.

Não há, pois, que alterar a decisão recorrida, quanto à matéria de facto, que após a análise de toda a prova produzida, tão só nos cumpre sufragar, partilhando assim inteiramente da convicção do Tribunal a quo, improcedendo, por isso, o recurso quanto à impugnação da matéria de facto, mantendo-se estabilizada a fixada pela 1ª instância.

Donde, inviabilizada está a alteração da decisão da matéria de facto, nos termos pretendidos pela recorrente, que efetivamente pretendia que seja feito um autêntico segundo julgamento sobre a matéria em discussão, e isso está-lhe vedado.

Impõe-se tão só referir que o facto provado sob o nº 28 mais não é que a reprodução do teor da escritura pública celebrada no Cartório Notarial de ... em 6-2-2006, e inexiste qualquer incumprimento do determinado no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 14-01-2021 no qual foi determinado, tão só que se tivesse em consideração a factualidade alegada no articulado superveniente oferecido em 19/04/2017, o que é manifestamente diverso de considerar tal factualidade provada como parece sugerir a apelante.”.

Da leitura da fundamentação do acórdão recorrido resulta que, com excepção dos segmentos em que se aludiu à convicção do Tribunal da 1.ª instância, o Tribunal da Relação se limitou a recorrer a generalidades e abstrações transponíveis para um sem número de casos indiferenciados.

Considera-se que tal não configura uma efectiva reapreciação da matéria de facto, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 662.º do CPC.

Com efeito, se é certo que não se exige que o Tribunal da Relação percorra, exaustivamente, os elementos de prova indicados pela apelante, menos certo não é que se impõe a ponderação de todas as questões de facto suscitadas, de acordo com os elementos de prova indicados.

Tal reapreciação crítica não se basta com a afirmação de que “quer os elementos relevados quer os depoimentos evidenciados, não denotam de modo algum declarações infirmativas da convicção adquirida pelo tribunal”, até porque a apelante tem a legítima expectativa de que a sua visão sobre a prova seja, de alguma forma, apreciada, ainda que esta visão não venha a ser secundada pelo Tribunal da Relação.

O reforço dos poderes da Relação no tocante à matéria de facto trouxe consigo um dever acrescido de fundamentação, que não se basta com a mera remissão para a sentença da 1.ª instância ou com a afirmação de que a fundamentação de facto se mostra isenta de crítica.

Impõe-se, assim, ao Tribunal da Relação que analise a prova indicada pela apelante, independentemente da sua força probatória, e que, em face desta, proceda à sua reapreciação crítica, não sendo, para tanto, suficiente a afirmação genérica de que a prova indicada não serve para infirmar a conclusão a que chegou a 1.ª instância.

De resto, apenas é possível perceber se, de facto, o Tribunal da Relação formou uma convicção própria e autónoma se este levar a cabo um exercício de ponderação da prova indicada e disponível no processo, reflectindo, deste modo, o percurso traçado para a formação daquela convicção.

Ora, da leitura do acórdão da Relação não se extrai esse percurso, já que o tribunal recorrido não indicou, sequer de forma sucinta, os concretos pontos de facto apreciados, os concretos meios de prova invocados, omitindo, pois, a necessária explicação sobre os motivos pelos quais decidiu em determinado sentido relativamente a cada um dos factos impugnadas pela apelante.

Assinale-se que não foi feita referência a um único meio de prova indicado pela recorrente, não tendo o tribunal recorrido tecido quaisquer considerações sobre as diversas contradições entre os factos suscitadas pela recorrente, o que se impunha em face do objecto do processo e dos interesses em presença.

Considera-se, assim, que o Tribunal da Relação não levou a cabo a apreciação crítica dos meios de prova indicados pela apelante, e, como tal, não formou uma convicção própria e autónoma relativamente à matéria de facto.

É o que basta para considerar verificada a invocada violação do disposto no art. 662.º, n.º 1, do CPC.

V – Decisão

Julga-se o recurso parcialmente procedente, devendo os autos baixar ao Tribunal da Relação, para que este tribunal recorrido se pronuncie, de forma efectiva, sobre a impugnação da matéria de facto.

Isento de custas (cfr. art. 4.º, n.º 2, alínea h), do Regulamento das Custas Processuais)

Lisboa, 4 de Julho de 2024

Maria da Graça Trigo (relatora)

Afonso Henrique

Ana Paula Lobo

_________


1. Relatado pela relatora do presente acórdão.

2. Redacção proposta: “8. Na data referida em 6, o Réu encontrava-se gravemente doente, com uma sepcis, tendo sido internado sucessivamente nos Hospitais de ..., ... e ..., por se apresentar extremamente fragilizado devido a ter andado algaliado por tempo indeterminado e a necessitar de operação à próstata e tratamento ao Hipertiroidismo.”.

3. Alteração proposta: introdução da menção aos locais de internamento; “A redação desta resposta deverá ser alargada para que constem os nomes dos Hospitais onde o R. foi internado e no qual são omitidos os períodos de internamento no Hospital ..., respetivamente em cirurgia e medicina, e o teor das notas de alta (com a operação à próstata e a indicação marcação de consulta de endocrinologia para realização de 1 131 (Hospital ...) que são extremamente importantes para a compreensão do estado de saúde e comportamentos do requerido entre 2005 e 2012.”.

4. Alteração de “...” para “...”; redacção proposta “A venda da Herdade do ... deu origem à ação judicial de preferência contra o Réu com o n.º de processo 202/11.4... a qual corre os seus termos no Juízo de Competência Genérica do Redondo.”.

5. Redacção sugerida: “o Requerido não tinha consciência das consequências da venda de 9 de Fevereiro de 2006”.