Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1929/20.5T8VRL.G1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: LUIS ESPÍRITO SANTO
Descritores: RECURSO DE APELAÇÃO
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
ÓNUS DE CONCLUIR
PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
PRINCÍPIO DA ADEQUAÇÃO
TUTELA JURISDICIONAL EFETIVA
CONSTITUCIONALIDADE
ANULAÇÃO DE ACÓRDÃO
Data do Acordão: 06/15/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: REVISTA PROCEDENTE.
Sumário :
I – Constitui posição firme e consolidada do Supremo Tribunal de Justiça o entendimento segundo o qual a análise quanto à exigência do cumprimento dos requisitos constantes do artigo 640º do Código de Processo Civil obedece aos princípios gerais da proporcionalidade, adequação e razoabilidade, com o primado da substância sobre a forma, em termos de afastar a drástica solução da imediata rejeição da impugnação de facto no caso de as deficiências no cumprimento dos requisitos estabelecidos no artigo 640º do Código de Processo Civil permitirem, não obstante, compreender e alcançar o seu exacto sentido, sendo assim perfeitamente possível ao julgador, sem especiais dificuldades ou esforços, aquilatar em toda a sua amplitude e com toda a segurança do respectivo mérito, o que está em consonância com os princípios gerais consagrados nos artigos 18º, nº 2 e 3 e 20º, nº 4, da Constituição da República Portuguesa que prevêem a garantia da tutela da jurisdição efectiva e do direito fundamental a um processo judicial equitativo e justo.
II – A imposição dos deveres consignados no artigo 640º do Código de Processo Civil têm igualmente a ver com a salvaguarda do exercício do contraditório pela contraparte que, ao ser confrontada com uma impugnação genérica e/ou confusa, verá acentuadamente dificultada a sua capacidade de resposta, pela consequente incompreensão das razões para a alteração de facto assim deficientemente apresentadas.
III - Será de admitir (e não rejeitar) a impugnação em relação à qual seja objectivamente possível destrinçar e localizar suficientemente os pontos de facto impugnados e os meios de prova com eles conectados, os quais justificam a alteração pretendida, bem como, por fim, a resposta alternativa proposta pelo recorrente, em termos de segura compreensibilidade pelo julgador quanto ao seu conteúdo e sentido.
IV – Não se descortinam assim motivos para não apreciar todos fundamentos apresentados como suporte da presente impugnação de facto, a qual versa, no seu essencial, sobre questões de facto muito concretas e lineares, típicas nas acções de preferência (qual a data do conhecimento da venda pelo preferente; se os prédios são ou não confinantes entre si; qual o valor real do preço recebido pelo vendedor do imóvel; que circunstâncias antecederam a realização do contrato de compra e venda), sendo que a matéria factual em causa está absolutamente delimitada e que os vários grupos temáticos que a integram se interligam coerentemente, tendo sido apresentado o elenco dos meios de prova de forma bastante e suficiente, reforçados pela apreciação crítica que os recorrentes entenderam efectuar, tornando clara e perfeitamente compreensível a motivação respeitante à frontal discordância com o veredicto que fora proferido em 1ª instância, tal como de resto, e sem dificuldade, o entendeu a contraparte.
V – Pelo que se concede a revista, ordenando-se a remessa ao Tribunal da Relação de Guimarães para conhecimento da impugnação de facto que deveria ter conhecido, com a inevitável anulação do acórdão recorrido.
Decisão Texto Integral:




Revista nº 1929/20.5T8VRL.G1.S1

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça (6ª Secção).

I - RELATÓRIO.
Instaurou AA, casado, residente na Rua ..., ..., Bairro ..., em ..., instaurou ação de processo comum, contra BB e CC, casados, residentes na Rua ..., ..., ... ..., ..., e DD e EE, casados, residentes na Quinta ..., ..., ..., ... ....
Essencialmente alegou:
Teve conhecimento do negócio celebrado entre os réus, em 12 de fevereiro de 2020.
É dono e legítimo proprietário do prédio rústico que identifica e com as características que refere, que adquiriu por compra há mais de vinte anos e que se mostra registado a seu favor;
Esse seu prédio confina a norte com o prédio objeto de escritura pública de compra e venda celebrada entre os réus;
O autor tinha já manifestado junto do primeiro réu, o seu interesse na aquisição de tal prédio, mas o réu sempre insistiu em pedir um preço que o autor não quis suportar.
Sem lhe ter sido dada a opção de exercer a preferência, veio a ter conhecimento da venda aos segundos réus, por preço inferior ao que lhe havia sido pedido, pelo que logo comunicou ao primeiro réu que pretendia exercer o direito de preferência.
Os réus adquirentes não eram, nem são, proprietários de qualquer outro prédio confinante com o que adquiriram.
Concluiu pedindo:
A) Que se reconheça ao autor o direito de preferência sobre o prédio rústico melhor identificado no artigo 17º da petição inicial, substituindo-se aos segundos réus na escritura de compra e venda realizada no dia 12 de novembro de 2019 no Cartório Notarial ....
B) Que sejam os réus condenados a entregarem o referido prédio rústico ao autor, livre e desocupado de pessoas e bens.
C) Que seja ordenado o cancelamento de todos e quaisquer registos que os segundos réus, compradores, hajam feito a seu favor em consequência da compra do referido prédio, designadamente o constante da inscrição ...20 – apresentação 1283, de 2019/11/12 e outras que venham a fazer, sempre com todas as demais consequências que ao caso couberem.
D) Se condenem os réus no pagamento das custas processuais e demais despesas devidas.
Regularmente citados os réus apresentaram contestação, começando por arguir a exceção de caducidade da acção, alegando que o autor teve conhecimento dos elementos essenciais do negócio em maio de 2019, para além de que o réu adquirente começou a ocupar o prédio em 15 de Outubro de 2019.
No mais, impugnam a factualidade alegada pelo autor e referem que esta acção é uma represália da parte deste, que entende que o primeiro réu lhe deve determinada quantia, pelo aconselhamento que lhe deu quanto aos termos do contrato promessa com os segundos réus.
Por outro lado, o preço declarado na escritura não foi o preço efetivamente acordado e pago pela aquisição do prédio objeto da preferência, mas antes 125 000 euros, pelo que caso se venha a decidir que o autor tem direito de preferência deve o mesmo ser exercido por esse preço, com pagamento dos custos suportados com o negócio; bem como que o negócio incluiu duas construções que identificam e nas quais os segundos réus realizaram os trabalhos que discriminam, e que valorizaram o imóvel com essas benfeitorias, deduzem reconvenção, pedindo que:
- O autor seja condenado a exercer o direito de preferência pelo preço real de cento e vinte e cinco mil euros, o qual deverá ser depositado no prazo de 15 dias contados da data do trânsito em julgado da sentença, sob pena de caducar o direito de preferência;
- Mais deve o Autor ser condenado a pagar a quantia de 7.250,00€, a título de impostos pagos com a transmissão, bem como a quantia de 5.000,00€ pelas benfeitorias efetuadas no prédio, acrescidas dos juros que se vencerem desde a data da notificação da presente reconvenção até efetivo e integral pagamento.
Em qualquer um dos casos:
- Ser o Autor condenado como litigante de má fé, em multa nunca inferior a 10 UC’s e em indemnização a favor do Réu, de valor nunca inferior a 5.000€, bem como nos juros de mora desde a data da citação, custas e procuradoria.
Realizado julgamento, foi proferida sentença que julgou a presente acção procedente nos seguintes termos:
“1- Julgo a presente acção procedente, pelo que:
a) Reconheço ao autor o direito de preferência sobre o prédio rústico melhor identificado no artigo 17º da petição inicial, substituindo-se aos segundos réus na escritura de compra e venda realizada no dia 12 de novembro de 2019 no Cartório Notarial ....
b) Condeno os réus a entregarem o referido prédio rústico ao autor, livre e desocupado de pessoas e bens.
c) Ordeno o cancelamento de todos e quaisquer registos que os segundos réus, compradores, hajam feito a seu favor em consequência da compra do referido prédio, designadamente o constante da inscrição ...20 apresentação 1283, de 2019/11/12 e outras que venham a fazer.
2- Julgo a reconvenção apenas parcialmente procedente, pelo que:
a) Condeno o Autor a pagar aos segundos réus, a quantia de 7.250,00€ (sete mil duzentos e cinquenta euros), a título de impostos pagos com a transmissão, bem como a quantia de 5.000,00€ (cinco mil euros) pelas benfeitorias efetuadas no prédio, acrescidas dos juros que se vencerem desde a data do trânsito desta decisão até efetivo e integral pagamento.
b) Absolvo o autor reconvindo do demais peticionado.
3- Julgo improcedentes os pedidos de condenação por litigância de fé.
4- Custas da ação a cargo dos réus e da reconvenção a cargo dos réus e do autor, na proporção do decaimento.”
Interposto recurso de apelação pelos RR, foi proferido o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, datado de 19 de Janeiro de 2023, que a julgou improcedente, confirmando a decisão recorrida.
Vieram os RR. interpor recurso de revista, apresentando as seguintes conclusões:
1.ª- Considerando que o recurso da primeira para a segunda instância teve por objecto o julgamento da matéria de facto e do Tribunal da Relação ter rejeitado aquele recurso por alegada violação dos art.ºs 640.º e 662.º do CPC, nada impede os recorrentes de, em sede de revista questionar a forma como aquele Tribunal aplicou as citadas normas processuais;
2.ª- A diversa natureza da matéria levada a apreciação do Supremo Tribunal de Justiça impede, por isso, que se possa falar de uma questão comum sobre a qual tenham sido proferidas duas decisões conformes;
3.ª- Assim, tal como nos acórdãos citados, deverá admitir-se o presente recurso de revista e ser o mesmo apreciado;
4.ª- Prevê o art.º 640.º do CPC que (…)
5.ª- Atento o dispositivo daquela norma, a rejeição do recurso está limitado ao incumprimento dos requisitos previstos nas diversas alíneas dos n.ºs 1 e 2;
6.ª- Se o recorrente cumpriu aqueles requisitos mas o fez de forma vaga, de forma que cause dificuldade relevante na localização pelo recorrido (e pelo Tribunal de recurso) dos meios de prova e das razões em que funda a sua motivação, deverá ser proferido despacho de aperfeiçoamento, convidando-se o recorrido a corrigir as suas alegações;
7.ª- Pelo que nunca seria de admitir o despacho de rejeição proferido pela segunda instância, este em total contradição e desarmonia com o entendimento uniforme e citado do Supremo Tribunal de Justiça;
8.ª- Por outro lado, se o apelante, nas suas alegações de recurso, cumpriu os requisitos do art.º 640.º do CPC, isto é:
a) Identificou os pontos de facto que considerava mal julgados, ainda que por blocos;
b) Indicou os depoimentos das testemunhas e de parte, que entendeu mal valorados, o que fez fornecendo a indicação da sessão na qual foram prestados, o início e termo dos mesmos, que resumiu;
c) Indicou quais os demais meios de prova que, conjugados com os depoimentos indicados;
d) Referiu qual o resultado probatório que, no seu entender deveria ter tido lugar, relativamente a cada facto e meio de prova, verifica-se que a Relação tenha condições para proceder à reapreciação da matéria de facto, ao invés de julgar aquele pedido improcedente por violaçã o dos requisitos do art.º 640.º do CPC;
9.ª- E, ao fazê-lo o fez de forma a que o Recorrido consiga exercer o  contraditório, identificando cada um dos pontos objecto do recurso por forma a poder contrapor o seu entendimento, ter-se-á de concluir que o recorrente o fez de forma a permitir que o Tribunal da Relação disponha de todos os elementos de que necessita para conhecer dos pedidos formulados pelos Recorrentes;
10.ª- Ao assim não decidir, ao não conhecer do recurso e ao proferir decisão de rejeição deste, fundamentando essa rejeição com o não cumprimento do disposto no art.º 640.º, nºs 1 e 2 do CPC, proferiu o Tribunal da Relação de Guimarães acórdão que viola, da forma descrita, aquela norma legal;
11.ª- Não viola o art.º 640.º do CPC facto do recorrente ter optado por,  sempre que havia identidade de raciocínio e de meios de prova, agrupar mais do que um facto em vez de repetir exaustivamente os mesmos argumentos de facto e de direito ou de, concluído um raciocínio para um (ou mais factos), remeter para aqueles argumentos outro conjunto de factos, interligados, desde que se compreenda a remissão e esta, por razões de economia processual, evite uma peça processual prolixa, que canse pelo número de vezes que repetem os mesmos argumentos;
12.ª- Atento o exposto e analisadas as alegações de recurso, ter-se-á de concluir que os recorrentes cumpriram os requisitos do art.º 640.º do CPC pelo que não poderia o Tribunal da Relação julgar aquele recurso improcedente nem rejeitá-lo, da forma como o fez, o que implica a devolução do processo à segunda instância para que esta, ou profira despacho de aperfeiçoamento ou, em alternativa, reaprecie a decisão de facto, emitindo acórdão que conheça do seu mérito;
13.ª- Ao assim não decidir violou o Tribunal “a quo” o preceituado nos os artigos 3.º, n.ºs 1 a 3, 6.º, n.ºs 1 e 2, 411.º, 639.º, 640.º e 662.º, todos do CPC;
Se Vossas Excelências, em face das conclusões atrás enunciadas, julgarem procedente o presente recurso de revista e, em consequência disso revogarem o acórdão recorrido, ordenando a remessa dos presentes autos.
Não houve resposta.
 
II – FACTOS PROVADOS.
Encontra-se provados nos autos que:
1. O autor é dono e legítimo proprietário do prédio rústico sito no lugar ... ou ..., composto por cultura com 60 oliveiras, matos, vinha do douro e vinha em latada, com a área total de 2.642 m2, a confrontar de norte com FF, de sul com caminho e GG, de nascente com GG e de poente com caminho e HH e GG, inscrito na matriz predial da freguesia ... sob o artigo 3.660º e descrito na CRP ... sob a inscrição ...06 da referida freguesia ... e inscrita a favor do Autor pela apresentação número ... de 1990/11/20.
2. O referido rústico veio à posse do autor, no ano de 1990, por compra que fez a II.
3. Tal aquisição encontra-se inscrita a favor do autor na Conservatória do Registo Predial pela AP ... de 1990/11/20.
4. Desde a sua aquisição até á presente data, sempre o autor por si e demais ante possuidores, amanharam, cultivaram e desmataram o prédio, colheram uvas, azeite e lenha, limparam margens, conservaram as estremas, pagaram atinentes impostos.
5. Tais atos vêm sendo praticados pelo autor e seus antecessores, ao longo de todos estes anos até aos dias de hoje.
6. Há mais de 20 e mais anos.
7. À vista de todas as pessoas.
8. Sem violência ou oposição de quem quer que seja.
9. De forma contínua, porque sem interrupção até aos dias de hoje.
10. Na convicção de atuar como dono e legítimo proprietário do dito prédio.
11. O prédio descrito confina a norte com o prédio rústico sito no lugar ... ou ..., freguesia ..., concelho ..., composto de pinhal e vinha, com a área de 20.621 m2, inscrito na matriz rústica da citada freguesia sob o artigo 4324º, com proveniência nos artigos 3658º e 3656º e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...42 da freguesia ....
12. À data em que o autor comprou o imóvel com o artigo matricial ...60º, o rústico identificado e que confina com o adquirido pelo autor nos termos mencionados, pertencia a FF - artigo 3658º- e JJ e esposa KK – artigo 3656º, que após unificação pelos 1ºs Réus deu origem ao atual artigo 4324º.
13. O autor desde há muito que pretendia adquirir esta parcela de terreno, com o intuito de a anexar à sua, de modo a tornar a sua propriedade mais rentável do ponto de vista agrícola.
14. Razão pela qual logo que no referido prédio viu afixada uma placa para venda, de imediato contactou o primeiro réu marido, dando-lhe conta do seu interesse na compra do rústico e assim iniciar a negociação do mesmo.
15. Respondeu-lhe o primeiro réu marido que o rústico estava para venda pelo preço de € 150 000,00 (cento e cinquenta mil euros).
16. Como não dispunha de tal quantia, propôs o autor ao 1º réu marido a celebração de uma permuta entre aquele rústico - melhor identificado no artigo 17º da petição - e um urbano de que é proprietário na Cidade ....
17. Após verificação do urbano manifestaram os primeiros réus não lhes interessar a permuta proposta, afirmando manter interesse apenas na venda do rústico pelo valor indicado.
18. Decorridos alguns dias, decidiu o autor apresentar nova proposta, desta feita, propondo-se pagar o preço de € 100.000,00 (cem mil euros).
19. Novamente recusou o 1º réu marido, afiançando apenas vender pelo valor de € 150.000,00 (cento e cinquenta mil euros).
20. Face à postura do 1º réu marido, nada mais disse ou procurou saber o autor.
21. O autor veio a obter confirmação pelo próprio réu vendedor que já havia vendido o prédio.
22. No dia 12 de fevereiro de 2020, o Autor deslocou-se à Conservatória do Registo Predial ... para requerer uma cópia do documento através do qual o rústico foi transmitido aos segundos Réus.
23. Verificou tratar-se de uma escritura pública de Compra e Venda, celebrada no dia 12 de novembro de 2019, no Cartório Notarial ..., em ..., através da qual os primeiros Réus BB e CC declararam vender aos segundos, DD e EE, o prédio rústico sito no lugar ..., freguesia ..., concelho ..., composto de pinhal e vinha, com a área de 20.621 m2, inscrito na matriz rústica da citada freguesia sob o artigo 4324º, com proveniência nos artigos 3658º e 3656º e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º...42 da freguesia ..., pelo preço de € 60 000,00 (sessenta mil euros).
24. Com fundamento na referida escritura pública, a aquisição do prédio rústico melhor identificado no artigo 17º da petição inicial, vendido pelos primeiros réus, foi inscrito a favor dos segundos réus na Conservatória do Registo Predial ....
25. No dia 12 de fevereiro de 2020, o autor redigiu e enviou carta ao primeiro réu marido, com conhecimento do segundo réu marido, transmitindo-lhe o seu desagrado face à conduta por este assumida, uma vez que não lhe havia comunicado os termos do negócio para que este, querendo, como o primeiro réu marido bem sabia que queria, exercer o seu direito legal de preferência.
26. Mais lhe comunicou na missiva enviada, que era sua vontade exercer a preferência legal na aquisição do rústico, uma vez que o valor pago pelos segundos réus era inferior àquele que ele se propôs pagar e que não foi aceite, recorrendo, se necessário fosse, aos meios judiciais competentes.
27. Na data de 23 de julho de 2020, a mandatária subscritora endereçou aos réus comunicação escrita, dando-lhes conta, uma vez mais, da decisão do autor em exercer o direito de preferência, por forma a aferir da possibilidade da resolução extrajudicial do diferendo.
28. Todavia, tal não se mostrou possível.
29. Pelo menos, no dia 12 de fevereiro de 2020, o Autor teve conhecimento dos elementos essenciais da venda do rústico melhor identificado no artigo 17º da petição inicial.
30. Nem os primeiros réus, nem qualquer outra pessoa, comunicaram ao autor, quer verbalmente, quer por carta, quer através de qualquer outro meio, o projeto da venda mencionada e as cláusulas desse contrato, nomeadamente, o preço do negócio, a forma de pagamento, a identificação do comprador, o local e prazo para celebrar o contrato e quaisquer outras condições de cuja observância dependesse a realização do negócio.
31. Quando bem sabiam ser vontade do autor adquirir o rústico em questão.
32. Quer o prédio rústico de que é proprietário o autor, quer o prédio objeto de preferência, são compostos, entre outros, por pinhal, oliveiras e vinha.
33. O prédio do autor confina pelo seu lado norte com o lado sul do prédio vendido pelos primeiros réus aos segundos.
34. O prédio rústico, propriedade do autor, confinante com aquele que foi alienado, bem como este último, têm área inferior à unidade de cultura estabelecida para a região em que se situam.
35. Os segundos réus compradores, à data da realização da transação supra, referida, não eram, nem são atualmente, proprietários de qualquer outro prédio confinante com o prédio adquirido aos primeiros réus, pois que, como atestam as confrontações daquele rústico, os proprietários dos prédios confinantes são LL, o autor, e MM, sendo todas as outras confrontações com caminho público.
36. O autor e os primeiros réus conviviam, chegando a participar em festividades na casa um do outro.
37. Com o primeiro pagamento, em 15 de Outubro de 2019, o segundo Réu passou a ocupar o prédio.
38. O qual limpou, começou a cultivar e no qual introduziu algumas benfeitorias.
39. Os réus lavraram escritura de retificação, em 17 de novembro de 2020.
40. Bem como liquidaram a totalidade dos impostos.
41. Os segundos Réus suportaram os custos com impostos, no valor total de 7 250 euros.
42. Os segundos Réus realizaram benfeitorias no imóvel objeto da preferência.
43. No prédio rústico objeto da presente ação existem duas construções compostas por um armazém agrícola e uma casa de apoio.
44. Imóveis que foram naturalmente incluídos no negócio.
45. Ao tomar posse das referidas construções, os segundos Réus resolveram levantar uma vedação para proteção dos seus filhos menores.
46. Mais executaram na casa de suporte os seguintes trabalhos: a) Construção de mobiliário embutido;
b) Construção de teto falso;
c) Construção de divisória em pladur; d) Remodelação da rede elétrica.
47. Trabalhos que valorizaram o imóvel em causa em, pelo menos, 5 000 € (cinco mil euros).
Factos julgados não provados:
a- O autor teve conhecimento do negócio celebrado entre os Réus, na data de 12 de fevereiro de 2020.
b- Acordaram autor e 1º réu marido agendar uma visita ao urbano oferecido pelo autor para troca, para que aquele e sua esposa o pudessem verificar e assim aferir do interesse no negócio proposto.
c- No dia 11 de fevereiro de 2020, enquanto almoçava no restaurante ... com a sua esposa, em ..., o autor foi abordado pelo 1º réu marido o qual lhe comunicou que já havia vendido o rústico.
d- Ao que o autor respondeu, completamente convencido de que o havia feito pelo preço de € 150.000,00, como sempre afiançou que faria: “sempre conseguiste”.
e- Ao comentário efetuado pelo autor nada respondeu o 1º réu marido, limitando-se a esboçar um sorriso.
f- Facto que levou o autor a desconfiar que, se calhar, assim não tinha sido.
g- Os elementos essenciais do negócio são do conhecimento pessoal do Autor desde finais de maio de 2019.
h- O Autor era, desde há vários anos e até estes factos terem ocorrido, o responsável pela contabilidade e entrega das declarações de rendimentos dos primeiros Réus.
i- Inclusivamente era portador das senhas de acesso ao portal das finanças, ao qual acedia até a pedido dos primeiros Réus, sempre que estes necessitavam que o fizesse por os próprios não o saberem fazer.
j- Além de contabilista era considerado pelos primeiros Réus um amigo de confiança com o qual partilhavam, não só os seus negócios, como muitos aspetos da sua vida pessoal.
k- Ainda que frustrado o negócio do terreno entre ambos, foi o 1º Réu marido dando conhecimento ao autor das diferentes propostas que ia recebendo.
l- Que culminou com a proposta apresentada pelo 2º R marido -125.000€, a pagar ao longo de 2019 e 2020.
m- Este negócio concretizou-se verbalmente em finais de maio de 2019 e nessa mesma altura foi dado a conhecer ao Autor - preço; modo de pagamento; comprador.
n- Atenta a especificidade do negócio, foi o Autor quem sugeriu aos primeiros Réus, a celebração de um contrato promessa, nos exatos termos que acabaram por constar do documento celebrado.
o- O qual, antes de ser assinando, foi exibido pelo 1º Réu ao Autor, contando com os conhecimentos jurídicos que o Autor havia adquirido com a licenciatura de solicitador e a sua vasta experiência profissional.
p- Quando em maio de 2019, o primeiro Réu comunicou ao Autor o preço e a forma de pagamento, este, na qualidade de contabilista daquele, fez de imediato os cálculos e indicou ao primeiro Réu quanto este iria pagar a título de mais valias.
q- Razão pela qual insistiu que tivesse o cuidado de não fazer constar na escritura pública que iria celebrar ainda em 2019, a totalidade do preço, sob pena de pagar já em 2020 o imposto relativo a um ganho que deveria ser tributado no ano seguinte.
r- É o Autor conhecedor dos elementos essenciais do negócio desde maio de 2019.
s- Com a outorga do contrato promessa foi retirada a placa que anunciava a venda daquele imóvel.
t- E nas semanas que se seguiram, por mais do que uma vez, o Autor viu o 2.º Réu naquela propriedade, a quem chegou a chamar “o meu novo vizinho rico” por, nas suas palavras, ter pago uma fortuna pelo terreno.
u- Como era obrigação do 1.º Réu para com o seu contabilista, no dia seguinte ao da realização da escritura, foi entregue ao Autor uma cópia, em mão.
v- E nesse mesmo dia, o Autor, ao aperceber-se que os Réus não haviam referido na escritura a forma concreta de pagamento, tentou convencer o 1.º Réu a não declarar o remanescente do preço pago, demonstrando-lhe novamente o quanto iria pagar a título de mais valias, que assim poupava.
w- A presente ação mais não configura do que uma represália do Autor em relação ao 1.º Réu.
x- Isto porque o Autor considera que o 1.º Réu lhe deve a quantia de 7.500€, pelo trabalho que desenvolveu a aconselhar os termos do contrato promessa, e a poupança em impostos, caso tivesse escriturado a venda do rústico pelos 60.000€.
y- E como o 1.º Réu se recusou a pagar aquele valor, de imediato ameaçou, contínuas vezes, com o exercício da preferência pelo valor escriturado.
z- Afirmando e garantindo que, apesar de saber que o valor da venda tinha sido de 125.000€, iriam perder aquele montante.
aa- E foi com esse objetivo que, de novembro de 2019 a julho de 2020, por mais de uma vez, enviou emissários a ambos os Réus, que os aconselhavam a pagar ao Autor o que ele lhes estava a exigir para não ficarem sem o terreno e sem dinheiro.
bb- Também nesse período, o 1.º Réu recebeu uma carta, sem assinatura, de alguém que se dizia Advogado, a ameaçar com uma queixa no Serviço de Finanças se não pagasse ao Autor o que era devido àquele pelos serviços prestados e os impostos poupados.
cc- Ameaças que começaram logo após a realização da escritura e se prolongaram até ao envio das cartas juntas à P.I. e subscritas pela Ilustre Mandatária do Autor.
dd- O preço constante da escritura de compra e venda outorgada em 12/11/2019, não corresponde ao preço que foi acordado e pago pelos segundos réus aos primeiros pela aquisição do prédio objeto de preferência.
ee- O que o Autor muito bem sabe.
ff- Ocorreu um lapso no conteúdo da dita escritura.
gg- Lapso esse induzido pelo Autor e do qual agora pretende tirar proveito com a presente ação.
hh- Conforme constava do contrato promessa, foi o preço de aquisição de 125.000€, valor que os 2ºs Réus se obrigaram a pagar, 60.000€ até final de 2019 e 65.000€ até final de 2020.
ii- Facto que deveria ter constado da escritura realizada a 12/11/2019, mas cujo texto os Réus julgaram não ser admissível ou, a constatar, implicaria sempre o imediato pagamento de mais valias.
jj- Ao aperceberem-se do lapso, de imediato lavraram a escritura de retificação, assim sanando e corrigindo alguma dúvida que pudesse existir.
kk- Ainda assim, quanto ao preço, devido a dificuldades de tesouraria sentidas pelos segundos Réus, acabaram estes por prolongar, com o consentimento dos primeiros Réus, esse pagamento até inícios de 2021.
ll- O valor entretanto liquidado ascende já aos acordados 125.000€, realizado da seguinte forma:
A) No dia 15/11/2019 foi paga a quantia de 30.000€ através do cheque n.º ...95 do Banco BPI;
B) No dia 12/11/2019 foi paga a quantia de 30.000€ através dos cheques n.ºs ...96 e ...97 do Banco BPI;
C) No dia 02/12/2020 foi paga a quantia de 25.000€ através do cheque ...52 do Banco BPI;
D) No dia 07/01/2021 foi paga a quantia de 20.000€ através do cheque ...53 do Banco BPI;
E) No dia 09/03/2021 foi paga a quantia de 20.000€ através do cheque ...54 do Banco BPI.
mm- Nunca houve intenção dos réus em declarar uma vontade diferente da vontade real.
 
III – QUESTÕES JURÍDICAS ESSENCIAIS DE QUE CUMPRE CONHECER.
(In)cumprimento dos requisitos previstos no artigo 640º, nº 1, alínea b), do Código de Processo Civil. Rejeição da impugnação de facto. Aplicação, como factor de moderação e afirmação do primado da substância sobre a forma, dos princípios da proporcionalidade, razoabilidade e adequação.
Passemos à sua análise:
Consta do acórdão recorrido quanto aos motivos que justificaram a rejeição da impugnação de facto apresentada pelo apelante, por incumprimento do dever processual consignado no artigo 640º, nº 1, alínea b), do Código de Processo Civil:
“Da pretendida alteração da matéria de facto, nos termos do art. 662º, do CPC
Cabe aqui apreciar se o tribunal cometeu algum erro da apreciação da prova e assim na decisão sobre a matéria de facto.
A este propósito os recorrentes impugnaram a decisão da matéria de facto, relativamente a determinados pontos da matéria de facto provada e não provada.
Cumpre começar por analisar se os recorrentes cumpriram os requisitos de ordem formal que permitam a este Tribunal apreciar a impugnação que fazem da matéria de facto, nomeadamente se indicam os concretos pontos de facto que consideram incorrectamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões; se especificam na motivação dos meios de prova constantes do processo ou que nele tenham sido registados que, no seu entender, impõem uma decisão diversa quanto a cada um dos factos; fundando-se a impugnação em parte na prova gravada, se indicam na motivação as passagens da gravação relevantes; apreciando criticamente os meios de prova, se expressam na motivação a decisão que no seu entender deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas; tudo conforme resulta do disposto no artº. 640º, nºs. 1 e 2, do Código Processo Civil (C.P.C.) e vem melhor mencionado na obra de Abrantes Geraldes “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, Almedina, 4ª Edição, pags. 155 e 156.
A apreciação de facto, em sede de recurso, tendo por base a gravação e/ou transcrição dos depoimentos prestados em audiência, não pode aniquilar a livre apreciação da prova do julgador, construída dialecticamente na base da imediação e da oralidade.
Com efeito, a garantia do duplo grau de jurisdição da matéria de facto não subverte o princípio da livre apreciação da prova que está deferido ao tribunal da 1ª instância, previsto no art. 607º, nº5, do CPC, sendo que, na formação da convicção do julgador não intervêm apenas elementos racionalmente demonstráveis, já que podem entrar também elementos que em caso algum podem ser importados para a gravação vídeo ou áudio, pois que a valoração de um depoimento é algo absolutamente imperceptível na gravação/transcrição (veja-se nestes sentido, Abrantes Geraldes in “Temas de Processo Civil”, II Vol., pg. 201).
Diversamente do que acontece no sistema da prova legal, em que a conclusão probatória é prévia e legalmente fixada, no sistema da livre apreciação da prova, o julgador detém a liberdade de formar a sua convicção sobre os factos, objecto do julgamento, com base apenas no juízo que fundamenta no mérito objectivamente concreto do caso, na sua individualidade histórica, adquirido representativamente no processo. O juiz, no seu livre exercício de convicção, tem de indicar os fundamentos que, segundo as regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa sindicar da razoabilidade da decisão sobre o julgamento do facto como provado ou não provado (neste sentido, Miguel Teixeira de Sousa, in Estudos Sobre o Novo Código de Processo Civil, Lex, 1997, pg. 348).
Na verdade, o art. 607º, nº 4, do C.P.Civil, prevê expressamente a exigência de objectivação, através da imposição da fundamentação da matéria de facto, devendo o tribunal analisar criticamente as provas e especificar os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador.
Tal como se sustenta no Ac. da Relação do Porto, de 22.05.2019, (…)”na reapreciação dos meios de prova, a Relação procede a novo julgamento da matéria de facto impugnada, em busca da sua própria convicção, desta forma assegurando o duplo grau de jurisdição sobre essa mesma matéria, com a            mesma amplitude           de poderes da 1.ª instância.
Impõe-se-lhe, assim, que “analise criticamente as provas indicadas em fundamento da impugnação, quer a testemunhal, quer a documental, conjugando-as entre si, contextualizando-se, se necessário, no âmbito da demais prova disponível, de modo a formar a sua própria e autónoma convicção, que deve ser fundamentada”.
Importa, porém, não esquecer que, como atrás se referiu, se mantêm vigorantes os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova e guiando-se o julgamento humano por padrões de probabilidade e nunca de certeza absoluta, o uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto deve restringir-se aos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova disponíveis e aquela decisão, nos concretos pontos questionados.
Revertendo para o caso vertente, verifica-se que os Recorrentes, nas suas alegações e conclusões do recurso, consideram que foram incorrectamente julgados determinados factos.
Assim, os Recorrentes dividiram a factualidade que impugnaram em grupos:
Em primeiro lugar, impugnaram os pontos 22, 29 e 30 dos factos provados, pugnando que tal factualidade deve ser julgada não provada e, bem assim a al. aa) dos factos não provados que entendem que deve ser julgada provada.
Em segundo lugar, os Recorrentes impugnam os pontos 1, 11, 12 e 13 dos factos provados, pugnando que os mesmos devem ser julgados não provados.
Em terceiro lugar, impugnam os Recorrentes partes que indicam a negrito dos pontos 25, 26 e 34 dos factos provados, entendendo que nessa parte os mesmos devem ser julgados não provados.
Em quarto lugar, os Recorrentes impugnam os factos não provados das al. m, n, o, p, q, s, t, w, x, y, z, aa, bb, cc e mm, pugnando que devem ser considerados provados.
Em quinto lugar, os Recorrentes impugnam os factos não provados das al., l, dd, ff, hh, ii, jj, kk, e ll, pugnando que os mesmos devem ser julgados provados, e que deve ser acrescentada aos factos provados a factualidade indicada nas conclusões 23 e 24 da apelação.
Sucede que, relativamente a todos os factos impugnados, os Recorrentes não indicam os concretos meios probatórios que impunham decisão sobre esses pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida conforme exige o art. 640º, nº 1, al. b) e 2, al. a) do CPC.
Esta forma de impugnação não cumpre as exigências formais das alíneas b) do nº 1, e 2 al. a) do art. 640º do CPC.
Como se lê no Acórdão do STJ de 01.10.2015, a propósito da previsão do art. 640º do CPC, disponível in www.dgsi.pt:
“Quer isto dizer que recai sobre a parte Recorrente um triplo ónus:
Primo: circunscrever ou delimitar o âmbito do recurso, indicando claramente os segmentos da decisão que considera viciados por erro de julgamento;
Secundo: fundamentar, em termos concludentes, as razões da sua discordância, concretizando e apreciando criticamente os meios probatórios constantes dos autos ou da gravação que, no seu entender, impliquem uma decisão diversa;
Tertio: enunciar qual a decisão que, em seu entender, deve ter lugar relativamente às questões de facto impugnadas.
Ónus tripartido que encontra nos princípios estruturantes da cooperação, da lealdade e boa-fé processuais a sua ratio e que visa garantir, em última análise, a seriedade do próprio recurso instaurado, arredando eventuais manobras dilatórias de protelamento do trânsito em julgado da decisão”. (cfr., também, sobre esta matéria, Lopes do Rego, in “Comentários ao Código de Processo Civil”, pág. 465 e que, nesta parte, se mantém actual).
Diz-se também no acórdão do STJ de 19 de Fevereiro de 2015, acessível em www.dgsi.pt, que:
“(...), a exigência da especificação dos concretos pontos de facto que se pretendem questionar com as conclusões sobre a decisão a proferir nesse domínio tem por função delimitar o objeto do recurso sobre a impugnação da decisão de facto”.
“…Por sua vez, a especificação dos concretos meios probatórios convocados, bem como a indicação exata das passagens da gravação dos depoimentos que se pretendem ver analisados, além de constituírem uma condição essencial para o exercício esclarecido do contraditório, serve sobretudo de parâmetro da amplitude com que o tribunal de recurso deve reapreciar a prova, sem prejuízo do seu poder inquisitório sobre toda a prova produzida que se afigure relevante para tal reapreciação, como decorre hoje, claramente, do preceituado no nº 1 do artigo 662º do CPC”.
“…É, pois, em vista dessa função, no tocante à decisão de facto, que a lei comina a inobservância daqueles requisitos de impugnação com a sanção da rejeição imediata do recurso, ou seja, sem possibilidade de suprimento, na parte afetada, nos termos do artigo 640º, nº 1, proémio, e nº 2, alínea a), do CPC”.
“…Não sofre, pois, qualquer dúvida que a falta de especificação dos requisitos enunciados no nº 1 do referido artigo 640º implica a imediata rejeição do recurso na parte infirmada”.
A interpretação da alínea c), do art. 640º do CPC, é-nos dada de forma exemplar por Abrantes Geraldes (in “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 2017, 4ª Edição, pág. 156), podendo ler-se a este propósito que:
“O Recorrente deixará expressa a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, como corolário da motivação apresentada, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos, exigência nova que vem no reforço do ónus de alegação, por forma a obviar à interposição de recursos de pendor genérico ou inconsequente”.
Com este novo regime, em contraposição com o anterior, pretendeu-se que fosse rejeitada a admissibilidade de recursos em que as partes se insurgem em abstracto contra a decisão da matéria de facto.
Nessa medida, o recorrente tem que especificar os exactos pontos que foram, no seu entender, erradamente decididos e indicar, também com precisão, o que entende que se dê como provado.
A imposição de tais indicações precisas ao recorrente, visou impedir “recursos genéricos contra a errada decisão da matéria de facto, restringindo-se a possibilidade de revisão de concretas questões de facto controvertidas relativamente às quais sejam manifestadas e concretizadas divergências por parte do recorrente.” (cfr. Abrantes Geraldes, ob. cit., p.153).
Também por esses motivos, o recorrente, além de ter que assinalar os pontos de facto que considera incorrectamente julgados e indicar expressamente a decisão que no seu entender deve ser proferida sobre esses pontos, tem igualmente que especificar os meios de prova constantes do processo que determinam decisão diversa quanto a cada um dos factos (Cfr. Abrantes Geraldes, ob. cit., p.155).
Deste modo, relativamente a cada um dos factos que pretende obter diferente decisão da tomada na sentença, tem o recorrente que, com detalhe, indicar os meios de prova deficientemente valorados, criticar os mesmos e, discriminadamente, concluir pela resposta que deveria ter sido dada, evitando-se assim que sejam apresentados recursos inconsequentes, e sem fundamentação que possa ser apreciada e analisada.
Assim, não são admissíveis impugnações em bloco que avolumem num ou em vários conjuntos de factos diversos a referência à pertinente prova que motiva a pretendida alteração das decisões e que, na prática, se reconduzem a uma impugnação genérica, ainda que parcelar.
Nesse sentido, veja-se o Ac. do S.T.J., de 20.12.2017, onde, no sumário, se escreveu o seguinte: “I- A alínea b), do nº 1, do art. 640º do CPC, ao exigir que o recorrente especifique “os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida”, impõe que esta concretização seja feita relativamente a cada um daqueles factos e com indicação dos respectivos meios de prova, documental e/ou testemunhal e das passagens de cada um dos depoimentos (sublinhado nosso);II - Não cumpre aquele ónus o apelante que, nas alegações e nas conclusões, divide a matéria de facto impugnada em três “blocos distintos de factos” e indica os meios de prova relativamente a cada um desses blocos, mas omitindo-os relativamente a cada um dos concretos factos cuja decisão impugna.”.
Em suma, a indicação dos concretos meios probatórios deve ser feita a cada facto impugnado, o que não se verifica no caso vertente.
Na verdade, os Recorrentes limitaram-se a criar vários grupos ou lotes de matéria de facto impugnada, indicando a cada grupo os concretos meios probatórios no seu entender adequados a lograr a procedência dessa impugnação, mas omitiram a indicação dos meios probatórios a cada um dos concretos factos impugnados, incluindo os indicados nas conclusões 23 e 24 do recurso.
Acresce que, a prova documental por si indicada, nada releva quanto à pretendida alteração, desacompanhada de qualquer outro meio de prova.
Deste modo, não tendo os Recorrentes observado o disposto no art. 640º, nº 1 e 2 do CPC, tal determina a rejeição do recurso, na parte relativa à impugnação da matéria de facto”.
Vejamos:
A única questão jurídica que cumpre apreciar nesta revista é a de saber se os RR., recorrentes/impugnantes, incumpriram algum dos requisitos impostos pelo artigo 640º, nº 1, do Código de Processo Civil, dando assim azo justificadamente à rejeição imediata do seu recurso em matéria de facto, o que veio aliás a ter lugar.
Encontra-se em causa concretamente o cumprimento da alínea b), do nº 1 do artigo 640º do Código de Processo Civil, onde se dispõe:
“Quando seja impugnada a decisão sobre a matéra de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
(…) b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou de gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnada diversos da recorrida”.
Cumpre acrescentar, a este respeito, que o recorrente estruturou da seguinte forma a sua impugnação de facto:
Indicou primeiramente como questões de facto que teriam sido incorrectamente decididas em 1ª instância as seguintes, que agrupou segundo os temas que as encimou:
A) Da data em que o recorrido teve conhecimento dos elementos essenciais da escritura.
B) Da falta de prova de que os prédios são confinantes entre si.
C) Outros factos dados como provados que terão de ser considerados como não provados.
D) Outros factos que foram dados como não provados e terão que ser considerados como provados.
E) Do preço real da compra e venda.
A propósito de cada um destes temas referiu, desenvolvendo:
A) Da data em que o recorrido teve conhecimento dos elementos essenciais da escritura.
Estão em causa os seguintes pontos dados como provados (sob os nºs 22, 29 e 30):
22. No dia 12 de fevereiro de 2020, o Autor deslocou-se à Conservatória do Registo Predial ... para requerer uma cópia do documento através do qual o rústico foi transmitido aos segundos Réus.
29. Pelo menos, no dia 12 de fevereiro de 2020, o Autor teve conhecimento dos elementos essenciais da venda do rústico melhor identificado no artigo 17º da petição inicial.
30. Nem os primeiros réus, nem qualquer outra pessoa, comunicaram ao autor, quer verbalmente, quer por carta, quer através de qualquer outro meio, o projeto da venda mencionada e as cláusulas desse contrato, nomeadamente, o preço do negócio, a forma de pagamento, a identificação do comprador, o local e prazo para celebrar o contrato e quaisquer outras condições de cuja observância dependesse a realização do negócio.
E o seguinte facto dado como não provado (aa):
aa- E foi com esse objetivo que, de novembro de 2019 a julho de 2020, por mais de uma vez, enviou emissários a ambos os Réus, que os aconselhavam a pagar ao Autor o que ele lhes estava a exigir para não ficarem sem o terreno e sem dinheiro.  
Indicou como suporte da impugnação destes factos os seguintes meios de prova:
 Depoimento de parte do recorrido AA, salientando-se que “o que resulta em particular desta parte do depoimento é que o Autor começa por reconhecer que um amigo comum, o brasileiro, responsável pela V..., foi falar com ele a pedido do recorrente vendedor e é precisamente esse episódio que ele relata na carta que envia em 12 de Fevereiro de 2020”.
Depoimento do recorrente, BB.
Depoimento do recorrente DD.   
B) Da falta de prova de que os prédios são confinantes entre si.
Estão em causa os seguintes pontos dados como provados (sob os nºs 1, 11, 12 e 33):
1. O autor é dono e legítimo proprietário do prédio rústico sito no lugar ... ou ..., composto por cultura com 60 oliveiras, matos, vinha do douro e vinha em latada, com a área total de 2.642 m2, a confrontar de norte com FF, de sul com caminho e GG, de nascente com GG e de poente com caminho e HH e GG, inscrito na matriz predial da freguesia ... sob o artigo 3.660º e descrito na CRP ... sob a inscrição ...06 da referida freguesia ... e inscrita a favor do Autor pela apresentação número ... de 1990/11/20.
11. O prédio descrito confina a norte com o prédio rústico sito no lugar ... ou ..., freguesia ..., concelho ..., composto de pinhal e vinha, com a área de 20.621 m2, inscrito na matriz rústica da citada freguesia sob o artigo 4324º, com proveniência nos artigos 3658º e 3656º e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...42 da freguesia ....
12. À data em que o autor comprou o imóvel com o artigo matricial ...60º, o rústico identificado e que confina com o adquirido pelo autor nos termos mencionados, pertencia a FF - artigo 3658º- e JJ e esposa KK – artigo 3656º, que após unificação pelos 1ºs Réus deu origem ao atual artigo 4324º.  
33. O prédio do autor confina pelo seu lado norte com o lado sul do prédio vendido pelos primeiros réus aos segundos.
Indicou como suporte da impugnação destes factos os seguintes meios de prova:
Documentos juntos com a petição inicial que comprovam que o prédio identificado no artigo 1º da petição inicial não confronta com o prédio objecto da preferência (com recurso à leitura da certidão matricial e predial do prédio).
Depoimento da testemunha NN.
Depoimento da testemunha OO.
Depoimento da testemunha PP.
C) Outros factos dados como provados que terão de ser considerados como não provados.
Estão em causa os seguintes pontos dados como provados (sob os nºs 25, 26 e 34):
25. No dia 12 de fevereiro de 2020, o autor redigiu e enviou carta ao primeiro réu marido, com conhecimento do segundo réu marido, transmitindo-lhe o seu desagrado face à conduta por este assumida, uma vez que não lhe havia comunicado os termos do negócio para que este, querendo, como o primeiro réu marido bem sabia que queria, exercer o seu direito legal de preferência.
26. Mais lhe comunicou na missiva enviada, que era sua vontade exercer a preferência legal na aquisição do rústico, uma vez que o valor pago pelos segundos réus era inferior àquele que ele se propôs pagar e que não foi aceite, recorrendo, se necessário fosse, aos meios judiciais competentes.
34. O prédio rústico, propriedade do autor, confinante com aquele que foi alienado, bem como este último, têm área inferior à unidade de cultura estabelecida para a região em que se situam.
Indicou como suporte da impugnação destes factos os seguintes meios de prova:
Análise da carta junta aos autos e datada de 12 de Fevereiro de 2020.
D) Outros factos que foram dados como não provados e terão de ser considerados como provados.
Estão em causa os seguintes pontos dados como não provados (sob as alíneas m), n), o), p, q), s), t), w), x), y), z), aa), bb), cc), mm):
m- Este negócio concretizou-se verbalmente em finais de maio de 2019 e nessa mesma altura foi dado a conhecer ao Autor - preço; modo de pagamento; comprador.
n- Atenta a especificidade do negócio, foi o Autor quem sugeriu aos primeiros Réus, a celebração de um contrato promessa, nos exatos termos que acabaram por constar do documento celebrado.
o- O qual, antes de ser assinando, foi exibido pelo 1º Réu ao Autor, contando com os conhecimentos jurídicos que o Autor havia adquirido com a licenciatura de solicitador e a sua vasta experiência profissional.
p- Quando em maio de 2019, o primeiro Réu comunicou ao Autor o preço e a forma de pagamento, este, na qualidade de contabilista daquele, fez de imediato os cálculos e indicou ao primeiro Réu quanto este iria pagar a título de mais valias.
q- Razão pela qual insistiu que tivesse o cuidado de não fazer constar na escritura pública que iria celebrar ainda em 2019, a totalidade do preço, sob pena de pagar já em 2020 o imposto relativo a um ganho que deveria ser tributado no ano seguinte.
s- Com a outorga do contrato promessa foi retirada a placa que anunciava a venda daquele imóvel.
t- E nas semanas que se seguiram, por mais do que uma vez, o Autor viu o 2.º Réu naquela propriedade, a quem chegou a chamar “o meu novo vizinho rico” por, nas suas palavras, ter pago uma fortuna pelo terreno.
w- A presente ação mais não configura do que uma represália do Autor em relação ao 1.º Réu.
x- Isto porque o Autor considera que o 1.º Réu lhe deve a quantia de 7.500€, pelo trabalho que desenvolveu a aconselhar os termos do contrato promessa, e a poupança em impostos, caso tivesse escriturado a venda do rústico pelos 60.000€.
y- E como o 1.º Réu se recusou a pagar aquele valor, de imediato ameaçou, contínuas vezes, com o exercício da preferência pelo valor escriturado.
z- Afirmando e garantindo que, apesar de saber que o valor da venda tinha sido de 125.000€, iriam perder aquele montante.
aa- E foi com esse objetivo que, de novembro de 2019 a julho de 2020, por mais de uma vez, enviou emissários a ambos os Réus, que os aconselhavam a pagar ao Autor o que ele lhes estava a exigir para não ficarem sem o terreno e sem dinheiro.
bb- Também nesse período, o 1.º Réu recebeu uma carta, sem assinatura, de alguém que se dizia Advogado, a ameaçar com uma queixa no Serviço de Finanças se não pagasse ao Autor o que era devido àquele pelos serviços prestados e os impostos poupados.
cc- Ameaças que começaram logo após a realização da escritura e se prolongaram até ao envio das cartas juntas à P.I. e subscritas pela Ilustre Mandatária do Autor.  
A) No dia 15/11/2019 foi paga a quantia de 30.000€ através do cheque n.º ...95 do Banco BPI;
B) No dia 12/11/2019 foi paga a quantia de 30.000€ através dos cheques n.ºs ...96 e ...97 do Banco BPI;
C) No dia 02/12/2020 foi paga a quantia de 25.000€ através do cheque ...52 do Banco BPI;
D) No dia 07/01/2021 foi paga a quantia de 20.000€ através do cheque ...53 do Banco BPI;
E) No dia 09/03/2021 foi paga a quantia de 20.000€ através do cheque ...54 do Banco BPI.
mm- Nunca houve intenção dos réus em declarar uma vontade diferente da vontade real.
Indicou como suporte da impugnação destes factos os seguintes meios de prova:
Depoimento do recorrente BB.
Depoimento do recorrente DD.
E) Do preço real da compra e venda.
Estão em causa os seguintes pontos dados como não provados (sob as alíneas I, dd), ff), gg), hh), ii), jj), kk) e II):
l- Que culminou com a proposta apresentada pelo 2º R marido -125.000€, a pagar ao longo de 2019 e 2020.
dd- O preço constante da escritura de compra e venda outorgada em 12/11/2019, não corresponde ao preço que foi acordado e pago pelos segundos réus aos primeiros pela aquisição do prédio objeto de preferência.
ff- Ocorreu um lapso no conteúdo da dita escritura.
gg- Lapso esse induzido pelo Autor e do qual agora pretende tirar proveito com a presente ação.
hh- Conforme constava do contrato promessa, foi o preço de aquisição de 125.000€, valor que os 2ºs Réus se obrigaram a pagar, 60.000€ até final de 2019 e 65.000€ até final de 2020.
ii- Facto que deveria ter constado da escritura realizada a 12/11/2019, mas cujo texto os Réus julgaram não ser admissível ou, a constatar, implicaria sempre o imediato pagamento de mais valias.
jj- Ao aperceberem-se do lapso, de imediato lavraram a escritura de retificação, assim sanando e corrigindo alguma dúvida que pudesse existir.
kk- Ainda assim, quanto ao preço, devido a dificuldades de tesouraria sentidas pelos segundos Réus, acabaram estes por prolongar, com o consentimento dos primeiros Réus, esse pagamento até inícios de 2021.
ll- O valor entretanto liquidado ascende já aos acordados 125.000€, realizado da seguinte forma:
A) No dia 15/11/2019 foi paga a quantia de 30.000€ através do cheque n.º ...95 do Banco BPI;
B) No dia 12/11/2019 foi paga a quantia de 30.000€ através dos cheques n.ºs ...96 e ...97 do Banco BPI;
C) No dia 02/12/2020 foi paga a quantia de 25.000€ através do cheque ...52 do Banco BPI;
D) No dia 07/01/2021 foi paga a quantia de 20.000€ através do cheque ...53 do Banco BPI;
E) No dia 09/03/2021 foi paga a quantia de 20.000€ através do cheque ...54 do Banco BPI.
Indicou como suporte da impugnação destes factos os seguintes meios de prova:
Depoimento do recorrente BB.
Depoimento do recorrente DD.
Apreciando das razões para a admissibilidade ou rejeição da impugnação de facto nos termos do artigo 640º, nº 1, alínea b), do Código de Processo Civil:
Ao recorrente que entende impugnar a matéria de facto, visando a sua alteração junto da 2ª instância, compete basicamente o ónus de justificar as concretas razões que são susceptíveis de demonstrar cabalmente o erro na valoração da prova em que o juiz a quo incorreu e que impliquem, por isso mesmo, a modificação para resposta diversa (e mais favorável aos seus interesses) daquela que foi concretamente proferida.
O modelo de impugnação da matéria de facto imposto pelo Código Processo Civil em termos da sua viabilização formal - evitando a imediata rejeição desta – estabeleceu diversos imperativos que o impugnante de facto deverá observar.
Assim:
1º - Compete-lhe identificar os pontos de facto incorrectamente julgados que assim impugna (artigo 640º, nº 1, alínea a), do Código de Processo Civil).
2º - Deve identificar os meios de prova que impõem decisão divergente da proferida pelo juiz a quo, relacionando-os com cada um dos pontos de facto cuja alteração pretende (artigo 640º, nº 1, alínea b), do Código de Processo Civil).
3º - Incumbe-lhe finalmente pronunciar-se pela resposta alternativa que deverá, no seu entender, ser acolhida junto do acórdão a proferir pelo Tribunal da Relação.
Para além disso, impõe-se-lhe a obrigação de indicar especificadamente, com exactidão, as passagens da gravação que justificam a modificação do juízo de facto, independentemente da possibilidade de proceder à transcrição dos excertos que considera relevantes.
No caso concreto, entendeu o acórdão recorrido que a técnica utilizada pelo impugnante, agrupando diversos pontos de facto sem uma clara e exacta correspondência com os meios de prova que globalmente referencia, redundou, por esse motivo, no insanável incumprimento do disposto no artigo 640º, nº 1, alínea b), do Código de Processo Civil, conduzindo à imediata rejeição da impugnação, a que se procedeu.
Vejamos:
Constitui posição firme e consolidada do Supremo Tribunal de Justiça o entendimento segundo o qual a análise quanto à exigência do cumprimento dos requisitos constantes do artigo 640º do Código de Processo Civil obedece desde logo aos princípios gerais da proporcionalidade, adequação e razoabilidade, com o primado da substância sobre a forma, em termos de afastar a drástica solução da imediata rejeição da impugnação de facto no caso de as deficiências, estritamente formais, no cumprimento dos requisitos estabelecidos no artigo 640º do Código de Processo Civil permitirem, não obstante, compreender e alcançar o seu exacto sentido, sendo assim perfeitamente possível ao julgador, sem especiais dificuldades ou esforços, aquilatar em toda a sua amplitude e com toda a segurança do respectivo mérito, o que está em consonância com os princípios gerais consagrados nos artigos 18º, nº 2 e 3 e 20º, nº 4, da Constituição da República Portuguesa que prevêem a garantia da tutela da jurisdição efectiva e do direito fundamental a um processo judicial equitativo e justo.
Assim sendo, será de admitir (e não rejeitar) a impugnação em relação à qual seja objectivamente possível destrinçar e localizar suficientemente os pontos de facto impugnados, os meios de prova com eles conectados e que justificam a alteração pretendida, bem como, por fim, a resposta alternativa proposta pelo recorrente, em termos da sua segura compreensibilidade pelo julgador quanto ao seu conteúdo e sentido.
Note-se que está aqui igualmente em causa a salvaguarda do exercício do contraditório pela contraparte que, ao ser confrontada com uma impugnação genérica e/ou confusa, vê acentuadamente dificultada a sua capacidade de resposta, pela consequente incompreensão das razões para a alteração de facto assim deficientemente apresentadas.
Neste sentido vide, entre muitos outros arestos, a seguinte jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, praticamente uniforme:
- acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 1 de Julho de 2014 (relator Gabriel Catarino) proferido no processo nº 1825/09.7TBSTS.P1.S1, publicado in www.dgsi.pt, onde se refere:
“O legislador, na sua ponderação de não alargar em demasia a impugnação da decisão de facto e conter o eventual ímpeto recursivo quanto a esta matéria, apenas impôs e injungiu regras procedimentais para que o recurso possa ser aceite e obtenha conhecimento no tribunal de recurso. Ainda assim, pensamos, que o plano das exigências inscritas no preceito ordenador e que se prendem com o apertado formalismo imposto aos recorrentes – indicação dos concretos pontos de facto cuja decisão pretendem ver alterada, por estimarem estarem incorrectamente julgados; quais os concretos meios probatórios que impõem diverso julgamento (dos concretos pontos de facto indicados), e quando os meios probatórios tenham sido gravados, quais os depoimentos em que funda a discordância – tem de permitir a aceitação de um parâmetro de admissibilidade compaginável com a função e a finalidade do recurso da decisão de facto, qual seja a de que, desde que o apelante cumpra, no essencial com o ónus imposto na lei, o tribunal não pode deixar de proceder à reapreciação da decisão de facto”.
- acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 3 de Outubro de 2019 (relatora Rosa Tching) proferido no processo nº 77/06.5TBGVA.C2.S2, publicado in www.dgsi.pt, onde se refere:
“Desde que não exista essa dificuldade, apesar da indicação pelo recorrente da localização dos depoimentos não ser totalmente exata e precisa, não se justifica a rejeição do recurso.
É que, como adverte o Acórdão do STJ, de 28.04.2016 (processo nº 1006/12.2TBPRD.P1.S1), dando voz à jurisprudência cada vez mais consolidada neste Supremo Tribunal, «é necessário que a verificação do cumprimento do ónus de alegação regulado no art. 640 do CPC seja compaginado com os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, atribuindo maior relevo aos aspectos de ordem material», por forma a não se exponenciarem os efeitos cominatórios previstos no mesmo artigo, havendo, por isso, que extrair do texto legal soluções conformes com estes princípios.
Assim, nesta linha de entendimento, salienta-se, no já citado Acórdão do STJ, de 29.10.2015, que na interpretação da norma do art. 640º, « não pode deixar de se ter em consideração a filosofia subjacente ao actual CPC, acentuando a prevalência do mérito e da substância sobre os requisitos ou exigências puramente formais, carecidos de uma interpretação funcionalmente adequada e compaginável com as exigências resultantes do princípio da proporcionalidade e da adequação - evitando que deficiências ou irregularidades puramente adjectivas impeçam a composição do litígio ou acabem por distorcer o conteúdo da sentença de mérito, condicionado pelo funcionamento de desproporcionadas cominações ou preclusões processuais».
Também na defesa da orientação de que não deve adotar-se uma interpretação rígida e desproporcionadamente exigente deste ónus de impugnação, sublinha o Acórdão do STJ, de 22.10.2015 (processo nº 212/06.3TBSBG.C2.S1) que «o sentido e alcance dos requisitos formais de impugnação da decisão de facto previstos no nº1 do art. 640º do CPC devem ser equacionados à luz das razões que lhe estão subjacentes, mormente em função da economia do julgamento em sede de recurso de apelação e da natureza da própria decisão de facto”.
- acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 1 de Outubro de 2015 (relatora Prazeres Beleza) proferido no processo nº 6626/09.0TVLSB.L1.S1, publicado in www.dgsi.pt, onde pode ler-se:
“Ora, resulta das alegações apresentadas no recurso de apelação que a recorrente identificou os pontos de facto que considera mal julgados, por referência aos quesitos da base instrutória, indicando os concretos meios de prova que deveriam ter conduzido a um resultado probatório oposto, transcrevendo parte dos depoimentos e fornecendo as indicações que permitem localizar, na gravação, as passagens a que se refere.
Fornece essas indicações no corpo das alegações e, por remissão para os pontos desse corpo, nas conclusões do recurso.
Não pode assim manter-se o acórdão recorrido, na parte em que rejeitou a apreciação da impugnação da decisão sobre a matéria de facto”.
- acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de Janeiro de 2021 (relator Cura Mariano) proferido no processo nº 1121/13.5TVLSB.L1.S1, publicado in www.dgsi.pt, onde se salienta:
“Do indevido conhecimento da impugnação da decisão sobre a matéria de facto
Alega a Autora que o acórdão recorrido conheceu da impugnação da decisão da matéria de facto, deduzida pelo Réu nas suas alegações de recurso para o Tribunal da Relação, não tendo essa impugnação observado os requisitos necessários para que fosse conhecida, pelo que o Tribunal da Relação apreciou uma questão que estava impedido de conhecer, o que constitui a nulidade prevista no artigo 615.º, n.º 1, d), do Código de Processo Civil.
Acrescenta ainda que, tendo, nas contra-alegações, suscitado a questão da não observância dos requisitos do artigo 640.º do Código de Processo Civil, essa questão não foi objeto de decisão por parte do Tribunal da Relação, o que constitui uma omissão de pronúncia.
Concretiza a Autora que, nas alegações de recurso dirigidas pelo Réu ao Tribunal da Relação, este não especificou, nem fundamentou, em relação a cada um dos factos impugnados, qual seria a incorreção do julgamento dos mesmos, nem pôs em causa a argumentação lógica pela qual o Tribunal a quo se pautou, tendo tratado a matéria de facto em bloco, além de que também não identificou qual a decisão que deveria ser proferida em substituição da impugnada.
Da leitura das alegações de recurso apresentadas pelo Réu para o Tribunal da Relação, verifica-se que, efetivamente, este impugnou a sentença da 1.ª instância que considerou provados vários pontos da matéria de facto, que identificou, por uma mesma e única razão – a prova produzida relativamente ao pagamento pela Autora das quantias constantes desses pontos da matéria de facto, apenas com base em depoimentos de testemunhas e na junção de faturas que, na sua maior parte, não tinham sido emitidas pelas entidades que prestaram os serviços considerados provados, era insuficiente para demonstrar que esse pagamento tinha ocorrido.
Embora, a impugnação da matéria de facto deva, em princípio, especificar, relativamente a cada facto impugnado, quais os meios de prova que justificam um diferente resultado de prova, nada impede que, quando as razões invocadas para a alteração de vários factos, sejam precisamente as mesmas, essa indicação seja dirigida, em bloco, a toda essa factualidade. Necessário é, que seja compreensível quais os meios de prova e quais as razões pelas quais o impugnante sustenta que o resultado da prova, relativamente a esses factos, deve ser alterado.
Sendo, no presente caso, perfeitamente identificável que o Réu entendia que os meios de prova invocados para fundamentar a demonstração de todos os factos impugnados não tinham a força probatória suficiente para conduzir à sua demonstração e as razões pelas quais essa força era insuficiente, não havia motivo para que não se conhecesse da impugnação da decisão sobre a matéria de facto proferida pela 1.ª instância.
Do mesmo modo, também era perfeitamente percetível nas alegações apresentadas pelo Réu, que este pretendia que não se considerasse provado que a Ré havia despendido as quantias constantes dos factos impugnados, pelo que, também, neste aspeto, não havia razões para que não se apreciasse a impugnação da matéria de facto deduzida pelo Réu.
Tem sido orientação dominante na jurisprudência deste Tribunal considerar que, na verificação do cumprimento do ónus de alegação previsto no artigo 640.º do Código de Processo Civil, os aspetos de ordem formal devem ser modelados em função dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, também eles presentes na ideia do processo equitativo (artigo 20.º, n.º 4, da Constituição), pelo que, se o conteúdo da impugnação deduzida é percecionável pela parte contrária e pelo tribunal, não exigindo a sua apreciação um esforço inexigível, não há justificação para o não conhecimento desse fundamento do recurso.
Quanto ao facto do Tribunal da Relação não se ter pronunciado sobre a falta de cumprimento dos requisitos do artigo 640.º do Código de Processo Civil, na impugnação da decisão sobre a matéria de facto deduzida pelo Réu, essa decisão encontra-se implícita no conhecimento e deferimento dessa impugnação. É pressuposto necessário da decisão proferida sobre a impugnação da decisão sobre a matéria de facto que o Tribunal da Relação entendeu que estavam verificadas as condições necessárias a esse conhecimento, pelo que inexiste uma nulidade por omissão de pronúncia sobre esta questão”.
- acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10 de Dezembro de 2020 (relator Ilídio Sacarrão Martins) proferido no processo nº 274/17.8AVR.P1.S1, publicado in www.dgsi.pt, onde se enfatiza que:
Na verificação do cumprimento dos ónus de alegação previstos no artigo 640º do CPC, os aspectos de ordem formal devem ser modelados em função dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, dando-se prevalência à dimensão substancial sobre a estritamente formal.
Tendo a recorrente identificado, no corpo das alegações e nas conclusões, os pontos da matéria de facto que considera incorrectamente julgados, identificando e transcrevendo parcialmente os depoimentos das testemunhas, em conjugação com a prova documental, que, no seu entender, impõem decisão diversa e retirando-se da leitura das alegações e conclusões, qual a decisão que deve ser proferida a esse propósito, mostra-se cumprido, à luz da orientação atrás referida, o ónus de impugnação previsto no artigo 640º do CPC.
- o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17 de Dezembro de 2019 (relatora Graça Trigo) proferido no processo nº 363/07.7TVPRT-D.P2.S1, publicado in www.dgsi.pt, onde é dito:
“(…)importa assinalar que a posição ora assumida em resultado da interpretação do regime legal aplicável é inteiramente consonante com a orientação consolidada da jurisprudência deste Supremo Tribunal no sentido da atenuação do excessivo formalismo no cumprimento dos ónus do art. 640º do CPC, designadamente em todos aqueles casos em que o teor do recurso de apelação se mostre funcionalmente apto à cabal identificação da impugnação da matéria de facto e ao respectivo conhecimento sem esforço excessivo. Cfr., a este respeito, entre muitos, os acórdãos deste Supremo Tribunal de 08-02-2018 (proc. n.º 8440/14.1T8PRT.P1.S1), de 15-02-2018 (proc. n.º 134116/13.2YIPRT.E1.S1), consultáveis em www.dsgi.pt, e os acórdãos de 17-04-2018 (proc. n.º 1676/10.6TBSTR.E2.S1) e de 24-04-2018 (proc. n.º 3438/13.0TBPRD.P1.S1), cujos sumários se encontram disponíveis em www.stj.pt.”.
- acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19 de Janeiro de 2023 (relator Vieira e Cunha) proferido no processo nº 2387/20.0T8STR.E1.S1, publicado in www.dgsi.pt, donde consta:
“Impondo-se a análise do recorrido à luz de princípios de proporcionalidade ou adequação, será apenas de evitar o acolhimento da pretensão recursória que se traduza numa total reapreciação da prova pela 2.ª instância ou (o seu equivalente) que se traduza em recurso genérico, em matéria de indicação das passagens da gravação, no caso vertente de provas gravadas”.
- acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26 de Janeiro de 2021 (relator Pinto de Almeida) proferido no processo nº 399/18.2T8PNF.P1.S1, publicado in www.dgsi.pt, onde pode ler-se:
“É esta, no fundo, uma preocupação constante na jurisprudência do Supremo sobre esta questão: em atenção aos princípios que devem enformar o processo civil (designadamente o da prevalência do mérito sobre os requisitos meramente formais), as razões que podem obstar à reapreciação da matéria de facto pela Relação carecem de "uma interpretação funcionalmente adequada e compaginável com as exigências resultantes do princípio da proporcionalidade e da adequação – evitando que deficiências ou irregularidades puramente adjectivas impeçam a composição do litígio ou acabem por distorcer o conteúdo da sentença de mérito, condicionado pelo funcionamento de desproporcionadas cominações ou preclusões processuais"
- o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27 de Abril de 2023 (relatora Graça Trigo) proferido no processo nº 1342/19.7T8AVR.P1.S1, publicado in www.dgsi.pt, onde pode ler-se:
“Afigura-se que a interpretação da alínea a) do n.º 2 do art. 640.º do CPC, que conduziu, no caso dos autos, à rejeição liminar do recurso da impugnação da matéria de facto desrespeita o princípio da proporcionalidade dos ónus, cominações e preclusões impostos pela lei processual, que constitui uma manifestação do princípio da proporcionalidade das restrições, consagrado no art. 18.º, n.ºs 2 e 3 da CRP, e da garantia do processo equitativo, consagrada no art. 20.º, n.º 4 da CRP.
De acordo com a jurisprudência consolidada do STJ, o n.º 1 do art. 640.º do CPC não exige que o apelante se pronuncie sobre a valoração alegadamente correcta dos meios de prova por si indicados, ou seja, sobre as razões pelas quais cada um deles deverá conduzir a decisão diversa da impugnada; pelo que a posição do tribunal a quo em rejeitar, também por este motivo, apreciar a impugnação da decisão relativa à matéria de facto extravasa as exigências legais”.
(Ainda sobre esta matéria, vide Lebre de Freitas, Armindo Ribeiro Mendes e Isabel Alexandre in “Código de Processo Civil Anotado” Volume III, Almedina 2022, 3ª edição, a páginas 98 a 99; Abrantes Geraldes, in “Recursos em Processo Civil”, Almedina 2022, 7ª edição, a páginas 201 a 208).  
No caso concreto, tratando-se de uma comum acção de preferência, com os seus contornos típicos sobejamente conhecidos neste tipo de litígios, os RR. dividiram a sua impugnação em cinco partes, compostas por grupos de factos, através das quais identificaram, focando em particular, três temas essenciais:
O primeiro sobre a data em que o recorrido A. teve conhecimento dos elementos essenciais da escritura; o segundo sobre a falta de prova de que os prédios são confinantes entre si; o terceiro sobre o preço real da compra e venda.
Complementarmente indicaram outros factos dados como provados que terão de ser considerados como não provados e outros factos que foram dados como não provados e terão de ser considerados como provados.   
Debruçando-nos sobre a concreta impugnação de facto apresentada em juízo:
Quanto à data em que o recorrido A. teve conhecimento dos elementos essenciais da escritura.
O A. alega que só teve conhecimento do negócio em 12 de Fevereiro de 2020 (cfr. artigo 3º da petição inicial).
Os RR. alegaram que os elementos essenciais do negócio são do conhecimento pessoal do A. desde finais de Maio de 2019.
O tribunal a quo considerou que:
No dia 12 de fevereiro de 2020, o Autor deslocou-se à Conservatória do Registo Predial ... para requerer uma cópia do documento através do qual o rústico foi transmitido aos segundos Réus.
 Pelo menos, no dia 12 de fevereiro de 2020, o Autor teve conhecimento dos elementos essenciais da venda do rústico melhor identificado no artigo 17º da petição inicial.
 Nem os primeiros réus, nem qualquer outra pessoa, comunicaram ao autor, quer verbalmente, quer por carta, quer através de qualquer outro meio, o projeto da venda mencionada e as cláusulas desse contrato, nomeadamente, o preço do negócio, a forma de pagamento, a identificação do comprador, o local e prazo para celebrar o contrato e quaisquer outras condições de cuja observância dependesse a realização do negócio.
Foram precisamente estes concretos três pontos de facto que os RR. ora impugnam, visando resposta diversa daquela que foi proferida em 1ª instância.
Em termos dos meios de prova indicados os impugnantes referem o conteúdo da carta cuja cópia está a fls. 16 enviada pelo A. ao Réu, por referência ao depoimento do A. AA.
Também indicam os impugnantes, a este propósito, o depoimento do Réu BB e do Réu DD.
Na impugnação de facto são ainda tecidos vários comentários críticos que, no entender dos impugnantes, justificam a alteração daqueles factos dados como provados pelo juiz a quo e que permitem perfeitamente compreender o posicionamento dos impugnantes.
Nesta sequência, e com fundamento nestes meios de prova, pretende-se a alteração da decisão de facto, passando os factos dados como não provados em aa) a factos provados.
Ora, perante tudo isto, facilmente se alcança que existe motivação clara e directa que suporta e justifica, em termos bastantes e suficientes, a impugnação de facto apresentada, onde é feita expressa referência aos meios de prova nos quais se alicerça, os quais sendo reanalisados em 2ª instância poderão eventualmente conduzir a uma diferente decisão de facto.
Logo, o Tribunal da Relação de Guimarães estava em perfeitas condições, sem especiais dificuldades ou esforços acrescidos, para conhecer com estes fundamentos da impugnação quanto a estes pontos, não se justificando de modo algum a sua (precipitada) rejeição.
Bastava para o efeito ouvir atentamente os depoimentos indicados, confrontá-los criticamente com a documentação em referência e ajuizar, em conclusão, se a data do conhecimento pelo A. dos elementos essenciais do negócio corresponde à indicada na decisão de facto ou, pelo contrário, deverá reportar-se a um momento temporal anterior, em conformidade com o alegado pelos impugnantes.
Quanto à falta de prova de que os prédios são confinantes entre si.
Nos artigos 17º e 45º da petição inicial o A. alega a circunstância dos prédios (o seu e aquele que foi objecto do exercício do direito de preferência) serem confinantes.
Tal matéria foi impugnada por desconhecimento no artigo 35º da contestação.
Neste tocante – a localização física dos prédios em referência – os impugnantes aludem aos documentos juntos com a petição inicial, em especial da certidão matricial e predial respectivas.
E acrescentam igualmente os depoimentos das testemunhas NN, QQ e RR.
Ora, perante uma factualidade tão objectiva e focalizada, não podem subsistir dúvidas de que os impugnantes apresentam os meios de prova que no seu entender serão suficientes para possibilitar a alteração dos pontos de facto em análise.
Saber se tais meios de prova são ou não suficientes para esse efeito é matéria de julgamento por parte do Tribunal da Relação de Guimarães, mas não motivo bastante e justificativo para a rejeição da impugnação de facto.
Pelo que não se pode aceitar a rejeição do conhecimento da impugnação quanto a estes pontos, estando em causa uma questão de facto tão concreta e precisa (são ou não confinantes entre si os prédios em referência) e sendo claro e inequívocos os meios de prova que os impugnantes apresentam para contrariar o decidido.
Deveria, por conseguinte e sem a menor dúvida, ser conhecida – e não rejeitada – a impugnação de facto.
Quanto ao preço real da compra e venda.
Da escritura de compra e venda junta a fls. 14 a 15 consta o preço de aquisição de € 60.000,00 (sessenta mil euros).
Os RR. invocam na sua contestação que o preço real da venda foi de € 125.000,00 (cento e vinte e cinco mil euros) – cfr. artigos 46º a 49º
Tendo sido dado como provado, a este respeito, o preço constante da escritura (€ 60.000,00), vêm os impugnantes apresentar diversos meios de prova que, no seu entender, justificam que se dê como provado o pagamento substancialmente diverso e superior pela transmissão do imóvel.
Indicam, para este efeito, os seguintes meios de prova:
- Um contrato promessa de compra e venda celebrado a 20 de Junho de 2019.
- A escritura de rectificação celebrada no dia 17 de Novembro de 2020.
- Cópias dos extractos, cheques e talões de depósito, comprovativos do efectivo pagamento do preço.
Acrescentam, ainda, o depoimento do recorrente BB e do recorrente DD.
Ora, perante esta factualidade essencial incisiva e delimitada – ou o preço efectivamente pago pela transmissão do imóvel foi o declarado na escritura de compra e venda ou foi outro, significativamente superior – há que concluir, sem qualquer dúvida ou dificuldade, que os impugnantes cumpriram suficientemente a sua obrigação processual de indicar os respectivos meios de prova, cabendo ao Tribunal da Relação de Guimarães a sua apreciação crítica, extraindo a partir daí o seu juízo de facto autónomo, coincidente, ou não, com o emitido em 1ª instância.
O que não tem cabimento é a rejeição do conhecimento da impugnação de facto devidamente motivada, quando os meios de prova foram claramente expostos pelos impugnantes e não poderão ser simplesmente ignorados, com base numa posição que revela excessivo formalismo, o qual ofende necessariamente os princípios da proporcionalidade, adequação e razoabilidade, enquanto factor de moderação e afirmação do primado da substância sobre a forme, conforme  enunciado supra e que tem merecido amplo e repetido acolhimento, em situações similares, por parte do Supremo Tribunal de Justiça.
Conjunto de factos provados que, segundo entendem os impugnantes, deveriam ser dados como não provados; outro conjunto de factos, dados como não provados, que os mesmos entendem que deveriam ter sido dados como provados.
No primeiro grupo (factos que deverão ser dados como não provados) incluem-se os seguintes factos:
(sob os nºs 25, 26 e 34):
25. No dia 12 de fevereiro de 2020, o autor redigiu e enviou carta ao primeiro réu marido, com conhecimento do segundo réu marido, transmitindo-lhe o seu desagrado face à conduta por este assumida, uma vez que não lhe havia comunicado os termos do negócio para que este, querendo, como o primeiro réu marido bem sabia que queria, exercer o seu direito legal de preferência.
26. Mais lhe comunicou na missiva enviada, que era sua vontade exercer a preferência legal na aquisição do rústico, uma vez que o valor pago pelos segundos réus era inferior àquele que ele se propôs pagar e que não foi aceite, recorrendo, se necessário fosse, aos meios judiciais competentes.
34. O prédio rústico, propriedade do autor, confinante com aquele que foi alienado, bem como este último, têm área inferior à unidade de cultura estabelecida para a região em que se situam.
Quanto a estes três factos, indicam os impugnantes os seguintes meios de prova:
Análise da carta junta aos autos e datada de 12 de Fevereiro de 2020, junta aos autos a fls. 16.
Ora, quanto o teor dos pontos 25 e 26, a impugnação em causa tem a ver no fundo com a interpretação da missiva em apreço.
Da própria impugnação constam claramente os motivos pelos quais o impugnante sustenta que dos termos da carta em causa não podem resultar os factos que foram fixados como provados pelo tribunal.
Quanto ao ponto 34, o mesmo tem a ver com a questão já referenciada supra a propósito dos prédios serem ou não confinantes, aproveitando para o efeito os meios de prova que foram indicados pelos recorrentes e a que se fez referência supra.
Logo, não há cabimento para a rejeição da impugnação de facto quanto a esta matéria, ainda que a análise de alguns dos factos prejudique o conhecimento de outros, como é de resto perfeitamente normal e comum.
No segundo grupo (factos que foram dados como não provados e como consideração como provados se pretende) figuram os seguintes:
m- Este negócio concretizou-se verbalmente em finais de maio de 2019 e nessa mesma altura foi dado a conhecer ao Autor - preço; modo de pagamento; comprador.
n- Atenta a especificidade do negócio, foi o Autor quem sugeriu aos primeiros Réus, a celebração de um contrato promessa, nos exatos termos que acabaram por constar do documento celebrado.
o- O qual, antes de ser assinando, foi exibido pelo 1º Réu ao Autor, contando com os conhecimentos jurídicos que o Autor havia adquirido com a licenciatura de solicitador e a sua vasta experiência profissional.
p- Quando em maio de 2019, o primeiro Réu comunicou ao Autor o preço e a forma de pagamento, este, na qualidade de contabilista daquele, fez de imediato os cálculos e indicou ao primeiro Réu quanto este iria pagar a título de mais valias.
q- Razão pela qual insistiu que tivesse o cuidado de não fazer constar na escritura pública que iria celebrar ainda em 2019, a totalidade do preço, sob pena de pagar já em 2020 o imposto relativo a um ganho que deveria ser tributado no ano seguinte.
s- Com a outorga do contrato promessa foi retirada a placa que anunciava a venda daquele imóvel.
t- E nas semanas que se seguiram, por mais do que uma vez, o Autor viu o 2.º Réu naquela propriedade, a quem chegou a chamar “o meu novo vizinho rico” por, nas suas palavras, ter pago uma fortuna pelo terreno.
w- A presente ação mais não configura do que uma represália do Autor em relação ao 1.º Réu.
x- Isto porque o Autor considera que o 1.º Réu lhe deve a quantia de 7.500€, pelo trabalho que desenvolveu a aconselhar os termos do contrato promessa, e a poupança em impostos, caso tivesse escriturado a venda do rústico pelos 60.000€.
y- E como o 1.º Réu se recusou a pagar aquele valor, de imediato ameaçou, contínuas vezes, com o exercício da preferência pelo valor escriturado.
z- Afirmando e garantindo que, apesar de saber que o valor da venda tinha sido de 125.000€, iriam perder aquele montante.
aa- E foi com esse objetivo que, de novembro de 2019 a julho de 2020, por mais de uma vez, enviou emissários a ambos os Réus, que os aconselhavam a pagar ao Autor o que ele lhes estava a exigir para não ficarem sem o terreno e sem dinheiro.
bb- Também nesse período, o 1.º Réu recebeu uma carta, sem assinatura, de alguém que se dizia Advogado, a ameaçar com uma queixa no Serviço de Finanças se não pagasse ao Autor o que era devido àquele pelos serviços prestados e os impostos poupados.
cc- Ameaças que começaram logo após a realização da escritura e se prolongaram até ao envio das cartas juntas à P.I. e subscritas pela Ilustre Mandatária do Autor.  
A) No dia 15/11/2019 foi paga a quantia de 30.000€ através do cheque n.º ...95 do Banco BPI;
B) No dia 12/11/2019 foi paga a quantia de 30.000€ através dos cheques n.ºs ...96 e ...97 do Banco BPI;
C) No dia 02/12/2020 foi paga a quantia de 25.000€ através do cheque ...52 do Banco BPI;
D) No dia 07/01/2021 foi paga a quantia de 20.000€ através do cheque ...53 do Banco BPI;
E) No dia 09/03/2021 foi paga a quantia de 20.000€ através do cheque ...54 do Banco BPI.
mm- Nunca houve intenção dos réus em declarar uma vontade diferente da vontade real.
A este respeito, os impugnantes indicaram os seguintes meios de prova:
Depoimento do recorrente BB.
Depoimento do recorrente DD.
Vejamos:
Também relativamente a esta matéria os impugnantes apresentam a prova que consideram suficiente para, com base nela, se operar a modificação da decisão de facto que almejam.
Note-se que os recorrentes tiveram o cuidado de, após referenciar a localização dos depoimentos das testemunhas em causa, concretizar igualmente o motivo pelo qual entendem a sua especial relevância no sentido da alteração no plano factual que pretendem (tenham ou não razão no que afirmam).
Quanto ao depoimento de BB explicam que o mesmo logrou descrever os factos de forma coerente, explicando o nascimento do negócio, a forma como o mesmo, sendo o vendedor do imóvel, convenceu os compradores do motivo pelo qual queria vender, a intervenção do A. recorrido, e as consequências do não pagamento da quantia que lhe foi solicitada.
Quanto ao depoimento de DD, enquanto comprador, igualmente descreveu a forma como o negócio decorreu, as diligências que levou a cabo para evitar o recurso a tribunal e como tudo estaria dependente do pagamento de uma determinada ao recorrido.
Ou seja, e no fundo, toda a factualidade impugnada pelos recorrentes está devidamente identificada, havendo os mesmos apresentado, para todos os factos em causa – ainda que agrupados -, elementos probatórios cuja reanálise solicitam ao Tribunal da Relação de Guimarães, como constitui seu direito e corresponde à tutela jurisdicional efectiva que lhes é devida.
Não se descortinam assim motivos, atendendo aos prevalecentes princípios da proporcionalidade, adequação e razoabilidade, para não apreciar todos fundamentos indicados como suporte da presente impugnação de facto, a qual versa, no seu essencial, sobre questões de facto muito concretas e lineares (qual a data do conhecimento da venda pelo preferente; se os prédios são ou não confinantes entre si; qual o valor real do preço recebido pelo vendedor do imóvel; que circunstâncias antecederam a realização do contrato de compra e venda).
A rejeição da impugnação de facto nestas circunstâncias ignora que a matéria factual está absolutamente delimitada e que os vários grupos temáticos que a integram interligam-se lógica e coerentemente, tendo sido apresentada, de forma suficiente e bastante, a motivação expressa no elenco dos meios de prova que a justificam, reforçados pela apreciação crítica que os recorrentes entenderam efectuar, tornando clara e perfeitamente compreensível a motivação de frontal discordância com o veredicto em matéria de facto que fora proferido em 1ª instância.
Note-se, a este propósito, que a própria apelada, ao ser confrontada com a impugnação de facto em apreço, respondeu especificadamente sem demonstrar a menor dificuldade ou dúvida em compreender os exactos motivos indicados para a discordância da apelante quanto à decisão de facto proferida em 1ª instância, exercendo assim em plenitude o seu direito ao contraditório e não suscitando em momento algum o hipotético incumprimento dos deveres consignados no artigo 640º do Código de Processo Civil.
Pelo que se concede a revista, ordenando-se a remessa ao Tribunal da Relação de Guimarães para conhecimento da impugnação de facto que deveria ter conhecido, com a inevitável anulação do acórdão recorrido.
 
IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes do Supremo Tribunal de Justiça (6ª Secção) em conceder a revista, remetendo os autos ao Tribunal da Relação de Guimarães para apreciação da impugnação de facto proferida, anulando-se consequentemente o acórdão recorrido.
Custas pela parte vencida a final (uma vez que não se pode seriamente concluir que o recorrente tirou proveito do presente recurso – apenas ganhou o legítimo direito a ver apreciada a sua impugnação de facto, o que lhe era indevidamente negado -, nem é imputável à recorrida qualquer acto que justificasse a necessidade da respectiva interposição).

Lisboa, 15 de Junho de 2023.

Luís Espírito Santo (Relator)

Ana Resende

Maria José Mouro

 
V – Sumário elaborado pelo relator nos termos do artigo 663º, nº 7, do Código de Processo Civil.