Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3063/18.9T8PTM.E2.S2
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: CATARINA SERRA
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
ÓNUS DO RECORRENTE
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
ACÓRDÃO UNIFORMIZADOR DE JURISPRUDÊNCIA
CONCLUSÕES DA MOTIVAÇÃO
PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
PRINCÍPIO DA RAZOABILIDADE
DIREITO AO RECURSO
PRINCÍPIO DO ACESSO AO DIREITO E AOS TRIBUNAIS
REAPRECIAÇÃO DA PROVA
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
PROVA TABELADA
RECURSO DA MATÉRIA DE FACTO
MODIFICABILIDADE DA DECISÃO DE FACTO
Data do Acordão: 01/11/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
I. Sendo certo que a imposição, no artigo 640.º, n.º 1, do CPC de ónus ao recorrente que impugne a decisão sobre a matéria de facto representa um condicionamento ao direito de acesso aos tribunais e, em especial, ao direito ao recurso (cfr. artigo 20.º, n.º 1, da CRP), deve evitar-se leituras excessivamente formalistas que possam conduzir a restrições injustificadas do direito a um processo equitativo e convocar-se sempre, para o efeito da melhor interpretação da norma, os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade.

II. A indicação por remissão da informação legalmente exigível para o efeito da impugnação da decisão sobre a matéria de facto não configura nem equivale a falta ou omissão de indicação, constitui uma forma possível de indicação, que não compromete a inteligibilidade daquela impugnação, mantendo intocada a possibilidade do seu cabal conhecimento pelo tribunal e a possibilidade do exercício de um contraditório esclarecido

Decisão Texto Integral:

ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


I. RELATÓRIO

Recorrentes: AA e mulher, BB

Recorrida: Sortami - Mediação Imobiliária, Lda.

1. AA e mulher, BB, intentaram contra Algartemático – Gestão e Inovação Turística, S.A., e Sortami – Mediação Imobiliária, Lda., acção declarativa de condenação, com processo comum.

Alegaram, em síntese, que:

- sendo habitualmente residentes em França, os autores decidiram comprar casa em Portugal;

- em 2017, contactaram CC, que trabalha para a 2.ª ré, transmitindo-lhe que pretendiam uma casa com 4 ou 5 quartos, que pudesse ser explorada turisticamente quando os autores aí não permanecessem;

- por indicação de CC, os autores acederam a um site, consultaram uma brochura e visitaram uma moradia com 5 quartos;

- em 10.10.17, o autor e a 1ª ré, celebraram contrato-promessa de compra e venda da referida moradia;

- o contrato foi enviado ao autor via e-mail, ele assinou-o e devolveu-o pelo mesmo meio;

- nessa data, sinalizaram a compra com 100.000,00€ em dinheiro e, mais tarde, vieram a reforçar o sinal com as quantias de 70.000,00€ e 45.000,00€, que transferiram para uma conta da 2.ª ré;

- os autores pagaram mais 200.000,00€ e 15.342,81€ e, em 26.1.18, os autores e a 1ª ré celebraram escritura pública de compra e venda, pagando, ainda, 180.000,00€;

- após, foi-lhes entregue ficha técnica de habitação e certificado energético do imóvel, que os autores se limitaram a arquivar;

- alguns meses depois, pretenderam licenciar a moradia para alojamento local e vieram a tomar conhecimento que a moradia em causa estava licenciada como V2 e não como V5;

- se o tivessem sabido antes, os autores nunca a teriam comprado por 600.000,00€, uma vez que uma moradia com 2 quartos não valeria mais do que 350.000,00€;

- as rés prestaram informação falsa sobre características essenciais do imóvel e devem ser condenadas solidariamente a pagar-lhes a quantia de 250.000,00, correspondente à diferença entre a quantia paga e o efectivo valor de mercado da moradia.

2. A 1.ª ré Algartemático – Gestão e Inovação Turística, S.A., contestou, invocando, em resumo, que:

- celebrou com a 2.ª ré um contrato de mediação imobiliária, para que esta promovesse a venda da moradia em questão por 700.000,00€;

- não contactou nem negociou com os autores;

- não elaborou o contrato-promessa;

- aceitou vender por 500.000,00€ e foi esse valor que recebeu;

- os autores tiveram conhecimento das qualidades e composição do imóvel, não tendo sido enganados pela 1ª ré;

- o imóvel não vale menos do que os autores pagaram e a 1ª ré não o venderia por preço inferior.

Concluiu pela sua absolvição do pedido.

3. A 2.ª ré Sortami – Mediação Imobiliária, Lda., apresentou contestação, dizendo, em suma, que:

- os autores sabiam que o imóvel era de tipologia T2, sendo certo que receberam diversos documentos a ele atinentes;

- quando o visitaram, em 5.10.17, não podem ter deixado de perceber que a cave não era originariamente destinada a quartos de dormir, embora o dono lhe possa dar esse uso;

- os autores e a 1.ª ré não celebraram entre si qualquer contrato, pelo que esta não pode ser condenada a pagar-lhe a diferença entre o preço pago (que, aliás, não é de 600.000,00€, mas de 500.000,00€) e o valor de mercado da moradia.

Concluiu pela sua absolvição do pedido.

4. Depois de algumas vicissitudes, foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:

Pelo exposto, julgo a ação parcialmente procedente, e, em consequência, decido:

a) Absolver do pedido a ré ALGARTEMÁTICO – GESTÃO E INOVAÇÃO TURÍSTICA, S.A.;

b) Condenar a ré SORTAMI – MEDIAÇÃO IMOBILIÁRIA, LDA., no pagamento aos autores AA e mulher BB, de indemnização a liquidar em incidente posterior, correspondente à diferença do preço de mercado de uma moradia como a que é objeto dos autos (prédio urbano, destinado a habitação, sito na Urbanização ...Lote 5, freguesia de ..., concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º 03048 e inscrita na respetiva matriz sob o artigo 13384), mas com a característica adicional de poder ser V5, e o preço de mercado da mesma moradia tal como resulta da respetiva descrição predial, portanto, V2.

Tal diferença deve ser computada à data de 26 de janeiro de 2018 (data da escritura pública de compra e venda).

Tal indemnização terá por limite máximo a quantia de € 150 000 (cento e cinquenta e mil euros).

c) Absolver a mesma ré “Sortami” do restante pedido”.

5. A 2.ª ré Sortami – Mediação Imobiliária, Lda., interpôs recurso de apelação, tendo Tribunal da Relação de Évora proferido Acórdão de cujo dispositivo consta:

Por todo o exposto, acordamos em julgar a apelação procedente e, em consequência:

A) Anulamos a decisão recorrida, na parte respeitante à 2ª ré;

B) Em substituição do tribunal recorrido, absolvemos a 2ª ré do pedido”.

6. Os autores AA e BB interpuseram, por sua vez, recurso de revista de revista, tendo este Supremo Tribunal proferido Acórdão com o seguinte dispositivo:

Pelo exposto, concede-se provimento à revista e revoga-se o Acórdão recorrido, determinando-se a baixa dos autos ao Tribunal a quo para que aí sejam apreciadas as questões suscitadas na apelação que, por força da decisão ora revogada, haviam ficado prejudicadas”.

7. Em cumprimento desta decisão, proferiu o Tribunal da Relação de Évora novo Acórdão, no qual pode ler-se, a final:

Por todo o exposto, acordamos e, em consequência:

A) Alteramos a decisão sobre a matéria de facto nos termos referidos em II;

B) Revogamos a sentença recorrida, ora se absolvendo a 2ª ré do pedido”.

5. Voltam, então, os autores AA e BB a interpor recurso de revista, pugnando pela revogação daquele Acórdão da Relação.

Concluem as suas alegações assim:

a) O presente litígio tem na sua génese a aquisição de um imóvel por parte dos ora recorrentes à 1.ª Ré, tendo tal aquisição ocorrido por mediação da 2.ª Ré.

b) Durante todo o processo de aquisição do imóvel em questão, sempre foi transmitido aos recorrentes pela 2.ª Ré ( recorrida) que o mesmo era composto por cinco quartos, isto é, o imóvel correspondia a uma habitação de tipologia V

c) Posteriormente, após a aquisição, pretendendo os recorrentes licenciar o imóvel para efeito de exploração como alojamento local, para sua grande surpresa, tomaram conhecimento que o referido imóvel apenas estava licenciado com a tipologia V2 e não como V5.

d) Atentas as referidas circunstâncias, os recorrentes intentaram ação declarativa de condenação contra os RR. na qual peticionavam a condenação solidária das últimas a proceder ao pagamento do valor de € 250.000,00, resultante da diferença entre o valor pago pelo imóvel e o efetivo valor de mercado, que o mesmo teria caso tivesse sido anunciado com as suas verdadeiras características.

e) Da realidade articulada, resultou a absolvição em primeira instância da 1.ª Ré e a condenação da 2.ª, com base em incumprimento culposo dos deveres de informação à que estava adstrita no desenvolvimento da sua atividade de mediação imobiliária.

f) Inconformada, a 2.ª Ré, ora recorrida, interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Évora, onde, em suma, alegou que o Tribunal de primeira instância violou o n.º 1 do art. 3.º e n.º 1 do art. 195.º ambos do Código de Processo Civil.

g) Acordaram, os Venerados Juízes Desembargadores do Tribunal da Relação de Évora, em declarar a nulidade da decisão como base na omissão da audição das partes quanto à referida adequação jurídica, e determinou que a 1.ª instância ouvisse as partes sobre tal questão.

h) Ouvidas as partes, o Tribunal de 1.ª instância proferiu novamente decisão no mesmo sentido.

i) A recorrida interpôs novamente recurso no qual pugnava, em suma, para o aqui importa considerar, pelo excesso de pronuncia do Tribunal a quo, alegando a violação dos artigos 5.º, n.º 1 e 608.º, n.º 2 do Código de Processo Civil.

j) Tal recurso foi julgado procedente, tendo-se o Tribunal da Relação de Évora substituído ao Tribunal da 1.ª instância e absolvido a recorrida do pedido com base em vício de excesso de pronuncia.

k) Posteriormente, a recorrente, não se conformando com referido acórdão, interpôs recurso para o presente douto Tribunal pugnando pela violação do n.º 3 do art. 5.º do CPC

l) Tendo este douto Tribunal deliberado em revogar o acórdão recorrido, determinado que o Tribunal a quo apreciasse as questões que tinham sido alegadas na apelação pela ora recorrida e cuja apreciação havia ficado prejudicada.

m) Da apreciação, resultou, nomeadamente através da efetivação da alteração da matéria de facto dada como provada em 1.ª instância pelo Tribunal a quo, a absolvição da recorrida do pedido por se considerar que os recorrentes não demonstraram todos os pressupostos para responsabilizar civilmente a mesma.

n) Consideram os recorrentes que o acórdão ora colocado em crise, padece de nulidade por excesso de pronuncia (al. d) do n.º 1 do art. 615.º vide art. 685.º e art. 666.º todos do CPC)

o) Tendo igualmente violado o estabelecido nos arts. 412.º, 640.º, 662.º n.º 1 do Código de Processo Civil.

p) A segunda questão suscitada pela recorrida nas suas apelações prendia-se com a impugnação da matéria de facto, sendo que é quando a este aspeto, principalmente no tocante à impugnação da alteração da matéria de facto do ponto 33 dos factos dados como provados pela primeira instância, que consideram os recorrentes que, pelo facto de não ter sido cumprido o ónus estabelecido no art. 640.º do Código de Processo Civil (CPC) pela recorrida, o Tribunal a quo não deveria ter apreciado a referida impugnação.

q) pelo que, ao fazê-lo, incorreu no vício de excesso de pronuncia (al. d) do n.º 1 do art. 615.º vide art. 685.º e art. 666.º todos do CPC.)

r) Da análise do cumprimento da recorrida deste pressuposto, conclui-se que a mesma apenas efetuou uma remissão genérica nas suas conclusões, não individualizando quais os concretos meios provatórios que no seu entender impunham decisão diversa da recorrida.

s) Assim, ao alterar a matéria de facto dada como provada n.º 33 para não provada, o douto Tribunal a quo, violou os arts. 640.º e 662.º n.º 1 do Código de Processo Civil, visto não estar preenchido, pela recorrida na sua impugnação, o ónus estabelecido no art. 640 n.º 1 al. b.

t) Consequentemente, incorreu o acórdão do douto Tribunal a quo em excesso de pronuncia, pelo que deve o mesmo ser declarado nulo (Cfr. al. d) do n.º 1 do art. 615.º vide art. 685.º e art. 666.º todos do CPC).

u) Relativamente ao ponto 48 dos factos dados como provados pelo Tribunal de 1.ª instância, o qual, foi considerado como não provado no douto acórdão recorrido, estipula o mesmo o seguinte: “38. Caso a venda da moradia anunciasse apenas a existência de dois quartos, o seu valor e preço de mercado seria inferior ao de uma moradia equivalente mas V5 (art. 53.º da petição inicial)”.

v) Com o devido respeito, consideram os recorrentes que o raciocínio adotado pelo Tribunal a quo se encontra manifestamente afastado da realidade económica do mercado imobiliário, sendo claro que, é do conhecimento geral do país, o facto do imóvel disponibilizar de habitações (quartos) suscetíveis de poderem ser rentabilizados através de arrendamento, constitui um fator evidente de valorização do imóvel face a um equivalente que não disponha dessa mesma possibilidade de rentabilização.

w) Assim, consideram os recorrentes que o facto dado como não provado n.º 38 sempre deveria ter sido considerado pelo Tribunal a quo como um facto notório, de conhecimento geral.

x) Pelo que deveria ter sido rejeitada a impugnação de facto da recorrida quanto ao ponto em referência.

y) Pois, tal facto não se estava carecido de prova ( Cfr. n.º1 do art 412.º do Código de Processo Civil)

z) Como tal, não deveria ter sido dado como não provado pelo Tribunal a quo.

aa) Assim, o acórdão recorrido padece de nulidade por excesso de pronuncia (al. d) do n.º 1 do art. 615.º vide art. 685.º e art. 666.º todos do CPC, tendo violado o estabelecido nos arts. 412.º, 640.º,662.º n.º 1 do Código de Processo Civil, motivo pelo qual, deverá o mesmo ser substituído em conformidade com a matéria supra alegada, assim como, com as consequências legais que V. Ex.ºs venham a entender ser a legalmente admissíveis”.

6. A 2.ª ré Sortami – Mediação Imobiliária, Lda., apresenta contra-alegações, que conclui nos seguintes termos:

20. A posição da Recorrida pode sumariar-se da seguinte forma:

a. Não se verifica qualquer nulidade do douto acórdão recorrido, uma vez que os ónus previsto no artigo 640.º do Cód. Proc. Civil foram cumpridos pela Recorrida, em relação a todos os factos que impugnou, incluindo o facto provado 33, nos §§ 113.º a 115.º, bem como na conclusão e), i. a iv., das alegações de recurso que apresentou.

b. Para os Recorrentes, o ónus é incumprido quanto à alegação dos concretos meios de prova que justificam uma decisão diversa (Art. 640.º, n.º 1 b) do Cód. Proc. Civil), porque a Recorrida, nas suas conclusões remete o cumprimento do mesmo para o texto das alegações.

c. Sucede que, tal como é jurisprudência unânime deste Egrégio Tribunal, nas conclusões apenas têm que constar expressos os concretos pontos de facto que se consideram erradamente julgados para balizar o objeto do recurso, bastando que os restantes ónus, como a indicação dos concretos meio de prova que impõem decisão diferente, resultem cumpridos no texto das alegações, tal como fez a Recorrida.

d. Nos termos do Art. 674.º, n.º 3 do Cód. Proc. Civil, as questões relativas à matéria de facto apenas podem ser objeto de recurso de revista, e conhecidas por este Egrégio Tribunal, nos casos excecionais que estão aí indicados, ou seja, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.

e. Decidir se certo facto é ou não notório constitui matéria de facto, de exclusivo julgamento pelas instâncias, subtraído ao conhecimento deste Supremo Tribunal, por via de recurso de revista, por não se reconduzir a nenhum dos casos especialmente previstos no art. 674.º, n.º 3, do Cód. Proc. Civil, pelo que a apreciação que os Recorrentes pretendem que seja feita, está vedada ao conhecimento do Tribunal.

f. De qualquer modo, o facto provado 38 não é um facto notório, apresentando, na verdade, uma relação de causa/efeito que não faz sentido, como concluiu o Colendo Tribunal da Relação de Évora, motivo pelo qual, por maioria de razão, e por não se encontrar abrangida pela previsão do Art. 674.º, n.º 3 do Cód. Proc. Civil, a matéria em causa não pode ser objeto de recurso de revista.

21. Pelo exposto, requer-se a V. Exas. o indeferimento total do recurso, mantendo-se integralmente a douta decisão recorrida”.

7. A Exma. Senhora Desembargadora proferiu despacho em que pode ler-se:

Admito o recurso de revista, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.

Notifique.

Subam os autos”.


*


Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente (cfr. artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do CPC), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cfr. artigos 608.º, n.º 2, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do CPC), a única questão a decidir, in casu, é a de saber se, ao admitir a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, o Tribunal recorrido violou alguma norma aplicável, designadamente os artigos 640.º e 662.º, n.º 1, do CPC.

*


II. FUNDAMENTAÇÃO

OS FACTOS

São os seguintes os factos que vêm provados no Acórdão recorrido:

Dos autores e da ré “Sortami”

1. Os autores residem habitualmente em França onde têm o centro da sua vida. A Portugal costumam deslocar-se para passar férias e visitar a família da autora mulher, que é de nacionalidade portuguesa.

2. No ano de 2017, os autores decidiram comprar outra casa em Portugal para terem um local onde permanecer quando estivessem no país.

3. Por intermédio de uma pessoa conhecida, foi-lhes apresentado o Sr. CC que trabalha para a “Sortami” na promoção de venda de imóveis, tendo este ficado a saber da intenção dos autores, tendo-se comprometido a pesquisar casas que correspondessem à vontade dos autores.

4. A “Sortami” é uma empresa de mediação imobiliária.

5. Os autores transmitiram a CC que era habitual passarem férias em Portugal, muitas vezes com os filhos e netos, pelo que precisavam de uma casa com quatro ou cinco quartos.

6. O referido CC mostrou diversas casas aos autores, que nunca corresponderam ao desejado, fosse pelo tamanho, fosse pelo preço.

Das comunicações sobre a moradia da ré “Algartemático” e respetivas características

7. Em 30/09/2017, a ré, através de CC, remeteu ao autor AA uma mensagem de correio eletrónico pela qual comunicou o seguinte: “Boa tarde Sr. e Sra. AA, Serve este email, para vos enviar o link duma moradia muito boa, moderna, a sul da estrada que vai para a ..., e próxima da praia da .... O link é o seguinte: http://www.sortami.com/moradia-geminada-5-chambres-..._pt_10597 P.S. A moradia pode ser vendida por 600 000,00, sem mobília e com a cozinha equipada. É o melhor valor que conseguimos. Obrigado. Se precisarem de mais alguma informação, por favor não hesitem em contatar-me. Cumprimentos / Best regards, CC E. .................om T. .... ... ... .59”.

8. O autor consultou o sítio da internet remetido por CC onde teve acesso a fotografias várias e informação diversa da moradia, designadamente a seguinte:

(…)

9. Quanto ao número de divisões, anunciava a existência de cinco quartos, aliás, o próprio link refere “5-chambres”, ou seja, cinco quartos.

10. Correspondendo ao interesse dos autores, estes manifestaram junto da ré “Sortami”, através do Sr. CC, isso mesmo.

11. Aos autores foi entregue a brochura da “Sortami” anunciando diversos imóveis, entre os quais o imóvel que corresponde ao remetido por email por CC – fls. 31/35. Nessa brochura e nos imóveis sitos em ..., era anunciada uma moradia geminada com a área de 289 m2 e cinco quartos, pelo preço de € 700 000.

(…)

12. O símbolo que corresponde a uma cama tem como legenda na primeira página da brochura “número de quartos”.

13. Esta foi a única informação documental remetida aos autores antes da decisão quanto à compra do imóvel.

14. No final do mês de setembro de 2017, os autores deslocaram-se a Portugal e visitaram a casa.

15. Observaram a existência efetiva de vários compartimentos. Ficaram convencidos de que a casa era composta por cinco quartos, o que correspondia às suas necessidades familiares.

Dos contratos

16. Em 10/10/2017, entre o autor marido, na qualidade de promitente comprador e a ré “Algartemático”, na qualidade de promitente vendedora, foi celebrado um contrato promessa de compra e venda através do qual esta prometeu vender àquele o prédio urbano, destinado a habitação, sito na Urbanização ..., Lote 5, freguesia de ..., concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º 03048 e inscrita na respetiva matriz sob o artigo 13384.

17. Em 6/10/2017, o autor marido efetuou a favor da ré “Sortami” transferência bancária no valor de € 5 000 (fls. 248/250); em 19/10/2017, outra transferência bancária no valor de € 70.000,00 e em 20/10/2017 ainda outra transferência no valor de € 45.000; em todos os documentos bancários a referência adotada foi o nome da ré “Sortami”.

18. Os contactos com o legal representante da “Algartemático” foram sempre por intermédio e promovidos pela “Sortami”, na pessoa do Sr. CC.

19. Foi a “Sortami” quem promoveu a venda da moradia e estabeleceu a relação de mediação entre os autores e a ré “Algartemático”, transmitiu o preço (€ 700 000, com mobília, e € 600 000, sem mobília) e as condições de pagamento, tendo sido feita referência à mediação imobiliária no acordo de fls. 11.

20. O acordo de fls. 11 foi elaborado pela ré “Sortami” e remetido ao autor marido para ser assinado, o que ele fez, tudo através de email.

21. Aquando de uma visita ao imóvel em causa em que se encontrava presente o legal representante da ré “Algatemático”, este afirmou que arrendava a casa a 10/12 pessoas.

22. Os autores não pediram nem procuraram qualquer aconselhamento jurídico. (*Alterado pelo Tribunal da Relação).

23. Os autores e a ré “Algartemático” celebraram, em 26/01/2018, escritura de compra e venda do prédio referido.

24. Em 11/01/2018, os autores tinham efetuado um pagamento da quantia de € 200.000, em 26/01/2018 um pagamento da quantia de € 180.000.

25. (*Eliminado pelo Tribunal da Relação e convertido no ponto h) dos factos não provados).

26. No acto da escritura, os autores receberam a ficha técnica de habitação do imóvel. (*Alterado pelo Tribunal da Relação).

26-A. Imediatamente antes da realização da escritura ou no próprio acto da mesma, os autores receberam o Certificado de Desempenho Energético e da Qualidade do Ar Interior n.º SCE119647230, relativo ao prédio. (*Aditado pelo Tribunal da Relação, em substituição do ponto 45 dos factos provados).

27. Os autores não deram relevância a tais documentos, pois não precisavam deles para o que quer que fosse naquele momento, razão por que os receberam e arquivaram.

Após a compra

28. (*Eliminado pelo Tribunal da Relação e convertido no ponto i) dos factos não provados).

29. Foi obtida informação junto da Câmara Municipal de ... quanto ao tipo de licenciamento da moradia, tendo vindo a ser constatado que apenas dois quartos integram o licenciamento.

30. (*Eliminado pelo Tribunal da Relação e convertido no ponto j) dos factos não provados).

31. (*Eliminado pelo Tribunal da Relação e convertido no ponto k) dos factos não provados).

32. (*Eliminado pelo Tribunal da Relação e convertido no ponto m) dos factos não provados).

33. (*Eliminado pelo Tribunal da Relação e convertido no ponto l) dos factos não provados).

34. Os autores, através do seu mandatário, por carta registada sob aviso de receção, datada de 28/09/2018, comunicaram às rés as desconformidades acima descritas.

35. A “Sortami” recusou o recebimento da carta que lhe foi remetida (envelope fechado que se remeterá em suporte de papel), tendo sido a mesma carta remetida, desta feita, por email em 02/10/2018.

36. À “Algartemático” foi igualmente remetida cópia da carta remetida à “Sortami”.

37. As rés não se pronunciaram quanto ao teor das missivas.

38. (*Eliminado pelo Tribunal da Relação e convertido no ponto n) dos factos não provados).

39. Os autores visitaram o imóvel, em 5/10/17, bem como em datas posteriores: a moradia estava dotada de 2 quartos e, na cave, de outros compartimentos na zona inferior, sem janela ou com aberturas de cerca de 40/45 cm, mas com mobília, dando a aparência e o uso de quartos.

39-A. Os autores conheciam as características físicas e a composição da moradia. (*Aditado pelo Tribunal da Relação).

40. Entre os autores e a “Sortami” não foi celebrado qualquer acordo escrito, sendo que a dada altura a mesma ré apresentou os autores ao representante da “Algartemático”, após os autores terem demonstrado interesse no imóvel.

41. Os autores declararam pagar à ré “Algartemático” a quantia de € 500.000 pela compra do imóvel.

42. A “Algartemático” não negociou diretamente com os autores.

43. A “Algartemático” celebrou com a segunda ré “Sortami” um contrato de mediação imobiliária em que pretendia que a venda do imóvel fosse promovida por € 700 000.

44. No caso concreto, a ré acabou por declarar vender o imóvel por € 500.000.

45. (*Eliminado e substituído pelo ponto 26-A dos factos provados).

46. O preço de € 500 000 foi aquele por que a “Algartemático” esteve disposta a declarar vender a moradia.

47. O preço que foi fixado e pretendido pela ré tinha em conta a dimensão do imóvel, o lote em que se encontra implantada a construção, a envolvente, o jardim, a sua localização, a existência de piscina e a qualidade construtiva.

48. O valor patrimonial do imóvel que é de 275.528,88€ e fora adquirido pela ”Algartemático” no dia 14 de setembro de 2016, pela quantia de € 372 700.

49. Existem moradias com dois quartos de valor superior e inferior a € 350.000.

50. A ré “Algartemático” é uma sociedade que tem por objeto, além do mais, a promoção imobiliária e compra e venda de imóveis e revenda dos adquiridos para esse fim e tem por objetivo o lucro.

51. Não há qualquer valor fixo ou regulado que obrigue a R. a vender o imóvel pelo preço que os AA. pretendem.

E são seguintes os factos considerados não provados no Acórdão recorrido:

a) Que os autores pretendessem adquirir um imóvel que viesse a constituir uma fonte de rendimento mediante a sua exploração turística, nos períodos em que não estivessem em Portugal e o tivessem expressado à “Sortami”;

b) Que, aquando da celebração do CPCV, os autores tivessem efetuado, em dinheiro, o pagamento da quantia de € 100.000;

c) Que, em 25/01/2018, os autores tivessem efetuado um pagamento da quantia de € 15.342,81;

d) Que os autores soubessem que o imóvel era de tipologia T2 ou V2, em vez de V5;

e) Que o valor de mercado do imóvel fosse superior ao valor pelo qual o negócio foi celebrado;

f) Que, depois da aquisição da moradia, em 2016, a “Algartemático” tivesse procedido à sua beneficiação, restauração, limpeza e pintura e colocação de ar condicionado, visando obter lucro (cujo montante também não se apurou), tudo no valor de € 127 300 (500.000 – 372.700);

g) (*Eliminado pelo Tribunal da Relação).

h) Aquando da leitura do ato notarial acima referido, não foi feita menção à tipologia do prédio que eventualmente pudesse alertar os autores para alguma desconformidade. (*Aditado pelo Tribunal da Relação / anterior ponto 25 dos factos provados).

i) Passados alguns meses após a compra da casa e pretendendo licenciá-la para efeitos de alojamento local, para o que se torna necessário efetuar o registo na Câmara Municipal, in casu, de ..., tomaram conhecimento de que apenas tinham disponíveis dois quartos para inserir em regime de alojamento local. (*Aditado pelo Tribunal da Relação / anterior ponto 28 dos factos provados).

j) Os autores sempre assumiram que a existência física de cinco quartos tinha correspondência com a existência legal desses cinco quartos, o que não acontece. (*Aditado pelo Tribunal da Relação / anterior ponto 30 dos factos provados).

k) Foi nessa ocasião que tomaram conhecimento que a moradia que adquiriram se encontra licenciada com a tipologia V2 e não V5 e que apenas dois dos quartos se encontram licenciados. (*Aditado pelo Tribunal da Relação / anterior ponto 31 dos factos provados).

l) Os autores foram induzidos em erro pela informação da ré “Sortami”, fazendo-os crer que a mesma era composta por cinco quartos (V5), entendendo-se por tal, cinco quartos licenciados. (*Aditado pelo Tribunal da Relação / anterior ponto 33 dos factos provados).

m) Caso tivessem tomado conhecimento prévio de que assim era, os autores não teriam aceitado pagar a quantia de € 500.000 pela sua aquisição. (*Aditado pelo Tribunal da Relação / anterior ponto 32 dos factos provados).

n) Caso a venda da moradia anunciasse apenas a existência de dois quartos, o seu valor e preço de mercado seria inferior ao de uma moradia equivalente, mas V5. (*Aditado pelo Tribunal da Relação / anterior ponto 38 dos factos provados).

O DIREITO

Como se viu, o Tribunal recorrido decidiu apreciar a impugnação da decisão sobre a matéria de facto apresentada pela 2.ª ré / então apelante, tendo, inclusivamente, alterado (alterado, aditado e eliminado) vários pontos do elenco de factos provados e do elenco dos factos não provados.

Os autores / ora recorrentes sustentam que não o deveria ter feito, atendendo a que a então apelante não havia cumprido os ónus previstos no artigo 640.º do CPC, em especial, o previsto na al. b) do n.º 1.

Dispõe-se no artigo 640.º, n.º 1, do CPC:

Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas”.

As alegações de apelação da ré são as seguintes:

a) A douta sentença deve ser anulada, nos termos da 2.ª parte do n.º 1 do art. 615.º do Cód. Proc. Civil, uma vez que os Autores invocaram como causa de pedir a falta de qualidades do imóvel asseguradas pelo vendedor, ao abrigo do art. 913.º do Cód. Civil e a Recorrente foi condenada ao abrigo do instituto da responsabilidade civil aquiliana, violando assim os arts. 5.º, n.º 1, e 608.º, n.º 2 do Cód. Proc. Civil [Capítulo I];

b) Caso seja essa a decisão de V. Exas., requer-se que, conforme o disposto no art. 665.º, n.º 2 do Cód. Proc. Civil, se pronunciem sobre a ilegitimidade substantiva da Recorrente, questão suscitada pela mesma, mas cujo conhecimento ficou preterido em face da decisão ter sido proferida sobre uma causa de pedir diferente [Capítulo I];

c) Os Recorridos peticionaram a redução do preço pago pelo imóvel, o qual a Recorrente, que não foi parte do negócio, mas apenas sua mediadora, nunca recebeu, pelo que deve a exceção de ilegitimidade substantiva ser julgada procedente e, em consequência, ser a Recorrente absolvida do pedido;

d) Subsidiariamente, a douta decisão violou o art. 607.º, n.º 3 do Cód. Proc. Civil, por não fundamentar de todo a existência dos pressupostos substantivos da responsabilidade civil aquiliana (facto ilícito, culpa, dano e nexo de causalidade), pelo que deve ser anulada ao abrigo do art. 615.º, n.º 1, al. b) do mesmo diploma legal [Capítulo II];

e) Se assim não se entender, a douta sentença deve ser reformada quanto ao julgamento da matéria de facto, e, em consequência, ser a acção indeferida por falta de fundamento [Capítulo III]:

i. Os factos provados n.º 26, 28, 30, 31, 32, 33 e 45 devem ser dados como não provados, dando-se como provado, ao invés, que os Recorridos sabiam (ou deviam saber, o que é o mesmo) que somente 2 dos quartos estavam licenciados [Capítulo III, Secção A];

ii. Os factos provados n.º 22 e 25 devem ser dados como não provados [Capítulo III, Secção B];

iii. O facto provado n.º 38 deve ser eliminado, por não ter sido alegado, por não ter sido feita prova do mesmo e por ser irrelevante face à natureza do dano alegado [Capítulo III, Secção C];

iv. Os meios probatórios e demais ónus previstos no art. 640º do Cód. Proc. Civil, que permitem concluir pela reforma da decisão de facto no sentido indicado, estão indicados detalhadamente na Secção D) do Capítulo III supra;

f) Mesmo que assim não se entenda, ainda assim, a douta decisão não deve ser mantida, pois não estão preenchidos os pressupostos legais da responsabilidade civil [Capítulo IV]

i. A Recorrente não praticou nenhum ato ilícito, uma vez que o anúncio de que a casa tinha 5 quartos correspondia à verdade, e os próprios Recorridos concordam com essa descrição, como resulta do § 18º da douta petição inicial;

ii. A Recorrente não causou nenhum dano aos Recorridos, nem nenhum dano resultou provado na ação;

iii. Ainda que assim não fosse, foi a incúria e o desleixo dos Recorridos que causaram o alegado desconhecimento da tipologia do imóvel objecto dos autos;

g) Sem o cumprimento destes pressupostos, a Recorrente não deveria ter sido condenada, pelo que se violou o art. 483.º do Cód. Civ.;

h) Se esta solução também não for aceite, dado que os Recorridos não demonstraram a existência de quaisquer danos na ação declarativa, requer-se a V.Exa. que reformem a douta sentença quanto ao envio da liquidação de danos para execução de sentença, o que equivaleria a repetir a acção na sede executiva, indeferindo por consequência a acção [Capítulo V]; i) Se mesmo esta solução não for aceite, a alínea b) da parte decisória da douta sentença deve ser alterada, de modo a que a liquidação dos danos se reporte apenas à diferença entre o valor de € 500.000 pago pela casa e o valor abaixo de € 500.000 que a casa eventualmente tenha, se a causa dessa diferença for a falta de licenciamento dos três quartos existentes na cave, o que se requer [Capítulo VI];

j) Finalmente, a ser mantida a douta decisão proferida em 1ª instância, requer-se a V.Exas. a reforma da decisão quanto a custas, pois os Recorridos ficaram vencidos pelo menos em 3/4 (o valor da acção foi fixado em € 600.000 e a Recorrente foi condenada no pagamento do valor máximo de € 150.000), pelo que a sua proporção na responsabilidade por custas deve ser de 3/4, e não 1/6 como se decidiu em violação do art. 527.º, n.ºs 1 e 2 do Cód. Proc. Civ.;

l) A douta sentença recorrida violou as normas jurídicas referidas ao longo da presente peça, em especial os arts. 5.º, n.º 1, 527.º, n.ºs 1 e 2, 607.º, n.º 3, 608.º, n.º 2 e 609.º do Cód. Proc. Civ. e o art. 483.º do Cód. Civ.”.

Em face disto, não pode concluir-se por violação do artigo 640.º do CPC.

A apelante indica os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados [cfr. al. a) do n.º 1 do artigo 640.º do CPC], os concretos meios probatórios que impõem, a seu ver, uma decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diferente da recorrida [cfr. al. b) do n.º 1 do artigo 640.º do CPC] e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas [cfr. al. c) do n.º 1 do artigo 640.º do CPC].

No que toca, em especial, aos concretos meios probatórios que impõem, a seu ver, uma decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diferente da recorrida, a apelante indica-os, não obstante por remissão expressa para as alegações.

Diz-se na conclusão e) das alegações de apelação:

iv. Os meios probatórios e demais ónus previstos no art. 640º do Cód. Proc. Civil, que permitem concluir pela reforma da decisão de facto no sentido indicado, estão indicados detalhadamente na Secção D) do Capítulo III supra”.

A indicação por remissão não configura ou equivale a falta ou omissão de indicação, constitui uma forma possível de indicação da informação exigida, que não compromete a inteligibilidade da impugnação da decisão sobre a matéria de facto, mantendo intocada a possibilidade do seu cabal conhecimento pelo tribunal e a possibilidade do exercício de um contraditório esclarecido.

Fosse como fosse, há que recordar que há sempre que fazer uma interpretação do artigo 640.º do CPC conforme aos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, o que obriga a rejeitar leituras excessivamente formalistas susceptíveis de conduzir a restrições injustificadas das garantias associadas ao processo equitativo.

Ciente de que a imposição de ónus de impugnação representa um condicionamento ao direito de acesso aos tribunais e, em especial, ao direito ao recurso (cfr. artigo 20.º, n.º 1, da CRP), este Supremo Tribunal de Justiça tem-se esforçado por interpretar o disposto na norma à luz dos mencionados princípios.

Exemplo, entre tantos outros, desta orientação do Supremo Tribunal de Justiça é o recente Acórdão de 12.10.2023 (Proc. 1/20.2T8AVR.P1.S1)1 em cujo sumário pode ler-se:

No caso dos autos, e de acordo com um critério de razoabilidade, a rejeição liminar do recurso de impugnação de facto desrespeita o princípio da proporcionalidade dos ónus, cominações e preclusões impostos pela lei processual, que constitui uma manifestação do princípio da proporcionalidade das restrições, consagrado no art. 18.º,n.os 2 e 3, da CRP, e da garantia do processo equitativo, consagrada noart. 20.º, n.º 4, da CRP”.

Ilustrativo é também, ainda mais recentemente, o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 12/2023, de 17.10.2023 (publicado no Diário da República n.º 220/2023, Série I de 14.11.2023, rectificado pela Declaração n.º 25/2023, publicada no Diário da República n.º 230/2023, Série I de 28.11.2023), no qual se sustenta uma interpretação visivelmente (mais) flexível do ónus imposto na al. c) do n.º 1 do artigo 640.º do CPC do que poderia resultar da sua interpretação literal, fixando-se o seguinte segmento uniformizador:

Nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 640.º do Código de Processo Civil, o Recorrente que impugna a decisão sobre a matéria de facto não está vinculado a indicar nas conclusões a decisão alternativa pretendida, desde que a mesma resulte, de forma inequívoca, das alegações”.

Não há, em suma, violação do artigo 640.º do CPC, nem, consequentemente, excesso de pronúncia do Tribunal recorrido e nulidade do Acórdão recorrido nso termos do artigo 615.º, n.º 1, al. d), do CPC: o Tribunal limitou-se a apreciar, e a alterar quando e na medida em que considerou necessário, a decisão sobre a matéria de facto.

Quanto ao disposto no artigo 662.º, n.º 1, do CC, ele só reforça a ideia de que o Tribunal da Relação dispõe de amplos poderes – poderes-deveres – no que toca à decisão sobre a matéria de facto, podendo, portanto, mesmo oficiosamente, determinar a sua alteração.

O artigo 662.º, n.º 1, do CPC dispõe;

A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”.

Como resulta da fundamentação do Acórdão ora posto em crise, o Tribunal a quo alterou a decisão sobre a matéria de facto porque, tendo feito uma análise crítica da prova produzida, criou a convicção que se impunha esta alteração.

Quando o Tribunal conclui que se impõe a alteração da decisão sobre a matéria de facto, esta alteração não é apenas um poder mas sim um genuíno dever, preordenado à realização do interesse no apuramento e na fixação da verdade quanto aos factos relevantes para a aplicação ao caso da solução justa.

Os recorrentes alegam ainda, em particular, que o ponto 38 não podia ter sido eliminado do elenco dos factos provados dado que se trata de um facto notório porquanto do conhecimento geral, tendo, portanto, ocorrido violação do artigo 412.º do CPC.

O artigo 412.º do CPC é do seguinte teor:

1 - Não carecem de prova nem de alegação os factos notórios, devendo considerar-se como tais os factos que são do conhecimento geral.

2 - Também não carecem de alegação os factos de que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções; quando o tribunal se socorra destes factos, deve fazer juntar ao processo documento que os comprove”.

Sucede que o Supremo Tribunal de Justiça tem os seus poderes restringidos no que toca à decisão sobre a matéria de facto, admitindo-se apenas o conhecimento da violação de regras de Direito probatório material, ou seja, da ofensa de qualquer disposição expressa da lei que regule os termos em que certo facto haja de ser provado ou que fixe a força de determinado meio de prova, conforme se prevê no artigo 674.º, n.º 3, in fine, do CPC. A “excepção” compreende-se pelo facto de que, no caso afirmativo, está em causa um genuíno erro de direito.

Será o artigo 412.º do CPC uma norma deste tipo, cujo respeito / desrespeito o Supremo Tribunal pode apreciar?

Como se explica no Acórdão deste Supremo Tribunal de 24.02.2022 (Proc. 11/13.6TCFUN.L2.S1):

Não tem sido pacífica a questão de saber se o Supremo Tribunal de Justiça pode ou não, atentos os limitados poderes de que dispõe em sede de conhecimento da matéria de facto, sindicar se determinado facto é ou não notório. Com efeito, a par dos que defendem que a circunstância de, em regra, o Supremo Tribunal não conhecer da matéria de facto, não obsta a que atenda aos factos notórios que não tenham sido considerados pelas instâncias, mesmo que ex novo (artigos 607.º, n.º 4, 663.º, n.º 2 e 679.º do CPC) (cfr. neste sentido, os acórdãos do STJ de 23-01-2014, proc. n.º 237/07.1TBMAC.E1.S1, de 01-04-2014, proc. n.º 330/09.6TVLSB.L1.S1, de 29-06-2017, proc. n.º 4503/14.1TCLRS.L1.S1, de 23-01-2020, proc. n.º 12/15.0TNLSB.L1.S1, de 11-03-2021, proc. n.º 2889/15.0T8OVR-A.P1.S1, disponíveis em www.dgsi.pt e em www.stj.pt; e na doutrina, Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, cit., pág. 427 e Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 2.ª ed., cit., pág. 234), outros entendem que decidir se certo facto é ou não facto notório constitui ainda matéria de facto, do exclusivo julgamento pelas instâncias, por não se reconduzir a nenhum dos casos especialmente previstos no artigo 674.º, n.º 3, do CPC, que facultam o conhecimento e modificação da matéria de facto pelo Supremo Tribunal. Neste sentido, ver os acórdãos do STJ de 17-11-1998, proc. n.º 1049/98, e de 10-09-2019, proc. n.º 20714/13.4YYLSB-B.L1.S1, disponíveis em www.stj.pt e www.dgsi.pt”.

A verdade é que, mesmo que se admita que o Supremo Tribunal pode, ao abrigo da ressalva do n.º 3 do artigo 674.º do CPC, sindicar a alegada ofensa do artigo 412.º do CPC, é visível que o facto em causa não pode ser reconduzido à noção de “facto notório”.

Voltando ao Acórdão mencionado:

Conforme se colhe dos ensinamentos de Alberto dos Reis, que mantêm plena actualidade:

«Facto notório é, por definição, facto conhecido. Mas não basta qualquer conhecimento; é indispensável um conhecimento de tal modo extenso, isto é, elevado a tal grau de difusão que o facto apareça, por assim dizer, revestido de carácter de certeza.»

Tal significa que não pode «qualificar-se de notório um facto conhecido unicamente do juiz ou de um círculo restrito ou particular de pessoas», mas também não é exigível «que seja conhecido pela totalidade absoluta dos cidadãos dum país ou duma região: há-de ser um facto conhecido pela grande generalidade, ou, dito de outro modo, que seja conhecido por parte da massa de portugueses que possam considerar-se regularmente informados, isto é, acessíveis aos meios normais de informação» (ob. cit., Volume III, 3.ª ed., 1950, reimpressão por Coimbra Editora, Coimbra, 2005, págs. 259-261).

No mesmo sentido se pronunciam Abrantes Geraldes / Luís Pires de Sousa / Paulo Pimenta, afirmando que «o facto notório tem de constar como certo ou falso para a generalidade de pessoas de cultura média, entre as quais se encontra o juiz», não devendo integrar apenas um saber especializado (Código de Processo Civil Anotado, Volume I, Almedina, Coimbra, 2018, pág. 413)”.

Recorde-se que o ponto a que se referem os recorrentes – ponto 38, do qual decorre que “Caso a venda da moradia anunciasse apenas a existência de dois quartos, o seu valor e preço de mercado seria inferior ao de uma moradia equivalente, mas V5” – foi retirado do elenco dos factos provados pelo Tribunal recorrido, considerado um facto não provado e passado a constar do ponto n) do elenco dos factos não provados.

Deste modo, é forçoso concluir-se que, ao ter retirado o ponto dos facos provados e ao tê-lo passado para o elenco dos factos não provados, o Tribunal da Relação agiu dentro dos parâmetros legais, sem violação do disposto no artigos 412.º do CPC, pela simples razão de que esta norma que não era aplicável aqui.


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III. DECISÃO

Pelo exposto, nega-se provimento à revista e confirma-se o Acórdão recorrido.


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Custas pelos recorrentes.

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Lisboa, 11 de Janeiro de 2024

Catarina Serra (relatora)

Emídio Santos

Cura Mariano

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1. Veja-se ainda a jurisprudência citada neste Acórdão.