Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
122/13.TEFLRS-A.S1
Nº Convencional: 3ª SECÇÃO
Relator: JOÃO SILVA MIGUEL
Descritores: LEGITIMIDADE
HABEAS CORPUS
MEDIDAS DE COAÇÃO
MEDIDAS DE COACÇÃO
PRISÃO PREVENTIVA
RECURSO PENAL
Data do Acordão: 12/03/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: HABEAS CORPUS
Decisão: INDEFERIDO
Área Temática:
DIREITO CONSTITUCIONAL - DIREITOS, LIBERDADES E GARANTIAS PESSOAIS.
DIREITO PROCESSUAL PENAL - MEDIDAS DE COACÇÃO ( MEDIDAS DE COAÇÃO) / MODOS DE IMPUGNAÇÃO.
Doutrina:
- Eduardo Maia Costa et allii, “Código de Processo Penal” comentado, Almedina, Coimbra, 2014, pp. 910-911.
- J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, “Constituição da República Portuguesa” Anotada, vol. I, 4.ª edição revista, 2007, Coimbra, Coimbra Editora, anotação I ao artigo 27.º, p. 478, e pp. 508, 509, 510.
- Jorge Miranda e Rui Medeiros, “Constituição Portuguesa” Anotada, Tomo I – 2.ª edição, revista, actualizada e ampliada, 2010, Coimbra: Wolters Kluwer e Coimbra Editora, anotação II ao artigo 27.º, p. 638, anotação X ao artigo 31.º, p. 701.
- Rodrigues Maximiano, “Habeas corpus, em virtude de prisão ilegal – Art.º 222, do CPP, 1987. Da jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça. Reflexões e subsídios para a Comissão Revisora do Código de Processo Penal”, Direito e Justiça, Volume XI, 1997, p. 189.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGOS 202.º, 204.º, ALS. A) E B), 222.º, N.º2, 223.º, N.º4, ALÍNEA A).
CÓDIGO PENAL (CP): - ARTIGOS 372.º, 373.º, 374.º, 368.º-A, N.ºS 1 E 2.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGOS 27.º, 31.º, N.OS 1 E 2.
RGIT: - ARTIGOS 103.º, N.º1, AL. A) E 104.º, N.ºS1, ALS. D), F) E G), E 2.
Referências Internacionais:
CONVENÇÃO EUROPEIA PARA A PROTECÇÃO DOS DIREITOS DO HOMEM E DAS LIBERDADES FUNDAMENTAIS, ABREVIADAMENTE CONVENÇÃO EUROPEIA DOS DIREITOS DO HOMEM (CEDH): - ARTIGO 5.º.
PACTO INTERNACIONAL DOS DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS (PIDCP): - ARTIGO 9.º, N.ºS 4 E 5.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 16 DE JULHO DE 2003, PROCESSO N.º 2860/03;
-DE 1 DE FEVEREIRO DE 2007, PROCESSO N.º 07P353;
-DE 17 DE JANEIRO DE 2008, PROCESSO N.º 08P200;
-DE 30 DE ABRIL DE 2008, PROCESSO N.º 08P1504;
-DE 18 DE JUNHO DE 2008, PROCESSO N.º 2166/08, DE 10 DE DEZEMBRO DE 2008, PROCESSO N.º 3971/08, E DE 13 DE NOVEMBRO DE 2014, PROCESSO N.º 311/12.2JELSB-F.S1.
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Sumário :
I - Como decorre do art. 31.º, n.ºs 1 e 2, da CRP, o próprio interessado ou qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos pode requerer, perante o tribunal competente, a providência de habeas corpus, em virtude de prisão ou de detenção ilegais.
II - O n.º 2 do art. 222.º do CPP, no desenvolvimento desta norma constitucional, reitera que a petição pode ser formulada pelo preso ou por qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos, especificando as als. a), b) e c) as situações de prisão ilegal que podem constituir fundamento da providência de habeas corpus.
III - A incompetência relevante, para efeitos de preenchimento da situação prevista na al. a) do n.º 2 do art. 222.º do CPP; é a falta de jurisdição, ou seja, se a entidade que efectuou a prisão não tem o estatuto requerido para a ordenar, se não é juiz.
IV - O segundo fundamento pode resultar de uma multiplicidade de situações, nomeadamente a não punibilidade dos factos imputados ao preso, a prescrição da pena, a amnistia, a inimputabilidade do preso, a falta de trânsito em julgado da decisão condenatória, a impossibilidade legal da submissão do mesmo a prisão preventiva.
V - Por último, o fundamento previsto na al. c) do n.º 2 do art. 222.º do CPP, reporta-se ao excesso dos prazos da prisão, legais ou judiciais.
VI - O STJ tem entendido que o habeas corpus é uma providência extraordinária e expedita destinada a assegurar de forma especial o direito à liberdade constitucionalmente garantido, que não um recurso, mas antes um remédio excecional que não pode ser utilizado para impugnar irregularidades ou para conhecer da bondade de decisões judiciais, que têm o recurso como sede própria para a sua reapreciação.
VII - Ainda que não pressuponha o prévio esgotamento dos recursos que possam caber da decisão de onde promana a prisão dita ilegal, só se admite a providência de habeas corpus em casos extremos de claro abuso de poder ou de erro grosseiro na aplicação do direito, de modo a pôr imediatamente cobro a uma situação de patente ilegalidade.
VIII - Da factualidade trazida à apreciação do STJ não se surpreende um patente abuso de poder, um erro grosseiro na aplicação da lei ou uma manifesta e evidente violação da lei que inquine de ilegalidade a prisão preventiva imposta.
IX - Todavia, se os fundamentos da decisão de aplicação da medida de coação de prisão preventiva são ou não suportados pela factualidade constante do processo e pela mobilização probatória em permanente evolução, nomeadamente quanto à imputação, qualificação jurídica e preenchimentos dos seus pressupostos, é questão que pode ser objecto de recurso ordinário, nos termos da lei processual.
X - Como não se evidencia uma violação direta, patente, ostensiva e grosseira dos pressupostos e das condições de aplicação da medida de coação de prisão preventiva, deve ser indeferido o pedido de habeas corpus, por manifesta falta de fundamento legal.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I. Relatório

1. AA, identificado nos autos, alegando estar no gozo dos seus direitos políticos, vem, nos termos dos artigos 31.º da Constituição da República Portuguesa (CRP), e 11.º, n.º 4, alínea c), e 222.º, ambos do Código de Processo Penal (CPP), pedir providência de habeas corpus para a libertação imediata de BB, ex-... de Portugal, alegando que aquele encontra-se «ilegalmente preso preventivamente no “Estabelecimento Prisional de ..."», petição que formula com os fundamentos que, na íntegra, a seguir se reproduzem:

      «1.   Como é do conhecimento público e internacional, o Ex-...de Portugal foi detido, em ..., em público e com transmissão televisiva nacional, pelas autoridades policiais e apresentado ao juiz de instrução criminal do Tribunal de Instrução Criminal Central de ....

      2.   Do Ministério Público, o signatário apenas tem a informação sobre indícios de crime, analogamente transmitida pela comunicação social.

      3.   Do referido Tribunal (...) o oficial de justiça junto do mesmo confirmou, igualmente através da comunicação social, esses indícios da comissão de crimes de corrupção e conexos pelo Ex-....

      4.   Do comunicado público do ... não consta a gravidade dos indícios.

      5.   E nem os fundamentos.

      6.   A inexistência de gravidade dos indícios e a ausência de fundamentos públicos para aplicação da mais grave medida de coação na ausência de todos os seus pressupostos legais, viola, designadamente, o Artigo 204.º do Código de Processo Penal.

      7.   E o Artigo 30.º da Constituição (CRP).

      8.   E também viola provavelmente o número 4 do Artigo 26.° da CRP.

      9.   Porque o Ex-... de Portugal é uma figura pública e quando o interesse público de uma população está em causa, é dever do Estado, onde se inclui o poder judicial, informar com clareza os portugueses, como já sucedeu e sucederá noutras catástrofes em território nacional.

      10.   Ademais, a comunicação pública conhecida do despacho que determinou a prisão preventiva do Ex-..., viola, por conseguinte, os Princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade, ínsitos no Artigo 193.º do Código de Processo Penal.

      11.   E viola, também, o Artigo 27.º da CRP.

      12.   Trata-se de uma situação anormal, extraordinária e de gravidade extrema, jamais surgida na história destes 40 anos de Democracia em Portugal. [A negrito no original]

      13.   Na medida em que o Ex-... está preso preventivamente por se considerar que venha a ser condenado no futuro, não havendo, ainda, uma condenação judicial, deve prevalecer, sem dúvidas, a consagração constitucional do direito à liberdade.

      14.   Aliás à semelhança de outros casos identicamente mediáticos, mas de gravidade e consequências incomparavelmente menores, como é comummente percecionado.»

A final, conclui nestes termos:

             «O Ex-... de Portugal está, assim, pública e objetivamente na prisão por facto pelo qual a lei a não permite e que repugna os bons costumes. [A negrito no original]

            Pelo exposto

             A continuidade do estado de preso do Ex-... de Portugal, sem acusação formada, gozando este de Presunção de Inocência Constitucionalmente garantida a todos os cidadãos (Art.- 32.°), havendo outros meios mais eficazes previstos na lei e menos estigmatizantes, humilhantes e injustos para um cidadão, nomeadamente, perante aquele que representou Portugal enquanto chefe do Governo durante 7 anos (2005-2011), coloca indelével, efetiva e inarredavelmente em crise o Estado de Direito Democrático, o interesse público, o prestígio internacional de Portugal e a ordem e a tranquilidade públicas.» (A itálico no original)

2. No cumprimento do disposto no n.º 1 do artigo 223.º do CPP, o Senhor Juiz de Instrução do Tribunal Central de Instrução Criminal (TCIC) prestou a seguinte informação, que se transcreve na parte relevante:

«Por despacho proferido em 18 de Novembro de 2014, foi determinada a detenção fora de flagrante delito de BB, atenta a existência de indícios da prática de crimes de fraude fiscal qualificada, corrupção e branqueamento de capitais e por se verificarem os perigos de fuga e de perturbação da recolha e conservação da prova.

Em 19 de Novembro/2014, BB ausentou-se de Portugal, com bilhete de regresso para o dia seguinte.

Em 20 de Novembro/2014, foram realizadas diligências de busca e detenção de outros arguidos.

Entre os dias 20 e 21 de Novembro/2014, verificou-se a retirada de objectos, dispositivos informáticos, da casa de BB.

No dia 21 de Novembro/2014, por volta das 22:45 horas, BB, regressou de avião a Portugal.

Ainda no dia 21 de Novembro/2014, cerca das 23:00 horas, BB foi detido no cumprimento dos mandados de detenção emitidos.

No dia 22 de Novembro/2014, pelas 17:05 horas, BB foi presente detido perante o JIC signatário, neste TCIC, para interrogatório judicial.

No dia 23 de Novembro, foram recuperados e apreendidos os objectos que haviam sido retirados da casa do arguido, após informações fornecidas pelo mesmo em sede de interrogatório.

No dia 24 de Novembro, foi concluído o interrogatório judicial de BB, vindo a lhe ser aplicada a medida de coação de sujeição a prisão preventiva, pela verificação dos perigos de fuga e de perturbação da recolha e da conservação da prova,

O arguido BB, no âmbito da sua actividade por conta da ..., tinha prevista uma viagem para o Brasil, com início em 24 de Novembro/2014.

O arguido BB permanece em prisão preventiva à ordem dos presentes autos.

Por conseguinte, entende-se não assistir razão ao requerente, inexistindo qualquer vício ou violação legal ou constitucional que implique a ilegalidade da prisão preventiva decretada ao arguido BB e seja susceptível de conduzir à sua revogação.»

3. Da documentação que acompanhava a informação extraem-se os seguintes elementos de facto com pertinência para a decisão:

a. O mandado de detenção contra BB foi emitido em 19 de novembro de 2014, no mesmo constando os tipos legais indiciados e as correspondentes disposições legais, nos seguintes termos: «fraude fiscal qualificada, p. e p. nos arts. 103.º-1 a) e 104º-1d), f9 e g) e 2) do RGIT, de corrupção, p. e p. nos arts. 372.º, 373.º e 374.º do Cod. Penal e nos arts. 16.º a 18.º da Lei 34/87, de 16 de julho, com as alterações subsequentes, de branqueamento de capitais, p. e p., no [artigo] 368.º-A- 1 e 2 do Código Penal, e mesmo de tráfico de influência, p. e p. no art. 335.º-1 do Cod. Penal».

b. O mandado de detenção está assinado por juiz de direito, e foi executado no dia 21 seguinte por órgão de polícia criminal, que o assina.

c. Nos termos do despacho do juiz de instrução sobre medidas de coação, a aplicação da prisão preventiva a BB funda-se no disposto nos seguintes tipos penais e correspondentes disposições legais: «fraude fiscal qualificada, p. e p. nos arts. 103.º-1 a) e 104º-1d), f) e g) e 2) do RGIT, de corrupção, p. e p. nos arts. 372.º, 373.º e 374.º do Cod. Penal, e de branqueamento de capitais, p. e p., no artigo 368.º-A- 1 e 2 do Código Penal».

4. Convocada a secção criminal e notificados o Ministério Público e o defensor, teve lugar a audiência pública, nos termos dos artigos 223.º, n.º 3, e 435.º do CPP, cumprindo tornar pública a respetiva deliberação e, sumariamente, a discussão que a precedeu.

II. Fundamentação

1. Internacionalmente reconhecido, quer a nível Universal, no n.º 5 do artigo 9.º do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (PIDCP)[1], quer a nível regional, no artigo 5.º da Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, abreviadamente Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH),[2] o direito à liberdade foi, com influências desta última, consagrado no artigo 27.º da CRP, sob a epígrafe «Direito à liberdade e à segurança», em cujo n.º 1 se estabelece que «[t]odos têm direito à liberdade e à segurança», logo reforçando o n.º 2 que, «[n]inguém pode ser total ou parcialmente privado da liberdade, a não ser em consequência de sentença judicial condenatória pela prática de acto punido por lei com pena de prisão ou de aplicação judicial de medida de segurança» (n.º 2), mas exceptuando-se deste princípio a privação da liberdade, pelo tempo e nas condições que a lei determinar (n.º 3), num reduzido número de casos, entre os quais, o da «detenção ou prisão preventiva por fortes indícios de prática de crime doloso a que corresponda pena de prisão cujo limite máximo seja superior a três anos; [n.º 3, alínea c)].

Delimitando o seu conteúdo, a doutrina refere que o direito à liberdade significa o «direito à liberdade física, à liberdade de movimentos, ou seja, direito de não ser detido, aprisionado, ou de qualquer modo fisicamente confinado a um determinado espaço ou impedido de se movimentar»[3] e engloba os seguintes «”subdireitos”: (a) direito de não ser detido ou preso pelas autoridades públicas, salvo nos casos e termos previstos neste artigo; (b) direito de não ser aprisionado ou fisicamente impedido ou constrangido por parte de outrem; (c) direito à protecção do Estado contra os atentados de outrem à própria liberdade», sendo o habeas corpus um dos meios específicos de garantia deste direito[4].

2. Sobre a figura do habeas corpus, estabelece o artigo 31.º, n.os 1 e 2, da CRP, que o próprio interessado ou qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos pode requerer, perante o tribunal competente, a providência de habeas corpus em virtude de prisão ou detenção ilegal[5].

Liminarmente, importa notar que o n.º 2 do artigo 31.º reconhece «uma espécie de ação popular de habeas corpus ao conferir o direito de requerer a providência a favor do detido ou do preso a qualquer cidadão no gozo de seus direitos civis e políticos, sem que defina este conceito. Para este efeito, «deve entender-se que não estão no gozo de direitos políticos os que estejam privados de direitos eleitorais, seja em virtude de incapacidade (cfr. Art.º 49.º-1), seja por efeito de sanção penal»[6].

Quanto à substância, a figura do habeas corpus «consiste essencialmente numa providência expedita contra a prisão ou detenção ilegal, sendo, por isso, uma garantia privilegiada do direito à liberdade, por motivos penais ou outros. (…). Sendo o único caso de garantia específica e extraordinária constitucionalmente prevista para a defesa dos direitos fundamentais, o habeas corpus testemunha a especial importância constitucional do direito à liberdade»,[7] podendo ser requerido «contra decisões irrecorríveis, (…) mas não é de excluir a possibilidade de habeas corpus em alternativa ao recurso ordinário, quando este se revele insuficiente para dar resposta imediata e eficaz à situação de detenção ou prisão ilegal».[8]

É uma providência que «[v]isa, na sua essência, assumir-se como uma sólida garantia do direito à liberdade, à legalidade, à dignidade da pessoa»[9].
3. No entanto, como refere este Supremo Tribunal, a figura do habeas corpus tem «carácter excecional, não já, no sentido de constituir expediente processual de ordem meramente residual, como outrora aqui vinha sendo entendida, antes, por se tratar de providência vocacionada a responder a situações de gravidade extrema ou excecional, haja ou não ainda aberta a via dos recursos ordinários»[10].

Para a reação contra medidas privativas de liberdade neste quadro, «exige-se a verificação cumulativa de dois requisitos: (1) o abuso de poder; (2) a existência de prisão ou detenção», mas aquele abuso de poder «deve afetar o direito à liberdade, ou seja a liberdade física, a liberdade de movimentos e consequente direito a não ser detido, aprisionado, confinado a um espaço. A prisão e detenção devem ser ilegais, ou seja, contrários aos princípios da constitucionalidade e da legalidade das medidas restritivas de liberdade[11].

4. No desenvolvimento da norma constitucional, o n.º 2 do artigo 222.º do CPP reitera que a petição pode ser formulada pelo preso ou por qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos, e delimita as situações de prisão ilegal que podem constituir fundamento de habeas corpus, circunscrevendo-as a:

«a) ter sido a prisão efetuada ou ordenada por entidade incompetente;

b) ser motivada por facto pelo qual a lei não o permite;

c) ou manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial.»

Delimitando o conteúdo e limites destes conceitos, tem-se afirmado que a incompetência relevante, para efeitos do preenchimento da primeira situação, é a de «carater material, a falta de jurisdição, ou seja se a entidade que efetuou ou ordenou a prisão não tem o estatuto requerido para ordenar a prisão, isto é, se não tem o estatuto de juiz»[12]; o segundo fundamento pode resultar de «uma multiplicidade de situações, nomeadamente a não punibilidade dos factos imputados ao preso, à prescrição da pena, a amnistia da infração imputada, a inimputabilidade do preso, a falta de trânsito da decisão condenatória, a impossibilidade legal da submissão do mesmo a prisão preventiva»[13]; por último, o fundamento da alínea c) reporta-se ao «excesso de prazos, legais ou judiciais»[14].

5. O Supremo Tribunal tem entendido que «o habeas corpus, tal como o configura o CPP, é uma providência extraordinária e expedita destinada a assegurar de forma especial o direito à liberdade constitucionalmente garantido, que não um recurso; um remédio excecional, a ser utilizado quando falham as demais garantias defensivas do direito de liberdade, para estancar casos de detenção ou de prisão ilegais», por isso, «a medida não pode ser utilizada para impugnar outras irregularidades ou para conhecer da bondade de decisões judiciais, que têm o recurso como sede própria para a sua reapreciação, tendo como fundamentos, que se reconduzem todos à ilegalidade da prisão, atual à data da apreciação do respetivo pedido: (i) – incompetência da entidade donde partiu a prisão; (ii) – motivação imprópria; (iii) – excesso de prazos.»[15]

No entanto – o Supremo Tribunal ponderou noutro acórdão[16] – «[s]e é verdade que a providência de habeas corpus não pressupõe o prévio esgotamento dos recursos que possam caber da decisão de onde promana a prisão dita ilegal, sendo compatível com a possibilidade de recurso de tal decisão, exactamente pela necessidade de pôr imediatamente cobro a uma situação de patente ilegalidade, também é verdade que só em casos extremos de claro abuso de poder ou de erro grosseiro na aplicação do direito, se admite a providência de habeas corpus como forma de fazer cessar a prisão ilegal, quando ela tenha sido determinada por decisão judicial», isto porque «a providência de habeas corpus não almeja a reanálise do caso; almeja a constatação da ilegalidade, que, por isso mesmo, tem de ser patente», destinando-se a «apreciar situações de flagrante ilegalidade da prisão, resultantes de notório abuso de poder (art. 31º da CRP), não a decidir questões de nulidades ou irregularidades processuais, e muito menos a impugnar decisões judiciais».

6. É neste quadro normativo, sedimentado por uma estabilizada afirmação jurisprudencial, que se aprecia o pedido formulado pelo cidadão AA, que, como o próprio declara, está no gozo dos seus direitos políticos, o que lhe confere legitimidade para o fazer.

E ao fazê-lo tem-se presente que a apreciação da ilegalidade da prisão, conforme é jurisprudência constante deste Supremo Tribunal, está subordinada ao princípio da atualidade, no sentido de que a ilegalidade da prisão seja atual, por referência ao momento da apreciação do pedido de habeas corpus[17].
7. O requerente não individualiza em qual dos fundamentos taxativamente discriminados no n.º 2 do artigo 222.º do CPP assenta a sua pretensão.
Alude que «apenas tem a informação sobre indícios de crime» transmitida pela comunicação social, não constando «do comunicado público pelo TIC (…) a gravidade dos indícios», «nem os fundamentos». A «inexistência de gravidade de indícios e a ausência de fundamentos públicos para aplicação da mais grave medida de coação na ausência de todos os pressupostos legais», viola o artigo 204.º do CPP, «e o artigo 30.º da Constituição», e «provavelmente o n.º 4 do artigo 26.º da CRP», o artigo 193.º do CPP, e o artigo 27.º da CRP.

Tendo presente que o mandado de detenção emanou do juiz de instrução do processo, e tendo a medida de coação de prisão preventiva sido imposta por despacho judicial do dia 24 de Novembro pp, na sequência do interrogatório judicial de arguido detido, ficam excluídas as situações previstas nas alíneas a) e c) daquele preceito legal, subsistindo, apenas, por exclusão de partes, a hipótese prevista na alínea b) do n.º 2, qual seja a de a prisão ilegal ter sido motivada «por facto pelo qual a lei a não permite», conclusão que se recorta da conjugação das afirmações constantes da petição, de que se trata «de uma situação anormal, extraordinária e de gravidade extrema», esta destacada a negrito, e de que «o ex-primeiro ministro de Portugal está, assim, pública e objetivamente na prisão por facto pelo qual a lei a não permite».

Sobre este fundamento, na petição não se invoca nenhum facto do qual possa decorra ou se possa retirar, de forma clara e imediata, que a prisão foi motivada por facto pelo qual a lei a não permite.

Todo o discurso petitório assenta, como dele resulta, de factos cujo conhecimento lhe adveio pela comunicação social, originários do Ministério Público ou do TCIC, através do oficial de justiça. Daqui resulta que o conhecimento que o requerente possui sobre a detenção e aplicação a BB da medida de coação de prisão preventiva é parcelar, assente essencialmente no comunicado produzido, nos termos do artigo 85.º, n.º 13, do CPP para satisfazer valores relevantes legalmente protegidos, escapando-lhe toda a factualidade relativa ao agente, à prática dos atos processuais e seu conteúdo e ao acervo probatório recolhido.
8. A divulgação pública da gravidade dos indícios e dos fundamentos da prisão não constitui um imperativo legal, para além da prestação dos esclarecimentos públicos pela autoridade judiciária, para a prossecução e salvaguarda de interesses e valores relevantes para a sociedade, nos limites consentidos pelo artigo 85.º do CPP. Por isso, a não divulgação da gravidade dos indícios e dos fundamentos da prisão não significa que o peso dos indícios e os fundamentos da detenção e prisão preventiva, por se verificarem os seus pressupostos, não se mostrem presentes no processo.

E os elementos factuais constantes da informação prestada pelo TCIC e antes transcrita afastam liminarmente aqueles juízos e dúvidas.

Deles decorre que BB foi detido, por mandado de detenção emitido por magistrado judicial, nos limites da sua competência, atenta a existência, como no mandado se menciona e foi levado ao conhecimento do visado, de indícios da prática de crimes «fraude fiscal qualificada, p. e p. nos arts. 103.º-1 a) e 104º-1d), f9 e g) e 2) do RGIT, de corrupção, p. e p. nos arts. 372.º, 373.º e 374.º do Cod. Penal e nos arts. 16.º a 18.º da Lei 34/87, de 16 de julho, com as alterações subsequentes, de branqueamento de capitais, p. e p., no [artigo] 368.º-A- 1 e 2 do Código Penal, e mesmo de tráfico de influência, p. e p. no art. 335.º-1 do Cod. Penal».

Resulta, também, que presente a primeiro interrogatório judicial, BB veio a ser indiciado pelos crimes de «fraude fiscal qualificada, p. e p. nos arts. 103.º-1 a) e 104º-1d), f) e g) e 2) do RGIT, de corrupção, p. e p. nos arts. 372.º, 373.º e 374.º do Cod. Penal, e de branqueamento de capitais, p. e p., no artigo 368.º-A- 1 e 2 do Código Penal», não sendo incluído o crime de tráfico de influências.

Qualquer destes crimes admite, atenta a moldura penal abstracta de cada um, a medida de coação de prisão preventiva.

A circunstância de, aquando da elaboração do despacho de fixação das medidas de coação e imposição da prisão preventiva, não ter sido considerado indiciado o crime de tráfico de influências referido no mandado de detenção, não pode deixar de significar que toda essa factualidade foi ponderada pelo juiz de instrução na fundamentação que proferiu.
9. E sobre a necessidade de determinação da detenção e da aplicação da medida de coação de prisão preventiva na sequência do primeiro interrogatório judicial, a informação prestada alude, para ambos os casos, aos «perigos de fuga e de perturbação da recolha e conservação da prova», decorrentes, pelo menos, das razões que, naquela informação, são enunciadas sumariamente.

Para fundamentar a prisão não se exige a certeza da prática pelo seu autor de crime a que corresponda prisão preventiva, basta, nos termos do artigo 202.º do CPP, que, no caso e perante os indícios então recolhidos considerou reunidos, da prática de crime doloso punível com pena de prisão de máximo superior a 5 anos; também considerou verificados os requisitos gerais previstos nas alíneas a) e b) do artigo 204.º do CPP.

Pelo que se deixa dito, não se surpreende na factualidade trazida à apreciação do Supremo Tribunal de Justiça um patente abuso de poder ou erro grosseiro na aplicação da lei ou manifesta e evidente violação da lei que inquinasse de ilegalidade a prisão imposta.

Todavia, se os fundamentos da decisão de aplicação da medida de coação de prisão preventiva são ou não suportados pela factualidade constante do processo e mobilização probatória em permanente evolução, nomeadamente quanto à imputação, qualificação jurídica e preenchimento dos respetivos pressupostos, é questão que releva já dos procedimentos e não da substância e são ou podem ser objecto de recurso ordinário, nos termos da lei processual.

De facto, ao nível da providência de habeas corpus, «o que releva não são os juízos, verdadeiramente de direito e de facto, quanto à interpretação e verificação dos pressupostos e condições da privação da liberdade, mas a imediata e direta, patente e grosseira contrariedade com a lei»[18], no sentido de que há uma inadmissibilidade substantiva de prisão, por a lei a não admitir perante aquele facto, e, em consequência, daí despontar uma ilegalidade da prisão, por violação direta, substancial e em contrariedade imediata e patente da lei.
10. Interrogando-se e questionando o requerente a qualificação jurídica dos factos e os fundamentos para o juiz decretar a prisão preventiva, para os quais apresenta dúvidas ou perplexidades, derivadas de «apenas ter a informação sobre indícios de crime» transmitida pela comunicação social, não constando «do comunicado público pelo TIC (…) a gravidade dos indícios», «nem os fundamentos», sendo que a «inexistência de gravidade de indícios e a ausência de fundamentos públicos para aplicação da mais grave medida de coação na ausência de todos os pressupostos legais» viola o disposto no artigo 204.º do CPP e, também como refere outras normas constitucionais e processuais penais, essa argumentação não recai, manifestamente, no âmbito dos fundamentos exigidos para a verificação da figura do habeas corpus, que não prescinde de um quadro de abuso de poder, e de erro grave, grosseiro e rapidamente verificável.

Assim sendo, torna-se manifesto que a prisão preventiva imposta a BB não se evidencia como um atentado ilegítimo à sua liberdade individual, qualificado de grave, anómalo, grosseiro e imediatamente verificável, que ofenda aquela de ilegalidade, por violação direta, patente, ostensiva e grosseira dos pressupostos e das condições da sua aplicação.

Por todo o exposto, o pedido de habeas corpus com a argumentação invocada que se subsume a um alegado quadro de prisão ilegal por motivação imprópria, é rejeitado, por manifesta falta de fundamento legal.

III. Decisão

Termos em que acordam os Juízes do Supremo Tribunal de Justiça em indeferir a providência de habeas corpus, requerida por AA, por manifesta falta de fundamento legal [artigo 223.º, n.º 4, alínea a), do CPP].

O requerente, AA, suportará as custas, com 3 unidades de conta (UC) de taxa de justiça. Nos termos do artigo 223.º, n.º 6, do CPP, o requerente vai também condenado em 10 (dez) UC’s.


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Supremo Tribunal de Justiça, 3 de dezembro de 2014

Os Juízes Conselheiros,

Silva Miguel (Relator)

Armindo Monteiro

Pereira Madeira

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[1]     Aprovado para ratificação pela Lei n.º 29/78, de 12 de junho, publicada no Diário da República (DR), I Série, n.º 133/78, entrado em vigor para Portugal em 15 de setembro de 1978.
[2]     Aprovada para ratificação pela Lei n.º 65/78, de 13 de outubro, publicada no DR, I Série, n.º 236/78, tendo entrado em vigor na ordem jurídica portuguesa em 9 de novembro do mesmo ano.
[3]     J J Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa — Anotada, vol. I, 4.ª edição revista, 2007, Coimbra, Coimbra Editora, anotação I ao artigo 27.º, p. 478. No mesmo sentido, Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I – 2.ª edição, revista, actualizada e ampliada, 2010, Coimbra: Wolters Kluwer e Coimbra Editora, anotação II ao artigo 27.º, p. 638, onde se refere: «A liberdade que está em causa no artigo 27.º é a liberdade física, entendida como liberdade de movimentos corpóreos, de “ir e vir”, a liberdade ambulatória ou de locomoção (…)».
[4]     J J Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. e loc. cit, p. 478.
[5]     Reconhecido também em termos internacionais, nomeadamente no n.º 4 do artigo 9.º do PIDCP e no n.º 4 do artigo 5.º da CEDH.
[6]     J J Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob e loc. cit, p. 509. No mesmo sentido, Jorge Miranda e Rui Medeiros, ob. cit., anotação X ao artigo 31.º, p. 701,
[7]     J J Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. e loc. cit, p. 508.
[8]     Idem, anotação V, p. 510. 
[9]     Rodrigues Maximiano, Habeas corpus, em virtude de prisão ilegal – Artº 222, do CPP, 1987. Da jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça. Reflexões e subsídios para a Comissão Revisora do Código de Processo Penal, in «Direito e Justiça», Volume XI, 1997, p. 189.
[10]    Acórdão de 1 de fevereiro de 2007, processo n.º 07P353, acessível tal como outros citados no texto, quando outra fonte não for especificada, na base de dados do IGFEJ em http://www.dgsi.pt/.
[11]    Ob. e loc. cit, anotação II, p. 508.
[12]    Eduardo Maia Costa et allii, Código de Processo Penal comentado, Almedina, Coimbra, 2014, pp. 910-911.
[13]    Idem.
[14]    Idem
[15]    Entre outros, o acórdão de 17 de janeiro de 2008, processo n.º 08P200.
[16]    Acórdão de 30 de abril de 2008, processo n.º 08P1504.
[17]    Entre outros, os acórdãos de 18 de junho de 2008, processo n.º 2166/08, de 10 de dezembro de 2008, processo n.º 3971/08, e de 13 de novembro de 2014, processo n.º 311/12.2JELSB-F.S1.
[18]    Acórdão deste Supremo Tribunal de 16 de julho de 2003, proferido no processo n.º 2860/03.