Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
23/09.4TBSSB.E2.S1
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO
Relator: TIBÉRIO NUNES DA SILVA
Descritores: CASO JULGADO
AUTORIDADE DO CASO JULGADO
PRESTAÇÃO DE CONTAS
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
NULIDADE DE ACÓRDÃO
NULIDADE PROCESSUAL
EXCESSO DE PRONÚNCIA
FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
PODERES DA RELAÇÃO
Data do Acordão: 02/17/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I. A nulidade decorrente de excesso de pronúncia, nos casos em que não haja previsão legal de conhecimento ex officio, verifica-se quando a sentença (ou acórdão) conheça de questão que nenhuma das partes tenha submetido à apreciação do juiz, o que não acontece quando se aprecie a impugnação da decisão da matéria de facto suscitada em recurso.

II. Ainda que se chegue à conclusão de que tal impugnação devia ter sido rejeitada, tendo a Relação dela conhecido, o vício não é o da nulidade por excesso de pronúncia, mas de desrespeito pelas regras processuais que impõem a rejeição, nos termos do art. 640º do CPC.

III. Se é certo que a adequada interpretação do art. 640º, nº 1, b), do CPC, leva a que se exija que a indicação dos meios de prova seja feita de tal modo que permita ao Tribunal da Relação, para o cabal exercício dos poderes que lhe são conferidos pelo art. 662º do CPC, estabelecer  a ponte entre os concretos meios de prova e os factos impugnados, considera-se que deve fazer-se, sobre essa exigência, uma ponderação caso a caso, não sendo de rejeitar uma impugnação, ainda que em bloco, da decisão da matéria de facto numa situação em que os factos impugnados sejam poucos e estejam ligados entre si, de modo  que não haja obstáculo a que se faça a dita associação entre factos impugnados e meios de prova.

IV. A nulidade prevista no art. 615º, nº 1, b), do CPC respeita à falta de fundamentação da sentença ou do acórdão, que, para se verificar, tem de ser absoluta, e não se aplica ao problema da fundamentação da decisão da impugnação da matéria de facto, não cabendo ao tribunal de revista avaliar da sua eventual inconsistência, pois entrar-se-ia na questão de mérito, cuja apreciação lhe está vedada.

V. O Supremo Tribunal de Justiça apenas poderá verificar se não foram observados os limites traçados por lei para o exercício dos poderes que são conferidos à Relação pelo art. 662º, nºs 1 e 2, do CPC, mas não sindicar eventuais erros de julgamento, quando esteja em causa a valoração de prova livre ou o exercício da livre convicção do julgador.

VI. O processo de prestação de contas compreende duas fases: uma primeira fase na qual se definem as questões essenciais no que tange à existência, inexistência ou configuração da obrigação de prestar de contas e uma segunda fase que tem uma natureza eminentemente “executiva”, esta condicionada pela consolidação do que se decidiu naquela.

VII. Não pode a decisão de prestação de contas, tomada na primeira fase, deixar de ser enquadrada, com reflexos na fase seguinte, pelos fundamentos constantes da sentença, designadamente, como no caso, os emergentes de uma impugnação da decisão da matéria de facto apreciada pela Relação e confirmada pelo Supremo, com relevantes alterações introduzidas, conducentes a que uma decisão da 1ª Instância no sentido de não haver contas a prestar fosse revogada e substituída por outra a ordenar a prestação de contas.

VIII. É ineficaz uma decisão contraditória com outra que primeiro tenha passado em julgado, relativamente à mesma pretensão, na parte em que tal se verifique.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


I

AA veio, na qualidade de procuradora de BB e sendo, após o óbito deste, habilitada como sua sucessora, intentar acção especial de prestação de contas contra CC, alegando que:

Em 15 de Julho de 2008, BB outorgou procuração à A., conferindo "poderes precisos, para, com livre geral administração civil, reger e gerir conforme melhor entender todos os bens do mandante”.

 Posteriormente, em 07 de Outubro de 2008, o mesmo BB outorgou à A.  nova procuração, através da qual concedeu, entre o mais, poderes à A "para em seu nome revogar quaisquer procurações existentes e mandatadas pelo outorgante, bem como notificar em nome do mesmo quaisquer interessados, requerendo praticando e assinando tudo o que for necessário aos referidos bens, bem como exigir prestações de contas aos anteriores procuradores”.

Sucede que a A. teve conhecimento, através de BB, de que este tinha outorgado, em momento anterior, 12 de Junho de 2007, procuração com poderes genéricos à Ré CC.

Com tal procuração, BB conferiu à Ré “os poderes necessários para, com livre e geral administração civil, reger e gerir todos os bens dele outorgante, podendo dar ou aceitar quitações e assim receber quaisquer  importâncias em dinheiro, valores ou rendimentos, certos ou eventuais, vencidos ou vincendos, que pertençam ou venham a pertencer ao outorgante por qualquer via ou título, passando recibos e dando quitações; depositar e levantar capitais em bancos, casas bancárias e outros estabelecimentos de crédito, incluindo a Caixa Geral de Depósitos e o Montepio Geral, assinando recibos ou cheques”.

Encontrando-se a Ré, através dessa procuração, a reger e gerir todos os bens de BB, no período compreendido entre 12 de Junho de 2007 até à data da entrada da presente acção, pretende a A. que aquela lhe preste contas de tal administração.

Concluiu, pedindo que a R. fosse citada para a apresentar as contas relativas ao período compreendido entre 12 de Junho de 2007 e a data da proposição da acção.

A R. apresentou contestação.

Deduziu os incidentes de intervenção provocada de BB, de falta de mandato judicial por parte do Sr. Advogado subscritor da petição inicial e de falsidade dos documentos juntos com a petição inicial com os n°s 1 e 2, bem como as excepções de incompetência relativa do Tribunal onde a acção fora proposta e de ilegitimidade de AA para a propositura da acção.

Alegou, ainda, ter prestado contas a BB relativamente ao montante recebido a título de indemnização em que fora lesada a sua mulher, tendo tal quantitativo sido destinado ao pagamento de despesas do processo e o remanescente entregue, por vontade do mesmo, manifestada através de carta de 06/11/2008, a DD, mãe da Ré, que lhe havia emprestado dinheiro.

Concluiu dever ser absolvida do pedido.

O A. respondeu, defendendo a improcedência dos incidentes e excepções deduzidos na contestação e suscitando o incidente de falsidade da carta datada de 06/11/2008, que constitui o documento n.° 5 junto com a contestação.

Por despacho de 28-04-2010, foi determinado que os autos passassem a seguir os termos subsequentes como processo comum, sob a forma ordinária.

Por despacho de 24-01-2011, foi indeferido o incidente de intervenção provocada de BB, por ser parte no processo, e, na mesma data, proferido despacho saneador, no qual, entre o mais, se julgou improcedente a excepção de ilegitimidade.

Seleccionou-se matéria assente e elaborou-se base instrutória.

Em 21-05-2014, foi proferida sentença de habilitação da A. como sucessora de BB.

Teve lugar audiência de julgamento e foi proferida sentença, em 12-01-2016, na qual se julgou a acção improcedente.

Inconformada, a A. interpôs recurso para o Tribunal da Relação ....

Foi proferido acórdão, em 12-10-2016, nele se decidindo alterar a matéria de facto e julgar procedente o recurso, nos seguintes termos:

“Destarte, concede-se provimento ao recurso, revoga-se a decisão recorrida e decide-se que a Ré está obrigada a prestar contas da actividade que prestou no uso da procuração outorgada por BB em 12.06.2007, devendo ser notificada, na primeira instância, para as prestar, no prazo que ali lhe for determinado.”

A Ré interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, sendo proferido acórdão, em 25-05-2017, que julgou improcedente tal recurso.

Após a descida dos autos, foi, em 29-06-2017, proferido despacho a notificar a Ré para prestar contas da actividade que levou a cabo no uso da procuração outorgada por BB em 12-6-2007.

A R. veio apresentar contas, em 31-08-2017, com saldo €0,00 (zero euros).

A A., em 02-10-2017, contestou as contas, arguindo a excepção de caso julgado, e deduziu ampliação do pedido, “com a consequente condenação da ré nos juros moratórios vencidos até presente data, que se computam em eur: 365,69, e vincendos na pendência dos autos até integral e efetivo pagamento”.

Alegou, além do mais, que:

«2º

Todos os fatos essenciais alegados na presente prestação de contas já vieram a ser considerados como não provados pelo Tribunal da Relação ..., nomeadamente, os pontos “14 – A Ré, em 6.11.2008, falou com BB sobre o destino que ia dar aos € 50.000,00 (cinquenta mil euros); e “15 – Tendo este então assinado, em 6.11.2008, o documento constante de fls. 44 dos autos.” (atual Doc. nº 4 junto com a prestação de contas).

Toda esta matéria fatual, já anteriormente objeto de decisão transita em julgado, de forma amplamente fundamentada, criteriosa e ponderada, analisando criticamente a prova, alicerçada nos depoimentos das várias testemunhas (onde se incluem as agora arroladas com a prestação de contas), dos documentos constantes nos autos, de acordo com princípio da livre apreciação da prova e das regras da experiência comum.

Com a presente prestação de contas, o que pretende a Ré, é de novo vir submeter a mesma matéria fatual, já transitada em julgado, tentando obter uma pretensão diferente da que lhe foi desfavorável.»

Respondeu a R. em 16-10-2017.

Tendo sido marcada audiência prévia, foi, nesta, em 31-01-2018, relativamente à invocada excepção de caso julgado, proferido despacho do seguinte teor:

“A Autora, notificada das contas prestadas pela Ré, veio invocar a exceção de caso julgado, alegando, em síntese, que aquela mantém os argumentos já apreciados anteriormente nas várias instâncias, tendo já sido dados por não provados (por decisão transitada em julgado) os factos referidos nos pontos 14) e 15) da sentença recorrida, razão pela qual não pode vir de novo submeter a mesma matéria factual a nova apreciação deste Juízo.

A Ré veio responder à exceção deduzida, o que fez nos termos e com os fundamentos constantes do articulado de fls. 818 e ss, que aqui se dão por integralmente reproduzidos.

Cumpre decidir.

Do disposto nos artigos 580.º e 581.º do NCPC resulta que existe caso julgado quando se verifica a repetição de uma causa quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir, estando a causa anterior já decidida por decisão transitada em julgado.

No caso dos autos, é manifesto que o que agora se discute não se confunde com a matéria discutida na sentença já proferida, na medida em que ali estava apenas em causa apreciar se a Ré devia ou não prestar contas e, nessa medida, se já o havia feito perante BB, enquanto que agora o que se pretende é o apuramento e aprovação das receitas obtidas pela Ré e das despesas realizadas pela mesma enquanto administradora de bens alheios e a sua eventual condenação no pagamento do saldo que venha a apurar-se.

Ou seja, o efeito jurídico agora visado não é o mesmo que havia sido objeto da sentença já proferida.

Acresce que agora haverá que atender, para efeitos de decisão, aos factos dados por provados mas, para além destes, também a todos aqueles considerados relevantes para efeitos de apuramento e aprovação das receitas e despesas obtidas pela Ré, mantendo esta o que havia afirmado quanto ao destino dado às quantias que administrou, razão pela qual tal matéria terá necessariamente de ser objeto de prova, não tendo sido apreciada na decisão anteriormente proferida.

É, pois, certo que não se verifica a exceção de caso julgado invocada pela Autora, exceção esta que, por isso, se julga improcedente.”

Na mesma audiência prévia, não foi admitida a ampliação do pedido formulada pela A..

Foi proferido despacho saneador, definiu-se o objecto de litígio e elencaram-se temas de prova.

Admitiu-se o exame pericial, que havia sido requerido pela R., na peça em que apresentou as contas, no que concerne à autoria da assinatura aposta na carta de 06-11-2008.

Foi proferida sentença, em 28-10-2019, que decidiu julgar aprovadas as contas apresentadas pela Ré, declarando inexistir qualquer saldo a pagar à A. habilitada.

Interposto recurso pela A., foi prolatado acórdão na Relação ..., no qual se decidiu alterar a matéria de facto e conceder provimento ao recurso, revogando-se a decisão recorrida e condenando-se a R. a pagar à A. a quantia de € 36.659,50.

Inconformada, a R. recorreu para este Supremo Tribunal, concluindo as suas alegações pela seguinte forma:

«A) Decorre do disposto nos artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1 e 2, do CPC que o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo o tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (vide Ac. Do TRC de 03/06/2014, proferido no processo 17456/12.9YIPRT.C1)

B) Basta ler as alegações e conclusões do recurso da ora Recorrida AA para facilmente se concluir que:

    1) a impugnação da matéria de facto não é claramente feita facto a facto, mas em bloco para os 4 factos impugnados [5), 6), 9) e 10)] e de forma genérica e vaga, quando é certo que estes quatro factos dizem respeito a várias questões distintas:

(a) Facto 5 – respeita à ajuda que a mãe da Ré, DD, que sempre foi tratada como filha de BB e EE, prestou ao casal;

(b)  Facto 6 – respeita à razão que motivou a Ré a ser mandatada por BB para o representar na questão da indemnização contra a seguradora e ao destino que pretendia dar ao dinheiro que viesse a ser auferido e inerentes obrigações e o que motivou BB a assim decidir;

(c) Facto 9 – respeita à entrega pela R. a DD do montante resultante da diferença entre a indemnização auferida (facto provado 7) e as despesas com o processo (facto provado 8), em cumprimento das instruções recebidas;

(d) Facto 10 – montante concreto entregue pela R. a DD, a que título e a obrigação a que esta ficou sujeita.

      2) os meios de prova indicados – declarações de parte da Autora e depoimentos das testemunhas FF e GG – são, consequentemente, também eles apresentados em conjunto, quando o que a lei impõe e é que, para cada um dos factos, se indique o meio de prova que justifica resposta diferente.

C) Acresce que, ao impugnar em bloco os factos e, além do mais, de forma genérica para o conjunto de factos impugnados, nem sequer é feita qualquer referência ainda que vaga, no decorrer da alegação e das conclusões, a vários dos factos insertos no conjunto de factos impugnados, como seja, por exemplo: (a) a relação de afectividade existente entre DD e BB e sua mulher EE, nomeadamente quanto ao facto de DD ser tratada como filha afectiva do casal, por ter sido criada por esta EE desde criança, após a morte trágica dos seus pais; (b) as motivações que levaram BB a mandatar a Ré para o representar na questão da indemnização contra a seguradora; (c) a efectiva entrega do dinheiro pela Ré a DD.

D) Ou seja, a Autora impugna em bloco os factos 5), 6), 9) e 10), indica em bloco vários depoimentos, sem especificar que factos os mesmos pretendem contraditar, e ainda por cima, quanto a muitos dos factos constantes dos factos impugnados não apresenta qualquer argumento para contraditá-los, não obstante pedir, também em bloco, a sua exclusão da matéria provada???!!!... 

E) Conclui-se, assim, que a ora Recorrida, no recurso que interpôs não cumpriu os ónus impostos pelo n.º 1 e 2 do artigo 640.º do CPC, pelo que não podia o Tribunal da Relação dele conhecer, impondo-se a sua rejeição na parte referente á impugnação da matéria de facto.

F) Ora, não tendo o recurso interposto pela ora recorrida AA sido liminarmente rejeitado, na parte em que aí alegadamente se pretendeu impugnar a matéria de facto dada como provada pela 1ª instância, foi ostensivamente violada a lei de processo, mais concretamente os artigos 640.º, n.º 1, alíneas a) e b) e 2 do CPC, pelo que, conhecendo o tribunal recorrido dessa matéria que lhe estava vedada cometeu uma nulidade, inquinando o douto acórdão recorrido em nulidade por excesso de pronúncia, nos termos do artigo 615.º, alínea d), 2ª parte, do CPC, NULIDADE que aqui desde já se invoca.

G) Devem, por conseguinte, manter-se na matéria provada todos os factos dados como provados pela 1.ª instância, nomeadamente os factos 5, 6, 9 e 10. 

H) E não se diga, como parece resultar do acórdão recorrido, que, neste caso, as regras de experiência comum se sobrepõem à próprio lei, como se tivesse sido DD, mãe da Ré, que tivesse caído de pára-quedas no final da vida de BB, quando este se encontrava debilitado e internado no Lar.

I) Quem caiu apareceu de rompante NO FINAL DA VIDA de BB, após a morte da sua mulher, quando este se encontrava internado no Lar e bastante debilitado, FOI A AUTORA, que teve o descaramento de justificar tão tardio aparecimento, nas suas declarações de parte, por lhe terem dito NO ANO ANTERIOR que o seu avô tinha morrido?????!!!... 

J) PELO CONTRÁRIO, DD, mãe da R., esteve presente na vida de BB desde que este casou com EE (1978) e na vida desta desde sempre (1948), sendo tratada como a FILHA ÚNICA DO CASAL.

K) Ainda que assim não se entendesse, sempre se teria de concluir que o Tribunal recorrido não exerceu, como devia ter exercido, os poderes que lhe são conferidos pelo artigo 662.º do CPC, violando ainda normas que se integram no Direito probatório material.

L) PRIMEIRO, o acórdão recorrido, em violação do caso julgado material formado em 1.ª instância, apela curiosamente ao instituto do caso julgado material, para que a segunda parte do ponto 6 e os pontos 9 e 10 da matéria provada em 1.ª instância sejam dados como não provados.

M) Como foi, de resto, constatado pelo acórdão recorrido a Autora, ora Recorrida, invocou tal excepção de violação de caso julgado, que veio a ser indeferida por despacho proferido em sede de Audiência prévia, conformando-se a mesma com tal indeferimento, não interpondo recurso da decisão do tribunal de 1.ª instância, pelo que, ainda que houvesse qualquer violação do caso julgado (que não houve), não poderia a mesma ser reapreciada pelo acórdão da Relação, sob pena, agora sim, de incorrer o mesmo em violação do caso julgado material formado com aquele indeferimento.

N) Recorde-se que o que estava em discussão anteriormente, na primeira fase do processo, era apurar se a Ré deveria ou não apresentar contas e se, nessa medida, as mesmas já estavam prestadas perante BB.

O) Na segunda fase do processo, na qual nos encontramos, o que se discute é o apuramento e aprovação das receitas obtidas e das despesas realizadas e a sua eventual condenação no saldo apurado.

P) Acresce que a matéria constante dos pontos 6 (2.ªparte), 9 e 10 não se confunde com os factos 14. e 15. que constavam da matéria provada da primeira Sentença de 1.ª instância e que, em recurso, vieram a ser dados como não provados, pelo Tribunal da Relação .... 

Q) Ora, o acórdão recorrido, ao socorrer-se (DE FORMA ENVIESADA) do instituto do caso julgado para justificar a impossibilidade de manter na matéria provada a segunda parte do ponto 6 e os pontos 9 e 10, apelando, várias vezes, ao decidido no seu anterior acórdão, VIOLA, DE FORMA OSTENSIVA, isso sim, o despacho proferido pelo tribunal da 1.ª instância na audiência prévia de 31/01/2018, e, consequentemente, o caso julgado material formado com aquela decisão.

R) Pelo que o decidido na primeira parte do processo quanto à assinatura ou não do documento de fls. 44/786 não podia ter servido, como serviu, de fundamento, nem de justificação para a procedência da impugnação da matéria de facto, com a consequente eliminação dos factos 5, 9 e 10 e alteração do facto 6 da matéria provada, uma vez que tal viola o caso julgado material formado no referido despacho do tribunal de 1ª instância de 31/01/2018.

S) Acresce que o tribunal recorrido, SEM QUALQUER JUSTIFICAÇÃO OU EXPLICAÇÃO para que tal eliminação tivesse ocorrido (como, aliás, a Autora, no seu recurso já tinha feito), decidiu eliminar na sua totalidade os factos 5, 9 e 10 e alterar o facto 6, despojando os mesmos de toda e qualquer menção: (a) à relação de afectividade existente entre DD e BB e EE; (b) às razões que motivaram BB a mandatar a Ré; (c) à efectiva entrega do dinheiro pela Ré a DD.

T) Tudo em violação do artigo 607.º, n.º 4 e 5, do CPC, uma vez que se OMITE CLARAMENTE a fundamentação e a análise crítica das provas no tocante aos referidos factos que constavam dos factos 5, 6, 9 e 10 da matéria provada da Sentença da 1.ª Instância, ocorrendo, DE FORMA CLARA E OSTENSIVA, uma transposição dos limites legalmente estabelecidos à livre apreciação das provas.

U) Ora, SE PROVA ALGUMA SE FEZ EM CONTRÁRIO DO QUE FOI DADO COMO PROVADO PELO TRIBUNAL DE 1.ª INSTÂNCIA - a melhor prova disso é a total e completa omissão de fundamentação da Relação relativamente aos vários factos eliminados/alterados pela Relação -, não poderia a Relação reapreciar a decisão sobre a matéria de facto, nos termos em que o fez, sem que com isso violasse a lei de processo, como violou.

V) Além do mais, A ABSOLUTA FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO no acórdão recorrido quanto àqueles factos que constavam na matéria de facto e que, INACREDITAVELMENTE, foram dela eliminados sem a mais pequena explicação, faz incorrer o acórdão recorrido em nulidade nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea b) do NCPC, nulidade que aqui desde já se invoca.

W) E esta omissão, QUE NÃO PODERÁ DEIXAR DE SER PROPOSITADA, só pode ter uma finalidade: viciar o processo de formação de convicção do tribunal Recorrido, ao retirar-lhe uma premissa fundamental e essencial ao vencimento da tese da Ré, ora Recorrente.

X) Com efeito, omitindo-se a relação de afectividade entre DD e BB e sua mulher EE e a forma como a mesma foi e era tratada pelo casal em vida destes (COMO SUA FILHA AFECTIVA E ÚNICA FILHA), bem como as razões pelas quais BB mandatou a Ré para tratar da questão da indemnização e a efectiva entrega do dinheiro a DD, está aberta a porta para dar vencimento à tese da Autora.

Y) Na verdade, omitindo-se tais premissas, todo o raciocínio, presunções e conclusões extraídas pelo acórdão recorrido não podem deixar de estar viciados e errados.

Z) Além disso, o tribunal recorrido faz tábua rasa de todas as contradições evidenciados pela Autora ora Recorrida, ao longo do processo (nos seus articulados e depoimentos), atacando sem razão a formação da convicção do tribunal de 1.ª instância (o que estava e sempre esteve em melhores condições de avaliar a prova produzida, atento o princípio da imediação), nomeadamente quanto à questão das razões que motivaram a Ré a negar a prestação de depoimento antecipado pelo BB, apesar de ter sido a própria em julgamento, nesta segunda fase do processo, a admitir que BB, seu avô, sempre esteve bom da cabeça, que não estava maluquinho e que se o contrário resulta dos autos era porque era mais favorável aos seus intentos:

Ficheiro áudio 20190523160209_35062_2871432)

00:17:58 AUTORA: Oiça, eu podia ter levado pela segunda vez a prestar esses depoimentos, porque é que não o fiz? Se calhar é como a advogada... como a juíza do Barreiro diz, que era melhor nós dizermos que sim, que ele estava maluquinho. Mas não estava maluquinho. 

AA) Alega o tribunal recorrido que ouviu a prova produzida, e que o tribunal de 1.ª instância parte de uma “petição de princípio, a de que era injustificada a oposição da A. à prestação de depoimento pelo BB, QUANDO É A PRÓPRIA AUTORA que admitiu em julgamento (BASTA OUVIR O SEU DEPOIMENTO!) que o avô não estava “maluquinho” e referiu que inclusivamente nunca impediu o avô de depor nos autos, pelo que a única conclusão possível é a de que a mesma, por intermédio dos seu mandatário, MENTIU DELIBERADAMENTE quando fundamentou a sua oposição ao depoimento antecipado de BB. 

BB) Portanto, de várias petições de princípio parte o tribunal recorrido, IGNORANDO AS DECLARAÇÕES DA AUTORA e o que a mesma afirmou em julgamento e que CONTRARIAM todo o raciocínio do tribunal recorrido.

CC) Por outro lado, não se pode aceitar que o tribunal recorrido se SOCORRA DE ARGUMENTOS FALSOS E OMITA FACTOS QUE NINGUÉM QUESTIONOU E QUE TODOS ACEITAM (nem a Recorrente tão pouco os questionou em sede de recurso - relação de afectividade entre CC e BB e EE, motivação para o mandato da Ré e efectiva entrega do valor da indemnização a DD), para concluir como concluiu.

DD) Com efeito, ao contrário da conclusão precipitada do acórdão recorrido, o que consta do documento de fls 44/786 e o que foi dado como provado pelo tribunal da 1.ª instância e declarado pelas testemunhas, era que a quantia de €30.000,00, de empréstimo, ocorreu EM VIDA DA FALECIDA MULHER DE BB, EE (que nunca trabalhou na vida, nem teve profissão), ou seja, ANTES de BB sequer entrar no Lar.

EE) Quanto à alegação de que EE auferiria uma reforma adequada ao seu sustento, DESCONHECE-SE em que bases e factos e depoimentos tal afirmação é sustentada, porquanto nenhuma prova se fez a este respeito????!!!!....

FF) Ou seja, o tribunal recorrido AO SOCORRER-SE DE FACTOS INEXISTENTES PARA SUPORTAR O SEU RACIOCÍNIO, fez um mau uso dos seus poderes de cognição da matéria de facto, viciando o seu raciocínio e as conclusões extraídas.

GG) Por outro lado, por que razão omite o tribunal recorrido toda e qualquer referência à relação de afectividade existente entre BB e a sua esposa EE e DD a quem a indemnização por ele foi destinada e a quem BB JÁ TINHA OUTORGADO TESTAMENTO (BB outorgou testamento a DD e NÃO à Autora)?

HH) Se o tribunal recorrido tivesse analisado esta questão (que não analisou), não podia deixar de constatar, pela prova produzida:

(a) da relação de afectividade entre BB e a sua mulher EE e DD, tratada por ambos como SUA FILHA AFECTIVA E ÚNICA;

(b) da ausência TOTAL de relação afectiva entre BB e a sua filha biológica, de quem esteve sempre de relações cortadas desde o falecimento da sua primeira mulher;

(c) da quase ausente relação afectiva entre a Autora e BB, que só surgiu na vida do avô APÓS A MORTE de EE, para, como resulta claro a quem olhe de forma objectiva para o processo, dela colher benefícios monetários;

(d) do facto da indemnização ser decorrente da morte acidental de EE, a “mãe afectiva” de DD, desde os 10 anos de idade desta.

(e) de que DD foi beneficiária do testamento de BB e EE, dos únicos bens que eles tinham (houve uma outra sobrinha de EE que também foi contemplada, mas em muito menor medida).

   II) E tendo por base todas estas premissas, o que é crível e decorre das regras da experiência comum é que BB quisesse (O CONTRÁRIO É QUE SERIA ESTRANHO) que a indemnização que lhe adveio por morte de EE se destinasse À SUA FILHA AFECTIVA, DD, além do mais, já beneficiária no testamento de EE e de BB.

JJ) Ou seja, o mau uso dos poderes conferidos ao Tribunal da Relação de reapreciação da matéria de facto, inquinaram todo o raciocínio e convicção expendidos no acórdão recorrido, comprometendo as presunções estabelecidas e as regras da experiência comum aplicadas aos factos.

KK) Finalmente, tendo presente as premissas supra, analisando as conclusões do relatório pericial e conjugando-o com os demais documentos assinados pelo BB, o que o tribunal recorrido constataria era que BB, ao contrário do afirmado pela testemunha HH, tinha a capacidade de assinar documentos, tanto que assinou PELO SEU PUNHO todos os documentos que lhe foram apresentados pela Ré e pela PSP.

LL) Aliás, os únicos documentos que não assinou pelo seu punho, curiosamente, foram as procurações a pedido e a favor da Ré, de 15/07/2008 e de 7/10/2008, nas quais se encontram apostas ALEGADAMENTE (uma vez que o relatório pericial de fls.356 a 357 nem sequer conclui ser de BB as dedadas apostas nas procurações e termo de autenticação a favor da Autora) a sua dedada….

MM) Com efeito, desde que ingressou no Lar, no Verão de 2006, assinou, sem que nenhuma parte o contestasse, pelo seu punho: (a) em 12/06/2007, no Lar, a procuração de fls. 37 e 38 a favor da R., na presença de uma notária; (b) em 13/05/2009, também no Lar, a Notificação de fls. 493 a 495, na presença de elementos da PSP. 

NN) E isto sem contar, naturalmente, com a carta de fls.44/786, que o mesmo assinou em 06/11/2008, ou seja, entre estas duas assinaturas que a Autora não contestou.

OO) Sendo certo que o relatório pericial, apesar de todas as dificuldades com que se deparou na realização da perícia, a verdade é que não deixou de concluir que “a escrita da assinatura contestada de BB…pode ter sido produzida pelo seu punho”, tendo em conta as diversas semelhanças entre as assinaturas genuínas de BB e a aposta na carta de fls 786, nomeadamente quanto ao grau de evolução, à fluência e velocidade de escrita, grau de inclinação, ao espaçamento, ao tipo de conexão, à dimensão relativa de escrita e ao grau de angulosidade e curvatura decorrente do tipo  de escrita, existindo ainda semelhanças na forma e génese do desenho das letras.

PP) Tinha, por conseguinte, a Relação de concluir pela genuinidade da assinatura constante de tal documento e, consequentemente, do texto do documento no qual se contém a declaração, pelo que, sendo contrários aos interesses da A., o facto considera-se plenamente provado, dado que aquela genuinidade do documento transforma o documento em confessório e a confissão foi feita à contraparte (artigos 374. n.º 1 e 2 e 376, n.º 1 e 2, do CC).

QQ) Face ao exposto, conclui-se que o tribunal recorrido não poderia ter alterado a matéria de facto provada, impondo-se a manutenção dos factos provados 5, 6, 9 e 10, tal qual foram dados como provados na 1.ª Instância.

RR) Consequentemente, mantendo-se inalterada a decisão da matéria de facto tal como constava na Sentença de 1.ª instância, dúvidas não existem de que a Ré, que foi mandatada por BB para tratar dos assuntos relacionados com a indemnização decorrente do acidente e viação que vitimou a sua mulher EE e do qual resultou o pagamento de uma indemnização no valor de €50.000, executou o mandato que lhe foi conferido de forma exemplar, efectuando as despesas que apresentou nos presentes autos, no valor correspondente à quantia titulada pelo cheque, no exercício do mandato e no estrito cumprimento do mesmo.

SS) Inexistindo, por conseguinte, qualquer dúvida de que as contas prestadas se apresentam comprovadas e de que inexiste saldo a favor da Autora, como muito bem foi decidido na Sentença recorrida, não merecendo, por conseguinte, qualquer censura a mesma.

TT) Decidindo, como decidiu, violaram os Exmos. Juízes Desembargadores, designadamente, o disposto nos artigos 374.º, n.º 1 e 2, 376.º n.º 1 e 2, e 573.º do CC e 607.º, n.º 4 e 5, 615.º, n.º 1- al. b) e d), 2.ª parte, 640º, n.º 1 e 2, e 662.º do CPC. 

 

NESTES TERMOS, e porque só assim se fará justiça, deve ser dado provimento ao recurso e, consequentemente, ser revogado o acórdão recorrido, mantendo-se o decidido na Sentença de 1.ª Instância.»

Contra-alegou a A., pugnando pela manutenção da decisão recorrida.

O Tribunal da Relação, em conferência, considerou não enfermar o acórdão das apontadas nulidades.


*

Sendo o objecto dos recursos definido pelas conclusões de quem recorre, para além do que for de conhecimento oficioso, há que, neste caso, apurar se o acórdão recorrido enferma das nulidades arguidas, se devia ter sido rejeitada a impugnação da decisão da matéria de facto feita na apelação interposta pela A./ora Recorrida e se não podia o Tribunal da Relação, por violação do caso julgado e por inobservância das regras atinentes à reapreciação da matéria de facto, alterar, como alterou, a factualidade que constava da sentença, revogando-a, em consequência dessa alteração.


II

II.1.

Na 1ª Instância tinha sido considerada provada a seguinte matéria de facto:

«1) EE foi vítima de um acidente de viação.

2) EE era casada, à data da sua morte, com BB.

3) Do casamento referido em 2) antecedente não houve filhos.

4) A mãe da ré, DD, foi criada por EE.

5) Enquanto viveu, EE e o seu marido, BB, socorreram-se, por diversas vezes, da ajuda de DD, que sempre foi tratada como a única filha do casal.

6) Como EE faleceu sem filhos do casamento, BB mandatou a ré para o representar no pedido de indemnização contra a seguradora, ficando esta com a obrigação de, caso conseguisse alguma indemnização, a entregar na sua totalidade a DD após o pagamento das despesas com o processo, não só para pagamento das quantias que esta lhes tinha abonado em vida da falecida esposa, no montante total de € 30.000,00, mas também por ser a sua filha "afetiva", impondo-lhe apenas a obrigação de efetuar a trasladação do corpo da falecida para ... para a campa da sua irmã.

7) No dia 6 de novembro de 2008, por transação extrajudicial, a seguradora pagou à ré, por cheque, a quantia de € 50.000,00.

8) Dessa quantia, a ré pagou à advogada a quantia de € 13.340,50 (€ 12.600,00 + €740,50), a título de honorários e outros encargos com o processo.

9) O restante foi entregue pela ré a DD no cumprimento das instruções recebidas de BB.

10) A ré entregou a DD a quantia de €36.659,50, sendo € 30.000,00 para pagamento das quantias que esta tinha abonado em vida da sua tia, à mesma e a BB, e a quantia de €6.659,50, como donativo, com a obrigação de efetuar a trasladação do corpo da falecida para ... para a campa da sua irmã.»

II.2.

No acórdão recorrido, foram dados por provados os seguintes factos:

«1 - EE foi vítima de um acidente de viação.

2 - EE era casada, à data da sua morte, com BB.

3 - Do casamento referido em 2) antecedente não houve filhos.

4 - A mãe da ré, DD, foi criada por EE.

5 - (eliminado).

6 - BB mandatou a Ré para o representar no pedido de indemnização contra a seguradora.

7 - No dia 6 de Novembro de 2008, por transacção extrajudicial, a seguradora pagou à Ré, por cheque, a quantia de € 50.000,00.

8 - Dessa quantia, a Ré pagou à advogada a quantia de € 13.340,50 (€ 12.600,00 + €740,50), a título de honorários e outros encargos com o processo.

9 - (eliminado).

10 - (eliminado).»


III

III.1.

A Recorrente defende que o Tribunal da Relação devia ter rejeitado a impugnação da decisão da matéria de facto deduzida na apelação interposta pela Autora/Recorrida.

Refere que a impugnação não foi feita facto a facto, mas em bloco, para os 4 factos impugnados – 5), 6), 9) e 10) –, e de forma genérica e vaga, quando é certo que estes quatro factos dizem respeito a várias questões distintas.

Acrescenta que a A. nem sequer fez qualquer referência, no decorrer da alegação e das conclusões, a vários dos factos insertos no conjunto de factos impugnados, como sucede com (a) a relação de afectividade existente entre DD e BB e sua mulher EE, nomeadamente quanto ao facto de DD ser tratada como filha afectiva do casal, por ter sido criada por esta EE desde criança, após a morte trágica dos seus pais; (b) as motivações que levaram BB a mandatar a Ré para o representar na questão da indemnização contra a seguradora; (c) a efectiva entrega do dinheiro pela Ré a DD.

Conclui que a A., no recurso que interpôs e que foi apreciado no acórdão recorrido, não cumpriu os ónus impostos pelos n.ºs 1 e 2 do artigo 640.º do CPC, pelo que não podia o Tribunal da Relação dele conhecer na parte referente à impugnação da matéria de facto.

Vejamos.

Dispõe o art. 640º, nºs 1 e 2, do CPC:

«1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:

a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;

b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.»

Fazendo referência aos nºs 1 e 2 do art. 640º, a Recorrente concentra a sua crítica na questão da impugnação em bloco dos quatro factos visados e na forma genérica e vaga como essa impugnação é feita e entende que tal configura um excesso de pronúncia, nos termos do art. 615º, al. d), do CPC, por parte do Tribunal a quo.

O Tribunal recorrido apreciou, em conferência, essa arguição, referindo o seguinte:

«A arguição de nulidade utilizada pelo Recorrente está relacionada com a obrigação de fundamentação imposta pelos arts. 154.º, 607.º n.ºs 3 e 4 e 663.º n.º 2 do Código de Processo Civil, devendo o Acórdão constituir um silogismo lógico-jurídico, em que a decisão deverá ser a conclusão lógica da norma legal (premissa maior) com os factos (premissa menor), não ocorrendo essa nulidade se o julgador errou na subsunção que fez dos factos à norma jurídica aplicável, ou se errou na indagação de tal norma ou da sua interpretação.

Ponderando, ainda, que o tribunal é livre de interpretar os factos e de aderir a determinada corrente jurisprudencial ou doutrinária, fundamentando a sua decisão, não ocorre a nulidade arguida – o Acórdão verificou se estavam reunidos os requisitos legais da impugnação da matéria de facto e, tendo obtido uma resposta positiva fundamentada, procedeu à análise do recurso nessa parte.

A parte pode discordar dessa solução, mas certo é que o Acórdão analisou uma questão que estava expressamente colocada na apelação, pelo que não incorreu na arguida nulidade por excesso de pronúncia.»

Considera-se que o Tribunal da Relação fez a adequada apreciação da situação, no que tange ao preenchimento da nulidade.

Dispõe o art. 608º, nº 2, do CPC:

«O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.»

A nulidade decorrente de excesso de pronúncia, como ensinava José Alberto dos Reis (no Código de Processo Civil Anotado, Vol. V, Coimbra Editora, 1952, p. 144), verifica-se quando a sentença (ou acórdão) conheça de questão que nenhuma das partes tenha submetido à apreciação do juiz, não existindo se, apesar de as partes não a terem levantado, o juiz tinha, por lei, o poder ou o dever de dela conhecer ex officio.

Ora, neste caso, o Tribunal a quo apreciou a impugnação da decisão da matéria de facto suscitada pela Recorrente nas suas alegações. Não houve, por isso, na medida em que tratou de questão colocada pela Recorrente, excesso de pronúncia. O que pode haver é uma incorrecta aplicação do direito adjectivo, por não se ter rejeitado a impugnação, dado esta não preencher algum dos requisitos previstos no art. 640º que a tanto podem conduzir. Mas, então, estar-se-á perante um erro de direito e não diante da invocada nulidade.

Abrantes Geraldes faz, na obra Recursos em Processo Civil, 6ª edição, 2020, pp. 199-200, a síntese dos casos em que deve ocorrer a rejeição, total ou parcial, do recurso, no capítulo da impugnação da decisão da matéria de facto:

 «a) Falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto (arts. 635º, nº 4, e 641º, nº 2, al. b)).(…)

b) Falta de especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados (art. 640.°, n.° 1, al. a)).(…)

c) Falta de especificação, na motivação, dos concretos meios probatórios cons­tantes do processo ou nele registados (y.g. documentos, relatórios periciais, registo escrito, etc.). (…)

d) Falta de indicação exata, na motivação, das passagens da gravação em que o recorrente se funda. (…)

e) Falta de posição expressa, na motivação, sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação.»

Depois de chamar a atenção para a necessidade da adopção de um critério de rigor na apreciação das exigências legais, decorrência do princípio da auto-responsabilidade das partes, impedindo que a impugnação «se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo», refere que «importa que não se exponenciem os requisitos formais a um ponto que seja violado o princípio da proporcionalidade e seja denegada a reapreciação da decisão da matéria de facto com invocação de fundamentos que não encontrem sustentação clara na letra ou no espírito do legislador», alertando para que se evite um excesso de formalismo que redunde na recusa, não razoável, da apreciação do mérito da impugnação (pp. 200-205).

As críticas que a Recorrente faz ao modo como foi feita a impugnação já as havia apresentado nas contra-alegações da apelação, o que mereceu a seguinte apreciação do Tribunal a quo:

«Argumenta a Ré que não se deverá admitir a impugnação deduzida pela A., pois esta “analisa os factos em bloco, não os individualizando, nem indicando os meios probatórios para cada um dos factos que permitam ao tribunal decidir diferentemente do que foi decidido em primeira instância.”

No entanto, como já se decidiu no Supremo Tribunal de Justiça[1], se os Recorrentes «indicaram (no) recurso, para além dos pontos de facto que no seu entender mereceriam resposta diversa, como também quais os elementos de prova que no seu entendimento levariam à alteração proposta, tendo inclusivamente feito transcrever as declarações do Autor, da Ré e das testemunhas, deram cabal cumprimento ao preceituado no artigo 640.º, n.º 1, als. a) e b) do CPCivil.»

Ora, tais indicações estão realizadas no recurso da A., especificando os concretos pontos de facto que se consideram incorrectamente julgados, bem como os concretos meios probatórios que, na sua opinião, impõem decisão diversa, e ainda a decisão que, no seu entender, deve ser proferida acerca das questões de facto impugnadas. Existe a necessária individualização da matéria de facto impugnada, havendo a notar, de resto, que parte da matéria impugnada está conexionada: os pontos 9 e 10 não são mais que o desenvolvimento da matéria já contida na segunda parte do ponto 6, sendo este, por seu turno, fundado na alegada “ajuda” prestada pela DD à EE e ao BB, que consta do ponto 5.

Note-se que a matéria do ponto 5 não é mais que a justificação para a entrega do valor remanescente contida na segunda parte do ponto 6, e este é, por seu turno, o fundamento da matéria contida nos pontos 9 e 10 – estes não sobrevivem sem aquele ponto 6.

Ponderando que se mostram reunidos os pressupostos exigidos pelo art. 640.º n.º 1 do Código de Processo Civil para a apreciação da impugnação fáctica, e ainda que este ónus a cargo do recorrente “não pode ser exponenciado a um nível tal que praticamente determine a reprodução, ainda que sintética, nas conclusões do recurso, de tudo quanto a esse respeito já tenha sido alegado; nem o cumprimento desse ónus pode redundar na adopção de entendimentos formais do processo por parte dos Tribunais da Relação e, que, na prática, se traduzem na recusa de reapreciação da matéria de facto, maxime da audição dos depoimentos prestados em audiência, coarctando à parte recorrente o direito de ver apreciada e, quiçá, modificada a decisão da matéria de facto, com a eventual alteração da subsunção jurídica”[2],

A Recorrente cita, em abono da sua posição, o Ac. do STJ de 05-09-2018, Proc. 15787/15.8T8PRT.P1.S2, Rel. Gonçalves Rocha, publicado em www.dgsi.pt, cujo sumário é o do seguinte teor:

«I - A alínea b), do nº 1, do art. 640º do CPC, ao exigir que o recorrente especifique os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão diversa sobre os pontos da matéria de facto impugnados, exige que esta concretização seja feita relativamente a cada um daqueles factos e com indicação dos respectivos meios de prova, documental e/ou testemunhal e das passagens de cada um dos depoimentos.

II - Não cumpre aquele ónus o apelante que, nas alegações e nas conclusões, divide a matéria de facto impugnada em vários blocos de factos e indica os meios de prova relativamente a cada um desses blocos, mas omitindo-os relativamente a cada um dos concretos factos cuja decisão impugna.»

No caso aí tratado, em que o Tribunal da Relação rejeitou (ao contrário do que aqui sucede) a impugnação da decisão da matéria de facto, a indicação dos meios de prova foi feita por referência a blocos de factos, sob amplas designações como “aos factos que deveriam ter sido considerados provados e que foram considerados não provados na sentença (…) respeitantes, em síntese, à COMPOSIÇÃO DA RETRIBUIÇÃO DO RECORRENTE”. O método utilizado não permitiu ao Tribunal da Relação a necessária associação dos concretos meios de prova aos concretos factos.

Concordando-se com a interpretação do art. 640º, nº 1, b), de que deve a indicação dos meios de prova permitir ao Tribunal da Relação, para o cabal exercício dos poderes que lhe são conferidos pelo art. 662º do CPC, estabelecer  a ponte entre os concretos meios de prova e os factos impugnados, considera-se também que deve fazer-se uma ponderação caso a caso, não sendo de rejeitar uma impugnação da decisão da matéria de facto numa situação em que os factos impugnados sejam poucos e estejam ligados entre si, de modo  que não haja obstáculo a que se faça a dita associação entre factos impugnados e meios de prova.

Neste sentido, veja-se o Ac. do STJ de 19-05-2021, Proc. 4925/17.6T8OAZ.P1.S1, Rel. Chambel Mourisco, publicado em www,dgsi.pt:

«II. Quando o conjunto de factos impugnados se refere à mesma realidade e os concretos meios de prova indicados pelo recorrente sejam comuns a esses factos, a impugnação dos mesmos em bloco não obstaculiza a perceção da matéria que se pretende impugnar, pelo que deve ser admitida a impugnação.»

Os pontos impugnados apresentavam-se, na sentença, com o seguinte teor:

«5) Enquanto viveu, EE e o seu marido, BB, socorreram-se, por diversas vezes, da ajuda de DD, que sempre foi tratada como a única filha do casal.

6) Como EE faleceu sem filhos do casamento, BB mandatou a ré para o representar no pedido de indemnização contra a seguradora, ficando esta com a obrigação de, caso conseguisse alguma indemnização, a entregar na sua totalidade a DD após o pagamento das despesas com o processo, não só para pagamento das quantias que esta lhes tinha abonado em vida da falecida esposa, no montante total de € 30.000,00, mas também por ser a sua filha "afetiva", impondo-lhe apenas a obrigação de efetuar a trasladação do corpo da falecida para ... para a campa da sua irmã.

(…)

9) O restante foi entregue pela ré a DD no cumprimento das instruções recebidas de BB.

10) A ré entregou a DD a quantia de €36.659,50, sendo € 30.000,00 para pagamento das quantias que esta tinha abonado em vida da sua tia, à mesma e a BB, e a quantia de €6.659,50, como donativo, com a obrigação de efetuar a trasladação do corpo da falecida para ... para a campa da sua irmã.»

Concorda-se com a análise feita pelo Tribunal da Relação no que concerne à conexão entre os pontos em apreço. Na verdade, os pontos 9 e 10 são o desenvolvimento da matéria contida na segunda parte do ponto 6 e, como instrumental, desta surge o ponto 5, no qual se faz menção, de uma forma que se tem, aliás, por conclusiva, a terem-se DD à EE e ao BB socorrido da “ajuda” de DD.

Diga-se que estes factos foram alegados aquando da apresentação das contas pela R. (requerimento de 31-08-2017), já depois de ter sido decidido pelo Tribunal da Relação (acórdão de 20-10-2016) e confirmado pelo Supremo Tribunal de Justiça (acórdão de 25-05-2017) que a R. a isso estava obrigada relativamente à actividade que prestou no uso da procuração outorgada por BB em 12.06.2007.

Analisando o acórdão recorrido, verifica-se que a Relação não encontrou, no exercício dos poderes que lhe são concedidos pelo art. 662º do CPC, obstáculo ao conhecimento da impugnação da decisão da matéria de facto, pelas razões explicitadas logo no começo dessa apreciação (veja-se a passagem acima citada).

Não pode deixar de assinalar-se que as críticas de excesso de formalismo sucedem, normalmente, em situações em que a Relação rejeita a impugnação da decisão da matéria de facto, não podendo, em campo contrário, qualquer análise ser indiferente à circunstância de o Tribunal que tem competência para a reapreciação da matéria de facto, nos termos do art. 662º, nºs 1 e 2 do CPC, considerar que estão reunidas as condições para a fazer, passando, em seguida, à ponderação dos elementos probatórios pertinentes, incluindo, como no caso, a audição da prova gravada, de modo a formar a sua própria convicção e decidir em conformidade.

Verifica-se, por outro lado, lendo as contra-alegações da R. ao recurso de apelação, que esta não deixou de responder, desenvolvidamente, à impugnação apresentada.

III.2.

O Tribunal a quo, na apreciação da impugnação da matéria de facto, abordou, de início, relativamente à segunda parte do ponto 6 aos pontos 9 e 10, a questão da verificação de caso julgado relativamente a essa matéria, referindo o seguinte:

«Preliminarmente, observar-se-á que parte desta matéria – a segunda parte do ponto 6, e os pontos 9 e 10 – coincide com aquela que foi apreciada pelo Acórdão desta Relação ... de 20.10.2016, anteriormente proferido nestes autos, decidindo que inexistia prova do BB ter pretendido entregar ou doar o remanescente da indemnização à DD, ou sequer que este tivesse subscrito o documento que se encontra nos autos a fs. 44 e, agora, também a fs. 786, alegadamente datado de 06.11.2008. E daí que esta Relação tenha julgado que a Ré estava obrigada a prestar contas, porquanto os factos indicavam que existia saldo da indemnização recebida, tendo esta decisão sido confirmada pelo Supremo Tribunal de Justiça, em sede de revista interposta pela Ré.  Apesar disso, a sentença recorrida volta a reafirmar que o BB entregou o mencionado valor à DD, partindo igualmente da premissa de que este assinou o documento datado de 06.11.2008. E termina com uma declaração de saldo zero, sustentada em argumentação substancialmente idêntica àquela que já sido desenvolvida na sentença de 12.01.2016, apesar desta ter sido revogada pelo Acórdão desta Relação de 20.10.2016 e pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25.05.2017. 

Deverá recordar-se que o instituto do caso julgado material deve ser encarado quer na perspectiva da excepção de caso julgado, quer na perspectiva da autoridade do caso julgado. 

Quanto à excepção de caso julgado, a primeira instância julgou-a improcedente, e dessa decisão não foi interposto recurso, devendo assim ser respeitada. 

Mas não deixaremos de lembrar, agora sob a perspectiva da autoridade do caso julgado, que o prestígio das instituições judiciárias, reportado à coerência das decisões que os Tribunais proferem, o princípio da economia processual e o objectivo de estabilidade e certeza das relações jurídicas, exigem que se reconheça a eficácia do caso julgado à decisão daquelas questões preliminares que forem antecedente lógico indispensável do julgado. 

De resto, o Supremo Tribunal de Justiça vem adoptando um critério moderador do rígido princípio restritivo dos limites objectivos do caso julgado, entendendo que a eficácia do caso julgado da sentença não se estende a todos os motivos da mesma, mas abrange as questões preliminares que constituíram as premissas necessárias e indispensáveis à prolação da parte injuntiva, contanto que se verifiquem os outros pressupostos do caso julgado material, abrangendo, pois, todas as excepções aí suscitadas por imperativo legal e conexas com o direito a que se refere a pretensão do autor, solução que permite evitar a incoerência dos julgamentos, respeita os princípios da justiça e da estabilidade das relações jurídicas, propicia a economia processual e corresponde ao alcance do caso julgado contido no art. 621.º do Código de Processo Civil.

Ora, a sentença recorrida ignora – salvo o devido respeito – aquela que foi a decisão das instâncias superiores quanto à alegada instrução do BB para entrega da quantia de € 36.659,50 à DD, parte como donativo, e outra parte como pagamento de quantias alegadamente abonadas por esta.

Está em causa não apenas o prestígio das instituições judiciárias, mas igualmente a coerência das suas decisões, sendo indubitável que o juízo formulado por esta Relação ... e pelo Supremo Tribunal de Justiça quanto à inexistência de prova daquela instrução foi o antecedente lógico indispensável do julgado.  Concorda-se, pois, com a Recorrente, quanto afirma que estes factos “já mereceram o escrutínio do Tribunal da Relação ..., do Supremo Tribunal de Justiça (…), onde todas essas questões foram objecto de análise pormenorizada”, pelo que não poderiam ser dados, de novo, como provados – conclusões 9.ª e 56.ª»

Entendeu, assim, o Tribunal da Relação que a matéria que consta da segunda parte do ponto 6 e dos pontos 9 e 10 coincide com aquela que foi apreciada pelo acórdão da mesma Relação de 20-10-2016, proferido nos presentes autos, aí se tendo decidido que inexistia prova de que BB tenha pretendido entregar ou doar o remanescente da aludida indemnização a DD, ou sequer que tivesse subscrito o documento datado de 06-11-2008. E daí ter a Relação julgado que a Ré estava obrigada a prestar contas, porquanto os factos indicavam que existia saldo da indemnização recebida, tendo esta decisão sido confirmada pelo Supremo Tribunal de Justiça, em sede de revista interposta pela Ré.

Vejamos.

Na sentença proferida em 12-01-2016, deu-se como provado, entre o mais, que (com destaque nosso, a negrito):

«8 – Em 6.11.2008, a Ré recebeu da Companhia de Seguros Mapfre € 50.000,00 (cinquenta mil euros) devidos a BB e referentes a uma indemnização civil resultante da ocorrência do acidente de viação que vitimou a sua esposa.

9 – Em 6.11.2008, a ré visitou BB no lar.

10 – BB é avô de AA e a sua falecida esposa – EE – é tia da mãe da ré, DD.

11 – Em 15.7.2008 BB apôs a sua impressão digital no documento intitulado “Procuração” referido em 2).

12 – No dia referido em 11), BB apôs ainda a sua impressão digital no “Termo de Autenticação” mencionado em 3).

13 – Em 7.10.2008, BB apôs a sua impressão digital no documento intitulado “Procuração” referido em 4).

14 – A Ré, em 6.11.2008, falou com BB sobre o destino que ia dar aos € 50.000,00 (cinquenta mil euros).

15 – Tendo este então assinado, em 6.11.2008, o documento constante de fls. 44 dos autos

Concluiu-se, nessa sentença, que:

«(…) da matéria provada resulta já que a Ré, em cumprimento daquela sua obrigação, prestou contas ao falecido Autor em data anterior à da propositura dos presentes autos, concretamente em 6.11.2008, tendo-o informado do recebimento da indemnização a que aquele tinha direito por morte da esposa, à qual o mesmo deu destino em documento assinado na mesma data, constando ainda dos factos provados que, por acordo com a prima, a Ré apenas “passou a tratar das questões relacionadas com o acidente de viação do qual resultou a morte da esposa de BB”, nada mais havendo para prestar contas, facto este pacífico para ambas as partes.

Ora, se assim é, isto é, se já foi cumprida tal obrigação relativamente à administração de que a Ré foi incumbida, tanto basta, sem necessidade de demais reflexões, para concluir que nenhuma razão subjaz ao Autor e ao seu pedido, uma vez que já lhe foram prestadas as contas visadas com a presente acção e que o mesmo deu destino à quantia a que tinha direito, nenhum saldo existindo a seu favor.»

Teve-se, pois, por adquirido, na sentença, que BB deu, através do documento datado de 06-11-2008, destino ao aludido montante de €50.000,00, recebido a título de indemnização, determinando (conforme consta desse documento) que uma parte seria para despesas do processo e realização da trasladação aí referida e o remanescente ficaria para DD, pagando-se esta da quantia de €30.000,00, que - dizia-se - tinha  sido emprestada, entre 1986 e 2006, ao dito BB e mulher.

Concluiu-se, em consequência, não haver contas a prestar.

Tendo sido interposto recurso pela A., na qual esta impugnou a matéria constante dos pontos 14 e 15, foi proferido acórdão pela Relação ..., em 20-10-2016, que decidiu julgar procedente a impugnação da matéria de facto, declarando não provados os factos constantes dos pontos 14 e 15 da decisão recorrida e, dando-se provimento ao recurso, ordenou-se que a R. prestasse contas.

A R. recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça, sendo proferido acórdão, em 25-05-2017, que confirmou o acórdão recorrido, depois de se concluir que este não desrespeitou a disciplina processual na decisão de alteração da matéria de facto, considerando-se, a dado passo, que:

«Como a Recorrente, para além de um genérico desrespeito pelos limites dos poderes da Relação, invoca especificamente a violação de determinadas normas processuais, o que, no seu entender, terá ferido de nulidade a decisão, passemos, sem seguida, a apreciar tais sub-questões:

- A alegada nulidade processual por não se ter oficiosamente mandado produzir prova complementar, nomeadamente prova pericial, à assinatura do documento de fls. 44;

- A alegada nulidade do acórdão recorrido (ao abrigo do art. 615°, n° 1, alínea b), do CPC) por falta de fundamentação da decisão de dar como não provado o facto 14.

As nulidades da sentença encontram-se previstas exclusivamente no art. 615° do CPC, pelo que, quanto à primeira sub-questão, não se poderia invocar nulidade mas apenas alegada violação de norma processual (art. 662°, n° 2, do CPC). Em todo o caso, não se encontrava a Relação obrigada a requerer prova pericial da assinatura do documento de fls. 44, na medida em que entendeu que as dúvidas existentes podiam ser esclarecidas com recurso à prova testemunhal; também a decisão da 1a instância apontou a existência de dúvidas, bastando-se com a prova testemunhal, para concluir em sentido inverso. Além disso, compulsados os autos, não consta que a prova pericial tenha sido requerida por qualquer das partes.

Quanto à alegada nulidade do acórdão recorrido (ao abrigo do art 615°, n° 1, alínea b), do CPC) por falta de fundamentação da decisão de dar como não provado o facto 14, esclareça-se que esse regime legal não respeita à fundamentação da decisão relativa à matéria de facto, mas sim à fundamentação da sentença ou do acórdão.

Ora, aquilo que, também aqui, a Recorrente pretende, é que se afirme o desrespeito pelas normas legais que regulam a alteração da decisão relativa à matéria de facto pela Relação. Neste particular, a suficiência ou insuficiência de fundamentação da decisão da matéria de facto pela Relação não está sujeita à sindicância do Supremo Tribunal de Justiça. Com efeito, este Tribunal não dispõe dos poderes que a lei atribui à Relação nos termos das diversas alíneas do art. 662°, n° 2, do CPC.

Conhecer da alegada insuficiência da fundamentação da decisão que alterou a matéria de facto implicaria afinal ajuizar da bondade dessa alteração, o que se encontra vedado a este Supremo Tribunal.

Conclui-se que o acórdão recorrido não desrespeitou a disciplina processual na decisão de alteração da matéria de facto.»

E, relativamente à questão da existência ou não de prestação de contas, expendeu-se o seguinte:

«Nas conclusões recursórias aduzem-se apenas dois argumentos contra a existência da obrigação de prestação de contas: (i) Por um lado, não ter sido feita prova de que a quantia de € 50.000, que a R. recebeu da seguradora a título de indemnização devida ao falecido BB, tenha sido recebida enquanto procuradora deste último; (ii) Por outro lado, que dos actos de gestão previstos na procuração, a R. só praticou precisamente o acto de recepção da dita indemnização.

Vejamos.

As instâncias deram como assente que a R. obteve da seguradora o pagamento da indemnização devida ao falecido BB pelo facto de aquela ter exibido os poderes representativos, conferidos pela procuração dos autos. Esta presunção judicial não é censurável, de tal forma seria inverosímil que, de outra forma, a seguradora tivesse entregue à R. a quantia indemnizatória.

Não procede também o segundo argumento. Não se trata de a R. prestar contas de outros actos pelos quais pudesse ter recebido quantias pecuniárias destinadas ao falecido BB. Trata-se sim de que, tendo sido dado como provado, por acordo, que a R. recebeu da seguradora a quantia de € 50.000, a título de indemnização devida ao falecido BB, possam vir a ser deduzidas desta quantia despesas devidamente comprovadas que a R. alegou ter realizado em favor do mesmo BB.

Conclui-se assim que a R. se encontra obrigada a prestar contas à A., na qualidade de herdeira habilitada de BB, e que, tendo a Relação dado como provado que essa obrigação não foi cumprida, a mesma subsiste.»

Como se vê, foi mantida (por se concluir não ter o Tribunal da Relação infringido as regras processuais aplicáveis) a decisão de não provado no que se refere a ter BB assinado o documento datado de 16-11-2008 e, portanto, de ter, através dele, determinado o destino dos €50.000,00, designadamente quanto ao remanescente das despesas e que tal remanescente fosse, além do mais, para pagar a DD €30.000,00, por empréstimos àquele e a sua mulher.

Com a conclusão do Supremo Tribunal de Justiça de que o Tribunal da Relação não desrespeitou qualquer norma processual no que concerne à decisão da alteração da matéria de facto, a “resposta” negativa atinente à matéria em apreço ficou consolidada no processo, tendo como consequência que, ao contrário do que decidira a 1ª Instância (que se apoiara numa “resposta” positiva  à mesma matéria),  se determinasse que havia contas a prestar, admitindo-se, na parte final do acórdão do STJ que «tendo sido dado como provado, por acordo, que a R. recebeu da seguradora a quantia de € 50.000, a título de indemnização devida ao falecido BB, possam vir a ser deduzidas desta quantia despesas devidamente comprovadas que a R. alegou ter realizado em favor do mesmo BB.

Ficou, assim, delimitado o alcance da prestação de contas, tendo por referência o dito montante de €50.000,00, com a possibilidade de dedução de despesas realizadas pela Ré em favor de BB, o que, salvo o devido respeito, não se confunde com o dito destino do remanescente a favor de DD (que resultou não provado).

Quando os autos desceram à 1ª Instância, para se entrar na fase da prestação de contas, conforme o decidido, não se poderia reanimar a discussão sobre tal matéria. No entanto, foi isso que sucedeu, ordenando-se, designadamente, uma perícia para se apurar se o documento datado de 16-11-2008 fora assinado por BB, quando já estava dado por não provado que tal tivesse acontecido.

Veio a dar-se por provado na nova sentença proferida o que consta dos pontos 6, 2ª parte, 9 e 10, entendendo a Relação que tal representa ofensa do caso julgado.

A Recorrente defende que foi o acórdão da Relação que violou o caso julgado, pois a 1ª Instância indeferiu a arguição, a esse propósito, feito pela A., conforme despacho prolatado em 31-01-2018 (transcrito supra), sem que tenha havido recurso desta decisão.

Refere a Recorrente que o que estava em discussão anteriormente era se a R. deveria ou não prestar contas e se, nessa medida, já o tinha feito. Além disso, observa que a matéria constante dos pontos 6 (2.ª parte), 9 e 10 não se confunde com os factos 14. e 15. que constavam da matéria provada da primeira sentença de 1.ª instância e que, em recurso, vieram a ser dados como não provados, pelo Tribunal da Relação .... 

Salvo o devido respeito, não lhe assiste razão. É verdade que estava, na primeira fase do processo, em discussão saber se a R. deveria prestar contas, mas a decisão que foi tomada teve como base a factualidade referida. A 1ª Instância, porque deu por provado que BB tivesse assinado o dito documento datado de 16-11-2008 e com ele traçado o destino da quantia de €50.000,00, com o que sobrasse das despesas a ser entregue a DD, considerou não haver contas a prestar. A Relação, porque considerou não provada tal matéria, decidiu em sentido contrário, com a confirmação do Supremo, nos termos já acima definidos. Ou seja, os factos em causa foram determinantes, num sentido ou noutro, para se concluir se havia (ou não) que prestar contas. Daí que não se deva ter em atenção apenas a decisão de prestação de contas, desgarrada dos fundamentos em que assentou e que foram objecto de apreciação e decisão pela Relação, nos presentes autos, na sequência de impugnação da matéria de facto. De outro modo, inutilizar-se-ia a decisão do Tribunal da Relação relativamente à fixação da mencionada factualidade, que, ademais, foi mantida pelo Supremo Tribunal, questionada que foi, pela R., através do recurso que interpôs, a observância das regras processuais.

A factualidade vertida na segunda sentença e dada por não provada pela Relação, embora com formulação não coincidente em termos literais, acaba por ser a mesma, afirmando-se que a R. entregou a DD o identificado montante, no cumprimento das instruções recebidas de BB, o que a R., não se olvide, estribou no documento de 16-11-2008, tendo o Tribunal a quo reacendido a discussão (já anteriormente havida, com resultado negativo) sobre se BB assinara o documento, concluindo, agora, pela positiva (ou seja, ao contrário do que fora a decisão do Tribunal da Relação).

Transitada em julgado, uma decisão que incida sobre o mérito da causa (na medida do que decida) tem força obrigatória, desde logo, dentro do processo (art. 619º, nº1, do CPC).

Conforme se exarou no Ac. do STJ de 26-04-2012, Proc. 289/10.7TBPTB.G1.S1, Rel. Maria dos Prazeres Pizarro Beleza,  publicado em www.dgsi.pt:

«6. A determinação do âmbito de caso julgado, formal ou material, de uma sentença, pressupõe a respectiva interpretação.

7. Para o efeito, não basta considerar a parte decisória, cumprindo tomar em conta a fundamentação, o contexto, os antecedentes da sentença e os demais elementos que se revelem pertinentes, sempre garantindo que o sentido apurado tem a devida tradução no texto.»

Na fundamentação deste aresto, citando-se doutrina e jurisprudência sobre a matéria, faz-se referência, designadamente, a Antunes Varela, J. M. Bezerra e Sampaio e Nora, que, no Manual de Processo Civil, 2ª ed., Coimbra Editora, 1985, pág. 715, escreverem que «é ponto assente na doutrina que os fundamentos da sentença podem e devem ser utilizados para fixar o sentido e alcance da decisão contida na parte final da sentença, coberta pelo caso julgado».

O Tribunal a quo baseou-se, na salvaguarda da decisão tomada pelo mesmo em 20-10-2016 –  na qual, recorde-se, após alteração da matéria se facto e revogando a sentença da 1ª Instância, se entendeu que o processo deveria prosseguir para prestação de contas, por se verificar que os factos subsistentes (após se declarar não provada a matéria dos pontos 14 e 15 da sentença) indicavam a existência de um saldo positivo – na autoridade do caso julgado, trilhando um caminho diverso do da 1ª Instância, que entendeu julgar improcedente a excepção do caso julgado (que, como se sabe, assenta na repetição de uma causa, quando se propõe uma acção idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir (art. 581º, nº 1, do CPC), considerando, desde logo, que estava em discussão, naquele momento, já não era apreciar se a Ré devia ou não prestar contas e se, nessa medida, já o havia feito perante BB, mas o apuramento e aprovação das receitas obtidas pela Ré e das despesas realizadas pela mesma enquanto administradora de bens alheios e a sua eventual condenação no pagamento do saldo que viesse a apurar-se.

Sem se entrar na apreciação do mérito desse despacho, de que não houve recurso, importará referir que, no Acórdão de Uniformização Jurisprudência (AUJ) nº 5/2021, publicado no DR, 1ª Série I, 25-11-2021 (no qual se fixou jurisprudência no sentido de que o acórdão da Relação que, incidindo sobre a decisão de 1.ª instância proferida ao abrigo do n.º 3 do artigo 942.º do CPC, aprecia a existência ou inexistência da obrigação de prestar contas, admite recurso de revista, nos termos gerais), se caracterizou o processo de prestação de contas como tendo duas fases: uma inicial, de apuramento da obrigação de prestar contas e uma outra subsequente, caso o Tribunal determine tal dever.

Relativamente à caracterização da segunda fase (numa mesma causa), escreve-se o seguinte (com destaque nosso):

«Vem sendo enfatizado pela jurisprudência e pela doutrina que a ação especial de prestação de contas é uma das formas de exercício do direito de informação genericamente consagrado no art. 573.º do CC, tendo por objetivo final apurar o saldo correspondente ao diferencial entre as receitas obtidas e as despesas efetuadas (cf. Processos Especiais cit., p. 225). Por isso, a tramitação processual correspondente à segunda fase destinada à apresentação, discussão e aprovação das contas fica naturalmente dependente de uma decisão judicial que imponha ao demandado a obrigação de as prestar, regime que permite evitar a prática de atos inúteis que poderiam resultar de uma eventual regulamentação que concentrasse no final do processo especial a resolução de todas as questões relevantes.

3 - Esta descrição sumária da estrutura do processo especial de prestação de contas revela que a fase verdadeiramente decisiva para o interessado que reclama de outrem a prestação de contas é a que respeita à apreciação da existência desta obrigação. Já a segunda fase, para além de estar condicionada pela consolidação daquela decisão preliminar, assume um carácter eminentemente "executivo": integrando a apresentação das contas e a discussão das verbas enquadradas nos campos do "deve" e do "haver", culmina com a sentença que, em função dos elementos recolhidos, fixa o respetivo saldo credor ou devedor.»

Considera-se, pois, neste AUJ, que a segunda fase tem um carácter eminentemente executivo, o que passa pela definição, na primeira fase, das questões essenciais no que tange “à existência, inexistência ou configuração da obrigação de prestar de contas”.

No caso presente, ao abrir-se, na segunda fase, a possibilidade de discussão e  prova relativamente a aspectos que tinham sido tratados na primeira fase, fez-se com que tal redundasse numa sentença que deu como provada uma factualidade que fora dada por não provada na primeira fase, inutilizando o que fora decidido quanto aos limites da obrigação de prestar contas, pois – repete-se – a decisão emanada dos tribunais superiores passou pela infirmação da tese da R. de que prestara contas (o que, a provar-se, seria um facto extintivo da obrigação, com o ónus da prova a impender sobre a mesma R., podendo ver-se, a propósito, Luís Pires de Sousa, Processos Especiais de Divisão de Coisa Comum e de Prestação de Contas, Almedina, Coimbra, 2017, p. 157), maxime, por não se ter provado que BB assinara o documento em que a R. se apoiava quanto ao destino, confiado à R., que aquele teria dado aos €50.000,00, que recebera de indemnização.

A autoridade do caso julgado, normalmente invocada em acções subsequentes a outras, tem, não o efeito negativo da excepção, mas um efeito positivo, como se refere no Ac. STJ de 16-12-2021, Proc. 5837/19.4T8GMR.G1.S1, Rel. Rosa Tching, em www.dgsi.pt:

«II. Diferentemente, a autoridade do caso julgado tem, antes, o efeito positivo de impor a primeira decisão à segunda decisão de mérito e, sem prescindir da identidade das partes, dispensa a identidade do pedido e da causa de pedir nos casos em que existe uma relação de prejudicialidade entre o objeto da ação já definitivamente decidida e a ação posterior, ou seja, quando o fundamento da decisão transitada condiciona a apreciação do objeto de uma ação posterior, por ser tida como situação localizada dentro do objeto da primeira ação, sendo seu pressuposto lógico necessário.

Nem sequer se coloca aqui o problema de transposição de factos de uma acção para outra, pois estamos dentro da mesma acção, em que, na primeira fase, se fixou determinada matéria de facto, que não pode deixar de condicionar a segunda (executiva), conforme resulta do que se tem vindo a dizer.

Concorda-se, assim, com a Relação, quando conclui:

«Ora, a sentença recorrida ignora – salvo o devido respeito – aquela que foi a decisão das instâncias superiores quanto à alegada instrução do BB para entrega da quantia de € 36.659,50 à DD, parte como donativo, e outra parte como pagamento de quantias alegadamente abonadas por esta.

Está em causa não apenas o prestígio das instituições judiciárias, mas igualmente a coerência das suas decisões, sendo indubitável que o juízo formulado por esta Relação ... e pelo Supremo Tribunal de Justiça quanto à inexistência de prova daquela instrução foi o antecedente lógico indispensável do julgado.»

Ademais, não se olvidará que quando uma decisão venha, no mesmo processo, contradizer outra, passada em julgado em primeiro lugar, relativamente à mesma pretensão, é ineficaz na parte em que tal se verifique (art. 625º do CPC).

Assim, a decisão que considerou não haver lugar a caso julgado, na perspectiva da excepção, não obsta a que se deva atender ao que, em toda a sua dimensão, foi, antes, definido no Acórdão da Relação ..., confirmado pelo dito acórdão deste Supremo Tribunal e que passou a estar adquirido no processo. Daí que não devesse ter sido reacendida uma discussão, que veio a redundar, através da sentença proferida, no sobredito resultado, em contradição com o anteriormente decidido.

Entende-se, pelo exposto, que o acórdão recorrido não violou o caso julgado.

III.3.

 Apesar das conclusões a que chegou sobre o caso julgado, o Tribunal da Relação empreendeu a apreciação da impugnação da decisão da matéria de facto, deixando, desde logo, expresso que procedeu à audição da prova gravada e à análise dos elementos probatórios pertinentes.

A Recorrente considera que o acórdão padece de nulidade por falta de fundamentação, relativamente aos factos eliminados, invocando o disposto no art. 615º, nº 1, b), do CPC.

A enquadrar-se o apontado vício em tal preceito, serie patente não se verificar a nulidade, já que a falta de fundamentação que releva é, como sempre se tem entendido, a absoluta e o acórdão encontra-se fundamentado, de facto e de direito, não se podendo falar de falta absoluta de fundamentação.

Conforme se referiu no anterior acórdão deste Supremo Tribunal, em situação paralela, o problema levantado diz respeito à fundamentação da decisão da impugnação da matéria de facto, exercício de que, em regra, não há recurso (art. 662º, nºs 1, 2 e 4, do CPC), não cabendo ao STJ pronunciar-se sobre o mérito da fundamentação nesse capítulo.

Dispõe o art. 674º, nº 3, do CPC, que o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objeto de recurso de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova. Ora, não se vê que tenha sido ofendido alguma disposição desta natureza.

Também não se vê que tenha o Tribunal a quo agido fora dos limites traçados por lei para o exercício dos poderes que lhe são conferidos pelo art. 662º, nºs 1 e 2, do CPC.

Na verdade, com já se disse, o Tribunal recorrido, mesmo tendo considerado que havia caso julgado em relação aos mencionados pontos, procedeu à análise crítica dos meios de prova que teve por pertinentes, considerando, designadamente, que:

«Consignando, desde já, que se procedeu à audição da prova gravada e à análise da prova documental e pericial, começaremos por notar que a sentença recorrida, no que concerne à perícia realizada à assinatura do documento de fs. 44/786, ignora matéria extraordinariamente relevante constante do relatório pericial, sem fornecer qualquer justificação para tal omissão.

Referimo-nos à circunstância do relatório pericial ter detectado que o mencionado documento revela não apenas marcas cuja leitura não foi possível realizar, resultantes da escrita em outros documentos que se encontravam sobre o mesmo, como ainda que “a escrita dos nomes “DD”, encontra-se desalinhada da restante escrita impressa”, sugerindo “a hipótese de o documento ter sido impresso em dois momentos diferentes.”

Se este desalinhamento do texto impresso, sugerindo a hipótese de impressão em dois momentos diferentes, coloca desde logo a dúvida sobre a genuinidade do documento – ignora-se qual o texto impresso em primeiro lugar, ou sequer se o texto que actualmente contém já existia, na sua totalidade, quando lhe terá sido aposta a assinatura imputada ao BB, também teremos a referir que o relatório não é concludente quanto à autoria daquela assinatura.

Com efeito, o relatório limita-se a afirmar que a assinatura “pode ter sido” produzida pelo seu punho, o que a coloca num grau intermédio – o 5.º – entre os 11 graus de autenticidade ali parametrizados, em que o 1.º é a “probabilidade próxima da certeza científica” e o último a “probabilidade próxima da certeza científica não”.

Por outro lado, a demais prova produzida em julgamento não permitiu estabelecer que o BB assinou o mencionado documento.»

Em seguida, passou a reproduzir parte da argumentação que, a este respeito, se produziu no anterior Acórdão da Relação ..., proferido nestes autos em 20-10-2016, que reputou de relevante para enquadrar o assunto em presença.

Após isso, debruçou-se o Tribunal sobre os depoimentos prestados em audiência, nos seguintes termos:

«A Ré afirmou no seu depoimento que, no dia 06.11.2008, foi visitar o BB, e que o levou para um pátio exterior, amparado por si e pelo seu marido, a testemunha II. Como inexistia qualquer mesa nesse pátio, o BB sentou-se num banco e assinou em cima do joelho (entre 30m50s e 31m05s). 

Ora, como revelou a testemunha GG, a directora do lar onde o BB estava internado, este foi para lá em 2006 na sequência de lesões incapacitantes sofridas após uma queda em casa. Estava com graves dificuldades de controlo neuro-motor e integrado no grupo dos internados com maior incapacidade: não se deslocava a não ser em cadeira de rodas, empurrado por outra pessoa, e era transportado da cama para a sala, onde ficava a maior parte do dia sentado num sofá.

Perguntada sobre se o BB podia assinar, esta testemunha respondeu: “assinar documentos não porque ele coitadito ele não… já não tinha capacidade para estar a assinar documentos sozinho”; perguntada porque dizia isso, respondeu: “Não..., porque ele tremia muito, estava muito debilitado, não…, assinar, assinar era impossível mesmo, ele nem comia sozinho, quanto mais assinar…” (entre 15m10s e 15m45s). 

Neste contexto, a versão apresentada pela Ré, do BB ter sido capaz de assinar pelo seu punho, sentado num banco e em cima do joelho, é claramente inverosímil. Uma pessoa que se encontra no estado descrito pela testemunha GG, que treme muito e nem sequer é capaz de comer sozinho (o que revela a perda da capacidade de realizar gestos finos e estáveis com as mãos), não consegue realizar a assinatura com pulso estável como aquela que lhe é imputada no documento de fs. 44/786. 

De resto, os autos revelam que meses antes, em 15.07.2008, o BB não foi capaz de assinar a procuração dessa data, o mesmo sucedendo no dia 07.10.2008, em que a notária declara que este não assina por não o poder fazer. Claramente, 30 dias depois não era capaz de produzir a assinatura firme e rectilínea que se apresenta a fs. 44/786, e mesmo no confronto com a assinatura produzida em 13.05.2009, a fs. 494/5, o que se constata é que esta é realizada por um pulso claramente instável, não sendo de todo comparável com a imputada assinatura de 06.11.2008. 

A sentença recorrida coloca em dúvida o depoimento desta testemunha, afirmando que esta tinha folgas às quintas-feiras, e dia 06.11.2008 era uma quinta-feira. Mas a questão é que esta testemunha conhecia necessariamente o estado de saúde do BB, dadas as funções de responsabilidade que exercia no lar. E, de resto, sobre a sua presença no lar quando a Ré e o seu marido ali se deslocaram, é a própria testemunha II, o marido da Ré, quem confirma que esta ali se encontrava (entre 20m30s e 20m40s). 

A sentença recorrida afirma, ainda, que a insistência da Ré na produção antecipada de prova, destinada à prestação de depoimento de parte por BB, e a oposição da A. à prestação de tal depoimento, não poderia deixar de ser interpretada num único sentido: a A. receava o que o mesmo viesse a dizer, tanto mais que se encontrava no uso de todas as suas faculdades mentais. 

Pois bem, esta conclusão parte de uma petição de princípio, a de que era injustificada a oposição da A. à prestação de depoimento pelo BB. No entanto, o que os autos revelam é que a A., no seu requerimento de 07.02.2011, opôs-se a esse meio de prova, por o BB se encontrar em estado de “senilidade própria da sua idade, com perda de audição e apresentando lucidez parcial.” Determinado, por despacho de 01.03.2011, a realização de exame ao BB para verificar a sua capacidade para prestar depoimento, esse exame veio a confirmar a versão da A.: conforme se lê no ofício de 14.03.2012, o médico psiquiatra verificou que o BB se encontrava com síndrome demencial em estádio avançado e, como tal, impossibilitado de prestar depoimento. 

Como já anteriormente se escreveu nestes autos, os idosos, em especial no estado em que o BB se encontrava, são pessoas especialmente vulneráveis, que carecem do maior cuidado na protecção do seu património. A situação de vulnerabilidade dos idosos torna-os frágeis, leva-os a quebrar as barreiras que normalmente se tomam na protecção da pessoa e dos bens. A experiência demonstra-nos que nestas idades o sentido de auto-protecção fica fortemente limitado e praticam-se actos descuidados, que se estivesse no pleno uso das faculdades físicas e mentais não seriam praticados. 

No contexto evidenciado nos autos, em que o BB não podia assinar, e muito menos com a assinatura firme e rectilínea imputada no documento de fs. 44/786, e sendo ainda verificado que este documento contém desalinhamento do texto impresso, sugerindo a hipótese de impressão em dois momentos diferentes, não se pode dar como provado que aquela assinatura foi por ele produzida, ou sequer que ele tenha validamente transmitido à Ré a instrução no sentido desta entregar a totalidade da indemnização à DD, após o pagamento das despesas com o processo, quer para pagamento de quantias que esta lhe tinha abonado em vida da falecida esposa, quer como donativo. 

De resto, a versão do BB carecer de importâncias de terceiros, solicitando-as à DD, também é inverosímil. Este foi agente da GNR e recebia uma pensão de reforma adequada àquela função e ao tempo de serviço prestado, e como referiram as testemunhas GG e FF, esse valor chegava e sobrava para pagar as despesas do lar onde se encontrava internado, não carecendo de empréstimos de ninguém. 

Nota-se, ainda, que os depoimentos prestados pela Ré e pelo seu marido, II, afirmando a existência das alegadas instruções do BB, alegadamente corporizadas no escrito de fs. 44/786, revelam interesse directo na decisão da causa e não constituem base sólida para infirmar a matéria de sentido contrário revelada nos autos, demonstrando a efectiva incapacidade do BB para produzir a assinatura que ali lhe é imputada. 

E quanto ao depoimento da testemunha JJ, irmão da Ré, apenas foi relevante para descrever os laços familiares existentes. Mas a versão do BB carecer de “empréstimos” da sua afilhada, é claramente inverosímil, face à estabilidade económica proporcionada pela sua profissão e pela circunstância da sua mulher, a EE, também auferir uma reforma adequada ao seu sustento.

Em resumo, ao contrário do que se afirmou na sentença recorrida, não existe prova bastante da EE e do BB socorrerem-se da ajuda da DD, ou sequer que o BB tenha instruído a Ré no sentido de entregar a totalidade da indemnização à referida DD, após o pagamento das despesas com o processo, quer para pagamento de quantias que esta lhes teria abonado, quer como donativo.»

E concluiu-se:

«Em consequência, na procedência da impugnação de facto deduzida, decide-se:

· eliminar os pontos 5, 9 e 10 do elenco de factos provados;

· quanto ao ponto 6, declarar provado, apenas, que ‘BB mandatou a Ré para o representar no pedido de indemnização contra a seguradora.’»

Em face desta fundamentação, não se pode subscrever a afirmação da Recorrente de que o Tribunal a quo violou o disposto no art. 607º, nºs 4 e 5, do CPC, não procedendo à análise crítica das provas. A invés, o que se extrai da longa citação efectuada é que uma tal análise foi feita, extraindo o Tribunal recorrido a sua convicção dos elementos probatórios em causa. Se a argumentação desenvolvida não é suficientemente convincente para Recorrente, já é um problema de mérito, o que não cumpre a este Supremo Tribunal apreciar.

Ora, a Recorrente, maxime nas conclusões X) e segs., o que, salvo o devido respeito, faz é precisamente questionar o mérito da decisão da impugnação da matéria de facto que o Tribunal da Relação levou a cabo e, como se ponderou no Ac. do STJ de 30-11-2021, Proc. 212/15.2T8BRG-B.G1.S1, Rel. Tomé Gomes, publicado em www.dgsi.pt:

 «II. (…) não cabe ao tribunal de revista intrometer-se na apreciação do mérito da análise probatória realizada nem tão pouco na aferição da sua consistência, o que lhe está vedado por virtude do preceituado nos artigos 674.º, n.º 3, a contrario sensu, e 682.º, n.ºs 1 e 2, do CPC.

«III. Em suma, ao tribunal de revista compete assegurar a legalidade processual do método apreciativo efetuado pela Relação, mas não sindicar o eventual erro desse julgamento nos domínios da apreciação e valoração da prova livre nem da livre e prudente convicção do julgador.»

Por tudo o que se deixou dito, entende-se que o Tribunal a quo, ao decidir apreciar a impugnação da matéria de facto, não desrespeitou, pela forma como procedeu a essa apreciação, qualquer das normas processuais invocadas, nomeadamente no que concerne aos ditames do art. 640º, ou ao previsto nos arts. 662º, nºs 1 e 2, ou 607º, nºs 4 e 5, do CPC.

Porque não há razões para se concluir, como pretende a Recorrente, que o Tribunal recorrido não poderia ter alterado a matéria de facto, igualmente não será de concluir que inexiste saldo a favor da Autora, sendo de recordar que, tendo em conta os factos provados (após a alteração constante do acórdão recorrido) – e porque é o que deles resulta – o Tribunal da Relação, à luz do art. 945º, nº 5, do CPC, por referência ao montante de €50.000,00, que foi entregue à Ré, e descontada a quantia mencionada no ponto 8 (satisfeita a título de honorários e outras despesas), apurou o saldo positivo de €36.659,50, condenando a Ré, obrigada a prestar contas como procuradora, a pagar tal quantia à Autora.

Improcede a revista.


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Sumário (da responsabilidade do relator)


1. A nulidade decorrente de excesso de pronúncia, nos casos em que não haja previsão legal de conhecimento ex officio, verifica-se quando a sentença (ou acórdão) conheça de questão que nenhuma das partes tenha submetido à apreciação do juiz, o que não acontece quando se aprecie a impugnação da decisão da matéria de facto suscitada em recurso.

2. Ainda que se chegue à conclusão de que tal impugnação devia ter sido rejeitada, tendo a Relação dela conhecido, o vício não é o da nulidade por excesso de pronúncia, mas de desrespeito pelas regras processuais que impõem a rejeição, nos termos do art. 640º do CPC.

3. Se é certo que a adequada interpretação do art. 640º, nº 1, b), do CPC, leva a que se exija que a indicação dos meios de prova seja feita de tal modo que permita ao Tribunal da Relação, para o cabal exercício dos poderes que lhe são conferidos pelo art. 662º do CPC, estabelecer  a ponte entre os concretos meios de prova e os factos impugnados, considera-se que deve fazer-se, sobre essa exigência, uma ponderação caso a caso, não sendo de rejeitar uma impugnação, ainda que em bloco, da decisão da matéria de facto numa situação em que os factos impugnados sejam poucos e estejam ligados entre si, de modo  que não haja obstáculo a que se faça a dita associação entre factos impugnados e meios de prova.

4. A nulidade prevista no art. 615º, nº 1, b), do CPC respeita à falta de fundamentação da sentença ou do acórdão, que, para se verificar, tem de ser absoluta, e não se aplica ao problema da fundamentação da decisão da impugnação da matéria de facto, não cabendo ao tribunal de revista avaliar da sua eventual inconsistência, pois entrar-se-ia na questão de mérito, cuja apreciação lhe está vedada.

5. O Supremo Tribunal de Justiça apenas poderá verificar se não foram observados os limites traçados por lei para o exercício dos poderes que são conferidos à Relação pelo art. 662º, nºs 1 e 2, do CPC, mas não sindicar eventuais erros de julgamento, quando esteja em causa a valoração de prova livre ou o exercício da livre convicção do julgador.

6. O processo de prestação de contas compreende duas fases: uma primeira fase na qual se definem as questões essenciais no que tange à existência, inexistência ou configuração da obrigação de prestar de contas e uma segunda fase que tem uma natureza eminentemente “executiva”, esta condicionada pela consolidação do que se decidiu naquela.

7. Não pode a decisão de prestação de contas, tomada na primeira fase, deixar de ser enquadrada, com reflexos na fase seguinte, pelos fundamentos constantes da sentença, designadamente, como no caso, os emergentes de uma impugnação da decisão da matéria de facto apreciada pela Relação e confirmada pelo Supremo, com relevantes alterações introduzidas, conducentes a que uma decisão da 1ª Instância no sentido de não haver contas a prestar fosse revogada e substituída por outra a ordenar a prestação de contas.

8. É ineficaz uma decisão contraditória com outra que primeiro tenha passado em julgado, relativamente à mesma pretensão, na parte em que tal se verifique.


IV

Pelo que ficou exposto, julga-se o recurso improcedente, confirmando-se o acórdão recorrido.

- Custas pela Recorrente.


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Lisboa, 17 de Fevereiro de 2022

Tibério Nunes da Silva (relator)

Maria dos Prazeres Beleza

Fátima Gomes

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[1] Faz-se, neste ponto, referência ao Ac. do STJ de 08-01-2019, Proc. 3696/16.8T8VIS.C1.S1, Rel. Ana Paula Boularot, publicado em www.dgsi.pt.
[2] Faz-se, aqui, menção ao Ac. do STJ de 31-05-2016, Proc. 184/10.5TTMTS.P1.S1, Rel. Ana Luísa Geraldes, publicado em www.dgsi.pt.