Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
| Processo: |
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| Nº Convencional: | 1.ª SECÇÃO | ||
| Relator: | ISAÍAS PÁDUA | ||
| Descritores: | ARGUIÇÃO DE NULIDADES ERRO DE JULGAMENTO CONTRADIÇÃO OMISSÃO DE PRONÚNCIA PODERES DE COGNIÇÃO PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA AÇÃO DE REIVINDICAÇÃO USUCAPIÃO DIREITO DE PROPRIEDADE CAUSA DE PEDIR ÓNUS DE ALEGAÇÃO FACTOS ESSENCIAIS AQUISIÇÃO POSSE | ||
| Data do Acordão: | 11/16/2021 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | REVISTA | ||
| Decisão: | NEGADA A REVISTA - RECURSO PRINCIPAL - BAIXA DO PROCESSO À RELAÇÃO - RECURSO SUBORDINADO | ||
| Indicações Eventuais: | TRANSITADO EM JULGADO | ||
| Sumário : | I - As nulidades da sentença/acórdão, encontram-se taxativamente previstas no artº. 615º CPC e têm a ver com vícios estruturais ou intrínsecos da sentença/acordão também conhecidos por erros de atividade ou de construção da própria sentença/acordão, que não se confundem com eventual erro de julgamento de facto e/ou de direito. II - A nulidade da sentença/acórdão prevista no 1º. segmento do al. c) do nº. 1 do citado artº. 615º - fundamentos em oposição com a decisão - ocorre quando os fundamentos de facto e/ou de direito invocados pelo julgador deveriam conduzir logicamente a um resultado oposto ao expresso na decisão, existindo, pois, uma contradição entre as suas premissas, de facto e/ou de direito, e conclusão/decisão final. III - Os factos e/ou respostas de que resultaram, só devem considerar-se contraditórios quando se mostrem absolutamente contraditórios entre si, de tal forma que não possam coexistir entre si, ou seja, quando se apresentem como um conteúdo logicamente incompatível, de tal modo que não possam subsistir entre si. IV- Por sua vez, a nulidade da sentença/acórdão prevista no 1º. segmento do al. d) do nº. 1 do citado artº. 615º - que deve ser articulado com o nº. 2 do artº 608º do mesmo diploma legal -, traduz-se numa omissão de pronúncia por parte do julgador, relativamente a uma questão que lhe foi submetida a apreciação pelas partes, a qual deve aferida em função direta do pedido e da causa de pedir aduzidos pelas partes ou da matéria de exceção capaz de conduzir à inconcludência/improcedência da pretensão para a qual se visa obter tutela judicial, dela sendo excluídos os argumentos ou motivos de fundamentação jurídica esgrimidos/aduzidos pelas próprias partes. V - Como decorre do preceituado nos artºs. 674º, nº. 3, CPC (em conjugação ainda com o artº. 682º desse mesmo diploma), o STJ, como regra, apenas conhece de matéria de direito, carecendo, por isso, de competência para apreciar a matéria de facto, a não ser que haja ofensa de disposição legal que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova. VI - Daí que, em sede revista, o STJ só poderá sindicar o uso feito pela Relação de presunções judiciais (que têm a virtualidade de se integrar naquela exceção à regra referida em V) se esse uso ofender norma legal, se padecer de evidente ilogicidade ou se partir de factos não provados. VII - São dois os pedidos que caracterizam a ação de reivindicação (artº. 1316º do CC): a) o reconhecimento do direito de propriedade (pronuntiatiob) e a restituição da coisa (condennatio). VIII - Nesse tipo de ações a causa de pedir é um tanto ou quanto complexa, compreendendo tanto os atos ou os factos jurídicos de que deriva o direito de propriedade invocado pelo autor, como também a própria ocupação abusiva feita (pelo réu) do prédio reivindicado. IX - Assim, para que tal ação possa ter êxito deverá, desde logo, o autor alegar os factos correspondentes que permitam levar à prova da invocada aquisição direito de propriedade sobre a coisa. X - Como regra, é insuficiente a invocação de uma forma de aquisição derivada (vg. contrato de compra e venda, adjudicação por partilha, etc.), por não ser constitutiva do direito de propriedade, mas somente translativa desse direito, a menos que se comprove que o direito já existia no transmitente, o que nem sempre é fácil e possível, e daí a conhecida designação da probatio diabolica. XI - A usucapião é, por excelência, uma das formas de aquisição originária dos direitos reais de gozo (nos quais se destaca o “elástico” direito de propriedade), cuja verificação depende de dois elementos: a posse e o decurso de certo período de tempo (variável consoante a natureza móvel ou imóvel da coisa, e as características/espécies da posse). XII - Posse essa que pode ser adquirida por qualquer um dos modos (taxativamente) elencados no artº. 1263º do CC, e dos quais se destacam: “pela prática reiterada, com publicidade, dos atos materiais correspondentes ao exercício do direito” e “pela inversão do título da posse”. XIII - No nosso ordenamento jurídico, a posse consubstancia-se em dois elementos: o corpus (que, como elemento externo/material, se identifica com a prática de atos materiais sobre a coisa, ou seja, com o exercício de certos poderes de facto sobre ela, de modo contínuo e estável) e o animus (que, como elemento interno/psicológico, se traduz na vontade ou intenção do autor de na prática de tais atos se comportar como titular ou beneficiário do direito correspondente a esses atos realizados). XIV - Elementos esses cuja presença simultânea se exige permanentemente, para que possa haver, na sequência da prática reiterada e contínua de atos materiais de posse, a aquisição, por via da usucapião, do correspondente direito ao exercício de tais atos. XV - Se só o primeiro desses elementos (“o corpus”) ocorre, estamos perante uma simples situação de detenção, insuscetível, em princípio, de conduzir à dominialidade sobre a coisa. XVI - Porém, considerando as dificuldades em demonstrar (muitas vezes) a posse em nome próprio, ou seja, do referido animus, a lei (vg. através do nº. 2 do artº. 1252º do CC) estabeleceu uma verdadeira presunção (iuris tantum) do mesmo a favor de quem detém ou exerce os poderes de facto sobre a coisa, ou seja, presumindo que quem tem o corpus tem também o animus posssidendi. XVII - Porém, por força da expressão nele plasmada (“sem prejuízo do disposto no n.º 2 do artigo 1257.º”), tal normativo, terá de ser articulado ainda com o nº. 2 do artº. 1257º do mesmo diploma (onde se estatui que “presume-se que a posse continua em nome de quem a começou.”). XVIII - Donde que da leitura conjugada desses dois normativos, ressalta, desde logo, consagrarem-se neles duas presunções legais iuris tantum: a) No primeiro deles a presunção de que quem detém ou exerce os poderes de facto sobre coisa, se presume também que o faz com o animus posssidendi (a existência do corpus faz presumir o animus); b) e no segundo estabelece-se a presunção da continuidade da posse por parte de quem a iniciou. XIX - E daí que que só possa beneficiar da presunção estabelecida no nº. 2 do citado artº. 1252º do CC o pretenso possuidor que se apresente como iniciador da posse sobre a coisa cuja propriedade reivindica. XX - Para que ocorra inversão de título torna-se necessário que o detentor expresse diretamente (nomeadamente junto da pessoa em nome de quem possuía) a sua intenção de atuar como titular do direito, ou então que o faça através de exteriorização de uma vontade categórica de possuir em nome próprio, revelada por inequívocos atos positivos de oposição (materiais ou jurídicos), reveladores, assim, de que o detentor quer a partir dessa oposição comportar-se como proprietário da coisa/bem. XXI - O juízo de censura que enforma o instituto da litigância de má-fé (consagrado no artº. 542º do CPC) radica, essencialmente, na violação dos elementares deveres de probidade, cooperação e de boa-fé a que as partes estão adstritas, para que o processo seja “justo e equitativo”. XXII - Enquanto as als. a) e b) do citado normativo legal se reportam à chamada má-fé material/substancial (direta ou indireta), já as restantes alíneas têm a ver com a má-fé processual/instrumental. XXIII - O âmbito da má-fé abrange hoje, tanto a atuação dolosa, como a atuação com negligência grave. XXIV - A garantia de um amplo direito de acesso aos tribunais e do exercício do contraditório, próprios do Estado de Direito em que vivemos, são incompatíveis com interpretações apertadas ou muito rígidas desse instituto, havendo sempre que ter presente as características e a natureza de cada caso concreto, e daí que se recomende uma certa prudência e razoabilidade na formulação do juízo sobre essa má-fé. | ||
| Decisão Texto Integral: | Acordam no Supremo Tribunal de Justiça
I - Relatório 1. No Tribunal Judicial da Comarca ... (Juízo Central Cível), os autores, AA e mulher BB, instauraram (em 21/09/2017 ) contra os réus, CC - por si e como legal representante da sua filha menor DD - e EE, todos com os demais sinais nos autos, a presente ação declarativa, sob forma de processo comum, pedindo no final a condenação desses réus a reconhecerem o direito de propriedade dos AA., ou pelo menos do autor-marido, sobre um imóvel destinado a habitação, melhor identificado nos autos, e, consequentemente, a restituírem-no aos AA., bem como a pagarem-lhes, a título de indemnização, a quantia mensal de € 500,00, contabilizada a partir da data da sua citação para a ação e até à data da entrega efetiva do referido imóvel. Para o efeito, e em síntese, alegaram: Serem donos e legítimos possuidores do referido imóvel – casa de habitação que construíram, em 1994, numa parcela de terreno de um prédio urbano, registado a favor do A. marido, que antes fora pertença dos seus pais, mas que depois lhe foi adjudicada em partilha, a qual foi entretanto, para esse efeito, destacada do logradouro desse prédio, após ter obtido para tal autorização camarária -, cuja propriedade adquiriram, se outro título não tivessem, por usucapião. Casa de habitação essa que, no ano de 2000, permitiram então que o seu filho (FF) e a 1ª. R. (na altura casados entre si) passassem, de forma gratuita e transitória, a nela residir (bem como os filhos do casal), continuando os AA. a pagar os respetivos impostos devidos por esse imóvel, e bem como a utilizar uma garagem nele existente. Em finais do ano de 2016, e já após se ter dissolvido (por divórcio) o casamento entre aquele seu filho e a 1ª. R., os AA., e como tivessem passado a ter necessidade da referida casa para eles próprios nela habitaram, solicitaram então aos RR. (que nela continuaram a viver com a sua autorização) que lha entregassem, o que os mesmos se recusaram a fazer, continuando, sem qualquer título que o justifique, a ocupá-la contra a vontade dos AA. . Situação essa, de privação indevida do uso do dito imóvel, que vem causando, além do mais, aos AA. um prejuízo não inferior a € 500,00 mensais, e que corresponde ao valor que um imóvel com as características daquele dos AA. seria arrendado. 2. Contestaram os réus, defendendo-se (e tendo em conta o novo articulado aperfeiçoado que apresentaram na sequência do convite que lhes foi formulado para o efeito por despacho judicial, no sentido de clarificarem se, no que concerne à alegada aquisição do direito de propriedade sobre tal imóvel por via da usucapião, o faziam por via de exceção ou por via de reconvenção) por impugnação e por exceção. No que concerne à última defesa (por exceção perentória) alegaram factos tendentes a demonstrar terem adquirido, por via da usucapião, a propriedade sobre o imóvel que os AA. reivindicam na presente a ação (sem que, contudo, tenham formulado, por via reconvencional, o correspondente pedido de reconhecimento desse direito de propriedade). Terminaram, assim, pedindo a improcedência da ação, com a sua absolvição do pedido. 3. No despacho saneador, proferido na audiência prévia, considerou-se, de forma tabelar, válida e regular a instância, tendo-se relegado para final o conhecimento da sobredita exceção aduzida pelos RR., após o que ali se procedeu à identificação do objeto do litígio e à enunciação dos temas de prova, sem que tivesse sido apresentada qualquer reclamação. 4. Realizada a audiência (gravada) de discussão e julgamento, foi proferida sentença, no final da qual se decidiu julgar improcedente a ação, absolvendo-se, em consequência, os RR. dos pedidos contra si formulados pelos AA. . 5. Inconformados com tal sentença, dela apelaram os AA., vindo o Tribunal da Relação de Évora (doravante TRE), na apreciação desse recurso, a proferir acórdão (de 10/10/2019) no qual se decidiu anular aquela sentença da 1ª. instância, determinando-se a repetição da audiência de julgamento, com a produção de novas provas ali indicadas consideradas indispensáveis para a boa decisão da causa. 6. Baixados os autos à 1ª. instância, e realizada a audiência de julgamento para os efeitos determinados pelo TRE, veio a ser proferida nova sentença que, no final, voltou a julgar a ação improcedente, absolvendo os RR. dos pedidos contra si formulados pelos AA. . 7. Novamente irresignados, os AA. interpuseram recurso de apelação daquela última sentença, o qual veio a ser julgado procedente por acórdão do TRE (de 25/03/2021), decidindo - após ter alterado parte da matéria de facto fixada pela 1ª. instância – revogar aquela sentença, declarando os AA. donos e legítimos proprietários da sobredita casa de habitação reivindicada pelos mesmos na presente ação, condenando, em consequência, os RR. a restituir-lha totalmente livre e desocupada. 8. Inconformados com esse último acórdão do TRE, dele interpuseram recurso de revista (normal) os RR. (a título principal ou independente) e os AA. (estes a título subordinado). 9. Nas correspondentes alegações de recurso (independente) que apresentaram, os RR. concluíram as mesmas nos seguintes termos: « § PRIMEIRA I. Um dos fundamentos do recurso de revista é a verificação no acórdão recorrido de alguma das nulidades previstas no art. 615.º do CPC, conforme se extrai do estatuído da al. c) do n.º 1 do art. 674.º do mesmo diploma. II. No acórdão revidendo, o Tribunal a quo começou por proceder à alteração da matéria de facto dada como provada no ponto 2.1.8. III. No entanto, estava vedado ao Tribunal a quo proceder à alteração da matéria de facto nos ulteriores pontos da matéria de facto alterados em segunda instância, face ao que foi dado como provado no ponto 2.1.8. IV. Com efeito, as alterações à matéria de facto levadas a cabo pelo Tribunal a quo basearam-se, todas, no pressuposto de que os AA. apenas toleraram/permitiram aos RR. ocupar o imóvel como meros detentores precários, com o consentimento expresso daqueles, e que os RR., consequentemente, nunca inverteram o título da posse, não tendo neles se verificado o “animus” necessário à aquisição por usucapião (vide, especialmente, os pontos alterados pelo Tribunal a quo, 2.1.11 a 2.1.15, 2.1.18, 2.1.28 e 2.1.29, 2.2.6 a 2.2.11). V. No entanto, no ponto 2.1.8 foi dado como provado, pelo Tribunal a quo que sempre foi intenção do A. “transmitir tal parcela de terreno para o seu filho”. Ficou assim estabelecido, de forma inequívoca e bastante clara que a intenção do A. foi, de facto “transmitir” o imóvel em litígio nos autos recorridos ao seu filho. Deste facto dado como provado impunha-se o seguimento lógico dessa conclusão factual, a qual sempre foi intenção do A. transmitir o imóvel e não meramente, cedê-lo, de forma gratuita VI. Este corolário lógico do que foi dado como provado no ponto 2.1.8 pelo Tribunal a quo, está em evidente contradição com os subsequentes pontos da matéria de facto alterada na segunda instância, na medida em que todas as alterações da matéria de facto pressupuseram que a “transmissão” foi meramente “gratuita” VII. O facto dado como provado no ponto 2.1.8, alterado pelo Tribunal a quo entra em conflito (i)lógico e insolúvel com a matéria de facto alterada e dada como provada e não provada nos subsequentes pontos 2.1.11 a 2.1.15 (alteradas pela Relação), 2.1.17 e 2.1.27 (alterados pela Relação), 2.1.18, 2.1.28 e 2.1.29 (alterados pela Relação, passando a dar-se como não provados e eliminados da factualidade provada pela 1.ª instância) e, por fim, os pontos 2.2.6 a 2.2.11 dos factos não provados (alterados pela Relação, passando os mesmos a dar-se como provados, e a constituir os pontos 2.1.35 a 2.1.38 dos factos dados como provados). VIII. Desta feita, além de uma patente contradição entre a matéria de facto alterada e, dada como provada e não provada, pelo Tribunal a quo, temos também uma contradição entre essa matéria e a decisão, uma vez que o segmento da matéria de facto dada como provada no ponto 2.1.8 faz solapar a conclusão decisória do Tribunal a quo no sentido de que os RR. apenas ocuparam o imóvel em litígio com a mera tolerância e autorização dos AA, não tendo o correspondente “animus” correspondente ao direito de propriedade. IX. Por conseguinte, e face ao apontado vício de nulidade, previsto na al. c) do art. 615.º do CPC, deve o acórdão recorrido ser revogado e substituído por outro que determine a anulação das alterações de facto à matéria de facto dada como provada e não provada pelo Tribunal a quo, subsequentemente ao ponto 2.1.8, em específico, nos pontos 2.1.11 a 2.1.15 (alteradas pela Relação), 2.1.17 e 2.1.27 (alterados pela Relação), 2.1.18, 2.1.28 e 2.1.29 (alterados pela Relação, passando a dar-se como não provados e eliminados da factualidade provada pela 1.ª instância) e, por fim, os pontos 2.2.6 a 2.2.11 dos factos não provados (alterados pela Relação, passando os mesmos a dar-se como provados, e a constituir os pontos 2.1.35 a 2.1.38 dos factos dados como provados). X. Em consequência, deverá o acórdão proferido pelo Tribunal a quo ser revogado, sendo substituído por outro que julgue a acção interposta pelos AA. totalmente improcedente, absolvendo-se os RR. (aqui recorrentes) de todos os pedidos contra si formulados. § SEGUNDA XI. O primitivo ponto 2.1.18 dos factos provados tem a seguinte redacção: (relativamente ao casal integrado pela Ré) – como se a casa fosse sua, comportando-se como verdadeiros proprietários. XII. A Relação altera a redacção deste facto provado com base no depoimento de parte do A., alegando que este, nesse depoimento, afirmou que “aprendi com o meu pai e nunca dei nada a ninguém, nem darei enquanto for vivo”. Ora, o ponto 2.1.18 encontra-se relacionado com o “animus” da R.. Todavia, a decisão recorrida afasta o “animus” da Ré por intermédio de declaração do Autor. XIII. Como é evidente, as declarações de parte do A. em nada são susceptíveis de influenciar o “animus” da R. – as declarações do A. não são susceptíveis de fazer prova sobre o “animus” desta. Apenas servem de meio de prova em relação à intenção do A.. XIV. Ou seja, invocando fundamentos relativos à pessoa do filho do A., a Relação altera a matéria de facto relativa à R., concluindo num sentido diverso do que resultaria face aos fundamentos que alicerçam a decisão, uma vez que da fundamentação nada resulta relativamente à R.. XV. Como tal, também aqui o Tribunal a quo incorreu na nulidade prevista na al. c) do art. 615.º do CPC, a qual desde já se argui, para os devidos e legais efeitos, uma vez que se regista uma evidente contradição entre a fundamentação da decisão sobre a matéria de facto e a respectiva decisão. § TERCEIRA XVI. Face à declarada intenção do A. transmitir ao seu filho, ex-marido da R. e pai dos seus filhos, também R., o imóvel objecto de litígio, extrai-se, de forma pacífica, que os RR. tinham mais que motivos legítimos para entender e se comportarem que o imóvel lhes pertencia e, portanto, estava configurado o “animus” correspondente ao exercício do direito de propriedade correspondente. XVII. Foi dado como provado no ponto 2.1.10 que a R. casou com o filho dos AA. em 1997, e, outrossim, que o casamento entre a R. e o filho dos AA. apensas se dissolveu em 16 de Julho de 2021, conforme facto provado 2.1.20. Tudo isto considerando também que foi dado como provado no ponto 2.1.8 da matéria de facto que foi intenção do A. transmitir o imóvel em litígio ao seu filho, que foi casado com a R. durante cerca de 15 (quinze) anos. XVIII. Tudo isto impõe a conclusão de que com o conhecimento mais que provável da intenção dos AA. transmitirem o imóvel ao seu filho, já quando este estava casado com a R., e a sua utilização ininterrupta durante mais de 20 (vinte) anos, estava mais que legitimado – era mesmo expectável – que a mesma julgasse, como julgou, que o imóvel lhe pertencia. XIX. Errou assim o Tribunal a quo na determinação da norma aplicável á matéria de facto dada como provada (e não provada), não sendo de aplicar ao caso o disposto na al. b) do art. 1253.º do Código Civil. A norma a aplicar ao caso, e à matéria de facto dada como provada (e não provada) é a norma constante do § único do art. 1287.º e do § único do art. 1288.º do Código Civil. XX. Por conseguinte, deverá o acórdão proferido pelo Tribunal a quo ser revogado, por erro de determinação da norma aplicável, em específico, por ter sido aplicado o disposto na a al. b) do art. 1253.º do Código Civil quando se impunha, perante a matéria de facto dada como provada (e não provada) a aplicação do disposto do § único do art. 1287.º e do § único do art. 1288.º do Código Civil, sendo consequentemente substituído por outro que julgue a acção interposta pelos AA. totalmente improcedente, absolvendo-se os RR. de todos os pedidos contra si deduzidos. § QUARTA XXI. A matéria de facto foi alterada com base em meios de prova que não impõe decisão diversa. XXII. A alteração produzida tem por base apenas uma mera opinião diferente produzida pelo Tribunal a quo, e não por conta da existência de meios de prova que, em obediência aos comandos legais, impõe decisão diversa. XXIII. Assim, atendendo à fundamentação da decisão recorrida, deve o acórdão recorrido ser revogado por violação do art. 662º nº1 do CPC, mantendo-se a decisão da primeira instância. § QUINTA XXIV. Na sentença de primeira instância, foram dados como provados os pontos 2.1.11 a 2.1.15 dos factos dados como provados. Estes foram, subsequentemente, alterados pelo Tribunal a quo, com recurso a meras inferências resultantes do recurso a presunções judiciais, partindo-se de factos conhecidos para dar como provados factos desconhecidos. No entanto, tais inferências, revelam-se contrárias às regras da experiência comum além de revelarem evidente ilogicidade. XXV. Em primeiro lugar, para alterar a resposta dada aos pontos 2.1.11 a 2.1.15, o Tribunal a quo partiu dos factos indiciários de que a propriedade do imóvel em litígio estava inscrita em nome dos AA., arrimando-se ainda no depoimento das testemunhas GG E HH, acerca de uma suposta utilização do imóvel, meramente, a título gratuito pelos RR., para, após, concluir que os RR. apenas passaram a residir no imóvel de forma gratuita e com o consentimento dos AA., a partir do ano 2000. XXVI. Todavia, não podia o Tribunal a quo retirar as ilações que retirou dos sobreditos factos indiciários uma vez que a inscrição da propriedade do imóvel em nome dos AA. não afasta a possibilidade de nele habitar alguém que se veja e actue como o seu proprietário. Por outro lado, os depoimentos das testemunhas GG e HH não relevam para formar a conclusão inferencial do Tribunal a quo, uma vez que estas não tinham convívio de casa com a R. e, portanto, não podiam atestar a que título a mesma ocupava o imóvel, se proprietária, se mera detentora. XXVII. Em consequência, deverá o acórdão proferido pelo Tribunal a quo ser revogado e substituído por outro que mantenha a decisão proferida pela 1.ª instância no que concerne aos pontos 2.1.11 a 2.1.15, uma vez que a alteração dos mesmos pelo Tribunal a quo violou o disposto no art. 349.º do Código Civil. § SEXTA XXVIII. Na sentença de primeira instância, foram dados como provados os pontos 2.1.18, 2.1.28 e 2.1.29 dos factos dados como provados. Estes foram, subsequentemente, alterados pelo Tribunal a quo, com recurso a meras inferências resultantes do recurso a presunções judiciais, partindo-se de factos conhecidos para dar como provados factos desconhecidos. No entanto, tais inferências, revelam-se contrárias às regras da experiência comum além de revelarem evidente ilogicidade. XXIX. Em primeiro lugar, para alterar a resposta dada aos pontos 2.1.18, 2.1.28 e 2.1.29, o Tribunal a quo partiu dos factos indiciários de que a propriedade do imóvel em litígio estava inscrita em nome dos AA., e dos depoimentos das testemunhas GG e HH, para, após, concluir que os RR. nunca se comportaram nem exerceram actos sobre o imóvel típicos de um verdadeiro proprietários. XXX. Com efeito, a conclusão do Tribunal a quo, com recurso a uma presunção judicial, é contrária às regras da experiência comum uma vez que dos factos indiciados não se podia ter concluído que os RR. não praticaram actos sobre o imóvel como se fossem os seus proprietários. XXXI. Em consequência, deverá o acórdão proferido pelo Tribunal a quo ser revogado e substituído por outro que mantenha a decisão proferida pela 1.ª instância no que concerne aos pontos 2.1.18, 2.1.28 e 2.1.29, uma vez que a alteração dos mesmos pelo Tribunal a quo violou o disposto no art. 349.º do Código Civil. XXXII. Em sede de recurso, o Tribunal a quo alterou a resposta dada pela 1.ª instância aos pontos 2.2.6 a 2.2.11. Inicialmente, pela primeira instância, os mesmos foram dados como não provados. Porém, após a intervenção do Tribunal a quo, os mesmos foram considerados como provada. XXXIII. Todavia, estava vedado à relação utilizar a presunção judicial partindo do facto conhecido de que o automóvel dos AA. estava parqueado na garagem do imóvel em litigio, para daí dar como provados os factos desconhecidos, no sentido de que os AA. usaram e fruíram da totalidade do imóvel, e da garagem, desde 1994 até Julho de 2017. XXXIV. Como tal, estava vedada à relação fazer uma alteração à resposta dada pela primeira instância aos factos dados como não provados nos pontos 2.2.6 a 2.2.11, devendo revogar-se a decisão do tribunal a quo nesta matéria, sendo de manter o decidido pela primeira instância. XXXV. Foram violados pelo Tribunal a quo, entre outros, a al. c) do art. 615.º e o n.º 1 do art. 662.º do CPC, o art. 349.º e, ainda, a al. b) do art. 1253.º do Código Civil. » 10. Por sua vez, nas suas alegações de recurso (subordinado) que apresentaram, os autores concluíram as mesmas nos seguintes termos: « 1ª- Os AA. pediram o reconhecimento do direito de propriedade do prédio descrito no artigo 1º da p.i. que tem o valor patrimonial de 95.890,00€, a condenação dos RR. na sua restituição bem como no pagamento de uma indemnização de 500,00€ mensais a partir da citação e até à entrega efectiva, a título de compensação pela privação do respectivo uso. 2ª- No douto acórdão recorrido foram apreciadas e decididas as duas primeiras questões mas pelo que se afigura constituir manifesto lapso não houve pronúncia quanto ao pedido de indemnização. 3ª- Incorreu-se assim na previsão constante do artigo 615º nº 1 al. d) do CPC, podendo o presente recurso ter como fundamento a correspondente nulidade (cf. Nº 4 do preceito). 4ª- A privação do uso do imóvel constitui um dano indemnizável, cujo não ressarcimento se traduziria em violação do disposto no artigo 483º do Código Civil. 5ª- Pelo que deverá ser julgado procedente o pedido de indemnização formulado pelos AA. e consequentemente deverão os RR. ser condenados no pagamento do montante equivalente àquele dano, correspondente ao valor de uso do móvel, a determinar quantitativamente por via de posterior incidente de liquidação. » 11. Os AA. responderam (em contra-alegações que apresentaram) às alegações do recurso, dos RR. pugnado pela improcedência do mesmo, pedindo ainda a condenação dos mesmos como litigantes de má fé. 12. Cumpre-nos, agora, apreciar e decidir. *** II - Fundamentação 1. Do objeto dos recursos. Como é sabido, e constitui hoje entendimento pacífico, é pelas conclusões das alegações dos recorrentes que se afere, fixa e delimita o objeto dos recursos, não podendo o tribunal de recurso conhecer de matérias ou questões nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso (cfr. artºs. 635º, nº. 4, 639º, nº. 1, e 608º, nº. 2, e 679º do CPC). Por fim, vem, também, sendo dominantemente entendido que o vocábulo “questões” a que se reporta o citado artº. 608º, e de que o tribunal deve conhecer, não abrange os argumentos, motivos ou razões jurídicas invocadas pelas partes. 1.1 Ora, calcorreando as conclusões das alegações dos sobreditos recursos (independente – dos RR - e subordinado - dos AA.), e respetivas contra-alegações, verifica-se que as questões que se nos impõe aqui apreciar e decidir são as seguintes: 1.1.1 Quanto ao recurso (independente) dos réus. a) Da nulidade do acórdão recorrido (por violação do artº. 615º, nº. 1 al. c), do CPC); b) Do erro de julgamento da decisão de facto; c) Do direito de propriedade sobre o imóvel/casa de habitação identificado no artº. 1º da petição inicial/ponto 2.1.1. dos factos provados. d) Da litigância de má-fé dos RR. (questão suscitada pelos AA. nas suas contra-alegações ao recurso daqueles). 1.1.2 Quanto ao recurso (subordinado) dos autores. a) Da nulidade do acórdão recorrido – por omissão de pronúncia – (artº. do artº. 615º, nº. 1 al. d), do CPC). *** 2. Dos Factos. Pelo tribunal a quo (TRE) foram dados como provados os seguintes factos (mantendo-se os termos da sua descrição, a ortografia, a ordem, a numeração e o realce que constam do acórdão recorrido, para melhor compreensão dos recursos, e sobretudo do dos RR., pois que as questões nele suscitadas são feitas com base nela): « 2.1.1. Encontra-se, inscrita na matriz predial urbana da União das Freguesias ... (...) sob o artigo …65, tendo-lhe anteriormente correspondido o artigo …60 da freguesia ..., uma casa destinada a habitação, sita no lugar de ... nº …, coordenadas x: … e Y: … composta de uma divisão assoalhada, cozinha, casa de banho, hall, 2 varandas, garagem, 1º andar com quatro divisões assoalhadas, cozinha, casa de banho, hall, despensa, 2 varandas, sótão com arrecadação e logradouro anexo com a área total de 880m2. [Vide cadernetas prediais de fls. 7 a 8 e 9 a 10 ] 2.1.2. Os AA procederam à construção da referida casa de habitação, que pagaram com capitais próprios, numa parcela de terreno que a Câmara Municipal de ... autorizou a destacar do logradouro do prédio urbano pertencente ao Autor marido, então inscrito na matriz sob o artigo …40 da freguesia .... [Admitido pelos artºs 3º e 6º da Contestação] 2.1.3. Prédio esse descrito na Conservatória sob o nº ……93 e registado definitivamente a favor do Autor marido, que anteriormente pertencera a seus pais II e JJ e que lhe fora adjudicado em partilhas. [Admitido pelos artºs 3º e 6º da Contestação por referência aos documentos de fls. 10v e 129 a 130 – Inf. Registo Predial] 2.1.4. Com vista à construção da referida casa de habitação o Autor marido, então residente na Suíça, apresentou no ano de 1990 o respectivo projecto e pedido de licenciamento na Câmara Municipal ... devidamente instruído com os diversos elementos escritos e plantas exigidas para o efeito, requerendo que a licença de construção expressamente mencionasse as situações referidas nas alíneas a) e b) do nº 1 do DL 400/84. [Admitido pelos artºs 3º e 6º da Contestação, por referência ao doc. de fls.11 a 14v] 2.1.5. Vindo a obter a licença de construção em Agosto de 1993. [Admitido pelos artºs 3º e 6º da Contestação, por referência aos documentos de fls. 15 e 15v] 2.1.6. A construção da casa foi concluída em Novembro de 1994 sendo então solicitada a emissão da respectiva licença de utilização. [Admitido pelos artºs 3º e 6º da Contestação, por referência aos documentos de fls.16] 2.1.7. Uma vez concluída a construção, os AA, contrataram com a EDP o fornecimento de electricidade e dotaram a casa de abastecimento de água mediante bombeamento a partir de um furo, mobilaram e equiparam diversas divisões [Admitido pelos artºs 3º e 6º da Contestação] 2.1.8. O A., ao requerer à Câmara o destaque do lote de terreno (no qual viria a construir a casa de habitação em litígio), manifestou a intenção de vir a transmitir tal parcela de terreno para o seu filho (alterada a redacção neste aresto – fls.13). 2.1.9. O qual estava à data emigrado na Suíça, utilizando esta casa quando vinha de férias com a sua companheira de nacionalidade Suíça. 2.1.10. Em 17 de Maio de 1997, o filho dos Autores casou com a Ré CC [Vide doc. de fls. 18 a 18v] 2.1.11 a 2.1.15. O casal constituído pela R. e marido (filho dos AA.) passou a residir na dita casa de habitação, de forma gratuita e com o consentimento dos AA., a partir do ano 2000, de forma habitual, com carácter permanente e com os filhos de ambos (alterada a redacção neste aresto – fls.14). 2.1.16. à vista de toda a gente; 2.1.17. Sem oposição de quem quer que seja, nomeadamente dos AA. até finais de 2016 (alterada a redacção neste aresto – fls.14). 2.1.18. como se a casa fosse sua, comportando-se como verdadeiros proprietários (eliminado neste aresto - fls.16) 2.1.19. Em data não concretamente apurada, mas antes de Julho de 2012, o FF emigrou para Marrocos. 2.1.20. O casamento entre FF e a Ré CC, foi dissolvido por divórcio em 16 de Julho de 2012 [Vide doc. de fls. 18 a 18v]. 2.1.21. Após o divórcio referido no ponto anterior, o FF deixou de viver na referida casa. 2.1.22. E a Ré continuou a residir na referida casa, 2.1.23. com carácter habitual, 2.1.24. a título permanente, 2.1.25. com os filhos de ambos, 2.1.26. à vista de toda a gente; 2.1.27. Sem oposição de quem quer que seja, nomeadamente dos AA. até finais de 2016 (alterada a redacção neste aresto – fls.14). 2.1.28. como se a casa fosse sua, comportando-se como verdadeira proprietária (eliminado neste aresto – fls.16). 2.1.29. e na convicção de que é proprietária (eliminado neste aresto – fls.16). 2.1.30. Em 30 de Agosto de 2013, o filho dos Autores, FF casou com LL [Vide doc. de fls. 18 a 18v]. 2.1.31. Os Autores usavam a garagem da referida habitação para parqueamento do seu automóvel. 2.1.32. Pelo menos desde Julho de 2017, que tem havido conflitos entre Autores e a 1ª Ré, relativamente à utilização da garagem da habitação em causa. 2.1.33. As contribuições e impostos do imóvel em causa, têm sido pagos pelos Autores [Vide doc. fls. 19]. 2.1.34. Os AA. sempre fruíram pessoalmente de parte da casa para uso próprio, concretamente da garagem, até Julho de 2017. (aditado neste aresto – fls.17). 2.1.35. Ininterruptamente (aditado neste aresto – fls.17). 2.1.36. À vista de toda a gente (aditado neste aresto – fls.17). 2.1.37. Sem oposição de quem quer que seja (aditado neste aresto – fls.17). 2.1.38. Sempre na convicção de exercerem um direito próprio e exclusivo e de não prejudicarem ninguém (aditado neste aresto – fls.17). » *** 3. Do Direito. 3.1 Do recurso dos RR. . 3.1.1 Quanto à 1ª. questão. - Da nulidade do acórdão recorrido. 3.1.1.1 Invocam os RR./recorrentes a nulidade do acórdão recorrido, por violação do disposto no artº. 615º, nº. 1 al. c), do CPC. O tribunal a quo, pronunciou-se, em conferência, sobre as nulidades apontadas pelos recorrentes ao acórdão ora recorrido, indeferindo as mesmas, tendo os AA. nas suas contra-alegações de recurso pugnado também pela sua inexistência. Apreciando. Como é sabido, as nulidades da sentença (leia-se aqui acórdão, pois que tal dispositivo legal é também aplicável às decisões da 2ª. instância, ou seja, da Relação – cfr. artº. 666º, nº. 1, do CPC - e também deste mais alto tribunal – cfr. artº. 679º) encontram-se taxativamente previstas no artº. 615º CPC e têm a ver com vícios estruturais ou intrínsecos da sentença, também conhecidos por erros de atividade ou de construção da própria sentença, que não se confundem com eventual erro de julgamento de facto e/ou de direito. Preceitua o citado artº. 615º na al. c) do seu nº. 1, que “é nula a sentença quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível.” É a violação do 1º. segmento do preceito que os recorrentes parecem invocar (como iremos ver e melhor decorre da leitura das suas alegações/conclusões de recurso). Decorre desse segmento de tal normativo, que o vício de nulidade da sentença - fundamentos em oposição com a decisão - ocorre quando os fundamentos de facto e/ou de direito invocados pelo julgador deveriam conduzir logicamente a um resultado oposto ao expresso na decisão. Trata-se, pois, de um vício estrutural da sentença, por contradição entre as suas premissas, de facto e de direito, e a conclusão, de tal modo que esta deveria seguir um resultado diverso. Porém, esta nulidade não abrange, como atrás já se referiu, o erro de julgamento, seja de facto ou de direito, designadamente a não conformidade da sentença com o direito substantivo. Assim, e por outras palavras, só ocorrerá essa causa de nulidade quando a construção da sentença (leia-se, enfatizando-se, aqui acórdão) é viciosa, isto é, quando «os fundamentos invocados pelo juiz conduziriam logicamente não ao resultado expresso na decisão mas a resultado oposto» (cfr. o prof. Alb. dos Reis, in “Código de Processo Civil Anotado, Vol. V, pág. 141”). Ou melhor ainda, quando das premissas de facto e de direito que o julgador teve por apuradas, ele haja extraído uma conclusão oposta à que logicamente deveria ter extraído. Vício esse que poderá ainda ocorrer quando a decisão se mostre ininteligível por ser ambígua ou obscura (2º. segmento do normativo). Por sua vez, o vício da ambiguidade ou obscuridade pressupõe inteligibilidade de uma decisão ou resposta, ou seja, que não pode, com segurança, determinar-se o sentido exato dessa decisão ou resposta, quer porque não se mostra claramente expresso, quer porque contém em si mais do que um sentido. Já uma decisão ou resposta é deficiente quando ela não responde a tudo o que, de essencial, foi perguntado ou pedido, sendo que, segundo o prof. MM dos Reis (in “Ob. cit., Vol. IV, pág. 553”), dentro da expressão deficiente cabe, para além da omissão de decisão sobre algum facto essencial, a “falta absoluta de decisão, a decisão incompleta, insuficiente ou ilegal”. Refira-se ainda que, como vem sendo dominantemente entendido, os factos e/ou respostas de que resultaram, só devem considerar-se contraditórios quando se mostrem absolutamente contraditórios entre si, de tal forma que não possam coexistir entre si, ou seja, quando se apresentem como um conteúdo logicamente incompatível, de tal modo que não possam subsistir entre si. Vide, nesse sentido, por todos, além do Mestre atrás citado, Abrantes Geraldes, in “Recursos em Processos Civil, 6ª. ed. Atualizada, Almedina, pág. 352 – e jurisprudência aí citada em nota de rodapé -, e Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, in “Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2º, 3ª. ed., Almedina, pág. 735.”). Tendo presente o que se deixou expendido, é altura de, mais incisivamente, responder à questão acima colocada. Como decorre da leitura das conclusões de recurso (que estão em consonância, a esse respeito, com as alegações que as precedem) – vg. pontos I. a VIII da conclusão primeira - os RR./recorrentes, sustentam, desde logo, tal vício de nulidade do acórdão alegando, por um lado, existir contradição entre o facto nele dado como provado sob o ponto 2.1.8 e os factos dados como provados sob os pontos 2.1.11 a 2.1.15, 2.1.17, 2.1.27 (cuja redação inicial dada pela 1ª. instância foi alterada pelo ora tribunal a quo), 2.1.35 a 2.1.38 (que haviam sido dados como não provados pelo tribunal a quo sob os pontos 2.2.6 a 2.2.11) e bem como ainda no que concerne àqueles dados como não provados pelo mesmo tribunal e que antes constavam dos factos dados como provados pela 1ª. instância sob os pontos 2.1.18, 2.1.28 e 2.1.29, e, por outro, e de qualquer modo, sempre entre aquele facto dado como provado sob o ponto 2.1.8 e própria decisão final (ao concluir que os RR. atuaram como meros detentores do imóvel em discussão, por tolerância dos AA., e não com animus possidendi em relação ao mesmo). Ora, numa leitura atenta dos sobreditos pontos de facto e da resposta que lhes foi dada pelo tribunal a quo (particularmente no concerne àquele inserto no ponto 2.1.8 dos factos provados em confronto com os demais dados como provados/e ou não provados) não vislumbramos, salvo o devido respeito, qualquer contradição, e muito menos que ela, a existir, seja absoluta, de modo que tais factos ou respostas não possam logicamente (em termos de conteúdo) coexistir entre si. A conclusão idêntica chegamos no que concerne à invocada contradição entre aquele facto dado como provado sob o ponto 2.1.8 e a própria decisão final. Na verdade, calcorreando a decisão do acórdão em apreço afigura-se-nos que todas as suas premissas e dados factuais e jurídicos, bem como o discurso lógico-discursivo e decisório correspondente, se encontram clara e inequivocamente enunciados e externos. Não existem nem contradição nem ilogicidade alguma. A decisão, depois de analisar, indagar e juridicamente balizar o “thema decidendum”, extraiu em conformidade o seu juízo jurídico-subsuntivo. Na elaboração do correspondente silogismo judiciário, não se deteta, pois, a nosso ver, qualquer oposição ou contradição. Torna-se patente que os ora recorrentes não concordam - a par do julgamento de facto - com o sentido decisório a final extraído (no que concerne à conclusão de que os RR. atuaram como meros detentores do imóvel em causa, com autorização/tolerância dos AA., e não com animus possidendi em relação ao mesmo, e daí não terem demonstrado terem adquirido, por usucapião, a sua propriedade, a qual veio a ser reconhecida aos últimos) mas o que não podem é apontar qualquer vício ou erro de raciocínio no desenvolvimento daquele silogismo. Saber se a decisão (de mérito) final está ou não em conformidade com as regras do direito aplicáveis aos factos dados como apurados, a ponto de a solução final a extrair ser outra que não aquela que foi tomada, nada tem a ver com o aludido vício de nulidade. Ou seja, o tribunal a quo disse o que na realidade queria dizer e o que disse expressou-o claramente em termos perfeitamente coerentes e inequívocos, pelo que se terá de concluir que, a esse propósito, e com tal fundamento, não ocorreu qualquer construção viciosa da sentença. 3.1.1.2 Os recorrentes sustentam ainda a nulidade do acórdão (por violação daquele mesmo normativo - al. c) do nº. 1 do artº. 615º) - cfr. pontos XI a XV da conclusão segunda - alegando para o efeito o seguinte: Na primitiva redação (dada pela 1ª. instância) do ponto 2.1.18 constava que (e referindo-se ao imóvel aqui em discussão e ao ex-casal então formado pelo filho dos AA. e pela 1ª. R.) esse casal passou, pelo menos a partir de 17/05/1977, a morar na referida casa (com os seus filhos) como se a casa fosse sua, comportando-se como verdadeiros proprietários.” Porém, o ora tribunal recorrido, na apreciação da impugnação da decisão de facto deduzida pelos AA. no recurso de apelação, veio dar tal ponto factual como não provado (retirando-o, assim, dos factos dados como provados pela 1ª. instância), O tribunal a quo ao dar tal facto (que consubstanciava em si “o animus” relativamente à alegada posse exercida sobre o referido imóvel pelo sobredito casal) como não provado, fê-lo fundamentando-se para efeito nas declarações de parte prestadas pelo autor (nomeadamente ao afirmar que “aprendi com o meu pai e nunca dei nada ninguém, nem darei enquanto for vivo”). Declarações de parte essas que (segundo os recorrentes) “em nada são susceptíveis de influenciar o animus da R.”, pois que “as declarações do A. não são susceptíveis de fazer provas sobre o animus desta”, apenas servindo como meio de prova em relação à intenção do A.. “Ou seja – prosseguem os recorrentes, rematando - “invocando fundamentos relativos à pessoa do filho do A., a Relação altera a matéria de facto relativa à R., concluindo num sentido diverso do que resultaria face aos fundamentos que alicerçam a decisão, uma vez que da fundamentação nada resulta relativamente à R.”. Apreciando. Salvo sempre o devido respeito, temos alguma dificuldade em acompanhar/compreender esta fundamentação aduzida pelos RR./recorrentes para sustentar tal nulidade do acórdão. Todavia, dela ressalta que a mesma nada tem a ver com um vício estrutural ou intrínseco do próprio acórdão, mas antes com o julgamento de facto (e do seu eventual erro), o que tanto basta para fazer naufragar a invocada nulidade do acórdão com base em tal fundamentação, pois que, como acima deixámos expresso, as nulidades a que se reporta o citado artº. 615º do CPC, não se confundem (nada tendo a ver com ele) com eventual erro de julgamento de facto e/ou de direito. Concluindo, não padece, assim, a acórdão recorrido do apontado vício de nulidade. *** 3.1.2 Quanto à 2ª. questão (referente ao recurso dos RR.). - Do erro de julgamento da decisão de facto. Insurgem-se os RR./recorrentes contra a decisão de facto, na parte em que alterou a redação (antes fixada pela 1ª. instância) dos factos dados como provados sob os pontos 2.1.11 a 2.1.15, na parte em que deu como não provados os factos insertos nos pontos 2.18, 2.1.28 e 2.1.29 (antes dados como provados pela 1ª. instância) e na parte ainda em que deu como provados os factos insertos nos pontos 2.1.34 a 2.1.38 (e que antes correspondiam, na sua essência, aos pontos 2.2.6 a 2.2.11 dos factos dados como não provados pela 1ª. instância) e cujo teor consta da matéria de facto que acima se deixou transcrita. Pedem os RR./recorrentes, no que concerne a tais pontos de facto, que se revogue a decisão do tribunal a quo e se mantenha, quanto a eles, a decisão (de facto) proferida pela 1ª. instância. Os RR./recorrentes, na sua essência, sustentam a referida impugnação da decisão de facto alegando que o tribunal a quo serviu-se/baseou-se indevidamente em presunções judiciais, para responder nos termos em que o fez a tais pontos de facto, pois que, as mesmas se revelam, in casu, contrárias às regras da experiência comum, padecendo ainda de evidente ilogicidade, violando, assim, do disposto no artº. 349º do Cód. do Civil (cfr. conclusões 5ª., 6ª. e 7ª. acima transcritas). Nas suas contra-alegações, os AA. defendem a improcedência dessa pretensão impugnatória dos RR. . Apreciando. Como ressalta do preceituado no artº. 674º, nº. 3, do CPC (em conjugação ainda com o artº. 682º desse mesmo diploma), o STJ, como regra, apenas conhece de matéria de direito, carecendo, por isso, de competência para apreciar a matéria de facto, a não ser que haja ofensa de disposição legal que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova. No fundo pode dizer-se que quando ocorre alguma destas situações de exceção àquela regra se está defronte de erros de direito que se integram, por isso, na esfera de competência do Supremo. Constitui hoje entendimento consolidado, sobretudo na jurisprudência deste mais alto tribunal, que, em sede revista, o STJ só poderá sindicar o uso feito pela Relação de presunções judiciais (que têm a virtualidade de se integrar naquela exceção à regra de que atrás referimos) se esse uso ofender norma legal, se padecer de evidente ilogicidade ou se partir de factos não provados. Nessa conformidade, pode ser sindicável por este tribunal, em sede de revista, o uso de presunções judiciais quando a lei não o admita, por violação, por exemplo, do artº. 351º do C. Civil, ou, admitindo-o, quando esse uso ocorra fora do condicionalismo legal fixado no artº. 349º do mesmo diploma, no qual se extrai a exigência da prova de um facto base ou instrumental e a ilação a partir dele de um facto (essencial) presumido. Já no que concerne ao erro sobre o juízo presuntivo formado com apelo às regras da experiência, a sua sindicância pelo STJ só deverá, pois, ocorrer nos casos de manifesta ilogicidade. (No sentido defendido, apontam, entre outros, os Acs. do STJ de 14/07/2021, proc. 1333/14.4TBALM.L2:S1, de 14/07/2021, proc. 4961/16.0T8LSB.L1.S1, de 13/04/2021, proc. 3006/15.1T8LRA.C1.S1, de 28/01/2021, proc. 1790/17.7T8VFX.L1.S1, 17/10/2019, proc. 1703/16, de 29/09/2016, proc. 286/10, e de 14/07/2016, proc. 377/09, todos disponíveis em www.dgsi.pt, e ainda Abrantes Geraldes, in “Ob. cit., págs. 462/469”). Teorizando um pouco sobre a figura das presunções, diremos que é conhecida a clássica distinção entre prova direta e prova indireta ou indiciária, incluindo-se aquelas neste último modo de prova, e que permitem, com o auxílio de regras da experiência, extrair uma ilação da qual se infere o facto a provar. Em bom rigor, as presunções judiciais, também designadas materiais, de facto ou de experiência (artº. 349º do C. Civil), não são verdadeiros meios de prova, mas antes “meios lógicos ou mentais ou operações firmadas nas regras da experiência”, ou, noutra formulação, “operação de elaboração das provas alcançadas por outros meios”, reconduzindo-se, assim, a simples “prova da primeira aparência”, baseada em juízos de probabilidade. Na definição legal, são ilações que o julgador tira de um facto conhecido (facto base da presunção) para afirmar um facto desconhecido (facto presumido), segundo as regras da experiência da vida, da normalidade, dos conhecimentos das várias disciplinas científicas ou da lógica. Nas palavras de Chiovenda (in “Princípios de Direito Processual Civil, 4ª. ed., pág. 853”) “a presunção equivale, pois, a uma convicção fundada sobre a ordem normal das coisas”. Tendo presente o que se acabou de deixar exposto, voltemo-nos, agora, mais incisivamente, para o caso em apreço, no sentido de dar resposta à questão acima colocada. Importa começar por referir/enfatizar, por um lado, que a prova produzida na audiência de julgamento que ocorreu na 1ª. instância foi sujeita a gravação (como, aliás, decorre da imposição do artº. 155º, nº. 1, do CPC), e, por outro, que no recurso de apelação que os AA. interpuseram da sentença final proferida em 1ª. instância foi, além do mais, impugnada a decisão de facto. Na apreciação desse recurso, e no que concerne à impugnação da decisão de facto, o ora tribunal a quo (TRE) - depois de ter concluído terem os apelantes dado cumprimento ao disposto no artº. 640º do CPC e de ter afirmado ter procedido a audição da prova gravada – justificou/fundamentou aquela sua decisão (e no que concerne aos factos aqui em discussão) do seguinte modo: Quanto aos pontos 2.1.11 a 2.1.15 (dados já antes como provados pela 1ª. instância, mas cuja redação o tribunal a quo alterou): « (…) Por outro lado, no que tange à pretendida alteração dos pontos 2.1.11. a 2.1.15. dos factos provados, constata-se que, não obstante a R. e o seu ex-marido (filho dos AA) terem casado em 1997, estavam emigrados na Suíça e aí continuaram a viver até 2000, ano em que, juntamente como os AA., regressaram a Portugal, passando então a morar desde aí, com carácter habitual e permanente, na casa de habitação em litígio. A este propósito afirmou a R. que em 2000 regressámos da Suíça e o meu sogro (o A.) disse que “a casa é para vós habitardes, criarem os vossos filhos”. Por outro lado, o A. - referindo-se à casa em litígio e ao filho - veio ainda a afirmar que “com esta mulher (a R.) dei-lhe autorização para lá viver”. Por sua vez, a testemunha GG (vizinha dos AA. durante 30 anos) veio a afirmar que o filho dos AA. quando casou com a R. estava na Suíça e depois voltaram todos (com os AA.) para Portugal, sendo que o filho dos AA. e a R. ficaram a habitar na casa nova (aqui em discussão), mais acrescentando que sempre soube que os donos de tal casa são o sr. AA e a D. BB (os AA.). Já a testemunha HH (sobrinha dos AA.) afirmou, de forma inequívoca e sem quaisquer hesitações, que, ao voltarem da Suíça, os tios (aqui AA) emprestaram a casa ao filho. Além disso, conhece a casa desde que foi construída, acrescentando que “conheço as casas do sr. AA, tem as duas casas” (querendo referir-se aquela em que os seus tios vivem e aquela que eles emprestaram ao filho). Assim sendo, atentas as provas acima referidas, os pontos 2.1.11. a 2.1.15. dos factos provados têm de ser alterados, passando a ter a seguinte redacção (a negrito) que, de seguida, se transcreve: - O casal constituído pela R. e marido (filho dos AA.) passou a residir na dita casa de habitação, a partir do ano 2000, de forma habitual, com carácter permanente e com os filhos de ambos. (...).» Quanto aos pontos 2.18, 2.1.28 e 2.1.29 (antes dados como provados pela 1ª. instância, mas que que o tribunal a quo deu como não provados): «(…) Pretendem ainda os AA. que os pontos 2.1.18, 2.1.28. e 2.1.29 dos factos provados sejam alterados e passem a ter respostas negativas (“não provados”). Quanto a esta factualidade, já vimos que a R. afirmou que o sogro (o A.) lhe disse que “a casa é para vós habitardes, criarem os vossos filhos” e também referiu que “a casa seria sempre nossa, por herança, visto ele ser filho único”. Ora, esta afirmação da R., quanto a nós, demonstra à evidência que a mesma reconhece que a propriedade da dita casa continuava a ser dos sogros (os AA.) até vir a ser doada ou herdada pelo filho deles (ex-marido da R.). Além disso, temos também as declarações peremptórias do A., já reproduzidas acima, onde o mesmo afirma sem hesitações que “com esta mulher (a R.) dei-lhe autorização (ao filho) para lá viver (na casa)” e também ao afirmar que “aprendi com o meu pai e nunca dei nada a ninguém, nem darei enquanto for vivo!”. Já a testemunha FF (filho dos AA.) referiu que: “quando casámos os meus pais autorizaram-nos a morar lá. O meu pai disse-me: empresto-te a casa mas preciso da garagem”. Por sua vez a testemunha já acima mencionada, GG, afirmou de forma credível - por conhecer os AA. há cerca de 30 anos tendo sido vizinha deles - que sempre soube que os donos de tal casa são o sr. AA e a D. BB (os AA.), enquanto a testemunha HH, também já supra referida, veio afirmar que os donos da casa em questão são os seus tios (os AA.), que a emprestaram ao filho (ex-marido da R.). Por sua vez, no que respeita aos depoimentos prestados pelas testemunhas MM e NN (irmãos da R.) e ainda CC (sobrinha da R.) - os quais vivem a mais de 200 km de distância da R. e por isso, não convivem regularmente com ela - constata-se que se basearam, essencialmente, naquilo que lhes era contado pela R. e dizendo também que era esta que cuidava da casa e do jardim e, por isso, comportava-se ela como se fosse dona da casa. Mais acrescentou a testemunha MM, irmão da R., que o A., quando ia lá a casa, batia à porta e pedia licença para poder entrar, pelo que concluiu não ser ele o dono da casa. Todavia, resulta da experiência comum que, regra geral, qualquer inquilino de um imóvel zela pela sua manutenção e limpeza, uma vez que lá habita e, nem por isso, com tal conduta poderá ser considerado como proprietário do dito imóvel! Por outro lado, não é pelo facto de o A. bater à porta da casa em litígio e pedir permissão para entrar que o mesmo, sem mais, não pode ser tido como proprietário do referido imóvel. Com efeito, tal comportamento do A. demonstra, tão só, que o mesmo preserva as regras de cortesia e da boa educação que todos nós devíamos incentivar na sociedade em que vivemos (principalmente quando existiam relações familiares entre as pessoas) e que, infelizmente, vão desaparecendo aos poucos na actualidade! Deste modo, forçoso é concluir que os depoimentos das testemunhas arroladas pelos RR. não se revelaram credíveis, nem consistentes e, por via disso, não relevaram, de todo, para a prova da factualidade que consta dos pontos 2.1.18, 2.1.28. e 2.1.29 dos factos provados. Assim sendo, tendo por base o teor dos depoimentos das testemunhas GG e HH e ainda as declarações prestadas pela R. e pelo A. (supra transcritas), entendemos que os pontos 2.1.18, 2.1.28. e 2.1.29 dos factos provados devem passar a ter respostas negativas (“não provados”), o que aqui se determina- sendo, por isso, eliminados da factualidade apurada na 1ª instância (…).» Quanto aos pontos 2.2.6 a 2.2.11 (antes dados como não provados pela 1ª. instância, mas que que o tribunal a quo alterou depois para provados sob os pontos 2.1.34 a 2.1.38): «(…) Por último, pretendem os AA. que obtenham respostas positivas (“provados”) os pontos 2.2.6. a 2.2.11. dos factos não provados, os quais têm a seguinte redacção: - 2.2.6. Ambos os AA usaram e fruíram da referida casa como seus legítimos proprietários desde a sua construção, concluída no ano de 1994; 2.2.7. Usando-a parcialmente em proveito próprio (a garagem) tendo cedido a outrem temporariamente a sua utilização precária e gratuita, desde há mais de 22 anos: desde 1994 até 2016; 2.2.8. Ininterruptamente; 2.2.9. À vista de toda a gente; 2.2.10. Sem oposição de quem quer que seja; 2.2.11. Sempre na convicção de exercerem um direito próprio e exclusivo e de não prejudicarem ninguém. Relativamente à factualidade acima transcrita resultou do depoimento da referida testemunha GG que o carro dos AA. costumava ficar guardado na garagem da casa onde a R. habita, já que era pouco usado, o que foi confirmado pelas declarações prestadas pelos AA., os quais, a este propósito, afirmaram que sempre tiveram as chaves da casa ora em litígio até 2017 (cfr. doc. a fls19/20) e sempre utilizaram a garagem, facto este - utilização da garagem - que a própria R. confessa na sua contestação (cfr. arts. 3º e 4º do referido articulado). Assim sendo, entendemos que os pontos 2.2.6. e 2.2.7 dos factos não provados devem ser alterados - passando a constituir o ponto 2.1.34. dos factos provados - e a resposta aos mesmos a ter a seguinte redacção (a negrito), que, desde já, transcrevemos: - Os AA. sempre fruíram pessoalmente de parte da casa para uso próprio, concretamente da garagem, até Julho de 2017. Por outro lado, pelas razões acima elencadas, os pontos 2.2.8. a 2.2.11 dos factos não provados devem também ter respostas positivas (“provados”) - passando a constituir os pontos 2.1.35. a 2.1.38 dos factos provados - o que aqui se determina, sendo tal factualidade no local próprio. (…). » Ora, como se pode observar pela leitura dos excertos de texto transcritos, o tribunal a quo não fundamentou a sua decisão de facto no que concerne aos sobreditos pontos facto objeto de impugnação socorrendo-se de presunções judiciais. Na verdade, desses excertos ressalta: Que no concerne aos pontos 2.1.11 a 2.1.15 fundou a sua decisão/convicção na conjugação e análise crítica das declarações de parte da 1ª. Ré, e do A., bem como dos depoimentos das testemunhas GG e HH, ali melhor identificadas. Que no concerne aos pontos 18, 2.1.28 e 2.1.29 fundou a sua decisão/convicção na conjugação e análise crítica das declarações de parte da 1ª. Ré, e do A., bem como dos depoimentos das testemunhas FF, GG e HH, ali melhor identificadas. Diga-se que, a dado passo, tribunal a quo invoca ali “experiência comum” (o que nessa medida pode configurar uma presunção judicial). Mas fá-lo quando procede à análise crítica do depoimento prestado pela testemunha MM (a par ainda dos prestados pelas testemunhas NN e CC, todas ali melhor identificadas) na sequência da mesma ter afirmado, a dada altura, que “o A., quando ia lá a casa, batia à porta e pedia licença para poder entrar”, tendo, por via disso a testemunha “concluído não ser ele o dono da casa.” E é na sequência dessa afirmação da referida testemunha, e quando procede – enfatiza-se - à analise crítica do seu depoimento, que o tribunal a quo afirma: «(…) Todavia, resulta da experiência comum que, regra geral, qualquer inquilino de um imóvel zela pela sua manutenção e limpeza, uma vez que lá habita e, nem por isso, com tal conduta poderá ser considerado como proprietário do dito imóvel! Por outro lado, não é pelo facto de o A. bater à porta da casa em litígio e pedir permissão para entrar que o mesmo, sem mais, não pode ser tido como proprietário do referido imóvel. Com efeito, tal comportamento do A. demonstra, tão só, que o mesmo preserva as regras de cortesia e da boa educação que todos nós devíamos incentivar na sociedade em que vivemos (principalmente quando existiam relações familiares entre as pessoas) e que, infelizmente, vão desaparecendo aos poucos na actualidade! (…) » Por fim, no concerne aos pontos 2.2.6 a 2.2.11 fundou a sua decisão/convicção na conjugação e análise critica das declarações de parte de ambos os AA. e da testemunha GG, bem ainda como dos documentos de fls. 19 – enviado, no ano de 2016, pela autoridade tributária ao A. para proceder ao pagamento do IMI, reportado ao ano de 2015, referente a vários imóveis ali identificados, e entre os quais se encontra aquele aqui em discussão – e 20 do processo físico – que se reporta a um auto de denúncia/queixa apesentada pelo A. na PSP de ... imputando à 1ª. R. o facto de, sem sua autorização, ter mudado as fechaduras da casa aqui em discussão, de que se afirmou ali ser proprietário, ausentando-se de seguida, impedindo-o, desse modo ter acesso à mesma e a uma viatura que ali se encontrava guardada – juntos com o articulado da petição inicial. Posto isto, somos levados a concluir: Que os factos objeto de impugnação não estão sujeitos a prova vinculada. Que o tribunal a quo não sustentou aquela decisão (ao contrário do alegado pelos recorrentes) em presunções judiciais, e mesmo que, porventura, se entenda que o fez, é patente então não só que o seu uso não lhe estava, in casu, vedado por disposição legal, como também, nesse, caso, o seu recurso não enferma de evidente ilogicidade, e muto menos partiu de factos não provados para chegar aqueles pontos de facto que deu como provados. Em suma, não ocorre no caso em apreço qualquer situação de exceção (prevista na 2ª. parte do nº. 3 do citado artº. 674º do CPC) que permita a este tribunal sindicar e alterar a decisão de facto proferida pelo tribunal a quo. Na verdade, não estando perante factos sujeitos a prova vinculada, eles ficam dependentes da livre apreciação do julgador, neste caso do tribunal a quo. Ou seja, na apreciação da impugnação da decisão de facto a que foi convocado pelo recurso de apelação, o Tribunal da Relação dispôs de autonomia decisória, no sentido de, através da competente análise crítica da prova produzida, formar a sua própria convicção (à luz do disposto no nº. 5 do artº. 607º ex vi nº. 2 do artº 663º, do CPC) sobre os controvertidos factos em discussão, de forma a mantê-los ou alterá-los, sem que, nessas condições, este tribunal supremo possa interferir nessa decisão, mesmo que porventura tenha havido erro nesse julgamento de facto. E nessas condições, tendo o Tribunal da Relação alterado a decisão de facto proferida pela 1ª. instância, na sequência da apreciação da impugnação que dela foi feita por uma das partes, não ocorre também, ao contrário do que defendem os recorrentes, qualquer violação do artº. 662º, nº. 1, do CPC. (Neste sentido, e a propósito, vide Ac. do STJ de 08/09/2021, proc. 1721/17.4T8VIS-A.C1.S1, disponível em www.dgsi.pt). Concluindo, não se vislumbram razões jurídicas para alterar a decisão de facto proferida pelo tribunal a quo, a qual se decide, assim, manter, improcedendo, também nessa aparte o recurso dos RR.. *** 3.1.3 Quanto à 3ª. questão (referente ao recurso dos RR.). - Do direito de propriedade sobre a casa de habitação identificada no artº. 1º. da petição inicial/ponto 2.1.1. dos factos provados. Essa questão tem a ver com o mérito da causa, e o saber se houve ou não erro no seu julgamento (direito). Com ressalta do que se deixou exarado no Relatório que antecede, com presente ação verem os AA. reclamar/reivindicar o direito de propriedade sobre o aludido imóvel, o qual, se outros títulos não tivessem, terão adquirido por usucapião, pedindo, em consequência, que os RR. sejam condenados a restituí-lho, já que se recusam a afazê-lo, vindo, contra a sua atual vontade, a ocupá-lo (nele vivendo). Por sua vez, e como também se deixou ali exarado, os RR., na sua contestação, insurgiram-se contra o direito de propriedade o invocado pelos AA. sobre a aludida casa de habitação, que dizem pertencer-lhes, tendo para o efeito (por via por exceção perentória) alegado factos tendentes a demonstrar terem adquirido, por via da usucapião, a propriedade sobre a mesma (sem que, contudo, tenham formulado, por via reconvencional, o correspondente pedido de reconhecimento desse direito de propriedade). E daí que tenham pedido a improcedência da ação, com a sua absolvição dos pedidos. Depois da 1ª. instância ter dado guarida à defesa e pretensão dos RR., julgando a ação improcedente, o acórdão ora recorrido (do TRE), após ter alterado (como vimos) parte da decisão de facto, revogou a referida sentença, julgando procedentes àqueles pedidos dos AA, tendo a denegação da pretensão dos RR. assentado, essencialmente, na conclusão de os mesmos não passarem de meros detentores precários do dito imóvel. Contra essa conclusão/decisão se insurgem os RR. na presente revista. Apreciando. Está, assim, em discussão na presente ação o direito de propriedade sobre a referida casa de habitação. Direito esse que, como é sabido, é o expoente máximo dos direitos reais de gozo e pode ser adquirido por uma das diversas formas estatuídas no artº. 1316º do Código Civil, e entre as quais se destaca a usucapião (diploma ao qual nos referiremos sempre que doravante indiquemos somente o normativo sem a menção da sua origem), Quando é posto em causa, a lei criou uma ação própria através do qual o seu titular pode fazê-lo reconhecer judicialmente: a ação de reivindicação (artº. 1311º), a qual não está sujeita à prescrição pelo decurso do prazo ao tempo (artº. 1313º). Trata-se de uma ação petitória que «tem por objeto o reconhecimento do direito de propriedade por parte do autor e a consequente restituição da coisa por parte do possuidor ou detentor dela» (cfr. os Profs. Pires Lima e A. Varela – com a colaboração de Henrique Mesquita - in «Código Civil Anotado, 2ª. ed., revista e actualizada, Coimbra Editora, Vol. III, págs. 112/113”). E daí dizer-se que, como referem ali os aludidos Mestres, são dois os pedidos que integram e caracterizam a ação de reivindicação: o reconhecimento do direito de propriedade (pronuntiatio), por um lado, e a restituição da coisa (condennatio), por outro. Tem-se, todavia, entendido, que se trata de uma cumulação aparente, dado que o pedido de entrega já contém implícito o do reconhecimento do direito de propriedade (vide, por todos, prof. Alb. dos Reis, in “Comentário, Vol. III., pág. 148” e Ac. do STJ de 14/5/81, in “BMJ 307 – 325”). Na verdade, é isso mesmo que ressalta do citado artº. 1311º, onde se preceitua que, nesse tipo de ações, “o proprietário pode exigir judicialmente de qualquer possuidor ou detentor da coisa o reconhecimento do seu direito de propriedade e a consequente restituição do que lhe pertence” (nº. 1), sendo que nesses cassos “havendo reconhecendo do direito de propriedade, a restituição só pode ser recusada nos casos previstos na lei” (nº. 2). Face ao que supra se deixou exarado, e dada a forma como a mesma se encontra estruturada, em termos de pedido e de causa de pedir, reforçada ainda no caso pelos termos em que a própria defesa foi deduzida, é patente estarmos perante uma típica ação de reais, na modalidade de reivindicação do direito de propriedade sobre o aludido imóvel/casa de habitação. Para a procedência desse tipo de ação torna-se necessário a comprovação, por um lado, de um requisito subjetivo, que consiste em ser o autor o proprietário da coisa reivindicada, e, por outro, de um requisito objetivo, ou seja, a identidade entre a coisa reivindicada e a possuída pelo réu, cujo ónus de prova incumbe (em regra) ao autor, por serem factos constitutivos do seu direito (artº. 342º, nº. 1). Como se viu, nesse tipo de ações a causa de pedir é um tanto ou quanto complexa, compreendendo tanto os atos ou os factos jurídicos de que deriva o direito de propriedade invocado pelo autor, como também a própria ocupação abusiva feita (pelo réu) do prédio reclamado ou reivindicado. Assim, para que tal ação possa ter êxito deverá, desde logo, o autor alegar os factos correspondentes que permitam levar à prova do invocado direito de propriedade sobre a coisa, ou seja, terá que alegar factos que permitam demonstrar a aquisição desse direito real de propriedade. Como regra, é insuficiente a invocação de uma forma de aquisição derivada (vg. contrato de compra e venda, adjudicação por partilha, etc.), por não ser constitutiva do direito de propriedade, mas somente translativa desse direito, a menos que se comprove que o direito já existia no transmitente, o que nem sempre é fácil e possível, e daí a conhecida designação da probatio diabolica. Donde que a prova do direito deve ser feita pelo autor, não bastando justificar a própria aquisição, sendo também necessário provar o dominium auctoris ou usucapião, como forma de aquisição originária. Por isso, o reivindicante terá de alegar factos dos quais resulte depois a prova da aquisição originária da dominialidade por parte de si ou da pessoa que lha transmitiu. Só assim não será quando o autor beneficie da presunção legal de propriedade, como a resultante, por exemplo, do registo (artº. 7º do Código do Registo Predial). Na verdade, estatui-se em tal normativo que o “registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define”. Porém, vem constituindo hoje entendimento praticamente pacífico que a presunção iuris tantum inserta em tal normativo não abrange os elementos de identificação do prédio constantes da descrição, sempre que exista uma desconformidade entre esta (no que concerne a algum daqueles elementos) e a realidade material do imóvel, designadamente quanto aos limites, estremas, áreas e confrontações (vide, por todos, Ac. do STJ de 12/01/2021, proc. 2999/08.0TBLLE.E2.S1, disponível em www.dgsi.pt, e Acs. do STJ de 27/01/93, de 11/03/99 e de 02/05/2002, respetivamente, in “CJ, Acs. do STJ, Ano I, T1 – 100”; “CJ, Acs. do STJ, Ano VII, T1 – 150” e in “Rec. Rev. nº 940/2002”). Como se extrai do que atrás já se deixou expresso, e tal como decorre dos artºs. 1287º e 1316º, a usucapião é, por excelência, uma das formas de aquisição originária dos direitos reais de gozo (nos quais se inclui e destaca o direito de propriedade), cuja verificação depende de dois elementos: a posse (corpus/animus) e o decurso de certo período de tempo, variável consoante a natureza móvel ou imóvel da coisa, e as características da posse (cfr., nomeadamente, artºs. 1251º e ss., 1256º e ss. e 1294º e ss.). Quando invocada, os seus efeitos retrotraem-se à data do início da posse (artº. 1288º), adquirindo-se o direito de propriedade no momento do início da mesma posse (artº. 1317º al. c) ). Posse essa que se pode ser adquirida por qualquer um dos modos (taxativamente) elencados no artº. 1263º, e dos quais destacamos (tendo em atenção o caso aqui em apreço) “pela prática reiterada, com publicidade, dos atos materiais correspondentes ao exercício do direito” (al. a) ) e “pela inversão do título da posse “(al. d) ). Como ressalta do atrás referido, constituindo a posse um dos elementos essenciais para aquisição do direito de direito propriedade (tal como para qualquer direito real de gozo), ela consubstancia-se em dois elementos: o corpus (os atos materiais praticados sobre a coisa) e o animus (o intuito de se comportar como titular do direito correspondente aos atos praticados). Como é sabido, nesse domínio, o nosso ordenamento jurídico aderiu à conceção ou corrente subjetivista da posse (cfr. artºs. 1251º e 1253º). Nesses termos, como elementos da posse fazem parte o corpus, que, como elemento externo/material, se identifica com a prática de atos materiais sobre a coisa, ou seja, com o exercício de certos poderes de facto sobre o objeto, de modo contínuo e estável, e o animus que, como elemento interno/psicológico, se traduz na vontade ou intenção do autor de na prática de tais atos se comportar como titular ou beneficiário do direito correspondente a esses atos realizados. (Neste sentido, vide, por todos, o prof. Mota Pinto, in “Direitos Reais, Coimbra, 1972, págs. 181 e 189”). Elementos esses cuja presença simultânea se exige permanentemente, para que possa haver, na sequência da prática reiterada e contínua de atos materiais de posse, a aquisição, por via da usucapião, do correspondente direito ao exercício de tais atos. Se só o primeiro desses elementos (“o corpus”) ocorre, estamos perante uma simples situação de detenção, insuscetível, em princípio, de conduzir à dominialidade sobre a coisa (artº. 1290º). Na verdade, estatui-se no artº. 1253º que são havidos como detentores ou possuidores precários: “os que exercem o poder de facto sem intenção de agir como beneficiários do direito” (al. a)), “os que simplesmente se aproveitam da tolerância do titular do direito” (al. b)) e “os representantes ou mandatários do possuidor e, de um modo geral, todos os que possuem em nome de outrem.” (al. c)). Por sua vez, preceitua-se no artº. 1290º, que “os detentores ou possuidores precários não podem adquirir para si, por usucapião, o direito possuído, exceto achando-se invertido o título de posse, mas, neste caso, o tempo necessário para a usucapião só começa a ocorrer desde a inversão do título.” (sublinhado e negrito nossos) Porém, considerando a dificuldade em demonstrar (muitas vezes) a posse em nome próprio, ou seja, do referido animus a lei estabeleceu uma verdadeira presunção (iuris tantum) do mesmo a favor de quem detém ou exerce os poderes de facto sobre a coisa, ou seja, presume-se que quem tem o corpus tem também o animus posssidendi (cfr. artº. 1252º, nº. 2, e assento, hoje com valor de acordão uniformizador de jurisprudência, do STJ de 14/5/96, in “DR, II S, de 24/6/96, que fixou a seguinte doutrina: “Podem adquirir por usucapião, se a presunção de posse não for ilidida, os que exercem o poder de facto sobre a coisa”). Pelo que, assim, podem ainda adquirir por usucapião, se a presunção de posse não for ilidida, os que exercem o poder de facto sobre uma coisa. Só que o nº. 2 do citado artº. 1252º, com a presunção nele estabelecida, terá de ser articulado ainda com o nº. 2 do artº. 1257º. Na verdade, dispõe-se no nº. 2 do artº. 1252º que “em caso de dúvida, presume-se a posse naquele que exerce o poder de facto, sem prejuízo do disposto no nº. 2 do artigo 1257º.” (sublinhado nosso) Por sua vez, no nº. 2 do artº. 1257º estatui-se que “presume-se que a posse continua em nome em nome de quem a começou.” (sublinhado nosso). Da leitura conjugada desses dois normativos, ressalta, desde logo, que se consagrarem ali duas presunções legais iuris tantum. No primeiro deles a presunção atrás referida, ou seja, de que quem detém ou exerce os poderes de facto sobre coisa, se presume também que o faz com o animus posssidendi (a existência do corpus faz presumir o animus). No segundo deles, estabelece-se a presunção da continuidade da posse por parte de quem a iniciou. Donde que, da leitura conjugada desses mesmos normativos, seja de extrair ainda a conclusão de que para funcionar a presunção estabelecida no nº. 2 do citado artº. 1252º impõe-se antes de mais, que o pretenso possuidor se apresente como iniciador da posse sobre a coisa cuja propriedade reclama/reivindica. Como atrás já deixámos referenciado, a posse pode também, além do mais (e naquilo que para releva), ser adquirida pela inversão do título posse (al. d) do artº. 1263º). Como vem sendo dominantemente entendido – vg. pela jurisprudência deste tribunal e também pelo doutrina -, para que ocorra inversão de título de não basta que a detenção se prolongue para além do termo do título que lhe servia de base, tornando-se necessário que o detentor expresse diretamente (nomeadamente junto da pessoa em nome de quem possuía) a sua intenção de atuar como titular do direito, ou então que o faça através de exteriorização de uma vontade categórica de possuir em nome próprio, revelada por inequívocos atos positivos de oposição (materiais ou jurídicos) - , reveladores, assim, de que o detentor quer a partir dessa oposição comportar-se como proprietário da coisa/bem. Diga-se, ainda, que a posse, segundo o artº. 1258º (que elenca as suas espécies) pode ser titulada ou não titulada, de boa fé ou de má-fé, pacífica ou violenta, pública ou oculta. Como já transparece do atrás referido, os carateres da boa ou má-fé ou da titulação ou não da posse somente influem no prazo necessário à verificação da usucapião (sendo que a posse titulada faz presumir uma posse de boa fé e a não titulada uma posse de má-fé, e que a adquirida com violência será sempre considerada de má-fé – artº. 1260º, nº. 1,). Na falta de registo do título ou da mera posse, a usucapião de imóveis pode dar-se no termo de quinze anos, se a posse for de boa fé, e de vinte anos, se for de má-fé (artº. 1296º). Diga-se, por fim, que, nos termos do artº. 1297º, se a posse tiver sido constituída com violência ou tomada ocultamente, os prazos da usucapião só começam a contar-se desde a cessação da violência ou desde que a posse se torne pública, daí que ela deva ser pacífica e pública. (Apontando no sentido do que se deixou exposto, vide ainda, entre outos, Acs. do STJ de 13/10/2020, proc. nº 439/18. 5T8FAF.G1.S1, de 14/07/2021, proc. nº. 1660/15.3T8STR.E1.S1, de 30/06/2020, proc. 638/15.1T8STC.E.S1, de 21/10//2020, proc. nº. 120/2000, de 22/01/2019, proc. nº. 19/2014, de 20/03/2014, proc. nº. 3325/07.0TJVNF.P1.S2, de 12/05/2016, proc. n. 9950/11.8TBVNG.P1.S1, de 17/12/2014, proc. nº. 1313/11.1TBCTB.C1.S1, de 20/03/2014, proc. 3325/07.0TJVNF.P1.S2, de 09/02/2012, proc. nº. 3208/04.6TBBRR.L1.S1., disponíveis in www.dgsi.pt, o prof. Santos Justo, in “Direito Reais, Almedina, 2011, 2ª. ed., pág. 194”, e os profs. Pires Lima e A. Varela – com a colaboração de Henrique Mesquita - in “Ob. cit., págs. 8/11 e 16”). Tendo presentes as considerações de cariz-teórico-técnico que se deixaram expendidas e subsumindo-as à matéria de facto apurada, que dizer, na resposta à questão acima colocada relativa ao direito de propriedade sobre o imóvel/casa de habitação em disputa na presente ação? Comecemos por analisar a questão na perspetiva da pretensão/interesse dos RR. . Da conjugação da matéria factual apurada, dela resulta, com relevância, que: A dita casa de habitação foi construída pelos AA., com capitais próprios, (numa parcela de terreno que fora desanexada de um logradouro de um prédio urbano então pertença do A. marido, que lhe fora adjudicado em partilha), tendo sido concluída no ano de 1994 (cfr. pontos 2.1.2., 2.1.3. e 2.1.6.). A partir do ano de 2000, o então casal constituído pela 1ª. R. e marido (filho dos AA.), de forma gratuita e com o consentimento dos AA., passou a residir na dita casa de habitação, de forma habitual, com carácter permanente e com os filhos de ambos, aqui ora também RR. (cfr. pontos 2.1.11. a 2.1.15.) Após a 1ª. R. se ter divorciado do filho dos AA. (em 16/07/2012) – o qual ali deixou de residir -, continuou a viver na referida casa com os seus filhos (aqui também RR.), de forma permanente e habitual, sempre (como antes) à vista de toda gente e sem oposição de quem quer que seja, nomeadamente dos AA., até finais de 2016 (cfr. pontos 2.1.16., 2.1.17., 2.1.19. a 2.1.27.). Da conjugação desses factos resulta, desde logo, que os RR./recorrentes não lograram provar, como lhes competia, a posse sobre o referido prédio/casa de habitação (integrada por aqueles dois elementos que a compõem: o corpus e o animus). Na verdade, muito embora da matéria factual apurada resulte que tenham o corpus da posse sobre ao referida casa, traduzido na ocupação que, sem qualquer título, dela fizeram durante o referido tempo, praticando sobre ela atos materiais, relacionados como a habitação da mesma, todavia, já não resulta dessa mesma matéria factual apurada que exerçam esse poderes de facto com animus possidendi, isto é, não ficou provado que habitem a casa na convicção de serem os verdadeiros donos da mesma (cfr. os pontos de facto nºs. 2.1.18., 2.1.28. e 2.1.29. dados como não provados). Por outro lado, não podem beneficiar sequer dessa presunção (de exercerem tais poderes de facto com animus possidendi), já que não foram eles que iniciaram essa posse (cfr. os conjugados artºs. 1252º, nº. 2, e 1257º, nº. 2,). Por fim, dessa matéria factual apurada não se logra extrair a conclusão de que os RR. tenham procedido a qualquer inversão de título de posse. Donde, perante tal materialidade factual, é-se levado a concluir que os RR. se apresentam na qualidade de detentores ou possuidores precários da referida casa de habitação, aproveitando-se da tolerância dos AA. (no período de tempo compreendido entre 2000 a finais de 2016), e nessa qualidade não podem ter adquirido (originariamente) o direito de propriedade sobre a dita casa de habitação, por via da usucapião. Aliás, diga-se ainda que encontrando-nos perante uma posse não titulada, e presumindo-se a mesma como tal de má-fé (presunção essa que não foi ilidida pelos RR.), ainda não tinha sequer decorrido o prazo legal previsto na lei (neste caso de 20 anos) para possibilitar a aquisição, por via da usucapião, do sobredito direito de propriedade. E daí que, pelas razões que se deixaram expostas, a pretensão dos RR. (consubstanciada na invocação da sobredita exceção perentória) está condenada a soçobrar. Analisemos agora a questão na perspetiva da pretensão/interesse dos AA. (quanto à reivindicada aquisição, por via da usucapião, do direito de propriedade sobre a dita casa de habitação). Da matéria factual apurada, a tal propósito, dela resulta (para além daquela que atrás se deixou referida), com relevância, que: - A dita casa de habitação foi construída pelos AA., com capitais próprios, (numa parcela de terreno que fora desanexada de um logradouro de um prédio urbano então pertença do A. marido, que lhe fora adjudicado em partilha), tendo sido concluída no ano de 1994 (cfr. pontos 2.1.2., 2.1.3. e 2.1.6.). - Uma vez concluída a construção, os AA. contrataram com a EDP o fornecimento de eletricidade e dotaram a casa de abastecimento de água mediante bombeamento a partir de um furo, mobilaram e equiparam diversas divisões (ponto 1.7.). - Os Autores usavam a garagem da referida habitação para parqueamento do seu automóvel (p. 2.1.31.). - As contribuições e impostos do imóvel em causa, têm sido pagos pelos Autores (p. 2.1.33.). - Os AA. sempre fruíram pessoalmente de parte da casa para uso próprio, concretamente da garagem, até Julho de 2017. (p. 2.1.34.). - Ininterruptamente (p. 2.1.35.). - À vista de toda a gente (p. 2.1.36.). - Sem oposição de quem quer que seja (p. 2.1.37.). - Sempre na convicção de exercerem um direito próprio e exclusivo e de não prejudicarem ninguém (p. 2.1.38.). Ora, da conjugação da tal matéria factual, é possível extrair a conclusão que desde a construção da dita casa (em 1994) foram os AA. que sempre exerceram a posse sobre ela (com corpus e animus possidendi – não passando, como vimos, os RR .de meros detentores precários -, de forma ininterrupta, pública, pacífica e de boa fé, e pelo tempo legal necessário (in casu 15 anos) para terem adquirido, por via da usucapião, o do direito de propriedade sobre ela. Mas mesmo que porventura se defenda ser apenas, perante tal factualidade, possível chegar a tal conclusão relativamente à garagem dessa habitação, mesmo assim, sempre, a nosso ver, idêntica conclusão seria de extrair relativamente à restante parte integrante da casa/prédio urbano e pelo seguinte: É inolvidável, perante a sobredita factualidade, que foram os AA. que deram início à posse sobre a referida a casa, ou seja, que a começaram. Sendo assim, por força do estatuído no acima citado nº. 2 do artº. 1257º, deve presumir-se (iuris tantum) que a posse da casa continua em nome neles, pois que, como ressalta do que supra se deixou exposto, os RR. não lograram ilidir (como lhes competia) essa presunção, sendo certo que quem tem a seu favor uma presunção legal escusa de provar o facto a que ela conduz (artº. 350º, nºs. 1 e 2,). Presunção essa (de posse) que, por sua vez, nos termos do preceituado no artº. 1268º, nº. 1, conduz à presunção (legal) da titularidade do (respetivo) direito por parte dos AA, ou seja, por força daquela primeira presunção legal, os mesmos presumem-se titulares do direito de propriedade sobre a totalidade da dita casa, pois que, in casu, os RR., para além de não terem logrado (como lhes competia) ilidir tal presunção, não beneficiam em seu favor de presunção fundada em registo anterior ao início dessa posse. Refira-se, por fim, a esse propósito, que os AA., não podem, a nosso ver, in casu, beneficiar também da presunção legal plasmada no artº. 7º do CRPred. (de que acima demos conta), pois, que o registo a que se alude no ponto 2.1.3. dos factos provados (existente a favor do A. marido) reporta-se ao prédio “mãe”, do qual foi destacada parcela de terreno na qual veio a ser construída (com plena autonomia) a dita casa aqui em discussão. Donde, e perante o exposto, a conclusão final de que os AA., ao contrário dos RR., lograram demonstrar/provar a titularidade do direito de propriedade (por via a usucapião) sobre a casa de habitação aqui em discussão. E daí, que nessa parte, se confirma a decisão do acórdão recorrido, embora com uma fundamentação não inteiramente coincidente, julgando-se, assim, improcedente o recurso (independente) de revista dos RR. . *** 3.1.4 Quanto à 4ª. questão. - Da litigância de má-fé dos RR. (questão suscitada pelos AA. nas suas contra-alegações ao recurso daqueles). Nas suas contra-alegações ao recurso dos RR., pedem os AA. que aqueles sejam condenados como litigantes de má-fé. Pedido esse que, em síntese, sustentam alegando, por um lado, que os RR. deduziram pretensão cuja falta de fundamento não poderiam ignorar, usando de expedientes, através de uma argumentação “sofistica”, para prolongarem o litígio que os opõem, retardando, assim, a entrega do imóvel em discussão aos AA. . Apreciando. Preceitua o artº. 542º do atual CPC (que reproduziu sem alterações o artº. 456º do anterior CPC, na redação vigente aquando da sua revogação pelo nCPC): “1. Tendo litigado de má-fé, a parte será condenada em multa e numa indemnização à parte contrária, se esta a pedir. 2. Diz-se litigante de má-fé quem, como dolo ou negligência grave: a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar; b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa; c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação; d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão. 3. (...).” O juízo de censura que enforma o instituto da litigância de má-fé radica na violação dos elementares deveres de probidade, cooperação e de boa-fé a que as partes estão adstritas (artºs. 7º e 8º do CPC), para que o processo seja “justo e equitativo”, e daí a designação, segundo alguns autores, de responsabilidade processual civil. Enquanto as als. a) e b) do citado normativo legal se reportam à chamada má-fé material/substancial (direta ou indireta), já as restantes alíneas têm a ver com a má-fé processual/instrumental. (Vide, a propósito, entre outros, o prof. Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, in “Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2º., 3ª ed., Almedina, 2017, pág. 457”). Resulta, assim, desde logo, de tal normativo legal, que a litigância de má-fé pressupõe, uma atuação dolosa ou com negligência grave - em termos da intervenção na lide -, consubstanciada, objetivamente, na ocorrência de alguma das situações, atrás transcritas, elencadas nas diversas alíneas do seu nº. 2. O âmbito da má-fé abrange, assim, hoje, tanto a atuação dolosa, como a atuação com negligência grave, não bastando, todavia, uma lide temerária ou meramente culposa. A negligência grave (que fora já introduzida com a alteração ao CPC61 pelo DL nº. 329-A/95, de 12/12) é concebida como erro grosseiro ou culpa grave, sem que, contudo, seja exigível a prova da consciência da ilicitude da atuação do agente. Por conseguinte, a lei tipifica as situações objetivas de má-fé, exigindo-se simultaneamente um elemento subjetivo, já não no sentido psicológico, mas ético-jurídico. Vem, contudo, constituindo hoje entendimento prevalecente na nossa jurisprudência que a garantia de um amplo direito de acesso aos tribunais e do exercício do contraditório, próprios do Estado de Direito em que vivemos, são incompatíveis com interpretações apertadas ou muito rígidas do artº. 542º do nCPC), havendo sempre que ter presente as características e a natureza de cada caso concreto, e daí que se recomende uma certa prudência e razoabilidade, na formulação do juízo sobre essa má-fé. Donde que, como constitui hoje entendimento claramente prevalecente na nossa jurisprudência, a condenação por litigância de má-fé só deverá ocorrer quando se demonstre, de forma manifesta e inequívoca, que a parte agiu dolosamente ou com negligência grave, com e/ou no processo entrado em tribunal. (No sentido do que se deixou exposto, vide, entre outros, Acs. do STJ de 21/04/2018, proc. nº. 487/17.5T8PNF.S; de 26/01/2017, proc. nº. 402/10.4TTLSB.L1.S1; de 02/06/2016, proc. nº. 1116/11.3TBVVD.G2.S1; de 21/04/2016, proc. nº. 497/12.6TTMR.E1.S1, e de 11/9/2012, proc. nº. 2326/11). Tendo presentes tais considerações, debrucemo-nos, agora, mais de perto, sobre o caso sub júdice. Como ressalta da fundamentação exaurida para o efeito pelos AA., o que se discute é a má-fé dos RR. na sua dimensão/vertente material (deduzirem pretensão cuja falta de fundamento não poderiam ignorar), embora também com resquícios da má-fé processual/instrumental (ou invocarem o uso de expedientes que visam para prolongarem o litígio que os opõem, retardando, assim, a entrega do imóvel em discussão). Como ressalta do que supra deixámos exarado, e na sua essência, com a presente ação visam os AA. obter o reconhecimento judicial de que a dita casa lhes pertence, por terem adquirido a sua propriedade por via da usucapião, e com isso obter a condenação dos RR. a restituírem-lha; por sua vez, os RR. contestam essa propriedade dos AA., aduzindo que a mesma lhes pertence, precisamente com o mesmo fundamento por aqueles aduzidos, ou seja, por a terem adquirido esse direito de propriedade por usucapião, e nessa medida recusam-se a entregar-lha. Como se resulta também do que atrás deixámos exarado, os RR. obtiveram ganho de causa na 1ª. instância, reconhecendo-se ali, na essência, os fundamentos em que aqueles sustentaram a sua pretensão. Porém, essa decisão veio a ser revertida pelo Tribunal da Relação (para o qual os AA. apelaram da sentença), o qual sustentou essa sua decisão após ter alterado, no termos que acima deixámos expressos, parcialmente o julgamento de facto efetuado por aquele 1º. tribunal. Alteração da decisão de facto essa que, na sua essência, teve a ver com uma diferente valoração de prova, e correspondente formação de convicção em relação aos factos controvertidos em discussão, feita pelo tribunal da 2ª. instância em relação àquela que fez o tribunal da 1ª. instância. Foi agora a vez de os RR. recorreram de revista para esta última instância, tendo este tribunal mantido a decisão da 2ª. instância, com os fundamentos (de facto e de direito) que atrás se deixaram expendidos (relembrando que no que concerne aos fundamentos de facto, este tribunal teve de os respeitar face ao comando inserto no artº. 674º, nº. 3, do CPC, por não ocorrer a situação de exceção nele prevista). Cremos, assim, - e tendo em conta a prudência de que se devem revestir as decisões na formulação de juízos sobre a má-fé - ser, à luz do que se deixou exposto, algo temerário concluir que os RR. tenham atuado/litigado com má-fé no caso da presente ação (quer na sua dimensão material, quer na sua dimensão processual). E sendo assim, e afigura-se nos (claramente) não existir matéria factual suficiente que permita, sem tibiezas, formular um juízo sobre a má-fé dos RR./ora recorrentes. E daí que não se condene os mesmos, como pedem os AA./recorridos. como litigantes de má-fé. *** 3.2 Quanto ao recurso (subordinado) dos autores. Invocam os AA./recorrente a nulidade do acórdão recorrido, na parte em que, em violação do disposto no artº. 615º, nº. 1 al. d), do CPC, não se pronunciou sobre o último dos pedidos por si formulados, concernente à indemnização que reclamam dos RR., decorrente do alegado dano/prejuízo por si sofrido devido à privação do uso do sobredito imóvel. Apreciando. Preceitua o citado artº. 615º, nº. 1 al. d) (aqui aplicável ex vi artº. 666º, nº. 1) do CPC que “é nula a sentença quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não poderia ... conhecimento”. Decorre de tal norma que o vício que afeta a decisão advém de uma omissão (1º. segmento da norma, cuja violação aqui está em causa, pelo que supra deixámos exarado) ou de um excesso de pronúncia (2º. segmento da norma). Preceito legal esse que deve ser articulado com o nº. 2 no artº. 608º do CPC, onde se dispõe que “o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo não se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.” (sublinhado nosso) Impõe-se ali um duplo ónus ao julgador, o primeiro traduzido no dever de resolver todas as questões que sejam submetidas à sua apreciação pelas partes (salvo aquelas cuja decisão vier a ficar prejudicada pela solução dada antes a outras), e o segundo (que aqui não está em causa) traduzido no dever de não ir além do conhecimento dessas questões suscitadas pelas partes (a não ser que a lei lhe permita ou imponha o seu conhecimento oficioso). Como constitui communis opinio, o conceito de “questões”, a que ali se refere o legislador, deve somente ser aferido em função direta do pedido e da causa de pedir aduzidos pelas partes ou da matéria de exceção capaz de conduzir à inconcludência/improcedência da pretensão para a qual se visa obter tutela judicial, ou seja, abrange tão somente as pretensões deduzidas em termos do pedido ou da causa de pedir ou as exceções aduzidas capazes de levar à improcedência desse pedido, delas sendo excluídos os argumentos ou motivos de fundamentação jurídica esgrimidos/aduzidos pelas partes (vide, por todos, Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, in “Ob. cit., págs. 713/714 e 737.”). Posto isto, e debruçando-nos sobre o caso em apreço, verifica-se que – como ressalta do que se deixou exarado no Relatório – os AA. - para além dos acima analisados pedidos de condenação dos RR. a reconhecerem o seu direito de propriedade sobre o dito imóvel destinado a habitação (casa de habitação) e de restituição do mesmo aos AA. – formularam ainda (cumulativamente) pedido no sentido de os RR. serem também condenados a pagarem-lhes, a título de indemnização, a quantia mensal de € 500,00, contabilizada a partir da data da sua citação para a ação e até à data da entrega efetiva do referido imóvel, decorrente do alegado dano/prejuízo que sofreram devido à privação do uso do referido imóvel. Ora, calcorreando o acórdão recorrido verifica-se, pela sua leitura, que o mesmo fez tábua rasa quanto à apreciação (que lhe foi submetida) da questão relacionada com esse último pedido, ou seja, não emitiu, como estava obrigado, qualquer pronúncia (ainda que porventura tácita) sobre esse pedido, sendo certo que é patente que o conhecimento dessa questão não se mostra prejudicada pela decisão proferida quanto àquelas outras. Pelo que, nessa parte, o referido acórdão padece/enferma do vício de nulidade, (artº. 615º, nº. 1 al. d), ex vi artº. 666º, nº. 1, do CPC) aqui se declara. Donde que, à luz do disposto no artº. 684º, nº. 2, do CPC, se impõe ordenar a remessa dos autos à 2ª. instância para que proceda – se possível pelo mesmo coletivo de juízes -, nessa parte, à reforma do acórdão. *** III - Decisão Assim, em face do exposto, acorda-se em: 1) Negar revista, ao recurso (independente) interposto pelos réus. 2) Ordenar (e no que se reporta ao recurso subordinado interposto pelos AA. e ao seu objeto) a remessa dos autos à 2ª. instância, a fim de proceder à reforma do acórdão recorrido no que concerne à questão que supra se deixou aludida. Custas pelos RR./recorrentes, no concerne ao recurso (independente) de revista, sem prejuízo do benefício de apoio judiciário de que gozam nessa modalidade. Sem custas, no que concerne ao recurso subordinado dos AA. *** Sumário: I - As nulidades da sentença/acórdão, encontram-se taxativamente previstas no artº. 615º CPC e têm a ver com vícios estruturais ou intrínsecos da sentença/acordão também conhecidos por erros de atividade ou de construção da própria sentença/acordão, que não se confundem com eventual erro de julgamento de facto e/ou de direito. II- A nulidade da sentença/acórdão prevista no 1º. segmento do al. c) do nº. 1 do citado artº. 615º - fundamentos em oposição com a decisão - ocorre quando os fundamentos de facto e/ou de direito invocados pelo julgador deveriam conduzir logicamente a um resultado oposto ao expresso na decisão, existindo, pois, uma contradição entre as suas premissas, de facto e/ou de direito, e conclusão/decisão final. III - Os factos e/ou respostas de que resultaram, só devem considerar-se contraditórios quando se mostrem absolutamente contraditórios entre si, de tal forma que não possam coexistir entre si, ou seja, quando se apresentem como um conteúdo logicamente incompatível, de tal modo que não possam subsistir entre si. IV - Por sua vez, a nulidade da sentença/acórdão prevista no 1º. segmento do al. d) do nº. 1 do citado artº. 615º - que deve ser articulado com o nº. 2 do artº 608º do mermo diploma legal -, traduz-se numa omissão de pronúncia por parte do julgador, relativamente a uma questão que lhe foi submetida a apreciação pelas partes, a qual deve aferida em função direta do pedido e da causa de pedir aduzidos pelas partes ou da matéria de exceção capaz de conduzir à inconcludência/improcedência da pretensão para a qual se visa obter tutela judicial, dela sendo excluídos os argumentos ou motivos de fundamentação jurídica esgrimidos/aduzidos pelas próprias partes. V - Como decorre do preceituado nos artºs. 674º, nº. 3, CPC (em conjugação ainda com o artº. 682º desse mesmo diploma), o STJ, como regra, apenas conhece de matéria de direito, carecendo, por isso, de competência para apreciar a matéria de facto, a não ser que haja ofensa de disposição legal que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova. VI - Daí que, em sede revista, o STJ só poderá sindicar o uso feito pela Relação de presunções judiciais (que têm a virtualidade de se integrar naquela exceção à regra referida em V) se esse uso ofender norma legal, se padecer de evidente ilogicidade ou se partir de factos não provados. VII - São dois os pedidos que caracterizam a ação de reivindicação (artº. 1316º do CC): a) o reconhecimento do direito de propriedade (pronuntiatiob) e a restituição da coisa (condennatio). VIII - Nesse tipo de ações a causa de pedir é um tanto ou quanto complexa, compreendendo tanto os atos ou os factos jurídicos de que deriva o direito de propriedade invocado pelo autor, como também a própria ocupação abusiva feita (pelo réu) do prédio reivindicado. IX - Assim, para que tal ação possa ter êxito deverá, desde logo, o autor alegar os factos correspondentes que permitam levar à prova da invocada aquisição direito de propriedade sobre a coisa. X - Como regra, é insuficiente a invocação de uma forma de aquisição derivada (vg. contrato de compra e venda, adjudicação por partilha, etc.), por não ser constitutiva do direito de propriedade, mas somente translativa desse direito, a menos que se comprove que o direito já existia no transmitente, o que nem sempre é fácil e possível, e daí a conhecida designação da probatio diabolica. XI - A usucapião é, por excelência, uma das formas de aquisição originária dos direitos reais de gozo (nos quais se destaca o “elástico” direito de propriedade), cuja verificação depende de dois elementos: a posse e o decurso de certo período de tempo (variável consoante a natureza móvel ou imóvel da coisa, e as características/espécies da posse). XII - Posse essa que pode ser adquirida por qualquer um dos modos (taxativamente) elencados no artº. 1263º do CC, e dos quais se destacam: “pela prática reiterada, com publicidade, dos atos materiais correspondentes ao exercício do direito” e “pela inversão do título da posse”. XIII - No nosso ordenamento jurídico, a posse consubstancia-se em dois elementos: o corpus (que, como elemento externo/material, se identifica com a prática de atos materiais sobre a coisa, ou seja, com o exercício de certos poderes de facto sobre ela, de modo contínuo e estável) e o animus (que, como elemento interno/psicológico, se traduz na vontade ou intenção do autor de na prática de tais atos se comportar como titular ou beneficiário do direito correspondente a esses atos realizados). XIV - Elementos esses cuja presença simultânea se exige permanentemente, para que possa haver, na sequência da prática reiterada e contínua de atos materiais de posse, a aquisição, por via da usucapião, do correspondente direito ao exercício de tais atos. XV - Se só o primeiro desses elementos (“o corpus”) ocorre, estamos perante uma simples situação de detenção, insuscetível, em princípio, de conduzir à dominialidade sobre a coisa. XVI - Porém, considerando as dificuldades em demonstrar (muitas vezes) a posse em nome próprio, ou seja, do referido animus, a lei (vg. através do nº. 2 do artº. 1252º do CC) estabeleceu uma verdadeira presunção (iuris tantum) do mesmo a favor de quem detém ou exerce os poderes de facto sobre a coisa, ou seja, presumindo que quem tem o corpus tem também o animus posssidendi. XVII - Porém, por força da expressão nele plasmada (“sem prejuízo do disposto no n.º 2 do artigo 1257.º”), tal normativo, terá de ser articulado ainda com o nº. 2 do artº. 1257º do mesmo diploma (onde se estatui que “presume-se que a posse continua em nome de quem a começou.”). XVIII - Donde que da leitura conjugada desses dois normativos, ressalta, desde logo, consagrarem-se neles duas presunções legais iuris tantum: a) No primeiro deles a presunção de que quem detém ou exerce os poderes de facto sobre coisa, se presume também que o faz com o animus posssidendi (a existência do corpus faz presumir o animus); b) e no segundo estabelece-se a presunção da continuidade da posse por parte de quem a iniciou. XIX - E daí que que só possa beneficiar da presunção estabelecida no nº. 2 do citado artº. 1252º do CC o pretenso possuidor que se apresente como iniciador da posse sobre a coisa cuja propriedade reivindica. XX - Para que ocorra inversão de título torna-se necessário que o detentor expresse diretamente (nomeadamente junto da pessoa em nome de quem possuía) a sua intenção de atuar como titular do direito, ou então que o faça através de exteriorização de uma vontade categórica de possuir em nome próprio, revelada por inequívocos atos positivos de oposição (materiais ou jurídicos), reveladores, assim, de que o detentor quer a partir dessa oposição comportar-se como proprietário da coisa/bem. XXI - O juízo de censura que enforma o instituto da litigância de má-fé (consagrado no artº. 542º do CPC) radica, essencialmente, na violação dos elementares deveres de probidade, cooperação e de boa-fé a que as partes estão adstritas, para que o processo seja “justo e equitativo”. XXII - Enquanto as als. a) e b) do citado normativo legal se reportam à chamada má-fé material/substancial (direta ou indireta), já as restantes alíneas têm a ver com a má-fé processual/instrumental. XXIII - O âmbito da má-fé abrange hoje, tanto a atuação dolosa, como a atuação com negligência grave. XXIV - A garantia de um amplo direito de acesso aos tribunais e do exercício do contraditório, próprios do Estado de Direito em que vivemos, são incompatíveis com interpretações apertadas ou muito rígidas desse instituto, havendo sempre que ter presente as características e a natureza de cada caso concreto, e daí que se recomende uma certa prudência e razoabilidade na formulação do juízo sobre essa má-fé. *** Lisboa, 2021/11/16 Isaías Pádua (relator)
Nuno Ataíde das Neves
Maria Clara Sottomayor |