Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 2.ª SECÇÃO | ||
Relator: | FERNANDO BAPTISTA | ||
Descritores: | CESSÃO DA POSIÇÃO CONTRATUAL REQUISITOS CONSENTIMENTO TÁCITO FORMA LEGAL CONTRATO DE LOCAÇÃO FINANCEIRA INEFICÁCIA ÓNUS DE ALEGAÇÃO ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA ABUSO DO DIREITO IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO REAPRECIAÇÃO DA PROVA PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA NULIDADE DE ACÓRDÃO OPOSIÇÃO ENTRE OS FUNDAMENTOS E A DECISÃO | ||
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Data do Acordão: | 10/27/2022 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | NEGADA | ||
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Sumário : | I - Há nulidade da sentença por oposição entre a fundamentação e a decisão quando na fundamentação da sentença o julgador seguiu determinada linha de raciocínio, apontando para determinada conclusão, mas em vez de a tirar, decidiu noutro sentido, oposto ou divergente. II - Já a nulidade por ambiguidade ou obscuridade da decisão ocorre quando a decisão permite duas ou mais interpretações (ambiguidade), ou quando não é possível saber, com certeza, qual o pensamento exposto na sentença (obscuridade). III - A cessão da posição contratual é um negócio cujo efeito típico principal consiste na transferência da posição contratual, no estádio de desenvolvimento em que se encontrava no momento da eficácia do negócio, de uma das partes do contrato para outra. IV - São requisitos da cessão da posição contratual: 1. que se trate de um contrato bilateral; 2. que tenha lugar o consentimento do outro contraente – que pode ser dado antes ou depois da cessão (ver art. 424.º, n.º 2, do CC). V - O consentimento do locador (contraente cedido) – que é sempre exigível, pois a cedência da posição contratual do locatário não é forçada ou imperativa em relação ao locador – pode ser expresso ou tácito, mas não pode resultar do mero silêncio do mesmo, salvo se a lei, uso ou convenção lhe reconhecerem esse valor. VI - Porém, o consentimento tácito tem de resultar de factos inequívocos, isto é, que com toda a probabilidade revelam a vontade negocial de consentir (art. 236.º, n.º 1, do CC) – vontade esta extraída por um declaratário normal, ou seja, medianamente instruído e inteligente, colocado na situação concreta do declaratário. VII - Por outro lado, visto que a cessão tem na sua base o negócio causal em que a cessão se integra, donde nasceu a posição (complexo de direitos e deveres) que um dos contraentes (cedente) transmite a terceiro, a forma da cessão é a mesma do negócio jurídico que lhe serve de base ou causa, ou em que assenta; ou seja, a mesma que é imposta por lei para o negócio subjacente, do qual resulta a posição cedida. VIII - Nos contratos de locação financeira de bens imóveis, as assinaturas das partes devem ser presencialmente reconhecidas, salvo se efectuadas na presença de funcionário dos serviços do registo, aquando da apresentação do pedido de registo (ut art. 3.º, n.º 3, do DL n.º 149/95, de 24-06), sendo que a falta desse reconhecimento afecta a validade do contrato. IX - E constando expressamente das condições gerais do contrato que “O Locatário não poderá ceder a sua posição contratual, ..., sem o prévio consentimento escrito do Locador”, a falta desse consentimento torna a cessão ineficaz em relação ao cedido, incumbindo a quem invoca a cessão da posição contratual o ónus de alegação e prova daquele consentimento (ut art. 342.º, n.º 1, do CC). X - Para ter lugar o enriquecimento sem causa, é necessária a verificação cumulativa de alguns requisitos: a) Existência de um enriquecimento à custa de outrem; b) Existência de um empobrecimento; c) Nexo de causalidade entre o enriquecimento e o empobrecimento; d) Ausência de causa justificativa; e) Inexistência de acção apropriada que possibilite ao empobrecido meio de ser indemnizado ou restituído. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam no Supremo Tribunal de Justiça, Segunda Secção Cível I – RELATÓRIO Por apenso à execução instaurada por CAIXA LEASING E FACTORING – INSTITUIÇÃO FINANCEIRA DE CRÉDITO, S.A. – contra J..., S.A.., ambas identificadas nos autos, deduziu FINE FACILITY SERVICES, LDA., também identificada nos autos, os presentes autos de embargos de terceiro, pedindo que os embargados fossem condenados a reconhecer que a embargante possui a qualidade de locatária no contrato de locação financeira n9 337787, celebrado entre a sociedade insolvente J..., S.A. e a Caixa Leasing e Factoring Instituição Financeira de Crédito S.A , por ser válida e eficaz entre Embargante e Embargadas o contrato de cessão de posição contratual em contrato de locação celebrado a 31 de Março de 2015, ser a comunicação feita, de desinteresse no cumprimento do contrato de locação com o n9 337787 e bem ainda em consequência desta comunicação a declaração de resolução feita pela Embargada quanto ao aludido contrato, declaradas ineficazes quanto à aqui Embargante, sendo a 1ª Ré condenada a mediante o pagamento do valor em falta para cumprimento antecipado e integral do contrato de locação imobiliária a outorgar escritura de compra e venda do imóvel objeto da locação a favor da aqui Autora. Para tanto, alegou, em síntese, que, no exercício da sua atividade comercial, a primeira Embargada celebrou com a segunda embargada o Contrato de Locação Financeira Imobiliária n.Q 337787, tendo por objecto as fracções identificadas no auto de entrega sendo que, a efectivação da entrega das fracções, determinará a paralisação, absoluta, de toda a actividade, com a consequente extinção de postos de trabalho e mesmo, seriamente, a "sobrevivência" da Embargante, pois que, a Embargante está, legitimamente, há mais de cinco anos, na posse das fracções imóveis, cuja entrega agora se determina; o que é do conhecimento das Embargadas, que permite e justifica a posse a favor da Embargante. * Citadas ambas as embargadas, contestou a Embargada Caixa, alegando, em suma, que a Embargante está ilegitimamente na posse das fracções, pois o alegado contrato de cessão da posição contratual entre a segunda embargada e o embargante é ineficaz relativamente a ela, já que não deu o seu consentimento para o mesmo, nem expresso nem tácito, necessário de acordo com as cláusulas contratuais, sendo que, há mais de cinco anos, que a Embargante paga, à Embargada Caixa Leasing, as rendas do contrato de Leasing celebrado, que permite e justifica a posse a favor da Embargante. Concluiu que deverá: "a) Ser a Embargada absolvida da instância nos termos do artigo 278º, nº1, alínea d) do CPC. b) Julgar os presentes embargos de terceiro totalmente improcedentes devendo a providência cautelar seguir os seus ulteriores trâmites com restituição do imóvel à Requerente; c) Condenar a Embargante em litigância de má fé e, consequentemente, em multa e indemnização em valor não inferior a €5.000,00; (...)". * Por requerimento de 30-11-2020, a embargante apresentou resposta às exceções deduzidas pela embargada, concluindo pela sua improcedência e absolvição do pedido de condenação em litigância de má fé. * Por despacho de 25-01-2021 foi excecionada a incompetência do Juízo Local Cível, em razão do valor, foram os autos remetidos ao Juízo Central Cível da Comarca ..., decisão da qual a embargante interpôs recurso, que, por despacho de 18-05-2021 foi admitido como apelação. * Por acórdão de 22-06-2021, o Tribunal da Relação de Lisboa julgou procedente a apelação e revogou a decisão recorrida, julgando o Juízo Local Cível onde os autos pendiam como competente para conhecer dos presentes embargos de terceiro. * Prosseguindo os autos, teve lugar audiência de discussão e julgamento, após o que, em 14-12-2021, foi proferida sentença com o seguinte dispositivo: "Pelo exposto, condeno os embargados a reconhecer que a Embargante possui a qualidade de locatária no contrato de locação financeira ng 337787 celebrado entre a sociedade insolvente J..., S.A. e a Caixa Leasing e Factoring Instituição Financeira de Crédito S.A, por ser válida e eficaz entre Embargante e Embargadas o contrato de cessão de posição contratual em contrato de locação celebrado a 31 de Março de 2015, ser a comunicação feita, de desinteresse no cumprimento do contrato de locação com o ng 337787 e bem ainda em consequência desta comunicação a declaração de resolução feita pela Embargada quanto ao aludido contrato, declaradas ineficazes quanto à aqui Embargante, sendo a 1ª Ré condenada a mediante o pagamento do valor em falta para cumprimento antecipado e integral do contrato de locação imobiliária a outorgar escritura de compra e venda do imóvel objeto da locação a favor da aqui Autora.”. Não se conformando com a referida sentença, dela apela a embargada CAIXA GERAL DE DEPÓSITOS, S.A., pugnando pela procedência do recurso, com revogação da decisão recorrida, vindo, a final, a Relação de Lisboa, em acórdão de 07.04.2022, a proferir a seguinte «Decisão: Pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes que compõem o tribunal coletivo desta ... Secção Cível, em: I) Rejeitar a impugnação da matéria de facto, respeitante aos aditamentos à matéria de facto visados nos artigos 185.?, 198.e e 199.9 das alegações da recorrente, por inobservância do disposto na alínea b) do nº1 do artigo 640.s do CPC; Retificar a redação do facto provado nº 15, para a seguinte: "15.º Até ao momento a insolvente não procedeu à restituição do imóvel, pelo que veio a primeira embargada requerer ao tribunal a entrega imediata do mesmo à requerente nos termos do art. 212 do Decreto-Lei nº 149/95 de 24 de junho, a qual foi julgada procedente e decretada a imediata entrega dos imóveis à primeira embargada"; III. Alterar a redação do facto 27.2 dos factos provados, para a seguinte: "27º Sendo que, a efectivação da entrega das fracções, determinará a paralisação da atividade da embargante nas instalações correspondentes"; IV. Eliminar do rol dos factos provados, os factos 20, 28, 29, 32, 33, 34, 35, 37, 38, 39, 42, 46 e 48; V) Alterar a redação do facto provado em 30.5, para a seguinte: "30* A embargante remeteu à embargada, como detalhado no facto 36, em 2019 e 2020, emails acompanhados de comprovativos de depósitos destinados a pagar quantias do contrato de locação financeira") VI) A alteração da redação do ponto 36 dos factos provados, para a seguinte: "36º A embargante remeteu por email à embargada Caixa Leasing e Factoring, em 10-10-2019, 15-11-2019, 10-01-2020, 10-02-2020, 11-03-2020, 13-04-2020, 12-05-2020, 09-10-2020 e 11-11-2020, respetivamente, os comprovativos de depósito, efetuados em 10-10-2019,11-11-2019, 10-01-2020, 10-02-2020, 12-03-2020, 13-04-2020, 11-05-2020, 09-10-2020 e 09-11-2020, respetivamente, ali se mencionando que respeitavam ao contrato de locação financeira nº 337787"; A alteração da redação do ponto 47.2 dos factos provados, para a seguinte: "47º Em decorrência da tomada de posição por parte da massa insolvente, a Embargada Caixa Leasing e Factoring - Instituição Financeira de Crédito, S.A. considerou resolvido o contrato de locação financeira". Incluir nos factos não provados as seguintes alíneas: "a) Que, para além do referido em 27, a efectivação da entrega das fracções determinará a paralisação, absoluta, de toda a actividade, com a consequente extinção de postos de trabalho e mesmo, seriamente, a "sobrevivência" da Embargante"; "b) O que é do conhecimento das Embargadas, como, designadamente, resulta do documento 2, junto e cujo teor se dá por reproduzido"; "c) Que, para além do provado em 30, há mais de cinco anos, a Embargante paga à Embargada Caixa Leasing as rendas do contrato de Leasing celebrado"; "d) Em 31 de Março de 2015, a Embargada J..., S.A. celebrou com a sociedade Fine Facility Services Lda., aqui Embargante, Contrato de Cessão de Posição Contratual em Contrato de Locação Financeira, onde a Requerida cedeu a sua posição contratual no contrato de locação financeira supra identificado à aqui Requerente, com efeitos imediatos - contrato junto sob documento n.e 5"; "e) Por conseguinte, passou a competir à aqui Embargante, enquanto cessionária, o pagamento das rendas vencidas e vincendas do contrato de locação supra identificado, o que fez e faz desde 2015 - conforme documento junto sob nº 5"; "f) Estando o imóvel, desde essa data - 2015 -, no gozo da Embargante que, providência e assegura a sua conservação e prudente utilização"; "g) Pese embora a dita cessão não tenha sido formalmente comunicada e aceite pela Locadora aqui Embargada Caixa Leasing e Factoring"; e "h) Incumprindo com tal declaração o contrato de cessão de posição contratual em contrato de locação financeira". "i) Que, com exceção do referido em 36 dos factos provados, desde a data de 31-03-2015, a aqui Embargante procede ao pagamento das rendas - mediante depósito de cheque bancário passado em seu nome e efetuado presencialmente por seu representante em balcão do estabelecimento da Embargada Caixa Leasing e Factoring - o que naturalmente demonstra, como não podia deixar de ser, o conhecimento da Locadora -conforme deriva dos documentos juntos sob nº 6,"; "j) Como também é do conhecimento desta que durante os processos especiais de revitalização que foram apresentados pela Cedente, a massa insolvente J..., após a insolvência declarada, durante o período de tempo que mediou a apresentação de um plano na insolvência e mesmo após a recusa deste plano que ocorreu no pretérito dia 25/11/2019, sempre as rendas devidas pelo cumprimento daquele contrato foram sendo pagas pela aqui Embargante - conforme resulta do documento nº 7Junto"; "k) Tendo sempre a aqui Embargada Caixa Leasing e Factoring aceitado o seu pagamento - conforme deriva do documento junto sob nº 6"; "I) Tais pagamentos foram também sempre do conhecimento da Sra. Administradora de Insolvência - que os consentiu porque decorrentes de cumprimento de contrato validamente firmado e tacitamente reconhecido pela massa insolvente, quer ainda porque garantiam os interesses dos demais credores porquanto a aqui Embargante assegurava, como assegurou, o pagamento de créditos reclamados sobre a insolvência que assim a devedora não teria que solver"; "m) Esta intenção de antecipação integral de cumprimento do contrato de locação pela Embargante foi também do conhecimento da Embargada Caixa Leasing e Factoring, quer por via de contactos diretos com esta estabelecidos, quer ainda porque resulta dos próprios autos de insolvência onde aquela figura como credora"; IX) Indeferir o aditamento à matéria de facto da matéria pretendida incluir pela recorrente, como supra mencionado na apreciação da questão L). X) Julgar procedente a apelação e, em conformidade com o exposto, revogar a decisão recorrida e substituí-la pela presente, julgando os embargos de terceiro, deduzidos pela embargante, totalmente improcedentes.». ** Por sua vez inconformada, vem a Recorrente/Embargante FINE FACILITY SERVICES LDA., interpor recurso de revista, apresentando extensíssimas conclusões, as quais – após convite à sua sintetização – veio a resumir nestes termos: CONCLUSÕES 1. O acórdão recorrido é nulo, na medida em que os fundamentos estão em oposição com a decisão e, sempre, ocorre ambiguidade ou obscuridade que torna a decisão ininteligível; 2. Além disso, o acórdão recorrido viola as normas processuais e materiais de “valoração” das provas constantes dosa autos 3. Mais do que isso, o acórdão recorrido viola a lei substantiva. 4. O erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa pode ser objeto de recurso de revista, havendo, como há, ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova. Ora, 5. Quanto ao entendimento, agora, de que a matéria de facto, constante dos pontos 29, 30, 32 a 39, 42, 46, 47 e 48, deve ser retirada dos factos dados como provada, discorda-se em absoluto. Na verdade, 6. Ficou provado que é do conhecimento das Embargadas, como, designadamente, resulta do documento 2, junto e cujo teor se dá por reproduzido que, a Embargante, está, há mais de cinco anos, na posse das fracções imóveis, cuja entrega agora se determina. 7. Ficou, realmente, demonstrado/provado que, a ora Recorrida tinha conhecimento do alegado contrato de cessão da posição contratual e que era a Recorrente a pagar os valores contratualmente fixados. 8. Aliás, isso mesmo, resulta da própria confissão da Recorrente e, de toda a documentação, com força probatória bastante, junta aos autos. 9. A convicção do tribunal de Primeira Instância fundou-se, acertadamente, por um lado, no acordo das partes, designadamente quanto aos factos descritos no requerimento de procedimento cautelar. 10.Quanto ao pagamento das rendas por parte da Embargante, os comprovativos de depósitos, abundantemente, resultante de anos de pagamentos, juntos a fls. 46 e seguintes, que não foram impugnados. 11.Quanto aos factos descritos, levados ao conhecimento do Administrador de Insolvência, por parte da Embargante, o depoimento de AA, que demonstrou conhecimento directo dos mesmos. 12.Resultando, de toda a prova produzida, a validade e eficácia do contrato de cessão da posição contratual de locatário porquanto a locadora deu o seu consentimento, expresso ou, sempre, tácito. 13.Assim, de acordo com o provado, deverão manter-se os pontos 29, 30, 32 a 39, 42, 46 a 48, dos factos provados. 14.Decidir de maneira diferente é errar, manifestamente, na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa, havendo ofensa da lei. Sem prescindir, 15.Também a decisão recorrida erra na aplicação do direito. 16.Na verdade, resultou provado que, desde essa data, que a aqui Embargante procede ao pagamento das rendas – mediante depósito de cheque bancário passado em seu nome e efetuado presencialmente por seu representante em balcão do estabelecimento da Embargada Caixa Leasing e Factoring - o que naturalmente demonstra, como não podia deixar de ser, o conhecimento da Locadora. 17.E, sempre, atuam com claro abuso do direito na modalidade de venire contra factum proprium a massa insolvente e a Sra. Administradora, ao declararem não ter interesse na manutenção do contrato de factoring celebrado com a Embargada Caixa Leasing e Factoring, desconsiderando e incumprindo o contrato de cessão de posição contratual em contrato de locação financeira celebrado, onde cederam a sua posição contratual de locatária à aqui Embargante, bem sabendo que por via de tal era a Embargante enquanto cessionária quem titulava na posição de locatária, e encontrava-se desde 2015 a cumprir os termos daquele. 18.Dado o contrato de cessão de posição contratual em contrato de locação financeira celebrado, podia a Embargante fundamentadamente e de boa-fé confiar que, enquanto cessionária cabia a si a posição de locatária, posição que considerava ser respeitada e assegurada pela massa insolvente sua Cedente; 19.A decisão da Primeira Instância não violou a cláusula 7.ª das condições gerais do contrato de locação financeira, o princípio da autonomia da vontade, o Decreto-Lei n.º 149/95 de 24 de junho e o artigo 473.º do Código Civil. 20.Ficou demonstrado e documentado e provado que a Recorrida consentiu na cessão, com a qual aceitou os recebimentos dos valores devidos. 21. Finalmente, sempre ficou demonstrada a desconformidade da Embargada com os ditames da conduta conforme à boa fé. 22. Sendo, manifesto o abuso de direito por parte da Embargada, contestante. 23. Na verdade, com a conduta adotada a Embargada Caixa Leasing e Factoring – Instituição Financeira de Crédito, S.A., ao desconsiderar a posição contratual da Requerente e ao considerar resolvido o contrato de locação financeira incorre num claro enriquecimento sem causa, dado que, desde 2015 obtém vantagem patrimonial derivada das rendas liquidadas pela Embargante, sem que exista causa justificativa para essa obtenção dada a desconsideração da cessão por si realizada – o que não se concede -, nos termos do artigo 473.º do Código Civil. 24. Ademais, agiu a Embargada Caixa Leasing e Factoring em claro Abuso do direito, nos termos do artigo 334.º do Código Civil, na modalidade de venire contra factum proprium, porquanto considera inexistir vínculo contratual com a aqui Embargante, não obstante auferir desta mensalmente proveito económico com vista o cumprimento e manutenção daquele vínculo; 25. Importando, assim, revogar o acórdão recorrido, mantendo-se a douta decisão proferida em primeira Instância, porque, esta sim, acertada, conforme com as provas vertidas nos autos e, respeitadora das normas legais aplicáveis. 26. Assim, pela Embargante e pela Embargada insolvente J..., S.A. foi celebrado contrato de cessão de posição contratual em contrato de locação financeira, através do qual a Embargada cedeu à aqui Embargante, e esta aceitou, a posição contratual de locatária. 27. Assim, pretende a aqui Embargante, enquanto cedente, cumprir o contrato de locação financeira, como vem a fazer desde 2015, liquidando o valor remanescente e adquirindo o bem locado. Pelo que os embargos terão que ser totalmente procedentes, como se requer, revogando-se o acórdão recorrido! ** Contra-alegou a recorrida CAIXA GERAL DE DEPÓSITOS, S.A., concluindo que o recurso deve ser “indeferido nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 682.º e n.º 3 do artigo 674.º ambos do CPC; caso assim não se entenda, b) Ser julgado improcedente, e, em consequência, ser mantida a decisão recorrida”. Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir. ** II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO Nada obsta à apreciação do mérito da revista. Com efeito, a situação tributária mostra-se regularizada, o requerimento de interposição do recurso mostra-se tempestivo (artigos 638º e 139º do CPC) e foi apresentado por quem tem legitimidade para o efeito (art.º 631º do CPC) e se encontra devidamente patrocinado (art.º 40º do CPC). Para além de que tal requerimento está devidamente instruído com alegação e conclusões (art.º 639º do CPC). ** Considerando que o objecto do recurso (o “thema decidendum”) é estabelecido pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, atento o estatuído nas disposições conjugadas dos artigos 663º nº 2, 608º nº 2, 635º nº 4 e 639º nºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil (CPC), as questões a decidir são: § Nulidade do acórdão (por oposição entre os fundamentos e a decisão e por se verificar ambiguidade ou obscuridade que torna a decisão ininteligível). § Da impugnação da decisão quanto à matéria de facto: se houve erro na apreciação das provas e violação da lei substantiva (no que tange aos factos que na sentença vinham dados como provados sob os nºs 29, 30, 32 a 39, 42, 46 a 48). § Da (in)validade da cessão da posição contratual, celebrada entre a 2ª embargada J..., S.A. (como cedente) e a Recorrente/embargante Fine Facility Services, Lda (como cessionária), no contrato de locação financeira imobiliária celebrado entre a 1ª embargada Caixa Leasing e Factoring Instituição Financeira de Crédito, S.A. (locadora – a que sucedeu a recorrida CGD), e a embargada J... (locatária). § Do abuso de direito e (subsidiariamente) do enriquecimento sem causa, por banda da Caixa Leasing e Factoring. ** III – FUNDAMENTAÇÃO III. 1. FACTOS PROVADOS É a seguinte a matéria de facto provada (pela Relação, após decisão da impugnação da decisão de facto): 1. No exercício da sua atividade comercial, a primeira Embargada celebrou com a segunda embargada o Contrato de Locação Financeira Imobiliária n.º 337787, composto de Condições Particulares e de Condições Gerais, cuja cópia foi junta como doc. 1da providência cautelar apensa e aqui se dá por integralmente reproduzida. 2. O contrato foi celebrado a 15 de abril de 2008 pelo prazo de 180 meses, tendo a locatário se obrigado ao pagamento de 180 rendas mensais, a primeira renda no valor de € 16.228,68 + IVA e as restantes 179 no valor de € 1.706,87 + IVA e ainda a um valor residual no valor de € 4.237,50 + IVA. 3. Nos termos do contrato (artigo primeiro das Condições Particulares e cláusula 1.ª das Condições Gerais) a primeira embargada veio a dar de locação financeira à requerida o seguinte imóvel que adquiriu por indicação desta e com o objetivo de celebrar o contrato: a. Frações Autónomas AB, AC e AD do prédio urbano situado em Av. ..., 2204, 2208 e 2216 e Rua ... 101, 103 e 113, Freguesia ..., descrito sob a ficha n. 03637, da freguesia ..., e inscrito na matriz predial sob o artigo ...35, conforme cláusula n.º 1 das condições particulares do contrato já junto. 4. A segunda embargada foi declarada insolvente em 18/04/2018, conforme anúncio publicado no portal citius em 19/04/2018 cuja cópia foi junta como doc.2. e aqui se dá por integralmente reproduzida. 5. Em consequência da declara o de insolvência da segunda embargada, a primeira embargada, notificou a Exma. Senhora Administradora de Insolvência nomeada no processo, Dr.ª BB, para declarar qual a opção quanto ao cumprimento do contrato, conforme comunicação eletrónica, datada de 10-12-2019, que foi junta como doc. 3. e aqui se dá por integralmente reproduzida. 6. Nesta sequência, a Exma. Senhora Administradora de Insolvência comunicou a sua opção pelo não cumprimento do contrato, de acordo com comunicação datada de 13 de fevereiro de 2020 que foi junta como doc. 4. e aqui se dá por integralmente reproduzida. 7. Uma vez que a Senhora Administradora de Insolvência não procedeu à apreensão do imóvel para a massa insolvente, a mesma negou-se a assinar o auto de resolução do contrato em apreço com vista à entrega do imóvel, conforme resulta das mensagens de correio eletrónico de 18 de Fevereiro de 2020 e de 24 de Fevereiro de 2020, cujas cópias foram juntas como docs. 5 e 6 e aqui se dá por integralmente reproduzida. 8. Assim, a primeira embargada comunicou à segunda embargada a resolução na sequência de opção pelo não cumprimento por parte da Senhora Administradora de Insolvência, por carta registada com aviso de recepção, datada de 10 de março de 2020, do contrato de locação financeira imobiliária, conforme cópias foram juntas como docs. 7 e 8 e aqui se dá por integralmente reproduzida. 9. Na carta de comunicação da resolução do contrato foi a segunda embargada informada das consequências da mesma, nomeadamente da obrigação de restituição do bem locado livre de pessoas e bens, conforme decorre da al. d) do segundo parágrafo. 10.O imóvel supra descrito locado ao abrigo do contrato de locação financeira imobiliária, é propriedade da requerente. 11. O imóvel supra identificado, apesar dos insistentes e variados esforços nesse sentido por parte da segunda embargada, não lhe foi devolvido. 12. Não obtendo a restituição do imóvel através da Senhora Administradora de Insolvência, a primeira embargada entrou também em contacto com a Insolvente, representada pelo seu mandatário, para recuperação do imóvel, esforços esses que se mostraram infrutíferos. 13. Motivo pelo qual a primeira embargada remeteu a carta de resolução à segunda requerida já junta como doc. 5., com a petição de providência cautelar, a qual não obteve qualquer resposta. 14. Tendo a primeira embargada requerido à Conservatória do Registo de Predial o cancelamento do registo de locação financeira averbado em nome da Requerida, conforme resulta do comprovativo do pedido que se junto como doc. 9. com a petição de providência, e aqui se dá por integralmente reproduzida. 15. Até ao momento a insolvente não procedeu à restituição do imóvel, pelo que veio a primeira embargada requerer ao tribunal a entrega imediata do mesmo à requerente nos termos do art. 212 do Decreto Lei n.2 149/95 de 24 de junho, a qual foi julgada procedente e decretada a imediata entrega dos imóveis à primeira embargada. 16. No passado dia 8 de Julho de 2020, na Rua ..., n.º 101, 103 e 113, na freguesia ..., ..., foi entregue à aqui Embargante o denominado “Auto de Entrega”, junto e cujo teor se dá por reproduzido – documento 1 com a petição dos embargos. 17. A saber: a. Entrega das “Fracções Autónomas AB, AC e AD do prédio urbano situado na Avenida ..., 2204, 2208 e 2216 e Rua ... 101, 103 e 113, Freguesia ..., descrito sobre a ficha n.º 03637, da freguesia ...”. 18. Consta no mesmo Auto, foram recebidos pela “Colaboradora da Empresa que tem a posse do imóvel, que é a empresa “Fine Faciliti Services”, NIPC ...”, a aqui Embargante. 19.“Atendendo ao facto de o imóvel se encontrar ocupado, foi concedido pelo representante da Requerente, o prazo de 5 dias para que todos os bens móveis sejam retirados dos imóveis a entregar, pelo que se designa o dia 14 de Julho de 2020 para concretizar a entrega ordenada". 20. (Eliminado pela Relação). 21.Nas fracções, que para entrega se designou o dia 14 de Julho, próxima terça-feira, a Embargante tem o seu centro operacional. 22.Nestas instalações, de ..., funciona o gabinete de contabilidade de toda a empresa Embargante, com 2 funcionárias, assim como um gabinete Jurídico com uma funcionária. 23. Também nas instalações em causa, se encontra todo o sistema operativo dos serviços de informática desta empresa. 24. Aí se “gere” toda a empresa, encontrando-se toda a plataforma operativa e operacional da Embargante. 25. São os escritórios da Embargante, onde se encontram todos os registos, arquivos informáticos, computadores, a organização dos diversos colaboradores, os telefones, internet e tudo o que permite a laboração da Embargante. 26. E como tal, sempre para alterar todo esse sistema - com PT’s vários e equipamentos das diversas operadoras de telecomunicações, é necessária a intervenção das empresas de telecomunicações, o que não é, de todo, possível acontecer até à próxima terça-feira. 27. Sendo que, a efectivação da entrega das fracções, determinará a paralisação da atividade da embargante nas instalações correspondentes (alteração da Relação). 28. (Eliminado pela Relação). 29. (Eliminado pela Relação). 30. a embargante remeteu à embargada, como detalhado no facto 36, em 2019 e 2020, emails acompanhados de comprovativos de depósitos destinados a pagar quantias do contrato de locação financeira (alteração da Relação). 31. Foi, no âmbito do processo de insolvência n.º 6362/18...., do Juízo de Comércio, Juiz ..., do Tribunal Judicial da Comarca ..., em que é insolvente a Embargada J..., S.A., reconhecido o crédito da Requerida Caixa Leasing e Factoring – Instituição Financeira de Crédito, S.A., no montante de 80.781,72 euros (oitenta mil, setecentos e oitenta e um euros e setenta e dois cêntimos), com fundamento em Contrato de locação financeira com o número 337787 – conforme documento n.º 3 junto. 32. (Eliminado pela Relação). 33. (Eliminado pela Relação). 34. (Eliminado pela Relação). 35. (Eliminado pela Relação). 36. a embargante remeteu por email à embargada Caixa Leasing e Factoring, em 10-10-2019, 15-11-2019, 10-01-2020, 10-02-2020, 11-03-2020, 13-04-2020, 12-05-2020, 09-10-2020 e 11-11-2020, respetivamente, os comprovativos de depósito, efetuados em 10-10-2019, 11-11-2019, 10-01-2020, 10-02-2020, 12-03-2020, 13-04-2020, 11-05-2020, 09-10-2020 e 09-11-2020, respetivamente, ali se mencionando que respeitavam ao contrato de locação financeira n.2 337787 (alteração da Relação). 37. (Eliminado pela Relação). 38. (Eliminado pela Relação). 39. (Eliminado pela Relação). 40. No âmbito do Processo de insolvência em curso foi solicitado à Sra. Administradora de insolvência – quer pela administração da Embargada insolvente, quer pela aqui Embargante - que comunicasse à Embargada Caixa Leasing o interesse na manutenção da cessão da posição contratual a favor desta Embargante e assim, do próprio contrato de locação financeira na modalidade de antecipação integral de cumprimento do contrato de locação; 41. Cumprimento que a aqui Embargante satisfaria, com a consequente escritura do imóvel a seu favor. 42. (Eliminado pela Relação). 43. Submeteu então a Sra. Administradora de insolvência à consideração dos credores da massa insolvente o vindo de descrever – ou seja, a possibilidade de cumprir o contrato de cessão celebrado entre a devedora e a aqui Requerente, para posterior comunicação à Requerida Caixa Leasing e Factoring, aí também credora; 44. Nenhum dos credores consultados se opôs, tendo havido apenas pronúncia de um credor que de forma inequívoca, dada a inexistência de prejuízo para a massa insolvente e consequentemente para os credores aí reconhecidos e, de modo a evitar custos e responsabilidade para a massa insolvente decorrentes do incumprimento do contrato de locação financeira e do contrato de cessão de posição contratual celebrados, considerou favorável a manutenção da cessão da posição contratual da aqui Requerente. 45. Não obstante, foi pela Exma. Administradora de Insolvência emitida manifestação de desinteresse da massa insolvente na manutenção do cumprimento do contrato de locação financeira supra identificado – conforme deriva do documento n.º 8 junto. 46. (Eliminado pela Relação). 47. Em decorrência da tomada de posição por parte da massa insolvente, a Embargada Caixa Leasing e Factoring - Instituição Financeira de Crédito, S.A. considerou resolvido o contrato de locação financeira (alteração da Relação). 48. (Eliminado pela Relação). * III. 2. FACTOS NÃO PROVADOS (na decorrência da alteração da matéria de facto operada pela Relação): a) Que, para além do referido em 27, a efectivação da entrega das fracções determinará a paralisação, absoluta, de toda a actividade, com a consequente extinção de postos de trabalho e mesmo, seriamente, a "sobrevivência" da Embargante"; b) O que é do conhecimento das Embargadas, como, designadamente, resulta do documento 2, junto e cujo teor se dá por reproduzido; c) Que, para além do provado em 30, há mais de cinco anos, a Embargante paga à Embargada Caixa Leasing as rendas do contrato de Leasing celebrado; d) Em 31 de Março de 2015, a Embargada J..., S.A. celebrou com a sociedade Fine Facility Services Lda., aqui Embargante, Contrato de Cessão de Posição Contratual em Contrato de Locação Financeira, onde a Requerida cedeu a sua posição contratual no contrato de locação financeira supra identificado à aqui Requerente, com efeitos imediatos - contrato junto sob documento nº 5; e) Por conseguinte, passou a competir à aqui Embargante, enquanto cessionária, o pagamento das rendas vencidas e vincendas do contrato de locação supra identificado, o que fez e faz desde 2015 - conforme documento junto sob nº 5; f) Estando o imóvel, desde essa data - 2015 -, no gozo da Embargante que, providência e assegura a sua conservação e prudente utilização; g) Pese embora a dita cessão não tenha sido formalmente comunicada e aceite pela Locadora aqui Embargada Caixa Leasing e Factoring; h) Incumprindo com tal declaração o contrato de cessão de posição contratual em contrato de locação financeira; i) Que, com exceção do referido em 36 dos factos provados, desde a data de 31-03-2015, a aqui Embargante procede ao pagamento das rendas - mediante depósito de cheque bancário passado em seu nome e efetuado presencialmente por seu representante em balcão do estabelecimento da Embargada Caixa Leasing e Factoring - o que naturalmente demonstra, como não podia deixar de ser, o conhecimento da Locadora -conforme deriva dos documentos juntos sob nº 6.; j) Como também é do conhecimento desta que durante os processos especiais de revitalização que foram apresentados pela Cedente, a massa insolvente J..., após a insolvência declarada, durante o período de tempo que mediou a apresentação de um plano na insolvência e mesmo após a recusa deste plano que ocorreu no pretérito dia 25/11/2019, sempre as rendas devidas pelo cumprimento daquele contrato foram sendo pagas pela aqui Embargante - conforme resulta do documento nº 7 junto; k) Tendo sempre a aqui Embargada Caixa Leasing e Factoring aceitado o seu pagamento - conforme deriva do documento junto sob nº 6; l) Tais pagamentos foram também sempre do conhecimento da Sra. Administradora de Insolvência - que os consentiu porque decorrentes de cumprimento de contrato validamente firmado e tacitamente reconhecido pela massa insolvente, quer ainda porque garantiam os interesses dos demais credores porquanto a aqui Embargante assegurava, como assegurou, o pagamento de créditos reclamados sobre a insolvência que assim a devedora não teria que solver; m) Esta intenção de antecipação integral de cumprimento do contrato de locação pela Embargante foi também do conhecimento da Embargada Caixa Leasing e Factoring, quer por via de contactos diretos com esta estabelecidos, quer ainda porque resulta dos próprios autos de insolvência onde aquela figura como credora. ** III. 2. DO MÉRITO DO RECURSO Analisemos, então, as questões suscitadas na revista, quais sejam; § DA NULIDADE DO ACÓRDÃO (por oposição entre os fundamentos e a decisão e por se verificar ambiguidade ou obscuridade que torna a decisão ininteligível). É mais que evidente a ausência de razão da Recorrente. Aliás, lidas as suas alegações, constata-se que em lugar algum da motivação refere esta pretensa nulidade; apenas na conclusão 1. Se afirma (sem qualquer explicação para tal) que “O acórdão recorrido é nulo, na medida em que os fundamentos estão em oposição com a decisão e, sempre, ocorre ambiguidade ou obscuridade que torna a decisão ininteligível”. Sempre se diga, porém, que jamais se alvejaria no aresto da Relação a apontada nulidade. ü Quanto à oposição entre os fundamentos e a decisão: Nesta nulidade está-se perante um vício lógico da sentença/decisão que a compromete; «se, na fundamentação da sentença, o julgador seguir determinada linha de raciocínio, apontando para determinada conclusão, e em vez de a tirar, decidir noutro sentido, oposto ou divergente, a oposição será causa de nulidade da sentença»[1]. Não se trata de um simples erro material (em que o juiz, por lapso, escreveu coisa diversa da que pretendia escrever - contradição ou oposição meramente aparente), mas de um erro lógico-discursivo, em que os fundamentos invocados pelo juiz conduziriam logicamente, não ao resultado expresso na decisão, mas a resultado oposto ou, pelo menos, direção diferente (contradição ou oposição real)[2]. O que não é, também, confundível com o chamado erro de julgamento, isto é, com a errada subsunção dos factos concretos à correspondente previsão normativa abstrata, nem, tão pouco, a uma errada interpretação desta, vícios estes só sindicáveis em sede de recurso jurisdicional[3]. Na verdade, quando, embora indevidamente, o juiz entende que dos factos apurados resulta determinada consequência jurídica e este seu entendimento é expresso na fundamentação, ou dela decorre, está-se perante o erro de julgamento e não perante oposição geradora de nulidade; mas já se o raciocínio expresso na fundamentação apontar para determinada consequência jurídica e na conclusão for tirada outra consequência, ainda que esta seja juridicamente correta, verifica-se a apontada nulidade8. Com efeito, a nulidade da decisão, invocada, (alínea c), 1ª parte, do n.º1, do art.º 615.º do C. P. Civil) remete-nos, portanto, para o princípio da coerência lógica da sentença, pois que entre os fundamentos e a decisão não pode haver contradição lógica. Ora, a decisão recorrida está em sintonia com a fundamentação nela vertida. O que se passa é que a Recorrente, nas suas alegações, vem discordar da decisão havida, quer quanto aos factos, quer quanto ao direito aplicável. Mas já não quanto à estrutura lógica da sentença. Como tal, estamos perante invocação de erro de julgamento e não em face da apontada nulidade. O raciocínio lógico seguido na fundamentação do acórdão está em sintonia com a decisão a final nele proferida. ü Quanto à obscuridade ou ambiguidade da decisão que a torne ininteligível: Não há obscuridade ou ambiguidade alguma – nem tal vem fundamentado ou explicado pela Recorrente – , muito menos a decisão recorrida é ininteligível. Antes é perfeitamente clara, independentemente de com ela se concordar ou não. Como refere o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22-01-2019[4], “A nulidade ancorada na ambiguidade ou obscuridade da decisão proferida, remete-nos para a questão dos casos de ininteligibilidade do discurso decisório, concretamente, quando a decisão, em qualquer dos respectivos segmentos, permite duas ou mais interpretações (ambiguidade), ou quando não é possível saber com certeza, qual o pensamento exposto na sentença (obscuridade).”. Assim também REMÉDIO MARQUES[5]: “a ambiguidade da sentença exprime a existência de uma plurissignificação ou de uma polissemia de sentidos (dois ou mais) de algum trecho, seja da sua parte decisória, seja dos respetivos fundamentos”, e “ a obscuridade, de acordo com a jurisprudência e doutrinas dominantes, traduz os casos de ininteligibilidade da sentença”. O sentido da decisão e dos seus fundamentos é perfeitamente claro, sem qualquer ambiguidade ou obscuridade, pois o pensamento decisório da Relação é facilmente lógico e compreensível através da leitura dos fundamentos utilizados. Improcede esta questão. § DA IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO (se houve erro na apreciação das provas e violação da lei substantiva – no que tange aos factos que na sentença vinham dados como provados sob os nºs 29, 30, 32 a 39, 42, 46 a 48). Impugna a embargante/recorrente a decisão da Relação no que toca à decisão de facto ali prolatada sobre os pontos que na sentença vinham dados como provados sob os nºs 29, 30, 32 a 39, 42, 46 a 48. Para tal, invoca erro na apreciação das provas por banda da Relação, na medida em que, a seu ver, a convicção formada na 1ª instância foi indevidamente posta em causa pela decisão recorrida, decisão esta última que não está em conformidade com os elementos probatórios testemunhais e documentais carreados nos autos. Na sua impugnação da matéria de facto vem agora, em sede de revista, a Recorrente trazer ao de cima os depoimentos prestados na 1ª instância, transcrevendo longos excertos (v.g., da testemunha AA, cfr. pp 19 a 26 das alegações) – maxime no fito de demonstrar que a 1ª embargada (Caixa Leasing) tinha conhecimento que era a embargante quem utilizava, em exclusivo, as fracções cuja entrega foi determinada. O que diz ser corroborado pelos documentos juntos, os quais, no ver da recorrente, comprovam, designadamente, que os pagamentos das rendas desde 2015 eram feitos por ela. De tudo concluindo a recorrente que o contrato de cessão da posição contratual no contrato de locação financeira, feita pela locatária J... à recorrente Fine Facility Services está provado e é perfeitamente válido. Ora bem, impõem-se deixar consignados os poderes do Supremo Tribunal em matéria de facto. Neste conspecto, temos como particularmente relevantes os seguintes normativos: O artº 674º do CPC, que dispõe: “1. A revista pode ter por fundamento: a) A violação da lei substantiva, que pode consistir tanto no erro de interpretação ou de aplicação como no erro de determinação da norma aplicável; b) A violação ou errada aplicação da lei de processo; c) As nulidades previstas nos artigos 615.ºe 666.º.” (…). 3. “O erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objeto de recurso de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que lhe fixe a força de determinado meio de prova.” O artigo 682.º do CPC que, sob a epígrafe “Termos em que julga o tribunal de revista”, dispõe o nº 2 que “A decisão proferida pelo tribunal recorrido quanto à matéria de facto não pode ser alterada, salvo o caso excecional previsto no n.º 3 do artigo 674.”. Daqui resulta, com toda a clareza, que os poderes do STJ, em sede de apreciação/alteração da matéria de facto, são muito restritos. Em regra, ao Supremo Tribunal de Justiça apenas está cometida a reapreciação de questões de direito (ut art. 682º, nº 1, do CPC), assim se distinguindo das instâncias encarregadas também da delimitação da matéria de facto e modificabilidade da decisão sobre tal matéria. Esta restrição, contudo, não é absoluta, como decorre da remissão que o nº 2 do referido art. 682º faz para o aludido art. 674º, nº 3, do NCPC, norma que atribui ao Supremo a competência para sindicar o desrespeito de lei no que concerne à violação de norma expressa que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova. Assim, portanto, só excepcionalmente o Supremo Tribunal de Justiça pode apreciar matéria de facto, ou seja: § Se tiver lugar a violação de direito probatório material por ofensa de disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova ou por ofensa de disposição expressa da lei que fixe a força de determinado meio de prova; § Se houver violação de direito probatório adjectivo[6], designadamente por mau uso que a Relação fez dos seus poderes de reapreciação da matéria de facto: pelo uso meramente formal dos poderes de reapreciação; pelo estabelecimento de presunções judiciais em oposição a norma legal, em oposição com os factos apurados ou com insuficiência dos mesmos, ou mediante patente ilogicidade; pela anulação de respostas em desconformidade com as regras processuais; § Se houver insuficiência da matéria de facto apurada para a correcta solução jurídica da causa[7]. Se se verificar contradição essencial na matéria de facto[8]. Ora, parece-nos evidente que nenhuma das apontadas situações se verifica, nomeadamente, não se constata ter a Relação, na reapreciação da matéria de facto que levou a cabo, ofendido disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência de um facto ou que fixe a forma de determinado meio de prova. Pelo contrário: o tribunal a quo levou a cabo a reapreciação da decisão de facto impugnada no âmbito da valoração da prova segundo a livre e prudente convicção do julgador, dentro dos limites do seu poder de cognição estipulados no artigo 662.º, n.º 1, do CPC, sendo tal reapreciação sustentada em análise crítica nos termos do disposto no artigo 607.º, n.º 4, 1.ª parte, e n.º 5, 1.ª parte, aplicável ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do mesmo Código. Assim, nos sobreditos termos, não pode este Supremo Tribunal sindicar essa reapreciação de facto operada pela Relação. Aliás, é justo referir que a relação, na sua análise da impugnação da decisão de facto, levou a cabo uma análise cuidada e bem fundamentada, ponderando todos os elementos probatórios carreados aos autos, não apenas, portanto, a prova testemunhal, mas também os documentos, aos quais deu o devido valor probatório em conformidade com a sua natureza (particular), a sua impugnação pela contraparte e a incidência das regras sobre o ónus da prova, tudo ponderado com serenidade e a devida profundidade. Em boa verdade, a recorrente limita-se a alegar que houve erro na apreciação das provas, mas sem procurar demonstrar o preenchimento de qualquer circunstância que preenchesse alguma das excepções previstas no referido atrº 674º, nº3 do CPC que permitissem a este Supremo Tribunal imiscuir-se na reapreciação da decisão de facto operada pela Relação. Não basta, para fundamentar o recurso de revista no que tange à matéria de facto, a alegação vaga de que o Tribunal a quo interpretou erradamente a matéria de facto. Como já em tempos idos sublinhava este STJ, no acórdão de 17-03-1993, disponível em www.dgsi.pt “Exceptuando o caso de ter havido "ofensa duma disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova", é vedado ao Supremo Tribunal apreciar se o Tribunal da Relação errou ou acertou na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa- artigos 722, n. 2 e 729, n. 2 Código de Processo Civil.”[9]. Assim, tal como entendeu o (mais recente) aresto deste STJ (acórdão de 27/09/2018)[10] disponível em www.ecli.pt “A recorrente não imputa ao Acórdão a violação de lei adjectiva ou a ofensa a disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova ou que fixe o valor de determinado meio de prova, pelo que entendemos estar afastada a intervenção deste Supremo Tribunal de Justiça que, como já se deixou dito, não pode interferir na decisão da matéria de facto, por ser da exclusiva competência das instâncias.”[11]. Já agora (e porque, para além da prova testemunhal, a recorrente se “agarra” a determinados documentos juntos, para levar de vencida a sua pretensão de ver alterada a decisão da Relação sobre a matéria de facto – assim se procurando valer do disposto naquele nº3 do artº 674º CPC, alegando a sua violação por ofensa a disposição expressa de lei que… fixe o valor de determinado meio de prova”), é de salientar que os documentos que são referidos pela recorrente para lograr a prova dos factos que refere (diversa daquela que operou a Relação) não têm, de todo, o valor probatório que lhes pretende dar. Assim: - Quanto ao doc. 2 junto com os embargos (fls. 20 – com que pretendia provar o facto 29º), a decisão recorrida tem razão ao concluir que do mesmo não resulta a prova de que a Recorrida tivesse tido conhecimento da utilização das frações pela Recorrente desde 2015, como esta alegou. E o mesmo se diga dos demais documentos juntos aos autos, designadamente os emails juntos em 15.11.2020, os quais – como bem diz a Relação – “não dão qualquer concussão sobre a utilização das fracções em questão nos autos ela embargante e, na afirmativa, se esta ocorria há mais de 5 anos”. - Quanto aos docs. 5, 6 e 7, juntos com os embargos – que a sentença teve por base para a prova, em especial, dos pontos de facto 32, 33, 36, 37 e 38 (pontos totalmente eliminados pela relação – salvo o 36 que apenas foi alterado) – , também não podem fazer a prova dos factos que a recorrente pretende ver provados. Assim, designadamente quanto aos factos 32 e 33, não está provado documentalmente a cessão da posição contratual no contrato de locação financeira que com o doc. 5 se pretendia ver provada, pois que se trata de um documento particular (que, como tal, não faz a prova plena pretendida pela recorrente, ut artº 376º do CC) e a Recorrida, além de invocar o desconhecimento de tal documento que titulasse a alegada cessão, também impugnou a sua genuinidade nos termos e para os efeitos do artigo 444.º n.º 1 do CPC, daí que incidisse sobre a recorrente o ónus de provar a veracidade do mesmo documento. Veja-se que a 1ª instância se sustentou, essencialmente, na prova testemunhal para fazer a prova da referida cessão da posição contratual. Prova essa, como dito, que estaca ao controlo deste Supremo Tribunal de Justiça. E os docs. 6 e 7 igualmente não provam o que com eles a recorrente pretende provar (o pagamento das rendas pela embargante à embargada, e que esta sempre tenha aceitado). A recorrida impugnou tais documentos particulares e foi com base em prova testemunhal que, afinal, procurou a recorrente vingar o seu ponto de vista quanto a tal factualidade, nomeadamente o depoimento da sua contabilista Drª CC. Prova testemunhal essa que se reitera escapar à alçada deste Supremo Tribunal, nos sobreditos termos. Ou seja, não se almeja que em situação alguma a Relação tivesse dado força probatória indevida a documento junto ou que deixasse de atender à força probatória de qualquer documento carreado aos autos, maxime os docs. citados. No mais, cremos ser desnecessário transcrever aqui a fundamentação levada a cabo pelo acórdão recorrido para concluir pela eliminação dos pontos de facto que a recorrente pretende sejam aqui repristinados. Diremos apenas que essa motivação está, no nosso ver, para além de desenvolvida, bem estruturada e firmada numa análise cuidada da prova produzida nos autos, em perfeita sintonia com as regras do nosso direito adjectivo, nomeadamente levando na devida conta o valor probatório que a nossa lei atribui aos documentos juntos referidos nos pontos de facto aqui questionados. Veja-se, com efeito, a extensa e bem apresentada motivação de facto vertida a pp 54 a 70 do acórdão recorrido (que aqui nos dispensamos de reproduzir), a qual mostra com toda a evidência a falta de razão da recorrente em ver alterada a decisão da matéria de facto com sustento em alegado erro na apreciação das provas (sejam as testemunhas, sejam os documentos que refere – estes que, reitera-se, não têm a força probatória que a recorrente neles quer ver e, como tal, não preenchem a excepção ínsita no nº 3, fine, do citado artº 674º do CPC, que permita ao STJ fazer a revista da decisão de facto). Assim improcede esta questão da impugnação da decisão da matéria de facto. § DA (IN)VALIDADE DA CESSÃO DA POSIÇÃO CONTRATUAL [celebrada entre a 2ª embargada J..., S.A. (como cedente) e a Recorrente/embargante Fine Facility Services, Lda (como cessionária), no contrato de locação financeira imobiliária que havia sido celebrado entre a 1ª embargada Caixa Leasing e Factoring Instituição Financeira de Crédito, S.A. (locadora), e a embargada J... (locatária)]. Pode considerar-se – como sustenta a Recorrente – que teve lugar, validamente, a cessão da posição contratual no contrato de locação financeira imobiliária que havia sido celebrado entre a Caixa Leasing (locadora) e a embargada J...? Que sim, entende a Recorrente; que não, sustenta a Recorrida e o acórdão recorrido. Vejamos.
A cessão da posição contratual, regulada nos arts. 424 e ss. do Cód. Civ., constitui, nas palavras de Mota Pinto [12], “o meio dirigido à circulação da relação contratual, i. é, à transferência ‘ex negotio’ por uma das partes contratuais (cedente), com consentimento do outro contraente (cessionário), do complexo de posições activas e passivas criadas por um contrato.”.
É a faculdade concedida a qualquer dos contraentes — cedente —, em contratos com prestações recíprocas, de transmitir a um terceiro — cessionário — a sua inteira posição contratual, isto é, o complexo unitário constituído pelos créditos e dívidas que para ele resultaram do contrato, desde que o outro contraente — o cedido — consinta na transmissão (art. 424º do CC)[13]. Ou, nas palavras de Antunes Varela, é o negócio pelo qual um dos outorgantes em qualquer contrato sinalagmático transmite a terceiro, com o consentimento do outro contraente, o complexo dos direitos e obrigações que lhe advieram desse contrato [14].
A cessão envolve uma substituição de sujeitos num dos lados da relação contratual, uma modificação subjectiva numa relação contratual que, todavia, permanece a mesma: a relação contratual que existia entre o cedente e o cedido é a mesma de que passa a ser sujeito, após o novo negócio, o cessionário. Este negócio tem na sua base (ut artº 425º do CC) o negócio causal em que a cessão se integra, donde nasceu a posição (complexo de direitos e deveres) que um dos contraentes (cedente) transmite a terceiro[15]. Trata-se de um negócio cujo efeito típico principal consiste na transferência da posição contratual, no estádio de desenvolvimento em que se encontrava no momento da eficácia do negócio, de uma das partes do contrato para outra[16], denominando-se cedente o contratante que transmite a posição adquirida no contrato-base, cessionário, o contratante que adquire a posição contratual transmitida, isto é, aquele que fica investido no complexo de direitos e obrigações que eram do cedente, e cedido, o contratante que, sendo a contra-parte do cedente no contrato-base, continua a ser a contra-parte do cessionário. Enquanto exemplo típico de aquisição derivada translativa, é da essência da cessão, regulada nos artºs 424º a 427º do CC, a substituição do cedente pelo cessionário na titularidade dos direitos daquele; o direito adquirido pelo cessionário é o mesmo que já pertencia ao cedente; o mesmo, e não um outro, constituído ex novo. Como salientam PINTO MONTEIRO e MOTA PINTO[17], na aquisição derivada translativa adquire-se, por transferência, um direito já constituído e pré-existente na titularidade de outra pessoa, direito este que mantém a sua identidade, apesar da mudança de sujeito. Assim, “a relação contratual que tinha como um dos titulares o cedente é a mesma de que passa a ser sujeito, após o novo negócio, o cessionário: successio non producit novum ius sed vetus transfer”.
No instituto da cessão da posição contratual estão envolvidos dois contratos: o contrato base ou inicial do qual nasce a posição que um dos contraentes (cedente) transmite a terceiro; e o contrato instrumento, negócio causal que opera a transmissão da posição contratual. O regime da cessão é definido pelo tipo de contrato que a realiza, pois que a forma de transmissão, a capacidade de dispor e de receber, a falta e vícios da vontade e as relações entre as partes definem‑se em função do tipo de negócio que serve de base à cessão (art. 425.º do Código Civil). Destarte, as relações entre o cedente e o cessionário — os sujeitos do contrato de cessão — estão sujeitas ao regime, legal e convencional, que disciplina o contrato que serviu de base à cessão. Na verdade, se é certo que a cessão da posição contratual é um negócio policausal, um contrato de causa variável, o mesmo não é um negócio abstracto e rege‑se pelos mesmos termos do negócio inicial [18]. ** A sentença condenou os embargados a reconhecer que a embargante possui a qualidade de locatária no contrato de locação financeira n9 337787 que fora celebrado entre a sociedade insolvente J..., S.A. e a Caixa Leasing e Factoring Instituição Financeira de Crédito S.A, por considerar válido e eficaz entre Embargante e Embargadas o contrato de cessão de posição contratual em contrato de locação celebrado a 31 de Março de 2015 entre a J..., S.A. e a Embargante. Mais declarou ineficaz quanto à Embargante a declaração de resolução feita pela Embargada/Locadora quanto ao aludido contrato, face à opção de incumprimento do contrato feita pela Administradora de Insolvência, dessa forma condenando a Locadora/primeira embargada a (mediante o pagamento do valor em falta para cumprimento antecipado e integral do contrato de locação imobiliária) outorgar escritura de compra e venda do imóvel objecto da locação a favor da Embargante. Assim não entendeu o acórdão recorrido, considerando a cessão da posição contratual, operada nos autos, inválida e ineficaz em relação à embargada Caixa Leasing e Factoring Instituição Financeira de Crédito S.A., dada a sua invalidade formal e, outrossim, porque não deu, em momento algum, o seu assentimento à cessão. Vejamos. ** Perante a opção tomada pela embargada insolvente, de incumprimento do contrato de locação financeira imobiliária, foi pela Caixa Leasing e Factoring resolvido tal contrato. E porque a insolvente locatária, ora segunda embargada, não procedeu à restituição do imóvel objecto da locação operada, a primeira embargada instaurou providência cautelar para entrega judicial do imóvel, nos termos do disposto no artigo 21º do Decreto-Lei nº 149/95 de 24 de Junho, providência que foi julgada procedente e decretada a imediata entrega do imóvel à primeira embargada. Essa entrega foi tentada concretizar em 08-07-2020. Porém, depois, em 14-07-2020, a embargante aprestou-se a deduzir embargos de terceiro em 10-07-2020 a fim de lograr impedir a concretização de tal acto judicialmente ordenado. Dispõe o art.º 342º, nº 1, do Cód. Proc. Civil, que “Se a penhora, ou qualquer ato judicialmente ordenado de apreensão ou entrega de bens ofender a posse ou qualquer direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência, de que seja titular quem não é parte na causa, pode o lesado fazê-lo valer, deduzindo embargos de terceiro”. Os embargos de terceiro desempenham a mesma função que as ações possessórias propriamente ditas: são meios de tutela da posse ameaçada ou violada. Simplesmente desempenham essa função no caso particular de a ameaça ou ofensa da posse provir de diligência judicial. Nos termos do nº 1 do art.º 1037º, do Cód. Proc. Civil na redação anterior ao Dec. Lei nº 329-A/95, de 12.12, a função dos embargos de terceiro estava limitada à defesa da posse, ofendida por qualquer diligência ordenada judicialmente. Face ao novo regime, de acordo com o supra citado preceito legal, o embargante, além da posse, pode, através dos embargos de terceiro, defender qualquer outro direito incompatível com a realização ou âmbito da diligência judicial que se traduza num acto de agressão patrimonial. Considerando o preceito legal citado resulta que são requisitos dos embargos de terceiro: - a qualidade de terceiro por parte do embargante, isto é, que o embargante não haja intervindo no processo ou no ato jurídico de que emana a diligência judicial, nem represente quem no acto se obrigue; - a sua posse ou a titularidade de qualquer direito incompatível com a realização ou âmbito da diligência; - a ofensa deste por diligência judicialmente ordenada. De harmonia com o citado normativo, pode concluir-se que a embargante tem a posição de terceiro, desde que nem a sentença nem o acto jurídico constituam para ele fonte de obrigação[19]. No que toca aos fundamentos, os embargos de terceiro - tal como as acções possessórias - assentam sobre um duplo fundamento: fundamento de direito - a posse; fundamento de facto - a lesão ou a ameaça de lesão da posse[20]. Regressando aos autos, é claro que a embargante é terceiro em relação ao procedimento cautelar requerido pela embargada Caixa Leasing de entrega imediata do bem imóvel nos termos do artº 21º do DL 149/95, de 24.06, porquanto não intervém no mesmo nem no contrato de locação financeira que sustentou o pedido naqueles autos, pelo que se verifica o primeiro requisito exigido pelo citado preceito legal. Mas não vemos que a embargante esteja em condições de se defender validamente contra o aludido ato judicialmente ordenado de …entrega do bem, por ofensa duma eventual sua posse ou qualquer direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência, de que seja titular. E simplesmente porque a cessão da posição contratual não pode considerar-se válida e eficaz em relação à locadora/embargada Caixa Leasing. * Em sede de resolução do contrato de locação financeira, dispõe os arts 17º e 18º do D.L. nº 149/95, de 24 de Junho, que o contrato pode ser resolvido por qualquer das partes, nos termos gerais, com fundamento no incumprimento das obrigações da outra parte e, ainda, com fundamento na dissolução ou liquidação da sociedade locatária e/ou verificação de qualquer dos fundamentos de declaração de falência do locatário. Foi o que aconteceu no caso sub judice: face à opção de incumprimento do contrato de locação financeira por banda da Massa Insolvente, a embargada locadora procedeu à resolução do mesmo contrato (cfr. arts. 434º e 801º/2 CC). A Massa Insolvente é constituída por "todo o património do devedor à data da declaração de insolvência, bem como os bens e direitos que ele adquira na pendência do processo", ainda que arrestados, penhorados ou por qualquer forma apreendidos ou detidos (cf. art.s 46º, 36º nº1, al. g), e 149º do CIRE). Assim, portanto, os bens que integram a massa insolvente (cfr. artigo 46.º, nº1 CIRE) são, desde logo, os bens do devedor. O que quer dizer que o bem imóvel objecto da presente providência, porque não integra o conjunto de bens pertencentes ao insolvente – pertencendo, ao invés, à sociedade locadora – , - não pode ser apreendido a favor da massa insolvente. Como tal, "Quanto ao património do devedor não incluído na massa insolvente, o devedor pode deles dispor e administrar com total liberdade (sem prejuízo do regime estatuído no n.° 8 e de eventuais ações judiciais levada a cabo pelos credores)"[21]. Explicando a articulação entre os artigos 102º e 108º do CIRE, diz MARIA DO ROSÁRIO EPIFÂNIO[22] que "[p]or força do art. 108º, nº 1, a declaração de insolvência não suspende o contrato de locação em que o insolvente seja locatário. Contrariamente ao princípio geral do art. 102º, nº 1, em que o contrato fica suspenso até que o administrador da insolvência decida o seu destino, nos contratos de locação tal não é possível. De facto, uma vez que o locatário continua a usufruir do gozo do bem, deverá continuar a pagar a respetiva renda ou aluguer, como crédito sobre a massa (art. 51º, nº 1, als. e) e f))"[23]. Mas o locatário não é possuidor do bem. Com efeito, como se diz na sentença, “É, pois, da essência da locação financeira o gozo temporário e oneroso de uma coisa pelo locatário, com eventual possibilidade de este comprar ao locador nos moldes contratualmente acordados, pelo que, assim, o locatário é titular de um direito de gozo, não possuindo a posse, mas mera detenção (possuidor em nome alheio) Fernando Gravato de Morais, Manual de Locação Financeira, mas que a lei protege para efeitos de dedução de embargos, mas que seriam improcedentes perante a invocação de exceptio domiini, que, aliás foi invocada pelo embargado locador". Entendeu, porém, a sentença que, apesar de a Embargada/locadora ter invocado tal exceptio dominii, tal não vingava contra a Embargante, dado ter havido uma transmissão da posição contratual do primitivo locatário para si (Embargante) e que essa cessão era válida porque tinha sido reconhecida pelo próprio locador/Embargada. Ora, é precisamente aqui que falta razão à sentença: não teve lugar tal reconhecimento da cessão da posição contratual no contrato de locação financeira imobiliária dos autos, o que o torna ineficaz relativamente à locadora Embargante. Como bem refere o Ac. da Rel de Lisboa de 24.01.2012[24], "Sendo o locador o dono do bem locado, e até ao fim do prazo acordado (cfr. n.g 2, alínea e) do artigo 10g do DL 149/95 ), obrigado está ele a assegurar e a entregar a coisa cuja posse exerce através do locatário ( cfr. artg 103lg, do CC ( ex vi do artg 9g DL 149/95), interessando a este último, na pendência do contrato, a posse material do bem locado que afecta ao destino da sua locação, isto por um lado e, por outro, interessando por sua vez e ao locador a propriedade da coisa locada (...). Concomitantemente, percebe-se portanto que licito é ao locatário financeiro, ainda que verdadeiramente um não possuidor, lançar mão das acções possessórias, mesmo contra o locador. (...) Mas, pretendendo um terceiro servir-se de embargos de terceiro para fazer valer a posse material do bem locado, carece ele de alegar e provar que detém relativamente ao referido bem uma ligação decorrente de um contrato que, v.g. na sequência da cessão de posição contratual eficaz perante o locador, lhe permite usar e fruir dele, podendo inclusive usar contra o locador dos meios facultados ao possuidor nos artgs 1276º e seg.s do CC. (...) Não logrando o referido terceiro efectuar tal prova, prima facie não podia ele deduzir embargos de terceiro a título preventivo e com vista a afastar a concretização de um acto judicialmente ordenado, mas, tendo-o feito, têm eles necessariamente de improceder"[25]. ** Como ressalta do referido supra, são dois os requisitos da cessão da posição contratual: que se trate de um contrato bilateral; que tenha lugar o consentimento do outro contraente — que pode ser dado antes ou depois da cessão (ver art. 424.º, n.º 2 CC). O n.º 2 do citado art. 424.º dispõe que «se o consentimento do outro contraente for anterior à cessão, esta só produz efeitos a partir da sua notificação ou reconhecimento».
A respeito deste consentimento, como ensinava Vaz Serra, na falta de notificação do cedente ao cedido, o reconhecimento («aceitação») deste último só relevará, para que a cessão produza efeitos em relação a ele, no caso de se revestir de um significado tão amplo que equivalha para esse efeito à notificação. Assim acontecerá quando o contraente cedido passa a cumprir as suas obrigações contratuais para com o cessionário — por outras palavras, reconheça, na pessoa do cessionário, a sua contraparte. Da mesma forma, escreve Luís Menezes Leitão [26] que “a cessão da posição contratual não é, porém, admissível sem o consentimento do outro contraente, prestado antes ou depois da celebração do contrato, resultando assim do efeito conjugado das declarações negociais do cedente, cessionário, e da outra parte no contrato transmitido. Normalmente o negócio de cessão da posição contratual é celebrado primeiro entre cedente e cessionário, ficando depois a sua eficácia dependente da aceitação do outro contraente, mas este pode igualmente dar previamente o seu consentimento a toda e qualquer cessão da posição contratual. * Entendeu o Ac. recorrido que inexiste cessão válida da posição contratual no contrato de locação financeira, por duas razões: 1. Porque o contrato não é formalmente válido; 2. Porque a locadora/Embargada não deu o necessário consentimento para a cessão. E assim é, de facto, no nosso ver. Sobre a transmissão das posições jurídicas do contrato de locação financeira, reza o artº 11º do DL nº 149/95, de 24.06: «"1 - Tratando-se de bens de equipamento, é permitida a transmissão entre vivos, da posição do locatário, nas condições previstas pelo artigo 115º do Decreto-Lei nº 321-B/90, de 15 de Outubro, e a transmissão por morte, a título de sucessão legal ou testamentária, quando o sucessor prossiga a actividade profissional do falecido. 2 - Não se tratando de bens de equipamento, a posição do locatário pode ser transmitida nos termos previstos para a locação. 3 - Em qualquer dos casos previstos nos números anteriores, o locador pode opor-se à transmissão da posição contratual, provando não oferecer o cessionário garantias bastantes à execução do contrato. 4- O contrato de locação financeira subsiste para todos os efeitos nas transmissões da posição contratual do locador, ocupando o adquirente a mesma posição jurídica do seu antecessor.". Assim se vê que nada há que impeça a cessão da posição contratual em contrato de locação financeira sub judice. § Da inobservância da forma do contrato Como supra se observou, artigo 425.9 do CC é claro ao dispor que: "A forma da transmissão, (…), definem-se em função do tipo de negócio que serve de base à cessão". Isto é, a forma da cessão é a mesma do negócio jurídico que lhe serve de base ou causa, ou em que assenta; a mesma que é imposta por lei para o negócio subjacente, do qual resulta a posição cedida. É que, como supra ficou dito, a cessão tem na sua base o negócio causal em que a cessão se integra, donde nasceu a posição (complexo de direitos e deveres) que um dos contraentes (cedente) transmite a terceiro. Negócio causal esse, portanto, que vai servir de “guia” para a cessão no que tange aos requisitos formais da cessão, a capacidade de dispor e de receber, a falta e vícios da vontade e as relações entre as partes. O mesmo é dizer que a cessão da posição contratual deve observar a forma imposta por lei para o negócio subjacente, do qual resulta a posição cedida[27]. Ora, sobre a forma dos contratos de locação financeira rege, desde logo, o artigo 3.9 do D.L. nº 149/95, de 24 de Junho, que dispõe: "1 - Os contratos de locação financeira podem ser celebrados por documento particular. 2 - No caso de bens imóveis, as assinaturas das partes devem ser presencialmente reconhecidas, salvo se efectuadas na presença de funcionário dos serviços do registo, aquando da apresentação do pedido de registo. 3 - Nos casos referidos no número anterior, a existência de licença de utilização ou de construção do imóvel deve ser certificada pela entidade que efectua o reconhecimento ou verificada pelo funcionário dos serviços do registo. 4 - A assinatura das partes nos contratos de locação financeira de bens móveis sujeitos a registo deve conter a indicação, feita pelo respectivo signatário, do número, data e entidade emitente do bilhete de identidade ou documento equivalente emitido pela autoridade competente de um dos países da União Europeia ou do passaporte. - A locação financeira de bens imóveis ou de móveis sujeitos a registo fica sujeita a inscrição no serviço de registo competente". Escreveu-se, com acerto, no acórdão recorrido: «Ora, no caso dos autos, o documento junto pela embargante para titular a cessão não contém reconhecimento presencial das assinaturas dos ali dados como intervenientes que, de acordo com o que se lê de tal documento, inclusivamente, declararam prescindir de uma tal formalidade. Este aspeto, porque em contravenção à prescrição normativa e ao que resulta do disposto no artigo 425.9 do CPC levaria, caso se comprovasse a cessão, a concluir pela nulidade do negócio correspondente (cfr., nesta linha, o decidido no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 08-11-1999, Pº 9950958, rel. ANTÓNIO GONÇALVES). Mas, para além desta previsão normativa, importa atentar naquilo que consta, em termos de sujeição a forma convencional, no contrato de locação financeira constante dos autos, aspeto que não poderia ser olvidado por quem se aprestasse a pretender celebrar um negócio de cessão da posição contratual, tendo por objeto a posição de locatária de tal contrato. De facto, a cláusula 7ª das condições gerais deste contrato tem o seguinte teor: "7ª - Cessão de Posição Contratual e Sublocação 1. O Locatário não poderá ceder a sua posição contratual, sublocar ou permitir, por qualquer forma ou título, a utilização total ou parcial do imóvel por terceiros, sem o prévio consentimento escrito do Locador e sem que o imóvel se encontre devidamente licenciado (...)" Ora, não resulta de qualquer elemento dos autos que a ora recorrente tenha autorizado, por escrito e em momento anterior à de ocorrência da invocada cessão (31-03-2015), alguma transmissão, aspeto que, por si só determinaria a ineficácia de tal negócio, caso o mesmo se tivesse apurado. Mas, para além disso, não se comprovou qualquer reconhecimento por parte da embargada contestante, sobre a embargante, que a pudesse configurar como locatária da locação financeira dos autos e de onde pudesse derivar a eficácia de tal invocada cessão. Não se conclui, pois, ao contrário do juízo formulado na decisão recorrida, no sentido de que o ato de entrega judicialmente determinado se possa considerar, de qualquer modo, ofensivo dos direitos da embargante, pela simples razão de que não logrou esta demonstrar ser titular de uma posição subjetiva que lhe permita opor à locadora e ora recorrente algum motivo que obste à efetivação da entrega do imóvel que foi objeto da locação financeira dos autos. De facto, não pode encontrar-se algum fundamento de oposição por embargos na comprovação dos depósitos e transferências apurados, os quais, no contexto da contratação de locação financeira em questão não podem basear qualquer pretensão juridicamente relevante, designadamente, no sentido de ter ocorrido um tácito consentimento relativamente a uma cessão, pois, desde logo, seria necessário que, para uma cessão da posição contratual fosse eficaz relativamente à segunda embargada, a celebração da mesma - ou seja, antes de a cessão ter ocorrido - fosse consentida por escrito por esta, elemento de que os autos não dão qualquer conta. Não se sufraga, pois, o entendimento do Tribunal recorrido no sentido de que a embargante podia "confiar que, enquanto cessionária cabia a si a posição de locatária", dado que, como se viu, não tendo a cessão da posição contratual que invocou produzido quaisquer efeitos relativamente à segunda embargada, não poderia a embargante pretender obter tal tutela jurídica.». Assim, portanto, em matéria de forma do contrato, a alegada cessão da posição contratual não obedeceu ao estatuído no D.L. nº 149/95, de 24 de Junho: “documento particular”, com “assinaturas das partes… presencialmente reconhecidas”. § Da necessidade do consentimento da cedida/locadora/Embargada Caixa Leasing Para além do estatuído no referido artigo 3.9 do D.L. nº 149/95, de 24 de Junho – a exigir reconhecimento presencial das assinaturas dos outorgantes na cessão – , consta do próprio contrato de locação financeira, no que tange à cessão da posição contratual, a obrigatoriedade de consentimento e de o mesmo ser prestado por escrito. Com efeito, reza, como vimos, a cláusula 7ª das condições gerais do contrato: "7ª - Cessão de Posição Contratual e Sublocação 1. O Locatário não poderá ceder a sua posição contratual, sublocar ou permitir, por qualquer forma ou título, a utilização total ou parcial do imóvel por terceiros, sem o prévio consentimento escrito do Locador e sem que o imóvel se encontre devidamente licenciado (…)”[28]. Ora, não resulta de qualquer elemento dos autos que a ora recorrente tenha autorizado, muito menos por escrito, e em momento anterior à de ocorrência da invocada cessão (31-03-2015), alguma transmissão. Aspecto que, por si só determinaria a ineficácia de tal negócio, caso o mesmo se tivesse apurado. A propósito do consentimento do locador, escreve FERNANDO GRAVATO MORAIS[29]: «"[pjode enunciar-se quanto à transferência inter vivos da situação jurídica do locatário a seguinte regra: essa transmissão ocorre de acordo com as normas vigentes em sede de mera locação (art. 11º, nº 2 DL 149/95). Esta cessão, como expressa o art. 1059º, n 2 CC, "está sujeita ao regime geral dos artigos 424.g e seguintes". Destes preceitos emerge que tal transferência necessita sempre do consentimento do locador financeiro, não sendo, portanto, a cedência da posição contratual do locatário forçada ou imperativa em relação àquele. O princípio enunciado encontra-se em consonância com as disposições do regime jurídico da locação financeira (...). Se o locatário transferir a sua posição jurídica sem a respectiva aquiescência do locador, estamos perante uma situação de incumprimento do contrato de locação financeira que pode acarretar a sua resolução por parte do locador (art. 17.- DL 149/95 e arts. 432.- ss. CC)"[30]. Escreveu-se, como toda a pertinência, no acórdão recorrido: « Como resulta dos autos, a embargante (terceiro relativamente ao contrato de locação financeira) veio alegar que ocorreu uma cessão da posição contratual do primitivo locatário (a segunda embargada) para si, cessão que o locador (a ora recorrente e primeira embargada) teria invocadamente reconhecido. Ora, sucede que, conforme resultou da decisão tomada em sede de apreciação da impugnação sobre a matéria de facto, não se validou o juízo tomado pelo Tribunal recorrido no sentido de que tal cessão da posição contratual teve lugar e, designadamente, com data de 31-03-2015, elementos que caberia à embargante demonstrar, o que não fez (cfr. facto não provado constante da alínea d)). Tanto basta para a improcedência da pretensão deduzida pela embargante e, consequentemente, para a revogação do decidido.». Ou seja, mesmo que se considerasse ter ocorrido a alegada cessão da posição contratual, sempre este negócio, para ser eficaz em relação à locadora Caixa Leasing (isto é, para produzir efeitos em relação a ela, primeira Embargada), teria de ser por esta consentido (e por escrito - 3.9 do D.L. nº 149/95, de 24 de Junho), consentimento que não resultou comprovado. Como vimos, o artigo 424º do CC é claríssimo: "1. No contrato com prestações recíprocas, qualquer das partes tem a faculdade de transmitir a terceiro a sua posição contratual, desde que o outro contraente, antes ou depois da celebração do contrato, consinta na transmissão. 1. Se o consentimento do outro contraente for anterior à cessão, esta só produz efeitos a partir da sua notificação ou reconhecimento.". Sobre a necessidade do consentimento, já supra citámos a opinião de VAZ SEERRA e de LUÍS MENEZES LEITÃO. E também ALMEIDA COSTA[31] observa que se reconduzem a dois os requisitos fundamentais deste negócio: "1) Em primeiro lugar, exige-se que se trate de um contrato bilateral, quer dizer, de que advenham direitos e obrigações para ambas as partes (...). 2) Em segundo lugar, constitui ainda requisito legal o consentimento do outro contraente. Este pode ser dado antes ou depois da cessão (...)". Acrescenta, com acerto, a decisão recorrida: «Com efeito, De facto, conforme explica Gonçalo Andrade e Castro (anotação ao artigo 424º do CC, no Comentário ao Código Civil; Direito das Obrigações - Das obrigações em geral; Universidade Católica Editora; 2018, p. 115): "A cessão implica a substituição do cedente pelo cessionário, pelo que o primeiro deixa de poder exercer os direitos e fica também exonerado das obrigações e outros deveres que do contrato resultem (embora possa, ao abrigo da liberdade contratual, estipular-se a subsistência de direitos ou obrigações do cedente). A transmissão tem efeitos ex nunc, dado que tem por objeto a relação contratual no estado em que se encontra à data da cessão, pelo que não abrange, nomeadamente, direitos já constituídos e obrigações já vencidas quanto ela tem lugar (...). O fato de a cessão implicar também a transmissão de débitos e outras posições jurídicas passivas explica que a lei exija sempre o consentimento do contraente cedido, podendo esse consentimento ser prestado no próprio contrato de cessão, no qual aquele também intervenha, ou ser anterior ou posterior a esse ato (e podendo ser feito por via contratual ou através de declaração unilateral). Quando o consentimento seja anterior, a cessão deverá ser comunicada ao cedido. O consentimento pode ser expresso ou tácito, podendo resultar, por exemplo, da aceitação de pagamentos feitos pelo cessionário (...), mas já não pode resultar do mero silêncio do contraente cedido, salvo se a lei, uso ou convenção lhe reconhecerem esse valor (...).". E refere o mesmo Autor (ob. cit., p. 116) que, "a falta de consentimento do contraente cedido implica a absoluta ineficácia da cessão enquanto instrumento de transmissão da posição contratual complexa - parecendo não dever aceitar-se, em linha de princípio, a conversão da cessão não autorizada noutro negócio não exoneratório do cedente". Assim, "para que a cessão da posição contratual (artigo 424 nº 1 do Código Civil) produza efeitos em relação ao outro contraente (cedido), é necessário que este consinta na transmissão, antes ou depois dela. O consentimento referido (...) pode ser tácito (artigo 217 nº do Código Civil), podendo relevar-se através de conduta concludente do contraente cedido. Enquanto não for dado o consentimento referido (...), a cessão é ineficaz em relação ao cedido, incumbindo a quem invoca a cessão da posição contratual o ónus de alegação e prova daquele consentimento (artigo 342 nºl do Código Civil)" (neste sentido, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 22-10-2002, P9 0221146, rei. LEMOS JORGE). Conforme se concluiu no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 15-03-2012 (pg 1241/05.0TBBNV.L1-2, rei. JORGE LEAL), "o contrato de cessão de posição contratual é o negócio pelo qual um dos outorgantes em qualquer contrato bilateral ou signalamático transmite a terceiro, com o consentimento do outro contraente, o complexo dos direitos e obrigações que lhe advieram do contrato, dessa forma se operando a substituição de um dos titulares da relação contratual básica, saindo o cedente, entrando para o seu lugar o cessionário e mantendo-se o contraente cedido. Para que tal modificação subjetiva do contrato se consume é necessário o consentimento do outro contraente, o qual pode exprimir-se tácita ou expressamente, sendo certo que o silêncio do cedido perante a comunicação da cessão não vale como consentimento, a não ser que no caso concreto a lei, uso ou convenção lhe atribua o valor de declaração negocial".». Também MOTA PINTO refere que a cessão da posição contratual só se torna perfeita e eficaz após a cooperação do cedido[32]. *** Mas mesmo que por hipótese se admitisse não ser exigível o consentimento escrito para a cessão (que, porém, o era, como vimos, dado o plasmado na clª 7ª das condições gerais do contrato), nada nos factos provados permite concluir ter a Locadora dado o seu assentimento à cessão. E nem, sequer podemos ler na conduta da locadora/Embargada Caixa Leasing um hipotético consentimento tácito ou anuência tácita à alegada cessão da posição contratual. Como ensina Manuel de Andrade [33], pode definir‑se a declaração negocial como “todo o comportamento de uma pessoa (em regra, palavras escritas ou faladas ou sinais) que, segundo os usos da vida, convenção dos interessados ou até, por vezes, disposição legal aparece como destinado (directa ou indirectamente) a exteriorizar um certo conteúdo de vontade negocial, ou em todo o caso o revela e traduz”, sendo que, para tal, esse comportamento deve ser visto de fora, deve ser considerado exteriormente (art. 236.º, n.º 1, do CC). Podendo tal declaração ser feita de forma expressa ou tácita (art. 217.º do CC), existirá declaração tácita sempre que, conforme aos usos da vida, haja, quanto aos factos de que se trata, toda a probabilidade de terem sido praticados com dada significação negocial (aquele grau de probabilidade que basta na prática para as pessoas sensatas tomarem as suas decisões), ainda que não esteja precludida a possibilidade de outra significação [34]. “Não se trata de apurar uma conclusão absolutamente irrefutável, antes se procura uma conclusão altamente provável” [35]. Não se exigindo sequer, para se aquilatar da concludência de um comportamento no sentido de permitir concluir a latere um certo sentido negocial, a consciência subjectiva por parte do seu autor desse significado implícito, bastando que objectivamente, de fora, numa consideração de coerência, ele possa ser deduzido do comportamento do declarante [36]. Por isso, “quando a declaração negocial se não exprime por palavras ou por escrito, terão os outros meios directos de manifestação de vontade de ser inequívocos, de modo a que não haja necessidade de recorrer a deduções ou interpretações da atitude das partes” [37]. Ou seja, tal declaração tácita tem de resultar de factos inequívocos, isto é, que com toda a probabilidade revelam a vontade negocial [38], sendo esse o sentido que, nos termos do n.º 1 do artigo 236.º do CC deles retiraria um declaratário normal, ou seja, medianamente instruído e inteligente, colocado na situação concreta do declaratário. Assim, “há que imaginar uma pessoa com razoabilidade, sagacidade, conhecimento e diligência medianos, considerando as circunstâncias que ela teria conhecido e o modo como teria raciocinado a partir delas, mas figurando‑a na posição do real declaratário, isto é, acrescentando as circunstâncias que este concretamente conheceu, mesmo que um declaratário normal delas não tivesse conhecido” [39]. Ora, o que vemos nos autos é que a Embargante se “agarra” aos depósitos de rendas do contrato efectuados no fito de procurar demonstrar que a Locadora/Embargada/Recorrida teve conhecimento da cessão e, como tal, a ela anuindo. Porém, não ficou provado que a Locadora tinha conhecimento desde 2015 da suposta cessão porque recebeu os valores devidos pelas rendas no âmbito do contrato de locação – aliás, nem sequer provado está que tais pagamentos tenham sido feitos com o conhecimento da Administradora de Insolvência (cfr. factos provados na sentença sob os nºs 36º, 38 e 39, mas que a Relação eliminou). Ou seja, perante os factos provados não se pode, sequer, considerar que desde 2015 e da alegada celebração do contrato de cessão da posição contratual a Recorrente, Fine Facility Services, faz os pagamentos das rendas (como ressalta à saciedade da alteração feita pela Relação ao ponto 36º dos factos que a sentença havia dado como provado – e bem assim, diga-se, dos pontos 37º a 39º). Precisamente a propósito das respostas dadas pela Relação aos aludidos pontos de facto (36º a 39º - o primeiro alterado e os demais simplesmente eliminados pela Relação), diz-se, com toda a justeza, pertinência e acerto nas contra-alegações: “…o facto de os pagamentos serem feitos presencialmente por cheque junto a um balcão da Caixa Geral de Depósitos, S.A., que então era uma entidade autónoma da Caixa Leasing e Factoring, SFC, S.A. não faz com que a Recorrente tivesse conhecimento de quem fazia os pagamentos. … Sendo a então Caixa Leasing e Factoring, SFC, S.A. e a Caixa Geral de Depósitos, S.A., entidades autónomas, e sendo os pagamentos feitos em balcão da CGD, S.A., não se pode afirmar que os pagamentos eram feitos à Caixa Leasing e Factoring, SFC, S.A. e que por tal motivo aquela não poderia ignorar a suposta cessão. … a Recorrida … recebia os pagamentos e imputava-os ao contrato por considerar que os mesmos eram feitos pela J..., locatária no contrato de locação financeira imobiliária. … Nunca tendo a ora Recorrente se apresentado como locatária no contrato. … E aliás, mesmo que os pagamentos não hajam sido feitos pela locatária desde 2015, o que não se aceita, se é verdade que a parte credora apenas pode exigir do devedor o cumprimento das prestações, o inverso não acontece. … O artigo 767.º n.º 1 do CC prevê que a prestação pode ser feita pelo devedor ou por terceiro independente deste ter interesse ou não no cumprimento da obrigação. … Deste modo, nem o facto de ser terceiro a proceder ao pagamento das rendas poderia gerar a convicção de que esse terceiro assumiria a posição de devedor no contrato. …Ora, após o momento em que a Sra. Administradora de Insolvência do processo de insolvência da J... optou pelo não cumprimento do contrato de locação financeira imobiliária celebrado com a ora Recorrida, os pagamentos recebidos deixaram de ser alocados ao contrato.”. Mas mais incisivo e assertivo é o remate da Recorrida: “… como é que a Recorrente quer fazer valer crer que fazia os pagamentos das rendas enquanto locatária no contrato durante supostamente 5 anos, o que não se aceita, mas em momento algum pediu que as faturas fossem emitidas a seu favor. … Ao invés da sua emissão a favor da J..., como sempre ocorreu. … Como decorre das faturas juntas com a contestação aos embargos de terceiro, como Docs. 3 e 4, datadas de 10-20-2020 e 10-03-2020 que foram emitidas a favor da Locatária J.... … Demonstrando que era a essa entidade a que ora Recorrida reconhecia a qualidade de locatária. (…). Ou seja, a Recorrente, pessoa coletiva que se supõe ter a contabilidade organizada, faria os pagamentos desde 2015, o que não sei aceita, mas em momento algum pede que seja emitido em seu nome documentação que permita justificar esses mesmos pagamentos. … O que na verdade acaba por ser explicador de toda esta situação: a Recorrida Caixa Geral de Depósitos” – que sucedera à Locadora Caixa Leasing e Factoring – “não sabia desse alegado contrato de cessão da posição contratual, recebendo os pagamentos e emitindo as faturas a favor daquela que considerava a entidade pagadora, a J..., e a Recorrente tinha pleno conhecimento disso, nunca tendo solicitado a emissão de faturas a seu favor.”. Concorda-se inteiramente. O que reforça a conclusão de que a Recorrida não teve conhecimento da cessão da posição contratual trazida à liça pela Recorrente. ** Face à apontada ausência da forma devida e, outrossim, à inexistência do consentimento da locadora, não pode concluir-se que tenha tido lugar uma cessão válida de eficaz da posição contratual da Embargada/locatária J..., S.A., para a Embargante Fine Facility Services, Lda.. O que torna a cessão, de todo, ineficaz em relação à Embargada/Locadora. ** DO ABUSO DO DIREITO E (subsidiariamente) DO ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA (por banda da Locadora Caixa Leasing e Factoring). Trás a Recorrente aos autos as figuras do abuso do direito e do enriquecimento sem causa no fito de, também por esta via, lograr levar de vencida a sua pretensão. Sem qualquer sucesso, porém. § Quanto ao abuso do direito Não se tendo provado que a recorrida/Locadora/Embargada, Caixa Geral de Depósitos, tivesse tido conhecimento desde 2015 da suposta cessão porque recebera o valor devidos pelas rendas no âmbito do contrato de locação, obviamente que se não pode falar em abuso de direito, na versão do venire contra factum proprum, ao vir a CGD requerer a restituição das fracções na sequência da opção pelo não cumprimento expressamente manifestada pela Administradora de Insolvência. Com efeito, como visto, não se provou que a embargada CGD tivesse conhecimento que era a embargante quem desde 2015 procedia ao pagamento dos valores mensais devidos a título de renda, em cumprimento do contrato de locação financeira. E, já agora, também se não pode afirmar ter a Administradora de Insolvência, no processo de insolvência da J..., agido em abuso de direito. Com efeito, nem sequer está assente nos autos que o pagamento das rendas do contrato de locação financeira pela embargante/Recorrida tenha ocorrido com o conhecimento da Administradora de Insolvência. A Administradora de Insolvência apenas tinha de tomar posição quanto ao cumprimento do contrato, dado que era o único válido e em execução, como resulta do disposto no artº 81º do CIRE. E a posição que tomou foi, simplesmente, de não cumprimento do contrato. Por aqui se ficou, não tendo obtido – tem tinha de o ter – qualquer consentimento da locadora CGD, pois a cessão passou-lhe, de todo, ao lado depois da posição que tomou de não cumprir o contrato de locação financeira, como tal, não tendo a Massa Insolvente tido qualquer posição no que tange à cessão da posição contratual. * Abuso de direito é o exercício de um direito de forma ilegítima por se exceder manifestamente os limites impostos pela boa fé [40], pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito. Abrange o exercício de qualquer direito de forma anormal, quanto à sua intensidade ou à sua execução, de modo a poder comprometer o gozo dos direitos de terceiro e a criar uma desproporção entre a utilidade do exercício do direito e as consequências decorrentes desse exercício. Assim, há abuso de direito, segundo a concepção objectiva consagrada no artigo 334.º do C.C., sempre que o titular do direito o exerce com manifesto excesso dos limites impostos pela boa fé e pelos bons costumes, ou pelo fim económico ou social do direito. O instituto do abuso do direito tutela, deste modo, situações em que a aplicação de um preceito legal, normalmente ajustada, numa concreta situação da relação jurídica, se revela injusta e fere o sentido de justiça dominante. Tal instituto, bem como os princípios da boa fé e da lealdade negocial, são meios de que os tribunais devem lançar mão para obtemperar a situações em que alguém, a coberto da invocação duma norma tuteladora dos seus direitos, ou do exercício da acção, o faz de uma maneira que, objectivamente, e atenta a especificidade do caso, conduz a um resultado que viola o sentimento de Justiça, prevalecente na comunidade, que, por isso, repudia tal procedimento, que apenas formalmente respeita o Direito, mas que, em concreto, o atraiçoa. Como se afirmou no acórdão do S.T.J. de 10 de Outubro de 1991 [41], “Nos termos do artigo 334.º do Código Civil há abuso de direito e é portanto ilegítimo o seu exercício quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito. Agir de boa fé tanto no contexto deste artigo como no do artigo 762.º, n.º 2, é “agir com diligência, zelo e lealdade correspondente aos legítimos interesses da contraparte, é ter uma conduta honesta e conscienciosa, uma linha de correcção e probidade a fim de não prejudicar os legítimos interesses da contraparte e não proceder de modo a alcançar resultados opostos aos que uma consciência razoável poderia tolerar”.
Ora, de forma alguma, perante os factos provados nos autos, se pode dizer que a conduta da Embargada/locadora, ao peticionar a entrega judicial do imóvel dado em locação financeira à Embargada/locatária J.R. Costa, revele uma conduta injusta, a ferir o sentido de justiça dominante. Como diz MANUEL CARNEIRO DA FRADA[42], "na concretização dos ditames de um comportamento de boa fé importa obviamente ponderar a normalidade social das condutas e os "papéis" sociais desempenhados pelos contraentes, as representações recíprocas a esse respeito, os usos comerciais, valorações de justiça objectiva (tanto as ligadas às especificidades da relação concreta, como as próprias do género de relação em que aquela se integra, enquanto suas naturalia), critérios de distribuição dos riscos da relação (...). Na extensa panóplia de tópicos utilizáveis avultam, naturalmente, as expectativas informalmente engendradas no contexto da relação contratual concreto, não devendo esquecer-se a ordem de solidariedade mínima que informa o âmbito da relação obrigacional e que restringe a possibilidade de comportamento puramente egoísticos". Donde razão assistir ao acórdão recorrido quando remata que «não se alcança dos factos apurados qualquer actuação da embargada contestante em desconformidade com estes ditames de conduta conforme à boa fé, nem alguma confiança em que a embargante devesse ter investido sobre a conduta da contraparte, não se tendo demonstrado, pois, qualquer abuso de direito por parte da embargada contestante, nem por derivação sequer da conduta levada a efeito pela Administradora de Insolvência, sendo, neste particular conspecto, inteiramente de acolher as considerações expendidas nas alegações da recorrente (cfr. artigos 226º a 248º), para as quais, por economia, se remete.». § Quanto ao enriquecimento sem causa Não há enriquecimento algum, obviamente, atenta a factualidade provada.
Estabelece o artigo 473.º, n.º 1, do Código Civil [43], que “aquele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou”. Por sua vez, dispõe o n.º 2, do mesmo preceito que “a obrigação de restituir, por enriquecimento sem causa, tem de modo especial por objecto o que foi indevidamente recebido, ou o que for recebido por virtude de uma causa que deixou de existir ou em vista de um efeito que não se verificou”.
O enriquecimento sem causa é, assim, uma fonte de obrigações que cria uma obrigação de restituir, em que figura como credor o sujeito à custa de quem o enriquecimento se verificou e como devedor o beneficiário desse direito [44]. Idem nas palavras de Manuel de la Camara‑Luis Diez‑Picazo [45]. É uniformemente entendido que só há enriquecimento sem causa quando o património de certa pessoa ficou em melhor situação, se valorizou ou deixou de desvalorizar, à custa de outra pessoa, sem que para tal exista causa justificativa [46]. O enriquecimento traduz‑se, portanto, na obtenção de um valor, de uma vantagem de carácter patrimonial susceptível de avaliação pecuniária. E resulta da comparação entre a situação em que se encontra actualmente o património do enriquecido e aquela que se verificaria se não se tivesse dado o enriquecimento. O enriquecido “fica em melhor situação do que aquela que de outro modo apresentaria”, correspondendo a essa vantagem “um prejuízo suportado pelo sujeito que requer a restituição” [47]. Em suma, pode dizer-se‑ que o facto que enriquece uma pessoa tem de produzir o empobrecimento da outra.
É, assim, pacifico na nossa Doutrina e Jurisprudência que a aplicação do instituto do enriquecimento sem causa exige a verificação cumulativa de alguns requisitos: a) Existência de um enriquecimento à custa de outrem; b) Existência de um empobrecimento; c) Nexo de causalidade entre o enriquecimento e o empobrecimento; d) Ausência de causa justificativa; e) Inexistência de acção apropriada que possibilite ao empobrecido meio de ser indemnizado ou restituído [48]. Ora, no caso dos autos não se alcança, por qualquer modo, dos factos apurados alguma situação de enriquecimento por parte de qualquer das embargadas, na ocorrência das deslocações patrimoniais levadas a efeito, o que, por si só, faz decair qualquer aplicação ao caso concreto do instituto do enriquecimento sem causa. Veja-se que a Recorrida recebeu o dinheiro das rendas, mas para tal cedeu o gozo de um imóvel que é sua propriedade nos termos do disposto no artigo 1º do DL 149/95 de 24 de Junho e ao qual poderia ter dado outra finalidade ou disposto de outra forma. Já a Recorrente alegadamente pagou as rendas, mas fê-lo por livre iniciativa e interesse próprio ou de grupo e para gozar e usar um imóvel que não é sua propriedade e que aparentemente ocupa sem qualquer título legitimo para tal desde 2015 (altura em que terá começado a pagar as rendas). Assim, portanto, não se verifica a falta de causa justificativa para qualquer suposto enriquecimento. Pois que a causa sempre será o contrato de locação financeira imobiliária celebrado com locatária J... em que a Recorrida/Locadora lhe proporcionava o gozo do imóvel mediante o pagamento, por ela, das respectivas rendas. Donde se não perceber de que forma se pode considerar estarmos perante um caso de enriquecimento sem causa, pois é manifesto que se não preenchem os requisitos supra elencados de tal instituto. * Assim claudicam todas as conclusões da revista. ** IV. DECISÃO Face ao exposto, acorda-se em julgar improcedente o recurso e, consequentemente, negar a revista, mantendo-se o decidido no Acórdão da Relação. Custas da revista a cargo da Recorrente. Lisboa, 27 de outubro de 2022 Fernando Baptista de Oliveira (Juiz Conselheiro Relator) Vieira e Cunha (Juiz Conselheiro 1º adjunto) Ana Paula Lobo (Juíza Conselheira 2º Adjunto) ________ [1] JOSÉ LEBRE DE FEITAS e ISABEL ALEXANDRE, Código de Processo Civil Anotado, vol. 2º, 3ª ed., Almedina, p. 736. [2] Cfr. ALBERTO DOS REIS, Código de Processo Civil Anotado, vol. V, 1984, Coimbra Editora, p. 141 e ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA e SAMPAIO NORA, Manual de Processo Civil, 2ª ed., Coimbra Editora, 1985, p. 690. [3] Cfr. FRANCISCO MANUEL LUCAS FERREIRA DE ALMEIDA, Direito Processual Civil, Vol. II, 2015, Almedina, p. 371. [4] Disponível em www.dgsi.pt. [5] In “Ação Declarativa À Luz Do Código Revisto”, 3.ª Edição, pág. 667. [6] Cfr. acórdãos do STJ de 05.02.2020 (proc. 13097/17.5T8LSB.L1.S1), de 20.02.2020 (processo 1893/12.4TBSCR.L2.S2) e Ac. no proc. 6126/15.9T8BRG.G1.S1. Ainda, ABRANTES GERALDES, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5ª ed., págs.434-436. [7] Art.º 682º, nº 3, do CPC. [8] Art.º 682, nº 3, do CPC. [9] Destaque nosso. [10] Disponível em www.dgsi.pt [11] Destaque nosso. [12]-Cessão da Posição Contratual, reimpressão, Coimbra, 1982, pp. 71º-72. [13]- Almeida Costa, Direito das Obrigações, 3.ª ed., p. 578. [14]- Das Obrigações, 2.ª ed., 2.º-347; 3.ª ed., 2.º-351 [15] Cfr. PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, CCivil Anotado, Volume I, 3ª ed., pág.378; MOTA PINTO, Cessão da Posição Contratual, Colecção Teses, Almedina, págs.449 e ss; GALVÃO TELLES, Manual dos Contratos Em Geral, reimp., 3ª ed., 1995, págs.365 e ss. e Cessão do Contrato na RFDUL 6 (1949), págs.148 a 169; JACINDO RODRIGUES BASTOS, Notas ao CCivil, Vol.II, pág.214.[16] MOTA PINTO, Cessão da posição Contratual, pág. 450. [17] Teoria Geral da Relação Jurídica, 4ª edição, pág. 359. [18] Cfr. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, 2.ª ed., vol. II, p. 357. [19] Cfr. ALBERTO DOS REIS, Processos Especiais, I, 1955, págs. 402 e 411 a 413; ANSELMO DE CASTRO, A Ação Executiva Singular, Comum e Especial, 1970, pág. 351 e segs.; JACINTO RODRIGUES BASTOS, Notas ao Cód. Proc. Civil, IV, 1984, págs. 285 a 287; Acórdão do S.T.J., de 22 de Junho de 1989, "in" Bol. Min. Just., n. 388, pág. 426. [20] ALBERTO DOS REIS, ob. cit., pág. 404. [21] LUÍS M. MARTINS, Processo de Insolvência, 2016, 49 Edição, Almedina, p. 297. [22] Manual de Direito da Insolvência, 7.5 Ed., Almedina, 2019, p. 223. [23] Cfr., ainda sobre o tema, entre outros, JOSE DE OLIVEIRA ASCENSÃO, "Insolvência: Efeitos sobre os Negócios em Curso", in THEMIS, Revista da FDUNL, 2005, Edição Especial, "Novo Direito da Insolvência", pp. 113-114. [24] Proc. 1741/10.0TBCLD-A.L1. [25] Destaque nosso. [26]- Direito das Obrigações, Almedina, vol. II, a pág. 79. [27] Cfr. VAZ SERRA, em "Anotação ao Acórdão do STJ de 5 de Novembro de 1974", in RLJ, ano 108º, pp. 346-347. [28] Destaque nosso. [29] Manual da Locação Financeira, Almedina, 2006, p. 98. [30] Destaque nosso. [31] Direito das Obrigações, 5ª ed., Almedina, 1991, p. 696. [32] Cfr. Cessão da Posição Contratual, Colecção Teses, Almedina, pp 491. [33]- Teoria Geral da Relação Jurídica, vol. II, remipressão, Coimbra, 1992, p. 122. [34]- Autor e ob. cits., p. 132. [35]- Rui de Alarcão, A Confirmação dos Negócios Anuláveis, p. 218. [36]- Carlos Alberto da Mota Pinto, Teoria geral do Direito Civil, 3.ª ed., Coimbra, 1989, p. 425. [37]- Ac. RP, de 06-12-1994; www.dgsi.pt/jtrp; Processo 9450299. [38]- Cfr. Ac. STJ, de 13.02.1959; BMJ 84.º, p. 507. [39]- Paulo da Mota Pinto, Declaração Tácita e Comportamento Concludente no Negócio Jurídico, p. 208. [40]- O princípio da boa fé, que é de aplicação geral a todos os domínios do jurídico, vale para todo o comportamento juridicamente relevante das pessoas” (Coutinho de Abreu, “Do Abuso de Direito”, p. 61) e pressupõe, necessariamente, uma “específica relação inter‑pessoal (embora não necessariamente negocial, ou sequer, pré ou circum‑negocial), fonte de uma específica relação de confiança — ou, pelo menos, expectação de conduta — cuja frustração ou violação seja particularmente clamorosa” (Orlando de Carvalho, “Teoria Geral do Direito Civil”, Centelha, Coimbra, 1991, p. 56). A boa fé, na sua vertente de princípio geral de direito, constitui um “critério que deve presidir e orientar todo o comportamento” (Fernando Cunha Sá, “Abuso do Direito”, p. 172) e que consiste num agir caracterizado pela correcção, lealdade e honestidade. Efectivamente, segundo Coutinho de Abreu (“Do Abuso de Direito”, p. 55) o princípio da boa fé significa “que as pessoas devem ter um comportamento honesto, correcto, leal nomeadamente, no exercício dos direitos e deveres, não defraudando a legítima confiança ou expectativa dos outros”. [41]- In BMJ, n.º 412, p. 460. [42] Teoria da Confiança e Responsabilidade Civil, Almedina, 2007, pp. 448-449. [43]-A este diploma se reportam todas as citações de normas jurídicas sem indicação de proveniência. [44]- Cfr. Rui de Alarcão, in Direito das Obrigações, Coimbra, 1983, p. 178. [45]- Dos Estudios Sobre el Enriquecimiento Sin Causa, Civitas, 1988, pp. 49 a 60. [46]- Cfr. Galvão Telles, in Direito das Obrigações, 6.ª ed., p. 179; Vaz Serra, in BMJ n.º 81, p. 56. [47]-Rui de Alarcão, in ob. cit., p. 185. [48]-Pires de Lima / Antunes Varela, Código Civil Anotado, I, Coimbra Editora, 4.ª ed., pp. 454 e ss.; Júlio Manuel Vieira Gomes, O Conceito de Enriquecimento, O Enriquecimento Forçado e os Vários Paradigmas do Enriquecimento Sem Causa, Universidade Católica, Porto, 1998; Luís Manuel Telles de Menezes Leitão, O Enriquecimento Sem Causa no Direito Civil, Cadernos de Ciência e Técnica Fiscal n.º 176, Centro de Estudos Fiscais, 1996, pp. 858 a 896 — que concentra os requisitos em três, a saber, o enriquecimento, a sua ocorrência à custa de outrem, e que tenha ocorrido sem causa justificativa; Galvão Telles, ob. cit., 6.ª ed., pp. 179 e ss.; Pessoa Jorge, Direito das Obrigações, I, AAFDL, p. 237; Moitinho de Almeida, Enriquecimento sem Causa, Almedina, 1996, p. 45; Manuel de la Camara-Luis Diez Picazo, ob. cit., pp. 100 a 116; Manuel Albaladejo, Derecho Civil — Derecho de Obligaciones, II, 2.º, 10.ª edicion, Bosch, 1997, pp. 473 a 477; Puig Brutau, Compendio de Derecho Civil, II, Bosch, 1997, pp. 615 a 624. |