Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3037/21.2T8PNF.P1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: EMIDIO SANTOS
Descritores: PODERES DA RELAÇÃO
MATÉRIA DE FACTO
CONTRADIÇÃO
CONTRADIÇÃO INSANÁVEL
ACIDENTE DE VIAÇÃO
RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
PRESSUPOSTOS
BAIXA DO PROCESSO AO TRIBUNAL RECORRIDO
Data do Acordão: 07/04/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: ANULADO O ACÓRDÃO RECORRIDO
Sumário :
I - Ocorrem contradições na decisão sobre a matéria de facto quando o julgador dá como provada matéria incompatível entre si, que não pode ser afirmada ao mesmo tempo, ou ainda quando, em relação ao mesmo facto, o julga simultaneamente provado e não provado.

II – A decisão de julgar provado que a condutora não atentou na presença do trator na via é contraditória com a de julgar provado que ela (condutora) se apercebeu da presença do tractor na via.

Decisão Texto Integral:

Acordam na 2.ª secção cível do Supremo Tribunal de Justiça


AA, residente na Rua da ..., ..., propôs a presente acção declarativa com processo comum pedindo a condenação da ré, Generali Seguros, S.A., com sede na Avenida ..., ..., no pagamento da quantia de 140 580 euros, acrescida de juros legais de mora a partir da citação, bem como o que se liquidar em ampliação do pedido ou execução de sentença relativamente ao previsível agravamento das suas sequelas.

A quantia pedida visa ressarcir os danos patrimoniais e não patrimoniais alegadamente sofridos pelo autor em consequência do acidente de viação ocorrido no dia ... de ... de 2018, na EN ..., ao Km 35,300, na área da freguesia de ..., concelho de P... e no qual foram intervenientes o tractor agrícola de matrícula HR-..-.. conduzido pelo autor, e o veículo automóvel de matrícula ..-CP-.., conduzido por BB. A ré é demandada por garantir, por contrato de seguro, a responsabilidade civil emergente da circulação do veículo automóvel de matrícula ..-CP-.., cuja condutora, segundo a alegação do autor, é a responsável pela ocorrência do acidente.

A ré contestou, pedindo se julgasse improcedente a acção. Na sua defesa, apresentou uma versão dos factos diferente da alegada na petição inicial da qual resultava, segundo ela, que a culpa na produção do acidente foi do autor.

O processo prosseguiu os seus termos e após a realização da audiência final foi proferida sentença que, julgando improcedente a acção, absolveu a ré do pedido.

Apelação

O autor não se conformou com a sentença e interpôs recurso de apelação para o tribunal da Relação do Porto, pedindo se revogasse a decisão recorrida, fosse no que se referia à apreciação da matéria de facto, fosse no que dissesse respeito à solução de direito adotada, substituindo-a por decisão que decidisse em conformidade com o exposto na alegação.

O Tribunal da Relação do Porto, por acórdão proferido em 4-04-2024, julgando parcialmente procedente a apelação, revogou a decisão recorrida e julgou a acção parcialmente provada, condenando a ré a pagar ao autor:

a. A quantia de € 14 794,17 (catorze mil setecentos e noventa e quatro euros e dezassete cêntimos), a título de danos patrimoniais, acrescida de juros de mora contados desde a data de citação e até efetivo pagamento, sendo devidos à taxa legal que em cada momento vigorar, através da portaria prevista no art. 559.º do Cód. Civil.

b. A quantia de € 25.000,00 (vinte e cinco mil euros), a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros contados desde a data da presente decisão (atualizadora) e até efetivo pagamento, sendo os juros devidos à taxa legal que em cada momento vigorar, através da portaria prevista no art. 559.º do Cód. Civil.

Revista:

A ré não se conformou com o acórdão na parte em que a condenou a pagar ao autor as quantias acima referidas e interpôs o presente recurso de revista, pedindo se revogasse a decisão e se confirmasse a sentença proferida em 1.ª instância, absolvendo a recorrente do pedido.

Os fundamentos do recurso expostos nas conclusões foram os seguintes:

1. Fundada nos factos provados, a 1ª instância com base na anterior redacção do facto 11, imputou a culpa exclusiva na produção do acidente ao próprio apelado, condutor do tractor, por circular na via pública, à noite, em local sem iluminação pública, sem quaisquer luzes traseiras, violando, assim, o previsto nos artºs 3.º/2, 11.º, 18.º/2, 23.º/4, 59.º, 60.º, 61.º/1 do Código da Estrada e os artºs 1.º, 3.º, 17.º e 21.º da Portaria 851/94, de 22 de Setembro, e, como tal, os artºs 483.º, 487.º e 570.º do Código Civil, e absolveu, e bem, a recorrente e agora a 2ª instância, imputando a culpa na produção do acidente em partes iguais a ambos os condutores intervenientes no acidente, à condutora do Fiat por alegada violação do art.º 24º do Código da Estrada, condenou a recorrente a pagar parte do pedido. Mas, salvo o devido respeito, mal.

2. O art.º 24.º do CE pressupõe a adequação da velocidade aos riscos normais na condução. Ora, não é um desses riscos um veículo que circule à frente com as luzes apagadas. É antes uma grave negligência e infracção rodoviária do condutor deste último com que nenhum condutor é obrigado a contar.

3. Ao não o reconhecer o tribunal a quo fez, salvo o devido respeito, uma errada aplicação do previsto nos artºs 3.º/2, 11.º, 18.º/2, 23.º/4, 24.º, 59.º, 60.º, 61.º/1 do Código da Estrada e nos artºs 1.º, 3.º, 17.º e 21.º da Portaria 851/94, de 22 de Setembro, e, como tal, nos artºs 483.º, 487.º e 570.º do Código Civil, devendo o seu acórdão ser revogado e substituído por outro que confirme antes a decisão da 1ª instância.

O autor respondeu ao recurso, sustentando a manutenção do acórdão recorrido.


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Síntese das questões suscitadas pelo recurso:

• Saber se o facto, constante do ponto n.º 11, de que a condutora do FIAT conduziu sem atentar na presença do trator sobre a via é contraditório com o facto, constante do ponto 12, quando se apercebeu da presença do trator;

• Saber se o acórdão recorrido, ao decidir que a responsabilidade pelo acidente cabia, na proporção de 50% a cada um dos condutores, violou as disposições legais indicadas pela recorrente.


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O acórdão recorrido considerou provados e não provados os seguintes factos:

Provados:

1. No dia ... de ... de 2018, pelas 17h55, ocorreu um embate na EN ..., ao km 35,300, na área da freguesia de ..., concelho de P..., conforme doc. n.º 1 da PI, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.

2. Nesses dia, hora e local, o autor conduzia o trator agrícola de matrícula HR-..-.. e seguia pela referida EN ..., no sentido A...- P....

3. A referida via, naquele local, descreve uma reta, atento o sobredito sentido de marcha e o seu piso, em alcatrão, estava em ‘estado regular’ de conservação.

4. Ainda nesse local, tratando-se da localidade de ..., a velocidade máxima permitida era de 50 km/hora.

5. Seguia o autor animado de velocidade não superior a 40 km/hora, pela metade direita da faixa de rodagem, atento o seu sentido de marcha.

6. Nessa ocasião, transitava também pela EN ... e no mesmo sentido que levava o autor, ou seja, de A... para P..., pela hemi-faixa de rodagem direita, o veículo automóvel ligeiro de passageiros, de marca Fiat, modelo Punto, de matrícula ..-CP-...

7. Veículo este que pertencia a CC e era conduzido, na ocasião, por BB.

8. O CP levava os médios acesos e circulava a velocidade não superior a 50 Km/h.

9. Na altura do acidente já estava escuro e no local, numa extensão de 100 metros, a iluminação pública não estava acesa e a funcionar.

10. O veículo do autor era um trator Kubota, modelo L185, de 1978, a diesel, com 56.763 km, de matrícula HR-..-.. e na sua traseira não tinha qualquer tipo de luzes de circulação, refletores ou sinalização.

11. Aquele trator e seu atrelado/gamela, no local, por não terem aquelas ditas luzes, não eram visíveis, para quem circulasse num veículo à sua retaguarda, para além do limite da luz irradiada pelo dispositivo de iluminação frontal deste veículo, tendo a condutora do CP [Fiat] embatido com a frente da sua viatura na traseira da gamela/atrelado do trator, sem atentar na presença deste sobre a via.

12. O embate deu-se na referida hemi-faixa de rodagem direita, não conseguindo a condutora do CP, quando se apercebeu da presença do trator, evitar o mesmo ou desviar-se para a hemi-faixa esquerda, porque, por ela, circulava um veículo em sentido contrário.

13. No local do embate apenas ficou, como vestígio do embate, o vidro da óptica do lado direito do veículo Fiat Punto, tendo o trator se imobilizado na berma do lado direito, atento o seu sentido de marcha e o Fiat imobilizou-se na mesma hemi-faixa de rodagem direita, por onde antes circulava.

14. A responsabilidade civil emergente da circulação do veículo ..-CP-.. achava-se transferida para a Generali Seguros, S.A., ora R., através do contrato de seguro titulado pela apólice n.º 0084.10844375, válido e em vigor na data do acidente.

15. Em consequência direta do acidente, o trator que o autor conduzia foi projectado para a frente e acabou por capotar e o autor foi atirado ao solo e acabou por ficar tombado debaixo do trator.

16. O autor foi assistido no local do acidente pelos serviços do INEM, que lhe prestaram os primeiros socorros e o transportaram, imobilizado em plano duro e com colar cervical, ao Hospital ..., em P....

17. Deu entrada nos serviços de urgência do mencionado hospital, politraumatizado e apresentando queixas de dores intensas na coxa e anca esquerdas, múltiplas feridas na cabeça e traumatismo facial, conforme doc. n.º 2 da PI, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.

18. Aí realizou RX dos ossos da perna esquerda e TAC cerebral, maxilofacial e cervical e no RX foi detectada fractura proximal do fémur esquerdo, fratura peri-protésica da anca esquerda B2 Vancouver e o TAC facial revelou hematoma periorbitário e da face esquerda e, ainda, pansinusopatia.

19. As feridas na cabeça foram desinfectadas e suturadas e o autor ficou internado na aludida unidade hospitalar, foi submetido a intervenção cirúrgica, sob anestesia geral, em que foi realizada artroplastia, com colocação de prótese total da anca esquerda e permaneceu internado no Hospital do ... num total de 12 dias.

20. Teve alta para o domicílio, com indicação para passar a ser seguido na consulta externa de ortopedia.

21. Em Fevereiro de 2019 iniciou tratamentos de fisioterapia, também no Hospital ..., num total de cerca de 25 sessões.

22. Em razão do traumatismo facial, o autor sofreu danos em diversas peças dentárias e recorreu à “O......”, em ..., onde foi submetido a tratamentos da especialidade de medicina dentária, conforme docs. n.ºs 3 a 11 da PI, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.

23. Teve de extrair e/ou tratar vários dentes, foi necessário colocar vários implantes e passou a usar prótese dentária, designadamente, extraiu os dentes 1.1, 1.2, 1.3,1.5, 2.1, 2.3, 2.4, 2.5, 2.6, 3.1, 3.2, 3.3, 3.4, 4.1, 4.2 e 4.3 e andou em tratamentos até 25/11/2019, data em que as lesões sofridas pelo autor atingiram a consolidação médico-legal e a fase sequelar.

24. O autor, em resultado das lesões que sofreu no acidente, ficou a padecer das seguintes sequelas: Crânio: cicatriz na pálpebra direita, com 3 cm; cicatriz na pálpebra esquerda, com 1 cm e cicatriz hipertrófica no lábio superior, com 1 cm; Face: provável perda da seguintes peças dentárias na sequência do trauma oral: 11, 12, 13, 15, 21, 23, 24, 25, 26, 31, 32, 33, 34, 41, 42 e 43; Membro inferior esquerdo: cicatriz cirúrgica com 30 cm na face lateral da coxa; amiotrofia de 4 cm na coxa (o diâmetro a 15 cm do polo superior da rótula esquerda é de 36 cm, sendo que o diâmetro na contra-lateral é de 40 cm); sequelas de revisão de artroplastia total da anca esquerda após fratura peri-protésica, com défice de mobilidade, com flexão a 90º e franca diminuição da abdução/adução e rotações; atrofia da perna de cerca de 2 cm (28 cm vs 30 cm); dismetria aparente de membros (1 cm).

25. A data da consolidação médico-legal das lesões é fixável em 25/11/2019. O Período de Défice Funcional Temporário Total é fixável num período de 30 dias; o Período de Défice Funcional Temporário Parcial é fixável num período 349 dias. O Quantum Doloris é fixável no grau 5/7. O Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica é fixável em 13 pontos, implicando esforços acrescidos para a actividade agrícola. O Dano Estético Permanente é fixável no grau 3/7. A Repercussão Permanente nas Atividades Desportivas e de Lazer é fixável no grau 2/7. E a Repercussão permanente na Atividade Sexual não foi valorizada.

26. O autor claudica e tem dificuldade em andar, correr e saltar, em subir e descer escadas e em percorrer pisos inclinados, irregulares ou desnivelados, não consegue pôr-se em bicos de pés, nem colocar-se de joelhos ou de cócoras ou estar muito tempo de pé.

27. Sente dores na anca esquerda, as quais se agravam com os esforços e com as mudanças de tempo.

28. O autor nasceu em .../.../1951, conforme doc. n.º 12 da PI, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.

29. Na altura do acidente, o autor encontrava-se na situação de reformado, mas exercia actividade agrícola em terrenos de cultivo de sua propriedade e para terceiros.

30. O autor cavava, amanhava e cultivava a terra, semeava e plantava batatas, milho e hortaliças, fazia as colheitas, tratava das árvores de fruto, das oliveiras e das vinhas, sulfatando, enxertando, vindimando e vendia parte dos produtos agrícolas que obtinha, tais como vinho e cebolas,

31. e destinava outros produtos ao consumo do seu próprio agregado familiar, evitando os gastos correspondentes à sua aquisição em mercearias e supermercados, o que no seu conjunto equivaleria a um valor pecuniário médio mensal de pelo menos € 250,00.

32. Durante o período de ITA, o autor teve de recorrer a serviços de terceira pessoa, designadamente da sua esposa, para o ajudar na higiene pessoal e nas atividades diárias, o que foi causa de transtorno e perturbação.

33. Anteriormente ao acidente, o autor era uma pessoa activa, embora já fosse portador de artroplastia total da anca esquerda desde o ano de 2014.

34. Com o acidente, o trator sofreu danos, sendo que o seu valor comercial seria de cerca de € 5.000,00.

35. A reparação dos danos sofridos pelo trator, de acordo com vistoria levada a cabo pelos serviços técnicos e de peritagem da própria R. era viável e importava em € 4.627,00, conforme doc. n.º 13 da PI, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.

36. O autor não dispunha de meios económicos que lhe permitissem custear a reparação e a R. recusou fazê-lo, pelo que vendeu o ‘salvado’, pelo valor de € 500,00.

37. Com o acidente despareceu um aparelho auditivo que o autor usava, no valor de cerca de 2.000,00€.

38. Em despesas médicas e medicamentosas (incluindo os tratamentos dentários), o autor gastou a quantia global de € 4.680,00, conforme docs. n.ºs 3 a 11 da PI, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.

Não provados:

a. Que a condutora do CP conduzia-o por conta, no interesse e ao serviço do seu proprietário.

b. Que a condutora do ..-CP-.. ia com velocidade superior a 80 Km/hora, rapidamente se aproximou do tractor conduzido pelo A., que a precedia e apercebeu-se da circulação vagarosa do tractor, à sua frente, quando dele distava mais de 40/50 metros.

c. Que, em lugar de travar, a condutora do ..-CP-.. intentou proceder à ultrapassagem do HR-..-.., para o que guinou para a hemi-faixa à sua esquerda, mas abortou a tentativa de ultrapassagem por vir outro carro em sentido contrário, retomando rapidamente a hemifaixa da direita, mas encontrava-se já muito próxima da traseira do tractor HR-..-.., praticamente “em cima” deste e não dispunha de tempo, nem de espaço que lhe permitissem uma travagem eficaz

d. Que a ré apenas assumiu perante o A. a responsabilidade da condutora do veículo seguro na produção do descrito acidente em 50%, imputando os restantes 50% de responsabilidade ao A.

e. Que o autor toma medicação para as dores e irá necessitar de substituição da prótese da anca.

f. Que o autor carece de frequentar regularmente consultas de ortopedia e medicina dentária e bem assim de tomar regularmente medicação analgésica.

g. Que o autor sente complexos, vergonha e desgosto em relação às cicatrizes e por virtude de coxear.

h. Que em transportes para acorrer a tratamentos despendeu quantia global de € 700,00 e em refeições gastou a quantia global não inferior a € 350,00.


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Resolução das questões:

O presente recurso tem na sua origem a divergência da recorrente em relação à questão da culpa na ocorrência do acidente.

Segundo o acórdão impugnado, o comportamento da condutora do veículo Fiat era ilícito e culposo. Era ilícito no contexto do dever geral de prevenção do perigo com o património e com a pessoa de terceiros. Era culposo por não circular atenta às condições do trânsito e da via à sua frente, designadamente após a luz dos médios irradiar o trator, tornando-o, consequentemente, visível e por não ter adequado a sua velocidade às suas capacidades de atenção e reacção. Imputa-lhe, em consequência, a violação do n.º 1 do artigo 483.º do Código Civil, e dos artigos 11.º, n.º 2 e 24.º, ambos do Código da Estrada.

A recorrente contesta a decisão com a seguinte linha argumentativa:

• O facto constante do artigo 11.º de que a condutora do FIAT conduziu sem atentar na presença do trator sobre a via é contrariado pelo facto constante do 12 quando se apercebeu da presença do trator;

• A condutora do FIAT apercebeu-se, de facto, do tractor à sua frente, quando iluminado pelos faróis daquela viatura;

• A questão é que quando se apercebeu não conseguiu evitar o embate ou desviar-se para a hemi-faixa esquerda, porque, por ela, circulava um veículo em sentido contrário;

• Sendo este o facto relevante para avaliar a culpa daquela condutora que, como se viu, foi inexistente, nada permitindo imputar-lhe qualquer velocidade excessiva, nem, como tal, qualquer violação do artº 24º do CE, tanto mais quanto, tendo ficado provado que o Fiat circulava a velocidade não superior a 50 km/h, velocidade máxima permitida para o local, não ficou provado a que distância é que a condutora daquele viu, ou pôde ver, a concreta gamela do tractor em causa, aonde a frente do Fiat veio a embater;

• O citado art.º 24º do CE pressupõe a adequação da velocidade aos riscos normais na condução. Ora, não é um desses riscos um veículo que circule à frente com as luzes apagadas. É antes uma grave negligência e infracção rodoviária do condutor deste último com que nenhum condutor é obrigado a contar.

Cita em abono da sua posição o acórdão do STJ proferido em 6-02-1996, processo 088034, publicado em www.dgsi.pt.

Ao alegar que o facto, constante do ponto n.º 11 dos factos julgados provados, de que a condutora do FIAT conduziu sem atentar na presença do trator sobre a via é contrariado pelo facto constante do ponto n.º 12, na parte onde afirma que a condutora se apercebeu da presença do trator, a recorrente invoca contradição na decisão sobre a matéria de facto.

Visto que, segundo o n.º 3 do artigo 682.º do CPC, quando ocorrerem contradições na decisão sobre a matéria de facto que inviabilizem a decisão jurídica do pleito, o processo volta ao tribunal recorrido, a primeira questão que importa conhecer é a de saber se se verifica a contradição denunciada pela recorrente e, em caso afirmativo, se inviabiliza a decisão jurídica do pleito.

Para efeitos do preceito acima referido, é de afirmar que ocorrem contradições na decisão sobre a matéria de facto quando:

• O julgador dá como provados factos incompatíveis entre si, que não podem ser afirmados ao mesmo tempo;

• Em relação ao mesmo facto, o tribunal julga-o simultaneamente provado e não provado.

O caso dos autos ajusta-se à 1.ª hipótese de contradição. Com efeito, sob o n.º 11, o tribunal recorrido julgou provado que a condutora do CP (FIAT) embateu com a frente da sua viatura na traseira da gamela/atrelado do trator, sem atentar na presença deste sobre a via. No ponto n.º 12 considerou provado que o embate deu-se na referida hemi-faixa de rodagem direita, não conseguindo a condutora do CP, quando se apercebeu da presença do trator, evitar o mesmo…”

Isto é, num passo da decisão de facto julga-se provado que a condutora não atentou na presença do trator na via; noutro julga-se demonstrado o facto contrário, ou seja, que ela se apercebeu da presença do tractor na via.

Esta contradição inviabiliza a decisão jurídica do pleito. Com efeito, apesar de a recorrente pretender, com o recurso, a revogação do acórdão recorrido em todos os seus segmentos e a substituição dele por decisão que reponha o que foi decidido na 1.ª instância, os fundamentos da revista visam apenas o segmento que, alterando o decidido na 1.ª instância, repartiu a culpa pela ocorrência do acidente pelos condutores nele intervenientes (autor e condutora do veículo seguro na ré), na proporção de 50% para cada um deles.

Ora, para efeitos de culpa, a apreciar segundo a diligência de um bom pai de família em face das circunstâncias do caso (n.º 2 do artigo 487.º do Código Civil), uma coisa é o condutor não se ter apercebido da circulação do tractor, quando o podia e devia ter feito (realidade susceptível de resultar do ponto n.º 11), outra é o condutor ter-se apercebido do tractor, mas não ter conseguido evitar o embate (realidade susceptível de decorrer do ponto n.º 12).

Segue-se do exposto que há fundamento para, ao abrigo do disposto na parte final do nº 3 do art.º 682º do CPC, anular o acórdão recorrido e determinar a remessa dos autos à Relação a fim de eliminar a apontada contradição factual, inviabilizadora da solução jurídica do pleito.

Em consequência fica prejudicado o conhecimento da outra questão suscitada pelo recurso.


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Decisão:

Anula-se o acórdão recorrido e determina-se a remessa dos autos à Relação a fim de eliminar a apontada contradição factual, pelos mesmos juízes que intervieram no primeiro julgamento, se possível.


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Responsabilidade quanto a custas:

Considerando a 1.ª parte do n.º 1 do artigo 527.º do CPC e o n.º 2 do mesmo preceito e o facto de a decisão de anulação do acórdão representar o vencimento tanto da recorrente como do recorrido (aquela pedia a revogação do acórdão e a repristinação da sentença proferida em 1.ª instância, este sustentou a manutenção do acórdão recorrido), custas pela recorrente e pelo recorrido na proporção de metade para cada um.

Lisboa, 4 de Julho de 2024

Relator: Emídio Santos

1.ª Adjunta: Maria da Graça

2.º Adjunto: Afonso Henrique