Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
20121/16.7T8PRT.P1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: MARIA DA GRAÇA TRIGO
Descritores: RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
ACIDENTE DE VIAÇÃO
ATROPELAMENTO
CONCORRÊNCIA DE CULPAS
CÁLCULO DA INDEMNIZAÇÃO
AUTO-ESTRADA
EXCESSO DE VELOCIDADE
DANO MORTE
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
PRINCÍPIO DA IGUALDADE
Data do Acordão: 03/21/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS / DELIMITAÇÃO SUBJECTIVA E OBJECTIVA DO RECURSO.
DIREITO CIVIL – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / RESPONSABILIDADE CIVIL / RESPONSABILIDADE POR FACTOS ILÍCITOS / DANOS NÃO PATRIMONIAIS.
DIREITO ESTRADAL – TRANSITO DE VEÍCULOS E ANIMAIS / VELOCIDADE / COMPORTAMENTO EM CASO DE AVARIA OU ACIDENTE / IMOBILIZAÇÃO FORÇADA POR AVARIA OU ACIDENTE / PRÉ-SINALIZAÇÃO DE PERIGO.
Doutrina:
- Antunes Varela, Das Obrigações em geral, Vol. I, Almedina, Coimbra, 10ª ed., 2000, p. 539-542.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 635.º, N.º 4.
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 496.º, N.º 2.
CÓDIGO DA ESTRADA (CEST): - ARTIGOS 24.º, N.º 1, 87.º, N.ºS 1 E 3 E 88.º, N.ºS 2 E 4.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 08-09-2011, PROCESSO N.º 2336/04.2TVLSB.L1.S1, IN WWW.DGSI.PT E SASTJ, CÍVEL, WWW.STJ.PT;
- DE 27-09-2011, PROCESSO N.º 425/04.2 TBCTB.C1.S1, IN WWW.DGSI.PT E SASTJ, CÍVEL, WWW.STJ.PT;
- DE 24-10-2013, PROCESSO N.º 225/09.3TBVZL.S1, IN WWW.DGSI.PT E SASTJ, CÍVEL, WWW.STJ.PT;
- DE 29-10-2013, PROCESSO N.º 62/10.2TBVZL.C1.S1, IN WWW.DGSI.PT E SASTJ, CÍVEL, WWW.STJ.PT;
- DE 28-01-2016, PROCESSO N.° 7793/09.8T2SNT.L1.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 15-09-2016, PROCESSO N.º 492/10.0TBBAO.P1.S1, IN WWW.DGSI.PT E SASTJ, CÍVEL, WWW.STJ.PT;
- DE 03-11-2016, PROCESSO N.° 6/15.5T8VFR.P1.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 02-03-2017, PROCESSO N.º 36/12.9TBVVD.G1.S1, IN WWW.DGSI.PT E SASTJ, CÍVEL, WWW.STJ.PT;
- DE 08-03-2018, PROCESSO N.º 209/13.7TBTMR.E1.S1, IN WWW.DGSI.PT E SASTJ, CÍVEL, WWW.STJ.PT;
- DE 05-06-2018, PROCESSO N.º 370/12.8TBOFR.C1.S2, IN WWW.DGSI.PT E SASTJ, CÍVEL, WWW.STJ.PT.
Sumário :
I. Tendo sido provado que a vítima, mãe dos autores, após ter imobilizado a viatura por si conduzida em plena faixa de rodagem da auto-estrada, por causa não apurada, se encontrava fora da mesma, na sua traseira, sem ter cumprido as exigências legais relativas à sinalização de perigo e sem envergar o colecte reflector, é indubitável a existência de culpa daquela na ocorrência que a vitimou (cfr. art. 87º, nºs 1 e 3, e art. 88º, nºs 2 e 4, do CE).

II. Contudo, tendo ficado provado que “O condutor do veículo segurado na Ré imprimia ao mesmo, antes do embate, uma velocidade entre 70 e 80 Kms/hora”, quando “A velocidade máxima permitida no local era de 90 Kms/hora” e quando “No momento do embate chovia de modo forte e intenso, estando o piso molhado” e “O condutor do veículo segurado na Ré, antes do embate em EE, tinha uma visibilidade, dada pelos faróis da viatura, para a sua frente entre dez e vinte metros”, deve concluir-se que a condução se fazia sem respeito pela exigência legal de “regular a velocidade de modo a que, atendendo (…) às condições meteorológicas”, pudesse, “em condições de segurança, executar as manobras cuja necessidade seja de prever e, especialmente, fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente” (art. 24º, nº 1, do CE).

III. Assim, tendo presente que o dever de regulação da velocidade (art. 24º, nº 1, do CE) dispõe que se atenda “à presença de outros utilizadores” da via e “a quaisquer outras circunstâncias relevantes”, de modo a que o condutor “possa, em condições de segurança, executar as manobras cuja necessidade seja de prever e, especialmente, fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente”, deve concluir-se que a ocorrência do facto danoso dos autos - colisão do veículo seguro na ré com a vítima, enquanto utente ou utilizadora da via - se encontra abrangida pelo âmbito normativo em causa.

IV. Em consequência de I, II e III, conclui-se pela existência de concorrência de culpas entre o referido condutor e a vítima, na proporção de 30% para o condutor e de 70% para a vítima.

V. De acordo com a jurisprudência reiterada deste Supremo Tribunal ao interpretar o regime do art. 496º, nº 2, do CC, admite-se a atribuição de uma compensação pecuniária tripartida: pela perda da vida da vítima directa; pelos sofrimentos da vítima directa que antecederam a morte; pelos sofrimentos próprios dos familiares por causa da morte da vítima directa.

VI. Quanto aos montantes base fixados pela sentença, importa analisar, à luz das exigências do princípio da igualdade, se se encontram em linha com os parâmetros da jurisprudência mais recente deste Supremo Tribunal.

VII. Tendo em conta os dados do caso concreto, considera-se consentâneo com os parâmetros jurisprudenciais apurados fixar em € 80.000,00 o valor base da compensação pela perda da vida da vítima directa, sendo que os autores têm direito, em conjunto, a 30% desse valor, atendendo à quota de responsabilidade imputada ao condutor do veículo seguro na ré, o que perfaz € 24.000,00.

VIII. Quanto à indemnização devida pelos sofrimentos da vítima directa que antecederam a morte, os valores fixados na jurisprudência deste Supremo Tribunal variam bastante, em função das circunstâncias do caso concreto, designadamente da gravidade das lesões, da intensidade das dores sofridas e do período de tempo durante o qual as dores se prolongam; no caso dos autos, tendo ficado provado que, “Em consequência do atropelamento N sofreu lesões, mormente nos membros inferiores, resultando destas a sua morte” e que a vítima “teve morte quase imediata”, considera-se justo e adequado fixar a indemnização em € 20.000,00; tendo os autores direito, em conjunto, a 30% desse valor, atendendo à quota de responsabilidade imputada ao condutor do veículo seguro na ré, o que perfaz € 6.000,00.

IX. Quanto à compensação pelos sofrimentos próprios dos filhos devidos à morte da vítima, tendo em conta os parâmetros jurisprudenciais apurados, assim como a necessidade de uma progressiva actualização dos valores indemnizatórios, considera-se justo e adequado que a indemnização base pelos danos próprios de cada um dos AA. seja fixada em € 30.000,00, tendo cada um direito a 30% desse valor, atendendo à quota de responsabilidade imputada ao condutor do veículo seguro na R., o que perfaz € 9.000,00 para cada um.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

1. AA e BB intentaram, em 13 de Outubro de 2016, a presente acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra CC, S.A., pedindo a sua condenação a pagar-lhes indemnização no montante de € 190.020,00, acrescido de juros de mora desde a citação e até integral pagamento.

         Para tanto, e em síntese, alegam que:

- Cerca das 00,15 horas do dia 29 de Outubro de 2015 ocorreu um acidente de viação na AE-20, freguesia de ..., na cidade do …, em que interveio o veículo ligeiro de passageiros -AO, propriedade de DD e conduzido pelo mesmo, em que a mãe dos AA., EE, foi atr...ada;

- A mãe dos demandantes circulava no sentido ..., conduzindo o veículo automóvel marca ..., modelo ..., com a matrícula BX-..., por conta e no interesse do proprietário da viatura, FF, com velocidade moderada;

- A mãe dos AA., logo que tomou a posição na referida faixa, teve o veículo imobilizado por avaria mecânica pelo que, de imediato, ligou os sinais intermitentes, olhou para o retrovisor para sair da viatura e ir à mala traseira retirar o colete reflector e o triângulo de sinalização, verificando que nenhum veículo se aproximava, mantendo as luzes ligadas, o que era visível a mais de 300 metros;

- Quando a mãe dos AA. saiu da viatura e se encontrava preparada para abrir a mala para retirar o triângulo de sinalização, foi colhida de forma violenta pelo veículo de matrícula -AO que circulava a uma velocidade superior a 100km/h;

- Em consequência do atropelamento, a mãe dos AA. sofreu danos graves que resultaram na sua morte, aos 55 anos de idade;

- Era saudável e fisicamente bem constituída, expansiva e alegre, gozando de estima de quem com ela convivia, respeitada e respeitadora;

- A mãe dos AA. sentiu a eminência da morte o que lhe causou agonia;

- Os AA. receberam a notícia do falecimento com enorme choque, tristeza e amargura.

A R. contestou por impugnação, concluindo pela improcedência da acção.

         A fls. 114 foi proferida sentença que decidiu o seguinte:

“Pelo exposto, julgando-se parcialmente procedente a presente acção, condena-se a Ré a pagar aos autores as seguintes quantias: 1.200 EUR em conjunto aos dois autores; 3.400,00 para cada um e 12.000EUR em conjunto aos dois autores, absolvendo-se a ré do restante pedido”.

         Inconformados, AA. e R. interpuseram recurso para o Tribunal da Relação do Porto, pedindo a modificação da decisão relativa à matéria de facto e a reapreciação da decisão de direito.

         Por acórdão de fls. 175 foi mantida a matéria de facto e, a final, foi proferida a seguinte decisão:

“Nestes termos, os Juízes desta secção cível do Tribunal da Relação do Porto acordam em julgar improcedente o recurso dos apelantes e procedente o recurso da apelante – Companhia de Seguros – e, em consequência, revogam a decisão recorrida absolvendo-a do pedido.”

2. Vêm os AA. interpor recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, formulando as seguintes conclusões:

“I - "Vocacionando-se a nossa responsabilidade civil para uma função, em certa medida, preventivo-repressiva, mas sobretudo reparadora, existem várias matérias em relação às quais, por força do elevado risco que introduzem na sociedade, se impõe a necessidade de uma socialização da responsabilidade que delas poderá decorrer. É exemplo disso a matéria em análise, em virtude da qual, enquanto actividade imprescindível à vida social, a generalidade das pessoas acaba por ser forçada a lidar de perto com a crescente circulação de veículos e a expor-se aos riscos e perigos a ela associados, exigindo-se uma especial atenção aos prejuízos que uma tal actividade poderá acarretar.

II- Deste modo, para que um veículo possa circular a responsabilidade civil emergente da circulação desse veículo terá de ser, forçosamente, transferida para uma seguradora, que irá satisfazer o direito de ressarcimento dos lesados com base nos prémios pagos pelo tomador do seguro. Este contrato de seguro é, portanto, um contrato aleatório e bilateral, recaindo sobre o tomador do seguro a obrigação de pagamento do prémio, obrigação esta que é certa, e sobre a seguradora a obrigação de cobertura dos danos causados a terceiros, enquanto obrigação futura e incerta. O seu carácter obrigatório determina uma interligação com as normas do Código Civil relativas à responsabilidade emergente de acidente de viação, na medida em que a respectiva efectivação resulta da relação processual entre a seguradora do lesante e os lesados, pois através deste contrato as seguradoras passam a garantir uma obrigação em relação à qual, de acordo com as normas do Código Civil, é responsável o tomador do seguro, fenómeno ao qual se dá o nome de "socialização do risco" pois quem vai cobrir os danos provocados é a seguradora, e não o causador desses danos.

III - A socialização desta responsabilidade visa, através da obrigatoriedade de seguro - obrigatoriedade que, note-se, corresponde ao seguro mínimo que abrange os danos quanto a terceiros, não obstante a possibilidade de contratar uma cobertura mais alargada - garantir que o lesado num acidente de viação irá, efectivamente, alcançar a indemnização a que tem direito se, e quando, de acordo com as normas do nosso Código Civil, se concluir pela existência de uma obrigação de indemnizar do segurado e que, consequentemente, acarreta a responsabilidade da seguradora na exacta medida em que aquele seria responsável, mas até ao limite do valor convencionado. O seguro obrigatório exerce uma função de garantia que viabiliza a protecção dos lesados em termos práticos e daí que se exija um cuidado especial no tratamento desta matéria no sentido de harmonizar as normas do nosso Código Civil com a existência de um seguro obrigatório, para que uma potencial desarmonia não implique a quebra desta protecção.

IV - É neste seguimento que nos é permitido constatar uma evolução das Directivas Comunitárias no sentido de avizinhar as legislações no quadro jurídico do regime de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel. Surgem-nos as seguintes Directivas:

V - A Directiva do Conselho n° 72/166/CEE de 24 de Abril de 1972 preocupou-se com a instituição de um seguro obrigatório de responsabilidade pela circulação de veículos terrestres, admitindo a existência de certas derrogações pelas respectivas legislações;

VI - A Directiva do Conselho n°84/5/CEE de 30 de Dezembro de 1983 teve como foco a imposição de uma extensão mínima do seguro obrigatório por forma a garantir a todos os lesados uma indemnização suficiente, independentemente do Estado-membro onde o sinistro ocorra;

VII - A Directiva do Conselho n°90/232/CEE de 14 de Maio de 1990 concentrou-se na cobertura do seguro, passando a incluir os passageiros dos veículos enquanto vítimas potenciais particularmente vulneráveis;

VIU - A Directiva do Parlamento Europeu e do Conselho n°2000/26/CE de 16 de Maio de 2000 teve em vista a permissão de uma rápida regularização do sinistro pelo lesado;

IX - A Directiva do Parlamento Europeu e do Conselho n°2005/14/CE de 11 de Maio de 2005 veio alargar a cobertura do seguro obrigatório automóvel mesmo perante aqueles passageiros que sabiam, ou deviam saber, que o condutor estava sob a influência de álcool ou outros tóxicos na altura que se deu o sinistro, assim como em relação aos chamados "participantes mais fracos", como são os utilizadores não motorizados (caso dos peões e ciclistas).

X - A Directiva do Parlamento Europeu e do Conselho n°2009/103/CE de 16 de Setembro de 2009 procedeu à consolidação das directivas anteriores, que deixaram de estar em vigor.

XI - Dando-se cumprimento aos princípios comunitários respeitantes a esta matéria, surgiu, entre nós, o Decreto-Lei n°522/85 de 31 de Dezembro relativo ao seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, diploma que foi integralmente revogado pelo Decreto-Lei n°291/2007 de 21 de Agosto por força da transposição parcial para a ordem jurídica interna da Directiva n°2005/14/CE.

XII - Tendo em conta toda a evolução descortinada dúvidas não existem para a comprovação de que o seguro automóvel centrar-se-á, contrariamente à lógica do nosso Código Civil, não tanto numa perspectiva de responsabilização do lesante, mas já no ângulo do ressarcimento do lesado, consequência da carência de uma protecção social que será alcançada através do endosso dessa responsabilidade à seguradora.

XIII - Por sua vez, a nossa responsabilidade civil extracontratual emergente de acidente de viação assenta, em primeira linha, num regime de responsabilidade civil por factos ilícitos, baseada na culpa do lesante e prevista nos arts. 483°ss. do Código Civil e, em segunda linha, num regime de responsabilidade objectiva ou pelo risco, baseado no risco/perigo da circulação de veículos e previsto nos arts. 503°ss. do Código Civil, o qual, prescindindo da culpa e da ilicitude, tem essencialmente por base o nexo causal pois a utilização de veículos, embora indispensável à vida do homem, acarreta um perigo iminente, pelo que os danos que dessa circulação resultarem terão de ser assumidos por aquele que dessa circulação usufrui.

XIV - Tendo em conta que o direito comunitário integra o ideário comum da nossa responsabilidade civil, estamos sujeitos a uma interpretação conforme aquelas directivas, pelo que não obstante a liberdade de consagração do regime de responsabilidade civil emergente de acidente de viação que se nos afigure o mais apropriado, nunca se poderá perder de vista o fim que está na base da criação deste seguro obrigatório, sendo-nos vedado conter o seu efeito útil. Deste modo, existe a preocupação de garantir uma uniformidade nos standards de tutela dos potenciais lesados em acidentes de viação, daí resultando, quanto a determinadas normas da nossa responsabilidade por acidente de viação, certos problemas específicos, nomeadamente ao nível da sua conformidade com a lógica e sistema do seguro obrigatório.

XV - Tem sido entendimento unânime que o acidente terá de se reconduzir a um acontecimento súbito, enquanto evento que acontece, e se produz, rapidamente, por contraposição a ocorrências progressivas. Note-se que é o facto gerador do dano, e não o dano, que terá de ser súbito e, ainda, que o carácter súbito de uma determinada situação não deverá ser confundido com um critério de imprevisibilidade, porquanto serão várias as acções que, não obstante serem lentas ou progressivas, demonstram-se tão imprevisíveis e invencíveis como as acções rápidas.

XVI - O critério da imprevisibilidade do acontecimento evidencia-se, portanto, com um carácter supérfluo na medida em que, consistindo a imprevisibilidade naquilo que não é possível prever, será de concluir que esta característica terá de ser excluída do conceito de acidente, porquanto, em última análise, nada será imprevisível em absoluto pois tudo acaba por ser hipoteticamente possível. Contudo, podemos contrapor a imprevisibilidade com aquilo que é imprevisto porque, não obstante serem dois conceitos que derivam do verbo "prever", não têm a mesma significação, caso em que o imprevisto já valerá como aquilo que não foi pedido ou desejado, ou seja, como um antónimo daquilo que é intencional. Assim, a característica da imprevisibilidade não se demonstra uma condição própria do conceito de acidente pois estamos no domínio do hipotético. Daí que os contratos de seguro que têm por objeto a cobertura de certos riscos inerentes a um eventual acidente correspondam a nada mais que a cobertura de riscos de natureza hipotética, não existindo uma componente tão aleatória no conceito de acidente como aquela que a admissão de um critério de imprevisibilidade iria exigir. Admitir um critério de imprevisibilidade significaria a admissão da exclusão de todos aqueles danos que fossem previsíveis, que não é o que se pretende.

XVII - Um acidente envolverá, naturalmente, a verificação de danos, sendo que ao nível da imputação do facto acidental poderemos ter como factores externos ou um facto do homem, que é o que está na origem da maior parte dos acidentes, ou um facto da natureza, na medida em que são várias as situações em que o dano ocorre por mera culpa do acaso. O interesse de imputar um dano ao comportamento de um terceiro releva para efeitos indemnizatórios, no sentido de determinar o devedor responsável. Isto não é incompatível com a qualificação de acidente naqueles casos em que os danos não são passíveis de ser imputados a comportamentos humanos (caso do acidente imputável aos riscos próprios da circulação de veículos, e já não à própria conduta do lesante).

XVIII   - Deste modo, um acidente não é somente um facto gerador de danos, ele é composto por um acontecimento original e súbito decorrente de factores externos à vítima, que rejeita a procura intencional do dano através de um critério positivo de imprevisto ou de um critério negativo assente no afastamento do elemento intencional. É a combinação de todos estes critérios que nos permite definir o conceito de acidente.

XIX - A individualização dos acidentes de viação resulta, entre nós, da instituição, a par de um regime geral de responsabilidade civil assente na culpa, de um regime próprio, baseado no risco, previsto nos arts. 503° e seguintes do Código Civil e do Decreto-Lei n°291/2007 de 21 de Agosto relativo ao seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel. O art. 503°, de epígrafe "acidentes causados por veículos", dispõe no seu n°1 que: "aquele que tiver a direcção efectiva de qualquer veículo de circulação terrestre e o utilizar no seu próprio interesse, ainda que por intermédio de comissário, responde pelos danos provenientes dos riscos próprios do veículo, mesmo que este não se encontre em circulação.

XX - Diz-nos o CE o que se entende por veículos de circulação terrestre, pelo que será identificável para este fim, desde logo, o automóvel, enquanto veículo com motor de propulsão, dotado de quatro rodas, e que transita na via pública sem sujeição a carris e em relação ao qual se poderá reconhecer vários tipos e classes.

XXI - A protecção do lesado serve não só como fundamento de uma acepção inovadora do conceito de acidente, mas também como justificação para o afastamento da exigência da verificação de um risco que esteja relacionado com a circulação do veículo. Apesar de reconhecerem o risco como elemento essencial do contrato de seguro, alegam que tratando-se de um seguro obrigatório a amplitude dos riscos por ele abrangidos deverá ser interpretada de acordo com a finalidade que está na base da obrigação do seguro. Essa finalidade será a protecção do lesado, pelo que é em função desse desígnio que se justificará uma tal interpretação da noção de acidente. Para os defensores desta teoria todo o conteúdo do Decreto-Lei n°291/2007 tem como núcleo a protecção do lesado, pelo que para eles «no "risco próprio do veículo", deve, portanto, compreender-se o da actuação criminosa com dolo, mesmo para além do eventual. A não ser assim, e a fazer-se a distinção, para efeitos de cobertura, conforme o tipo subjectivo preenchido pela conduta do lesante, esvaziar-se-ia, em grande medida, contra a intenção do legislador, o campo em que opera o seguro de responsabilidade civil e deixar-se-iam desprotegidas vítimas de acções dolosas que o domínio da máquina e a sua aptidão agressiva fomentam e agravam, contra as necessidades sociais evidentes e a tendência notória do regime jurídico em questão"»

XXII - Muito embora esta teoria seja a que detém maior acolhimento perante a jurisprudência nacional e comunitária, concordamos com a orientação isolada do STJ, no acórdão de 13 de Março de 2007, pois não obstante esta dimensão social do seguro obrigatório que tem como foco a protecção dos lesados, a verdade é que esta tutela assenta numa responsabilidade pelo risco - risco que desaparece sempre que o agente actue com dolo directo - e sem o qual a mesma não poderá operar, mais concretamente, pelo risco da circulação de veículos a motor.

XXIII  - Daí que esta tutela baseada no risco não possa servir de fundamento para inclusão de todo e qualquer acidente que possa decorrer da utilização de um veículo, mas tão-somente aqueles acidentes que provenham dos riscos próprios da sua circulação tal como decorre do art. 4° n° 1 do diploma, excluindo-se deste âmbito aqueles danos que muito embora causados pelo veículo poderiam ter sido provocados por qualquer outro objecto. A não ser assim, como se justificariam as exclusões constantes do art. 14°, n°4 do diploma, nomeadamente nas alíneas c), d) e e)? É que nestes casos estar-se-ia também perante uma desprotecção dos terceiros lesados em circunstâncias em que o veículo, encontrando-se ou não em circulação, está a ser utilizado, não deixando porém de serem conjunturas expressamente excluídas pelo legislador do âmbito de protecção do diploma em estudo,

XXIV - Assim sendo, a utilização de um veículo como ferramenta para agredir alguém, quer o mesmo se encontre em circulação ou não, em nada se coaduna com os riscos próprios da circulação do veículo e, muito menos, com o disposto no n°2 do art.15° pois "decorre da própria letra do preceito em análise, para que o seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel actue é necessário que, independentemente do grau de culpa do condutor do veículo (da mera negligência inconsciente ao dolo eventual), se esteja perante um acidente que, como tal, será casual e fortuito, e se a protecção do lesado não se demonstra ser argumento suficiente para que o legislador tivesse incluído no âmbito de protecção do seguro obrigatório as circunstâncias elencadas nas alíneas c), d) e e) do n°4 do art.14° do diploma, não se concebe por que motivo a protecção do lesado já poderá servir de fundamento para a descaracterização do conceito de acidente, para a violação de uma essencialidade dos contratos de seguro como é a do risco, e ainda o desrespeito pelos arts. 15°, n°2 e 4°, n°1 do Decreto-Lei n°291/2007. Qualquer outra interpretação implicará a inobservância da letra da lei ou a presunção de que o legislador não soube expressar o seu pensamento de forma adequada, o que nos é vedado pelos n°2 e 3 do art. 9° do Código Civil.

XXV - O legislador optou pela autonomização dos acidentes de viação num regime segundo o qual ou há culpa do condutor provada pelo lesado seguindo os trâmites dos arts. 483°ss. ou o condutor irá responder com base no regime especial de responsabilidade pelo risco dos arts. 503°ss., o qual não exige culpa. Na segunda hipótese, já não está em causa a concreta conduta do lesante mas tão- somente o facto de este "ter, em proveito próprio, criado uma situação de risco de que veio efectivamente a resultar um prejuízo para terceiro". Assim, a responsabilidade pelo risco corresponde, na prática, a uma responsabilidade subsidiária à qual os lesados recorrem na circunstância de não conseguirem obter uma reparação com base na culpa provada do condutor. (Neste sentido se pronunciou o assento n° 1/80 que consagra que a aplicação de um regime especial de responsabilidade objectiva aos acidentes de viação implica o afastamento do regime geral da presunção de culpa do art. 493° n°2.)

XXVI - E aqui que se questiona a razão pela qual, não recaindo sobre qualquer dos condutores o ónus de provar a ausência de culpa - em virtude do afastamento da presunção de culpa do art. 493° n°2 no domínio dos acidentes de viação e que o assento n° 1/80 expressamente aclama - se vem exigir do condutor por conta de outrem o ónus de provar a inexistência de culpa para que este se possa desresponsabilizar dos danos causados a terceiros. Será justo sancionar com um tratamento mais desfavorável a falta de interesse próprio do comissário? Mais alarmante é a questão de saber como é que esta solução se compagina com o disposto nos arts. 506°, n° 1, 507°, n° 1 e 236 e com o 508° no que refere à culpa do condutor. Por forma a abreviar o desequilíbrio criado com a presunção do art. 503° n°3, 1ª parte, poder-se-ia julgar a culpa enunciada naqueles artigos somente enquanto culpa provada. Contudo, não foi este o entendimento adoptado pelos assentos n° 3/94 e 7/94, segundo os quais o âmbito de aplicação, respectivamente, do art. 506° e do art.508°, deverá referir-se não só à culpa efectiva como também à culpa presumida, o que significa que se o comissário não conseguir elidir a presunção que sobre ele recai, numa colisão entre um veículo conduzido por um comissário e um veículo conduzido pelo detentor efectivo, sem que haja culpa provada de qualquer um deles, o primeiro irá responder sempre por todos os danos e, ainda, a responsabilidade do comissário (e do comitente) não beneficiará dos limites do art. 508°, respondendo ilimitadamente. Acresce ao exposto o facto de o assento n° 1/83 - embora reconhecendo a incoerência do agravamento da posição do condutor por conta de outrem originada pelo assento n° 1/80 - ter estabelecido que a rejeitar-se a aplicação do n°2 do art. 493° à circulação de veículos terrestres, a solução não será outra senão a de alargar a presunção de culpa do art. 503° n°3 às relações com o lesado, o que significa que "o condutor por conta de outrem é presumido culpado diante de qualquer outro interveniente no acidente" e a sua culpa, ainda que presumida, é tratada como culpa efectiva.

XXVII - Como já se tem vindo a mencionar, a responsabilidade civil emergente de acidente de viação assenta, em primeira linha, num regime que tem por base a culpa provada do condutor lesante e, em segunda linha, num regime baseado no risco da utilização de um veículo.

XXVIII - A severidade imposta por um regime de responsabilidade objectiva parte da consciencialização da especial perigosidade deste tipo de actividade. Contudo, e porque cada caso é um caso, o legislador previu no art. 505° certas circunstâncias que permitem o afastamento desta responsabilidade pelo risco, instituindo que "sem prejuízo do disposto no artigo 570°, a responsabilidade fixada pelo n°1 do artigo 503° só é excluída quando o acidente for imputável ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resulte de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo".

XXIX - Deste preceito resulta que é excluída a responsabilidade objectiva sempre que o acidente resulte de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo ou quando o mesmo seja imputável ao próprio lesado ou a terceiro, pelo que, note-se, não se exige a culpa do lesado ou de terceiro, mas somente que o acidente seja causado pela conduta de qualquer um deles. Das expressões "imputável" e "quando resulte de" parece de concluir que o art. 505° só poderá ser accionado se, e quando, respectivamente, o acidente se dever unicamente ao próprio lesado ou a terceiro - quer haja culpa ou não - ou resulte exclusivamente de causa de força maior.

XXX - Focando-nos na hipótese de imputação do acidente ao próprio lesado, será de admitir que, muitas das vezes, é o lesado que não toma as providências que se demonstram essenciais face aos perigos inerentes à circulação de veículos, pois perante os direitos de terceiro - como será o da condução de veículos - sobre os potenciais lesados versará o dever de adoptar as condutas que se demonstram adequadas à protecção dos seus próprios interesses pelo que, uma vez provado que os danos causados derivaram, não dos riscos normais do veículo, mas unicamente de um facto do lesado (ou terceiro), a solução não será outra senão a de excluir a responsabilidade objectiva do detentor do veículo. Trata-se de uma questão de causalidade, pois a verificação de qualquer das circunstâncias previstas no art.505° implica a inexistência de um nexo causal entre o dano e os riscos próprios do veículo e, consequentemente exclui-se a responsabilidade objectiva que tem por base esses riscos.

XXXI - Basta que o acidente se deva unicamente por culpa ou mera causalidade do lesado para que se afaste a responsabilidade objectiva do detentor do veículo, mas o que dizer quanto àquelas circunstâncias nas quais tanto contribuíram para o sinistro os riscos próprios do veículo como o facto, culposo ou não, do lesado? Poderá haver concurso entre o risco do lesante e a conduta do lesado quando uma e outra são causas da produção do dano? É que existem "especiais situações em que a circulação automóvel cria um especial risco de acidente, mesmo com estrita obediência às regras estradais.

XXXII - A verdade é que o nosso legislador antecipou a possibilidade de a conduta do lesado concorrer, para a produção ou agravamento do dano, com a conduta do lesante, através da instituição da figura da "culpa do lesado" prevista no art. 570°, pois «quando a liberdade- responsabilidade se encontra com a liberdade-auto-responsabilidade, vista não tanto como "assunção do risco", isto é, como exposição consciente a um perigo específico conhecido ou reconhecível, mas como conduta negligente do lesado com dano para o próprio, é de questionar, em geral, se esse dano é de imputar apenas ao lesante, somente ao lesado ou se deve ser repartido por ambos". Contudo, este artigo, tal como resulta da própria epígrafe, parece reportar-se apenas ao domínio da "conculpabilidade", tendo sido entendimento unânime na jurisprudência nacional que, aplicando-se o art. 570° somente ao domínio da culpa, não se acolherá uma interpretação que vá no sentido de aceitar o concurso entre o risco do lesante e a culpa do lesado (enquanto culpa ou facto do lesado, mesmo que não culposo), pelo que respondendo o lesante com base no risco, esta culpa (ou facto) do lesado implicará, sempre, a exclusão do risco do lesante.

XXXIII - Nestes autos a admitir-se a culpa do lesado seria a negação do bom senso e da experiência de qualquer comum mortal, pois a vítima não podia ficar no veículo a aguardar por uma eventual colisão e teve ainda o cuidado de ir buscar à mala os sinais para evitar qualquer embate de qualquer condutor distraído ou em velocidade excessiva ou excesso de velocidade.

XXXIV - Aquela referida orientação é a que tradicionalmente tem sido seguida pelos nossos tribunais por entenderem que, sendo o regime de responsabilidade civil baseado no risco um regime severo, esta será a solução mais justa e a que está de acordo com a letra da lei. Contudo, existe um outro aspecto que importa enquadrar nesta equação: o papel das directivas comunitárias e o regime de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel.

XXXV - De facto, a responsabilidade civil foi estatuída no nosso Código Civil pelo prisma da responsabilidade patrimonial do devedor/lesante. No entanto, as directivas comunitárias passaram a ver os acidentes de viação através da perspectiva dos lesados, o que se reflectiu ao nível do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel. E, tendo em vista a inevitável correlação entre as normas do diploma do seguro obrigatório automóvel e as normas da responsabilidade civil emergente de acidente de viação consagradas no nosso Código Civil, impõe-se uma harmonização entre a especial atenção às fragilidades próprias dos potenciais lesados por este tipo de actividade com o teor de um conjunto de normas do nosso Código Civil criadas à luz da responsabilidade patrimonial do agente causador de danos.

XXXVI - Terá de ser feita uma interpretação das normas do Código Civil sensível à crescente evolução que se tem feito sentir com vista à protecção dos sujeitos mais frágeis que participam na circulação rodoviária, desviando-nos de um sistema rígido, assente numa lógica de tudo ou nada. Não obstante o facto de a seguradora apenas responder se e na medida da responsabilidade do lesante, a verdade é que o seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel visa a protecção dos lesados através da secundarização da pessoa do lesante, daí resultando uma menor exigência na apreciação das culpas daqueles lesados considerados mais frágeis pois sendo essa a função do seguro obrigatório não fará sentido que o mesmo se possa aproveitar de toda e qualquer falta realizada pelo lesado, pelo que o haver ou não seguro faz toda a diferença ao nível da interpretação das normas que possam afectar os lesados.

XXXVII - Esta necessidade de uma interpretação actualista assente na protecção do lesado torna-se compreensível, não só porque será indiscutível que os acidentes de viação constituem a maior causa de mortes e lesões graves em Portugal, mas também porque uma tal acepção nos será imposta pelo princípio da interpretação conforme, segundo o qual o direito nacional terá de ser interpretado à luz das directivas comunitárias, ainda que não, ou incorrectamente, transpostas.

XXXVIII - Observados, pelo prisma do lesado, os mais variados enredos de um acidente de viação, poderíamos deparar com um conjunto de circunstâncias onde, pela doutrina tradicional, o art.° 505° se revelaria imerecido. Vejamos, por exemplo, as hipóteses em que o sinistro tem por base "(...) comportamentos mecânicos dos lesados, ditados por um medo invencível ou por uma reacção instintiva, os eventos pessoais fortuitos (desmaios e quedas), os factos das crianças e dos (demais) inimputáveis, os comportamentos de precipitação ou distracção momentânea, o descuido provocado pelas más condições dos passeios (...)", colocando em causa o efeito útil das directivas que pretendem garantir um ressarcimento suficiente das vítimas no domínio dos acidentes de viação por forma a que só excepcionalmente, e com base nas circunstâncias do caso concreto, se possa limitar ou excluir a respectiva indemnização. Trata-se, no fundo, da necessidade de alcançar uma maior justiça material, assente numa repartição mais complexa do dano, através da valoração de diferentes factores.

XXXIX - Nas palavras de AMÉRICO MARCELINO "o tudo ou nada, isto é, o haver ou não direito a indemnização, na concepção jurisprudencial dominante, poderá depender da opção por um destes dois factos de fronteiras tão difusas que bem frequentemente, quase se poderiam nivelar: - ou seja, não haver culpa do sinistrado ou haver uma levíssima culpa dele". Interpretação acolhida no acórdão do STJ de 5/11/2013: "ocorrendo um acto ou comportamento da vítima que se revele a causa exclusiva do acidente e do dano, sendo-lhe unicamente imputável, fica excluída a responsabilidade objectiva ou pelo risco, que poderia tornar admissível a responsabilidade do condutor do veículo, em concurso com a responsabilidade da vítima (ciclista), a título de culpa"; de 22/01/2009: "o art.° 505° do CC deve ser interpretado no sentido de nele se admitir a concorrência da culpa do lesado com o risco próprio do veículo, dele resultando que a responsabilidade objectiva do detentor do veículo, a que se reporta o n.° 1 do art.° 503°, só é excluída quando o acidente for devido unicamente ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resulte exclusivamente de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo": "o texto do art.° 505° do CC deve ser interpretado no sentido de que nele se acolhe a regra do concurso da culpa do lesado com o risco próprio do veículo, ou seja, que a responsabilidade objectiva do detentor do veículo só é excluída quando o acidente for devido unicamente ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resulte exclusivamente de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo (...) A este resultado conduz uma interpretação progressista ou actualista do art.° 505°, que tenha em conta a unidade do sistema jurídico e as condições do tempo em que tal norma é aplicada, em que a responsabilidade pelo risco é enfocada a uma nova luz, iluminada por novas concepções, de solidariedade e justiça".

XL - Neste sentido está SERRA, Vaz, anotação ao Acórdão de 14 de Junho de 1966, in Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 99° (1966-1967), p. 364, nota 1: "aquele artigo 570.° não prevê o caso de concurso de facto culposo do lesado com risco criado pelo responsável; mas é aplicável, por analogia, a esse caso a disposição do artigo 570.° (...)"; e ainda in Fundamento da Responsabilidade Civil (em especial, responsabilidade por acidentes de viação terrestre e por intervenções lícitas), Separata do «Boletim do Ministério da Justiça» N°90 (1959), p.168: "num sistema de responsabilidade baseada no risco, pode perfeitamente admitir-se a repartição da responsabilidade, pois não é impossível uma comparação, para repartição do dano, entre o perigo, base da responsabilidade de uma das partes, e a conduta do prejudicado (...) a doutrina exposta acerca da repartição do encargo do dano é aplicável somente quanto este for resultado de conduta da vítima e de conduta do dono, etc, do veículo ou do condutor deste ou de conduta da vítima e do risco da actividade do veículo. Se o dano for causado apenas pela conduta da vítima, não tendo para ele contribuído aquela outra conduta ou risco da actividade, não há responsabilidade ".

XLI - Entendemos que existindo uma concorrência entre risco do lesante e a culpa (ou facto) do lesado na medida em que, não obstante a necessidade de uma interpretação actualista, a própria expressão "imputável ao" utilizada no art.° 505° leva a crer que o mesmo se reporta somente àqueles casos em que o acidente se deveu unicamente a facto, culposo ou não, do lesado, pelo que na falta desta exclusividade, já será de admitir o concurso se, e quando, o sinistro se dever, também, aos riscos próprios do veículo. Esta concorrência encontraria o seu fundamento numa aplicação analógica ou paralelismo com o art.° 570°.

XLII - CALVÃO DA SILVA, embora apoiando a teoria da concorrência entre o risco do lesante e a culpa (ou facto) do lesado, encontra a sua justificação no próprio conteúdo do art.505°, porquanto, para este autor, não poderá ser outro o sentido da ressalva feita no início do preceito. Aplicando-se o art.° 505° à responsabilidade objectiva do art.° 503°, n°l, esta ressalva só poderá ser entendida como relativa a esta responsabilidade pelo risco de utilização do veículo, porquanto a concorrência da culpa do lesado e da culpa do lesante já resulta directamente do próprio art.° 570°, não havendo qualquer justificação lógica para a consagração do concurso de responsabilidades do domínio da culpa no âmbito de uma norma respeitante à responsabilidade pelo risco, principalmente quando já existe o art.° 570°. Será de entender que no art.° 570° "a palavra «culposo» aparece aqui em sentido impróprio ou vulgar, dado que se refere a uma conduta do próprio lesado", pelo que o disposto na parte inicial do art.° 505° só poderá ser entendido como a admissão de um concurso entre a culpa (ou facto) do lesado e o riscos próprios do veículo, sempre que o acidente não se deva unicamente a facto do lesado, pois o que o art.° 505° vem afirmar é que a responsabilidade objectiva do art.° 503°, n° 1 só poderá ser afastada quando o acidente se deve unicamente a facto do lesado (ou terceiro) ou resulte exclusivamente de causa de força maior, pelo que, com excepção desses casos admite-se concorrência entre risco e culpa (ou facto) do lesado tal como resulta da expressão "sem prejuízo do disposto no artigo 570º".

XLIII - Para CAL VÃO DA SILVA, o art. 505° deve ser lido da seguinte forma: «Sem prejuízo do disposto no art. 570° (leia-se, sem prejuízo do concurso da culpa do lesado e, "a fortiori", sem prejuízo do concurso de facto não culposo do lesado), a responsabilidade objectiva do detentor do veículo só é excluída quando o acidente for devido (com culpa ou sem culpa) unicamente ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resulte exclusivamente de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo»,

XLIV - Perfilhamos este entendimento pelas razões já acima enunciadas e porque assim se conseguirá alcançar uma harmonização entre a legislação nacional em matéria de acidentes de viação e as várias directivas sobre o seguro obrigatório automóvel64, na medida em que não se deve olvidar que uma tal conciliação não poderá passar pela eliminação do efeito útil das directiva e da lógica indemnizatória daquele seguro, principalmente quando o mesmo sentido se retira da própria norma do art° 505°. Pelo exposto, impõe-se a necessidade de uma reformulação da interpretação que tradicionalmente é dada ao art.° 505° por forma a englobar somente aquelas condutas dos lesados que, pela sua exclusividade na verificação do acidente, justifiquem a denegação da responsabilidade do lesante, o que "exige a adopção de um critério valorativo que considere a fragilidade dos menores no tráfego, que secundarize as noções clássicas ligadas à responsabilidade individual, que acompanhe os modelos mais protectores presentes noutros ordenamentos, que confira protagonismo ao seguro e ao Fundo de Garantia e que circunscreva a exoneração do detentor às condutas conscientes do lesado, reveladoras de um desleixo com a sua própria protecção".

XLV - Quebra-se, desta forma, um sistema que tradicionalmente permitiria a exclusão da prestação da seguradora quando a vítima seja co-responsável pelos danos que veio a sofrer, e alcança-se uma solução que permite que a indemnização coberta pelo seguro obrigatório automóvel só seja limitada em função de uma apreciação individual do comportamento da vítima assente na sua efectiva contribuição para o dano através do 'concurso entre risco do lesante e culpa (ou facto) do lesado, permitindo, deste modo, alcançar uma maior justiça material no direito positivo.

XLVI - No que concerne à admissão de um concurso entre o risco do lesante e a culpa (ou facto) do lesado, a exposição efectuada remete-nos para a necessidade de uma interpretação actualista do art. 505° por forma a garantir uma harmonia com o diploma do seguro obrigatório que permita viabilizar o seu efeito útil de protecção dos lesados e alcançar uma maior justiça através de um sistema de repartição do dano mais rigoroso.

XLVII - O Tribunal "a quo" não deu qualquer relevância à velocidade excessiva, baseando somente as suas premissas, como não havendo excesso de velocidade.

XLVIII - Nos termos do Artigo n.° 24 do Código da Estrada um condutor deve regular a velocidade do seu veículo em função: das características e estado da via, do veículo, da carga transportada, das condições meteorológicas ou ambientais, da intensidade do trânsito e em função de quaisquer outras circunstâncias que lhe permitam, em condições de segurança, parar o seu veículo no espaço livre e visível à sua frente. Trata-se de uma regra, quiçá esquecida, e cujo incumprimento se encontra sancionado com a aplicação de uma coima e inibição de conduzir.

XLIX - A velocidade deve, efectivamente, ser regulada em função de um conjunto de factores que o condutor deve estar atento. Na verdade, conhecer o veículo, a via e regular a velocidade em função de todas as demais condicionantes da condução é, de facto, um elemento fundamental e essencial na prevenção de acidentes. Entendo, até, que impende sobre todos os condutores um especial dever de possuir um conhecimento (razoável) das possibilidades do seu veículo, nomeadamente, o poder de aceleração e desaceleração e a capacidade de travagem do veículo.

L - Do conhecimento do veículo e da via depende - em muito - uma condução segura devendo ainda o condutor conjugar e regular a velocidade em função de todos os factores que, de algum modo, possam interferir na condução.

LI - Um condutor que transite dentro de uma localidade a uma velocidade de 50 Km/h não infringe, em abstracto, as regras do Código da Estrada. Contudo, se o mesmo condutor não conseguir fazer parar o seu veículo no espaço livre e visível à sua frente devido (por exemplo) ao mau estado de conservação da via, uma conclusão desde logo se pode retirar: o condutor circula com velocidade excessiva e infringe a regra do Artigo n.° 24.

LII - Circula em excesso de velocidade o condutor que excede os limites de velocidade previstos na lei (por exemplo: o condutor de um automóvel ligeiro de passageiros, sem reboque que excede a velocidade de 120 Km/h numa auto-estrada). Por sua vez, circula com velocidade excessiva o condutor que, por exemplo, ao transitar numa via pública em mau estado de conservação, não consegue parar o seu veículo no espaço livre e visível á sua frente ainda que, note-se, não tenha excedido a velocidade permitida para a via onde circula.

LIII - A forma como ocorreu o acidente é evidente a velocidade excessiva por parte do condutor do veículo segurado na Recorrida, independentemente da velocidade a que circulava, contribuindo para o malogrado e infeliz acidente, isto independentemente da matéria dada como provada.

LIV - Embora este Tribunal só se pronuncie sobre a violação da lei substantiva, como no erro da norma aplicável e a violação ou errada aplicação da lei do processo certo é que velocidade excessiva é um conceito jurídico e como tal a sua existência, de acordo com os factos (dados como) provados, nas instâncias anteriores, implicam não só a culpa do condutor segurado da Recorrida, como no limite a sua contribuição na ocorrência do acidente e o injustificado afastamento da responsabilidade pelo risco e a medida dessa contribuição em termos indemnizatórios, para além de outros.

LV - Em face da fixação pelas duas instâncias da matéria de facto teremos que o valor indemnizatório decorrente desse facto é o que foi reduzido no recurso de apelação, sendo esse valor daí decorrente.”

    A Recorrida contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso e, subsidiariamente, considerando que, a ser julgado procedente, não poderá ser atribuída indemnização superior à fixada pela 1ª instância.

         Cumpre decidir.

3. Vem provado o seguinte (mantêm-se a identificação e a redacção das instâncias):

1). Cerca das 00.15 horas do dia 29/10/2015 ocorreu um embate na auto-estrada A-20 (VCI), Km. 13,6, ..., do Porto, entre o veículo ligeiro de passageiros de matrícula -OA, propriedade de GG e conduzido pelo mesmo e a mãe dos Autores, EE, tendo esta sido atropelada por aquele veículo.

2). No local onde acorreu o atropelamento a A-20, sentido ..., descreve uma curva longa e suave para a direita, sendo a faixa definida da seguinte forma: quatro hemifaixas de faixas de rodagem, de sentido único; . a hemifaixa mais à direita está delimitada por uma linha contínua que termina no enfiamento de linha paralela imaginária à linha do topo de sinal de aproximação de estrada com prioridade desenhado no asfalto passando depois a linha a ser descontínua; tal hemifaixa mais à direita constitui uma via de entrada de veículos que provêm de outro local (saída de ...) e querem passar a circular na indicada A-20; essa mesma hemifaixa mais á direita constituiu a via destinada á circulação dos veículos que pretendam sair da mesma A-20 na próxima saída-...; as três restantes hemifaixas estão delimitadas entre si por linhas descontínuas; a segunda hemifaixa mais à direita permite, até local sito mais à frente do embate abaixo referido, a condução em frente, prosseguindo na A-20 ou também passar para a hemifaixa mais à direita para sair na saída para ....

3). Antes do embate que sofreu, EE circulava no sentido ..., conduzindo o veículo automóvel marca ..., modelo ..., com a matrícula BX- ....

4). O veículo de matrícula -AO circulava pela terceira hemifaixa de rodagem da A20 a contar da direita, no sentido ....

5). O veículo AO, conduzido por EE, a certa altura ficou imobilizado na terceira hemifaixa de rodagem da A20 a contar da direita, sentido ....

6). Após tal paragem, EE saiu da viatura e deslocou-se para a traseira da mesma.

7). Quando se encontrava na traseira do veículo AO, EE é embatida pela frente do veículo segurado na Ré sendo empurrada contra o mesmo AO.

8). O veículo AO é projetado para a frente com o embate, rodopia e descreve uma curva para a direita, imobilizando-se na berma da A-20, com a frente virada para o sentido Norte (…), a cerca de 5,3 metros da dianteira do veículo segurado na Ré que se imobilizou após o embate.

9). EE fica imobilizada no solo junto do lado direito da viatura segurada na Ré.

10). O condutor do veículo segurado na Ré imprimia ao mesmo, antes do embate, uma velocidade entre 70 e 80 Kms./hora.

11). A velocidade máxima permitida no local era de 90 Kms/hora.

12). Não foram registados rastos de travagem do veículo segurado.

13). No momento do embate chovia de modo forte e intenso, estando o piso molhado.

14). Quando o veículo AO conduzido por EE se imobilizou, antes do embate, ficaram ligadas unicamente, na parte traseira, luzes de presença.

15). O condutor do veículo segurado na Ré, antes do embate em EE, tinha uma visibilidade, dada pelos faróis da viatura, para a sua frente entre dez e vinte metros.

16). O mesmo condutor do veículo segurado na Ré só se apercebeu da viatura AO a cerca de 10 metros do embate em EE tendo procurado desviar a viatura para a sua esquerda.

17). EE vestia roupa escura quando foi embatido pelo veículo segurado na Ré não envergando colete reflector nesse momento.

18). Não foi colocado triângulo de sinalização de obstáculo na via atrás do AO.

19). A cerca de 300 metros do local do embate, na faixa destinada à circulação de veículos no sentido …, existia um poste de iluminação pública.

20). Em consequência do atropelamento EE sofreu lesões, mormente nos membros inferiores, resultando destas a sua morte.

21). No local do embate EE foi assistida pelo INEM que confirmou o seu falecimento.

22). EE teve morte quase imediata, ficando o seu corpo no local da colisão.

23). EE nasceu em …1960.

24). O proprietário do veículo de matrícula -AO celebrou com a Ré um contrato de seguro titulado pela apólice n.º …, pelo qual esta assumiu a responsabilidade civil emergente da circulação estradal do mesmo veículo.

25). EE era saudável, pessoa alegre, gozando de estima de terceiros.

26). Tinha festejado os seus cinquenta e cinco anos com a família.

27). Os Autores receberam com choque profundo a notícia do falecimento de EE, morte que lhes causou igualmente profunda tristeza e amargura também pelo seu caráter repentino e violento.

28). Os Autores amavam sua mãe e eram amados por esta.

Não foram provados os factos seguintes:

1). EE circulasse por conta e no interesse do dono da viatura AO.

2). O veículo conduzido por EE estivesse a circular, antes do embate, na segunda hemifaixa mais à direita da A-20, sentido ....

3). O veículo AO tenha sofrido uma avaria mecânica que o imobilizou na A-20.

4). EE tenha ligado os sinais intermitentes da viatura («quatro piscas») quando a viatura se imobilizou.

5). Quando a Autora se encontrava na parte de trás da viatura quando é embatida fosse para retirar o seu colete reflector e o triângulo de sinalização.

6). O veículo AO fosse visível para o condutor do veículo segurado na Ré a mais de trezentos metros de distância.

7). O condutor do veículo segurado na Ré imprimisse ao veículo, nos momentos antes do embate uma velocidade superior a 100 Kms./hora.

8). O condutor do veículo segurado na Ré imprimisse ao veículo, nos momentos antes do embate uma velocidade de cerca de 50 Kms./hora.

9). Houvesse neblina no momento do embate.

10). O condutor do veículo segurado na Ré tenha acionado os travões da viatura antes do embate e tenha a mesma derrapado antes do embate.

Não se dão como provados ou não provados outros factos por ou serem conclusivos (onde as viaturas deveriam circular de acordo com as respetivas velocidades ou o que EE poderia ter feito para salvar a sua vida) ou de direito.

4. Tendo em conta o disposto no nº 4 do art. 635º do Código de Processo Civil, o objecto do recurso delimita-se pelas conclusões do mesmo. Assim, e não obstante a prolixidade das conclusões recursórias, é possível identificar, como objecto do presente recurso, as seguintes questões:
- Atribuição da responsabilidade pela ocorrência do acidente;
- Subsidiariamente, fixação dos valores indemnizatórios por danos não patrimoniais.

5. Antes de se apreciar a questão da atribuição da responsabilidade pela ocorrência do acidente, considera-se necessário considerar os termos em que as instâncias a decidiram e respectivos fundamentos.

    A 1ª instância considerou existir repartição de responsabilidade pelas seguintes razões:
- Não tendo sido feita prova da alegada avaria mecânica do veículo automóvel conduzido pela vítima do acidente, mãe dos AA., nem do cumprimento dos deveres de sinalização de perigo, o facto de a referida EE ter parado a viatura em plena faixa de rodagem da auto-estrada, numa noite em que chovia intensamente, configura violação de diversos deveres estradais, sendo de concluir pela existência de culpa da própria lesada;
- Quanto ao condutor do veículo automóvel que embateu na falecida EE, entendeu que a velocidade imprimida ao veículo, de 70-80Km/hora (sendo o limite no local de 90Km/hora), sendo noite e chovendo intensamente, terá sido excessiva. Contudo, ajuizou que a forma como o acidente ocorreu (embate na vítima enquanto peão) não se encontra abrangida na razão pela qual seria de exigir que o condutor moderasse a velocidade;
- Considerou ainda que o condutor do veículo seguro na R., ao conduzir na terceira das quatro vias da faixa de rodagem da auto-estrada no sentido ..., desrespeitara também a regra de cuidado que obriga a circular na via mais à direita (que, no caso, seria a segunda das quatro vias). Mas entendeu que também esta violação não foi causal em relação ao acidente;
- Por estes motivos, concluiu pela inexistência de conduta negligente do condutor do veículo seguro na R.;
- Quanto à responsabilidade pelo risco, prevista no art. 503º, nº 1, do Código Civil, entendeu que o regime de exclusão de tal responsabilidade do art. 505º do mesmo Código deve ser objecto de uma interpretação actualizada, no sentido de – de acordo com a jurisprudência mais recente do Supremo Tribunal de Justiça – se admitir a concorrência entre a responsabilidade objectiva e a culpa do lesado;
- Ponderando todos os dados apurados relativamente à condução do veículo seguro na R., designadamente a circulação em velocidade excessiva e fora da via (mais à direita) em que devia circular, entendeu que, no caso concreto, os riscos de circulação tinham sido aumentados;
- Concluindo, a final, que a contribuição para a morte da vítima deve ser repartida na proporção de 80% para a culpa da lesada e de 20% para os riscos do veículo seguro na R.

Os AA. apelaram invocando existir concorrência de culpas entre o condutor do veículo seguro na R. e a falecida EE, na proporção de 80% para aquele e de 20% para esta. Por seu turno, também a R. apelou invocando dever entender-se que a culpa exclusiva da lesada afasta a responsabilidade pelo risco, nos termos do art. 505º do Código Civil.

A Relação julgou improcedente o recurso dos AA. e procedente o recurso da R., revogando a sentença e absolvendo a R. do pedido, com a seguinte fundamentação:
- Confirmando a culpa da vítima, mãe dos AA., na ocorrência do acidente, considerou não ser possível concluir que o condutor do veículo seguro na R. seguisse em excesso de velocidade;
- Mais concretamente entendeu não ter sido violado o dever de cuidado previsto no art. 24º, nº 1, do Código da Estrada, uma vez que o embate do veículo seguro na R. se deu com a vítima enquanto peão, não sendo exigível ao condutor que previsse a presença de um peão na auto-estrada;
- Assim, não se verifica concorrência de culpas entre os intervenientes no acidente;
- Quanto à concorrência entre responsabilidade pelo risco e culpa do lesado, admitiu-a, em tese geral, de acordo com a jurisprudência mais recente do STJ;
- No caso dos autos, porém, entendeu que a sentença “levou à ponderação antagónica das mesmas circunstâncias, mormente a velocidade, porquanto num primeiro momento é afastada por o peão ser um obstáculo imprevisível e proibido para o condutor da ré, que não lhe era assim exigível que seguisse mais devagar para evitar o embate num peão na auto-estrada, culpa agora enunciada nos riscos inerentes ao veículo como se tivesse ficado assente em relação à morte do peão, que não ficou”;
- Assim, concluiu que, no caso concreto, o veículo seguro na R. não contribuiu “com risco relevante para o acidente” e para a morte da vítima.

        

6. Em sede de revista impugnam os AA. a decisão do acórdão recorrido com dois fundamentos distintos, a saber: (i) de acordo com uma interpretação actualista do regime do art. 505º do CC, imposta pela exigência de uma interpretação conforme ao direito da União Europeia em matéria de seguro automóvel, é de admitir o concurso entre a responsabilidade pelo risco e a culpa do lesado, tese que, devidamente aplicada ao caso sub judice, levará a concluir que os riscos próprios do veículo seguro na R. contribuíram para a ocorrência do sinistro; (ii) além disso, não foi devidamente apreciada a questão da velocidade do veículo seguro na R. que, em função do regime do art. 24º do Código da Estrada, deve ser tida como excessiva, implicando assim que se reconheça a negligência do respectivo condutor.

       Esclareça-se, desde já, que a ordem de precedência lógica dos fundamentos invocados pelos Recorrentes é inversa à enunciada. Na verdade, importa ponderar, antes de mais, o fundamento da alegada concorrência de culpas entre os intervenientes no acidente, em relação ao qual o fundamento do invocado concurso entre a responsabilidade pelos riscos próprios do veículo automóvel e a culpa da vítima é subsidiário.

         Vejamos.

Relevam os seguintes factos provados:

1) Cerca das 00.15 horas do dia 29/10/2015 ocorreu um embate na auto-estrada A-20 (VCI), Km. 13,6, ..., do Porto, entre o veículo ligeiro de passageiros de matrícula -OA, propriedade de GG e conduzido pelo mesmo e a mãe dos Autores, EE, tendo esta sido atropelada por aquele veículo.

3) Antes do embate que sofreu, EE circulava no sentido ..., conduzindo o veículo automóvel marca ..., modelo ..., com a matrícula BX- ....

4) O veículo de matrícula -AO circulava pela terceira hemifaixa de rodagem da A20 a contar da direita, no sentido ....

5) O veículo AO, conduzido por EE, a certa altura ficou imobilizado na terceira hemifaixa de rodagem da A20 a contar da direita, sentido ....

6) Após tal paragem, EE saiu da viatura e deslocou-se para a traseira da mesma.

7) Quando se encontrava na traseira do veículo AO, EE é embatida pela frente do veículo segurado na Ré sendo empurrada contra o mesmo AO.

8) O veículo AO é projetado para a frente com o embate, rodopia e descreve uma curva para a direita, imobilizando-se na berma da A-20, com a frente virada para o sentido Norte (…), a cerca de 5,3 metros da dianteira do veículo segurado na Ré que se imobilizou após o embate.

9) EE fica imobilizada no solo junto do lado direito da viatura segurada na Ré.

10) O condutor do veículo segurado na Ré imprimia ao mesmo, antes do embate, uma velocidade entre 70 e 80 Kms./hora.

11) A velocidade máxima permitida no local era de 90 Kms/hora.

12) Não foram registados rastos de travagem do veículo segurado.

13) No momento do embate chovia de modo forte e intenso, estando o piso molhado.

14) Quando o veículo AO conduzido por EE se imobilizou, antes do embate, ficaram ligadas unicamente, na parte traseira, luzes de presença.

15) O condutor do veículo segurado na Ré, antes do embate em EE, tinha uma visibilidade, dada pelos faróis da viatura, para a sua frente entre dez e vinte metros.

16) O mesmo condutor do veículo segurado na Ré só se apercebeu da viatura AO a cerca de 10 metros do embate em EE tendo procurado desviar a viatura para a sua esquerda.

17) EE vestia roupa escura quando foi embatido pelo veículo segurado na Ré não envergando colete reflector nesse momento.

18) Não foi colocado triângulo de sinalização de obstáculo na via atrás do AO.

19) A cerca de 300 metros do local do embate, na faixa destinada à circulação de veículos no sentido …, existia um poste de iluminação pública.

         Importa também ter presente que não foi provado que:

3) O veículo AO tenha sofrido uma avaria mecânica que o imobilizou na A-20.

4) EE tenha ligado os sinais intermitentes da viatura («quatro piscas») quando a viatura se imobilizou.

5) Quando a Autora se encontrava na parte de trás da viatura quando é embatida fosse para retirar o seu colete reflector e o triângulo de sinalização.

    Tendo sido provado que a falecida EE, após ter imobilizado a viatura por si conduzida em plena faixa de rodagem da auto-estrada, por causa não apurada, se encontrava fora da mesma, na sua traseira, sem ter cumprido as exigências legais relativas à sinalização de perigo e sem envergar o colecte reflector, é indubitável a existência de culpa daquela na ocorrência que a vitimou (cfr. art. 87º, nºs 1 e 3, e art. 88º, nºs 2 e 4, do Código da Estrada).

    Quanto à questão da alegada responsabilização do condutor do veículo seguro na R., tal como se afirmou supra, deve começar por se (re)apreciar o invocado fundamento da verificação dos pressupostos da responsabilidade subjectiva do condutor, transferida para a R. seguradora.

      Como se indicou, a sentença considerou ter o condutor do veículo seguro na R. desrespeitado tanto o dever de cuidado que obriga a circular na via mais à direita possível (art. 13º, nº 3, do Código da Estrada) como aqueloutro dever de cuidado que impõe a regulação da velocidade em função das circunstâncias da condução (art. 24º, nº 1, do mesmo Código). Porém, na medida em que a colisão com um peão não se encontra abrangida pelo âmbito de uma e outra norma, não se pode concluir ter o condutor actuado com negligência. Tais infracções estradais, nas circunstâncias concretas (condução de noite e com chuva muito intensa), levam antes a entender que “os riscos de circulação da viatura em se provocar um acidente foram aumentados”, concluindo-se pela contribuição causal desses riscos para o sinistro e os danos.

    Diversamente entendeu a Relação que não podia a 1ª instância fazer uma “ponderação antagónica das mesmas circunstâncias, mormente da velocidade”, devendo, por isso, concluir-se não ter existido contribuição causal dos riscos do veículo seguro na R. para o acidente.

         Quid iuris?

    Como é comummente reconhecido, a responsabilidade civil por violação de normas de protecção (segunda modalidade de ilicitude prevista no nº 1, do art. 483º do Código Civil) depende dos seguintes requisitos: que exista violação de norma legal; que tal norma se destine a proteger interesses privados; que o facto danoso tenha ocorrido no âmbito de protecção da norma violada (cfr., por todos, Antunes Varela, Das Obrigações em geral, Vol. I, Almedina, Coimbra, 10ª ed., 2000, págs. 539-542).

No caso sub judice está em causa o preenchimento destes requisitos, quer quanto à norma do art. 13º, nº 3, do Código da Estrada (condução na via mais à direita possível) quer quanto à norma do art. 24º, nº 1, do mesmo Código (regulação da velocidade em função das circunstâncias).

       Relativamente à exigência de que a condução se faça na via mais à direita possível (que, no caso, seria em princípio a segunda via), ainda que se encontrem reunidos os dois primeiros requisitos (que tenha ocorrido a violação de norma legal; que tal norma legal se destine a proteger interesses privados), não há dúvida de que falta o terceiro requisito (que o facto danoso tenha ocorrido no âmbito de protecção da norma violada), uma vez que aquela norma se destina a facilitar ultrapassagens, o que aqui não está em causa. Assim, e como concluiu a 1ª instância, a violação não foi causal em relação ao acidente e à morte dele resultante.

         Quanto à questão do respeito pelo princípio geral da regulação da velocidade em função das circunstâncias, impõe-se uma reflexão mais atenta, tendo em conta que o nº 1 do art. 24º do Código da Estrada dispõe o seguinte:

O condutor deve regular a velocidade de modo a que, atendendo à presença de outros utilizadores, em particular os vulneráveis, às características e estado da via e do veículo, à carga transportada, às condições meteorológicas ou ambientais, à intensidade do trânsito e a quaisquer outras circunstâncias relevantes, possa, em condições de segurança, executar as manobras cuja necessidade seja de prever e, especialmente, fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente.

Tendo ficado provado que “O condutor do veículo segurado na Ré imprimia ao mesmo, antes do embate, uma velocidade entre 70 e 80 Kms/hora”, quando “A velocidade máxima permitida no local era de 90 Kms/hora” e quando “No momento do embate chovia de modo forte e intenso, estando o piso molhado” e “O condutor do veículo segurado na Ré, antes do embate em EE, tinha uma visibilidade, dada pelos faróis da viatura, para a sua frente entre dez e vinte metros”, deve concluir-se que a condução se fazia sem respeito pela exigência legal de “regular a velocidade de modo a que, atendendo (…) às condições meteorológicas”, pudesse, “em condições de segurança, executar as manobras cuja necessidade seja de prever e, especialmente, fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente.”

Verifica-se assim existir violação de norma legal destinada a proteger interesses privados, tal como concluiu a 1ª instância (conclusão com a qual se afigura que a Relação concordou, ao menos implicitamente).

Falta, porém, apreciar a verificação do enunciado terceiro requisito da ilicitude por violação de normas de protecção, isto é, falta determinar se o facto danoso ocorrido se situa no âmbito de protecção da norma violada. Responderam as instâncias negativamente, por entenderem que o veículo seguro na R. embateu na vítima enquanto peão e que, dada a regra legal da proibição de circulação de peões em auto-estradas, uma situação como a dos autos não se encontra abrangida pelo âmbito da norma que impõe a regulação da velocidade em função das circunstâncias em que a condução tem lugar.

Aqui chegados, tocamos no ponto essencial para que o presente litígio possa ser resolvido de forma rigorosa e justa. Para o efeito, é decisivo que se consiga esclarecer a seguinte dúvida que as decisões das instâncias suscitam: deve a vítima do acidente, a falecida EE, ser juridicamente qualificada como um peão que se encontrava na auto-estrada?

A pergunta deve ser respondida negativamente. Entende-se que a falecida EE não era juridicamente um peão, parado ou a caminhar na auto-estrada, mas uma utente de tal via rodoviária que, tendo imobilizado a viatura que conduzida por razão desconhecida, se encontrava no seu exterior, também por razão não apurada. Ora, o dever de regulação da velocidade dispõe que se atenda “à presença de outros utilizadores” da via e “a quaisquer outras circunstâncias relevantes”, de modo a que o condutor “possa, em condições de segurança, executar as manobras cuja necessidade seja de prever e, especialmente, fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente”. Consequentemente deve concluir-se que a ocorrência do facto danoso dos autos - colisão do veículo seguro na R. com a vítima, enquanto utente ou utilizadora da via - se encontra abrangida pelo âmbito normativo em causa.

Com efeito, tal como em qualquer outra via, ao conduzir numa auto-estrada a velocidade que o condutor imprime ao veículo automóvel deve ser regulada e moderada em função da necessidade de fazer parar o veículo caso surjam obstáculos imprevistos à circulação. O facto de, no caso dos autos, não ter sido feita prova de que a imobilização da viatura da vítima se deveu a uma avaria (conforme fora alegado pelos AA.) em nada altera tal conclusão. Porque o que está em causa no presente recurso, não é a atribuição da culpa pelo acidente exclusivamente ao condutor do veículo seguro na R., mas antes a repartição da culpa entre ambos os intervenientes no acidente. Por outras palavras, entende-se que o condutor do veículo seguro na R. estava obrigado a conduzir a uma velocidade mais reduzida para poder fazer parar o automóvel caso surgisse, como surgiu, algum obstáculo na via, ainda que com culpa de outro utente/utilizador da mesma via.

Esta conclusão em nada é alterada por ter sido feita prova de que “O condutor do veículo segurado na Ré, antes do embate em EE, tinha uma visibilidade, dada pelos faróis da viatura, para a sua frente entre dez e vinte metros” e que “O mesmo condutor do veículo segurado na Ré só se apercebeu da viatura AO a cerca de 10 metros do embate em EE…”. A falta de visibilidade é um dos factores mais importantes a ter em conta pelo condutor de um veículo para efeitos de regulação da velocidade. No caso dos autos, estava o condutor obrigado a moderar a velocidade de modo a fazer parar o automóvel se acaso surgisse na via um qualquer obstáculo que apenas fosse visível com a visibilidade de que dispunha (dez/vinte metros), ainda que, como sucedeu, a presença desse obstáculo fosse imputável a culpa de outrem.

Por outras palavras, se a presença da vítima na via é imputável a culpa desta, o embate do veículo seguro na R. com a vítima é imputável também a culpa, ainda que mais reduzida, do respectivo condutor.

Deste modo, conclui-se pela existência de concorrência de culpas entre o referido condutor e a vítima EE, na proporção de 30% para o condutor e de 70% para a vítima.

Fica assim prejudicada a apreciação do fundamento subsidiário da pretensão dos Recorrentes, consistente na responsabilização da R. por concurso entre a responsabilidade pelos riscos próprios do veículo nela seguro e a culpa da lesada EE.

7. Resolvida a questão da atribuição e repartição de responsabilidade pelo acidente dos autos e morte dele resultante, há que reapreciar a questão subsidiária da fixação dos valores indemnizatórios pelos danos não patrimoniais alegados e provados.

Para o efeito, devem ser tidos em conta os seguintes princípios gerais relativos à compensação pecuniária de danos de natureza não patrimonial, tal como enunciados no acórdão deste Supremo Tribunal de 28/01/2016 (proc. n° 7793/09.8T2SNT.L1.S1), relatado pela relatora do presente acórdão, e consultável em www.dgsi.pt:

“- A compensação dos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito (art. 496°, n° 1, do CC), não pode - por definição - ser feita através da fórmula da diferença. Deve antes ser decidida pelo tribunal segundo um juízo de equidade (art. 496°, n° 4, primeira parte, do CC), tendo em conta as circunstâncias previstas na parte final do art. 494°, do CC;

- Como tem sido considerado pelo Supremo Tribunal de Justiça (cfr., por exemplo, o acórdão de 6 de Abril de 2015, proc. n° 1166/10.7TBVCD.P1.S1, com remissão para o acórdão de 28 de Outubro de 2010, proc. n° 272/06.7TBMTR.P1.S1, e para o acórdão de 5 de Novembro de 2009, proc. n° 381/2002.S1, todos em www.dgsi.pt), "a aplicação de puros juízos de equidade não traduz, em bom rigor, a resolução de uma «questão de direito»"; se é chamado a pronunciar-se sobre "o cálculo da indemnização'' que "haja assentado decisivamente em juízos de equidade", não lhe "compete a determinação exacta do valor pecuniário a arbitrar (...), mas tão somente a verificação acerca dos limites e pressupostos dentro dos quais se situou o referido juízo equitativo, formulado pelas instâncias face à ponderação casuística da individualidade do caso concreto «sub iudicio»";

- A sindicância do juízo equitativo não afasta a necessidade de ponderar as exigências do princípio da igualdade, o que aponta para uma tendencial uniformização de parâmetros na fixação judicial das indemnizações, sem prejuízo da consideração das circunstâncias do caso concreto. Nos termos do acórdão deste Supremo Tribunal de 31 de Janeiro de 2012, proc. n° 875/05.7TBILH.C1.S1, www.dgsi.pt, "os tribunais não podem nem devem contribuir de nenhuma forma para alimentar a ideia de que neste campo as coisas são mais ou menos aleatórias, vogando ao sabor do acaso ou do arbítrio judicial. Se a justiça, como cremos, tem implícita a ideia de proporção, de medida, de adequação, de relativa previsibilidade, é no âmbito do direito privado e, mais precisamente, na área da responsabilidade civil que a afirmação desses vectores se torna mais premente e necessária, já que eles conduzem em linha recta à efectiva concretização do princípio da igualdade consagrado no art° 13° da Constituição". Exigência plasmada também no art. 8°, n° 3, do CC: "nas decisões que proferir, o julgador terá em consideração todos os casos que mereçam tratamento análogo, a fim de obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito." [negritos nossos]

         Além disso, importa assinalar que os limites da condenação aferem-se em função do pedido global e não das parcelas do mesmo, de acordo com a orientação geral da jurisprudência deste Supremo Tribunal, explanada na fundamentação do acórdão de fixação de jurisprudência nº 13/96, de 15/10/1996 (publicado no Diário da República, Iª Série-A, de 26/11/1996), em termos que se revelam essenciais para a decisão final do referido acórdão e que aqui se transcrevem, na parte relevante:

O princípio do pedido, como se pronunciou este Supremo Tribunal (vd. ac. de 3 de Junho de 1993 in B. 428/562), é um princípio axial que atravessa todo o processo civil e se manifesta em diversos preceitos do CPC (designadamente os artigos 3 n. 1, 193 n. 2 alínea a), 467 n. 1 alínea d), e 661 n. 1) e se impõe a todos os tribunais independentemente do seu grau hierárquico.

O artigo 661 n. 1 do CPC, ao dispor que "a sentença não pode condenar em quantidade superior ou em objecto diverso do que se pedir", consagra a velha máxima ne eat judex ultra vel extra petita partium.

Desta disposição apenas interessa aqui o limite estabelecido no aspecto quantitativo.

Este limite afirma-se quanto ao valor global e não quanto ao parcial correspondente a cada uma das várias parcelas em que o quantum pedido se possa decompor.” [negritos nossos]

        

Este entendimento mantém-se válido relativamente à interpretação e aplicação do art. 609º do Código de Processo Civil vigente.

Tendo presentes os enunciados critérios de ordem geral, passamos em seguida a aplicá-los ao caso dos autos.

8.1. Relevam os seguintes factos provados:

20) Em consequência do atropelamento EE sofreu lesões, mormente nos membros inferiores, resultando destas a sua morte.

21) No local do embate EE foi assistida pelo INEM que confirmou o seu falecimento.

22) EE teve morte quase imediata, ficando o seu corpo no local da colisão.

23) EE nasceu em …1960.

25) EE era saudável, pessoa alegre, gozando de estima de terceiros.

26) Tinha festejado os seus cinquenta e cinco anos com a família.

27) Os Autores receberam com choque profundo a notícia do falecimento de EE, morte que lhes causou igualmente profunda tristeza e amargura também pelo seu caráter repentino e violento.

28) Os Autores amavam sua mãe e eram amados por esta.

Compulsado o processado importa recordar que:

- Os AA. peticionaram uma indemnização/compensação por danos não patrimoniais (incluindo por danos não patrimoniais da vítima que antecederam a morte, por danos não patrimoniais dos próprios AA. e pela perda da vida da mãe dos AA.) no montante global de € 190.000,00.

- A sentença fixou a indemnização em 20% (atendendo à quota da responsabilidade atribuída à R.) dos seguintes valores indemnizatórios base:
- € 6.000,00, pelos danos não patrimoniais da vítima que antecederam a morte;
- € 17.000,00, pelos danos não patrimoniais próprios de cada um dos AA.
- € 60.000,00, pela perda da vida da vítima.

- A final, a sentença condenou a R. no pagamento das seguintes quantias indemnizatórias:
- € 1.200,00, em conjunto aos dois AA., pelos danos não patrimoniais da vítima que antecederam a morte;
- € 3.400,00, para cada um dos AA., pelos danos não patrimoniais próprios de cada um deles;
- € 12.000,00, em conjunto aos dois autores, pela perda da vida da vítima.

- Em sede de apelação os AA. reduziram o pedido para o montante global de € 165.000,00, assim repartidos: € 40.000,00, pelos danos patrimoniais da vítima que antecederam a morte; € 25.000,00, pelo sofrimento de cada um dos filhos, aqui AA.; € 75.000,00, pelo dano morte. Fizeram-no invocando: em primeira linha, que o único responsável pelo acidente é o condutor do veículo seguro na R.; subsidiariamente, se assim não se entendesse, que a responsabilidade pelo acidente deverá ser repartida entre os intervenientes na proporção de 80% para o condutor do veículo seguro na R. e de 20% para a vítima.

- A Relação julgou improcedente a apelação dos AA. e procedente a apelação da R., absolvendo-a do pedido.

- No recurso de revista, no que respeita à fixação da indemnização, os AA. concluíram apenas o seguinte: “LV - Em face da fixação pelas duas instâncias da matéria de facto teremos que o valor indemnizatório decorrente desse facto [reconhecimento da responsabilidade do condutor do veículo] é o que foi reduzido no recurso de apelação, sendo esse valor daí decorrente.”

Não tem assim razão a Recorrida quando alega que, na hipótese de o presente recurso ser julgado procedente, a indemnização não poderá exceder o montante que foi fixado pela 1ª instância por a revista não abranger a questão dos montantes indemnizatórios.

Com efeito, tendo os AA. apelado do valor indemnizatório atribuído pela sentença e tendo, em sede de revista, retomado os valores indemnizatórios indicados no recurso de apelação, no presente recurso o montante global da indemnização pretendida ascende a € 165.000,00, sendo que – conjugando-se a pretensão da revista, feita por remissão para a apelação, com a pretensão da apelação – tal valor corresponde a 100% da indemnização a que os AA. entendem ter direito, caso (como invocaram na apelação) a responsabilidade pelo acidente fosse/seja atribuída em exclusivo ao condutor do veículo seguro na R.

Assim, tendo-se concluído supra, ponto 6, pela repartição da responsabilidade pelo acidente entre ambos os intervenientes, na mesma proporção que foi reconhecida pela sentença (80% para a vítima e 20% para o condutor), o que importa agora é apreciar da correcção dos pressupostos e limites do juízo equitativo da 1ª instância ao fixar os referidos valores indemnizatórios base (€ 60.000,00, a pagar em conjunto aos dois AA., pela perda da vida da vítima; € 6.000,00, a pagar em conjunto aos dois AA., pelos danos não patrimoniais da vítima que antecederam a morte; € 17.000,00, a pagar a cada um dos AA., pelos danos não patrimoniais próprios).

8.2. De acordo com a jurisprudência reiterada deste Supremo Tribunal ao interpretar o regime do art. 496º, nº 2, do Código Civil (cfr. entre outros, os acórdãos de 15/09/2016 (proc. nº 492/10.0TBBAO.P1.S1) e de 02/03/2017 (proc. n.º 36/12.9TBVVD.G1.S1), consultáveis em www.dgsi.pt, admite-se a atribuição de uma compensação pecuniária tripartida: pela perda da vida da vítima directa; pelos sofrimentos da vítima directa que antecederam a morte; pelos sofrimentos próprios dos familiares por causa da morte da vítima directa.

Assim sendo, consideram-se correctos os pressupostos do juízo equitativo da 1ª instância ao atribuir aos AA. indemnização pelas referidas três categorias de danos não patrimoniais.

Já quanto aos montantes base concretamente fixados pela sentença, importa analisar, à luz das exigências do princípio da igualdade, se se encontram em linha com os parâmetros da jurisprudência mais recente deste Supremo Tribunal.

8.3. Relativamente aos parâmetros seguidos quanto à compensação pela perda do direito à vida, socorremo-nos da breve síntese explanada no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 03/11/2016 (proc. n° 6/15.5T8VFR.P1.S1), consultável em www.dgsi.pt:

“A jurisprudência portuguesa foi, durante muito tempo, extremamente avara quando se tratava de determinar a indemnização correspondente a este tipo de dano, mas verificou-se, nesse campo, um salto qualitativo, com o progressivo aumento do montante indemnizatório pela perda do direito à vida. Isso mesmo se constata através do teor do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17/2/2002, acessível em www.dgsi.pt, onde se mencionam vários outros arestos do mais Alto Tribunal, fixando a indemnização pelo dano morte entre € 40 000,00/8.000.000$00 e € 50 000,00/10.000.000100.

Consolidou-se, assim, na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça o entendimento de que o dano pela perda do direito à vida, direito absoluto e do qual emergem todos os outros direitos, situa-se, em regra e com algumas oscilações, entre os € 50 000,00 e € 80 000,00, indo mesmo alguns dos mais recentes arestos a € 100.000,00 (cfr, entre outros, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 31 de Janeiro de 2012, de 10 de Maio de 2012 (processo 451/06.7GTBRG.G1.S2), de 12 de Setembro de 2013 (processo 1/12.6TBTMR.C1.S1), de 24 de Setembro de 2013 (processo 294/07.0TBETZ.E2.S1), de 19 de Fevereiro de 2014 (processo 1229/10.9TAPDL.L1.S1), de 09 de Setembro de 2014 (processo 121/10.1TBPTL.G1.S1), de 11 de Fevereiro de 2015 (processo 6301/13.0TBMTS.S1), de 12 de Março de 2015 (processo 185/13.6GCALQ.L1.S1), de 12 de Março de 2015 (processo 1369/13.2JAPRT.P1S1), de 30 de Abril de 2015 (processo 1380/13.3T2AVR.C1.S1), de 18 de Junho de 2015 (processo 2567/09.9TBABF.E1.S1) e de 16 de Setembro de 2016 (processo 492/10.0TBB.P1.S1), todos acessíveis através de www.dgsi.pt.).” [negrito nosso]

Tendo em conta os dados do caso concreto, considera-se mais consentâneo com os indicados parâmetros jurisprudenciais fixar em € 80.000,00, o valor base da compensação pela perda da vida da vítima directa, sendo que os AA. têm direito, em conjunto, a 30% desse valor, atendendo à quota de responsabilidade imputada ao condutor do veículo seguro na R., o que perfaz € 24.000,00.

8.4. Quanto à indemnização base devida pelos sofrimentos da vítima directa que antecederam a morte, os valores fixados variam bastante em função das circunstâncias do caso concreto, designadamente da gravidade das lesões sofridas, da intensidade das dores sofridas e do período de tempo durante a qual as dores se prolongam (ver, por exemplo, os acórdãos de 08/09/2011 (proc. nº 2336/04.2TVLSB.L1.S1), de 27/09/2011 (proc. nº 425/04.2 TBCTB.C1.S1), de 24/10/2013 (proc. nº 225/09.3TBVZL.S1), de 29/10/2013 (proc. nº 62/10.2TBVZL.C1.S1), de 15/09/2016 (proc. nº 492/10.0TBBAO.P1.S1) e de 02/03/2017 (proc. nº 36/12.9TBVVD.G1.S1), consultáveis em www.dgsi.pt ou em sumários da jurisprudência cível, www.stj.pt).

No caso dos autos, em que ficou provado que, “Em consequência do atropelamento EE sofreu lesões, mormente nos membros inferiores, resultando destas a sua morte” e que a vítima “teve morte quase imediata”, afigura-se demasiado reduzido o valor base fixado pela sentença, considerando-se justo e adequado fixá-lo antes em € 20.000,00. E tendo os AA. direito, em conjunto, a 30% desse valor, atendendo à quota de responsabilidade imputada ao condutor do veículo seguro na R., o que perfaz € 6.000,00.

8.5. Por fim, como compensação pelos sofrimentos próprios dos familiares devidos à morte da vítima directa, a jurisprudência deste Supremo Tribunal (cfr. os acórdãos de 07/01/2010 (proc. nº 1975/04.6TBSXL.S1), de 07/07/2010 (proc. nº 1207/08.8TBFAF.G1.S1), de 12/10/2010 (proc. nº 2079/06.2TBBRR.L1.S1), de 22/02/2011 (proc. nº 25/06.2TBFLG.G1.S1), de 13/09/2011 (proc. nº 218/07.5TBAVZ.C1.S1), de 27/09/2011 (proc. nº 425/04.2TBCTB.C1.S1), de 27/10/2011 (proc. nº 3301/07.3TBBCL.G1.S1), de 01/03/2012 (proc. nº 2167/04.0TBAMT.P1.S1), de 12/06/2012 (proc. nº 1483/07.3TBBNV.L1.S1), de 30/10/2012 (proc. nº 830/08.5TBVCT.G1.S1), de 20/11/2012 (proc. nº 2/07.6TBMC.G1.S1), de 28/11/2013 (proc. nº 177/11.0TBPCR.S1), de 29/01/2014 (proc. nº 49/05.7TBPRL.E1.S1), de 03/04/2014 (proc. nº 436/07.6TBVRL.P1.S1), de 29/04/2014 (proc. nº 106/12.3TBVZL.S1), de 09/09/2014 (proc. nº 121/10.1TBPTL.G1.S1), de 21/04/2015 (proc. nº 184/2000.C3.S1), de 07/05/2015          (proc. nº 982/11.7TBSTR.E1.S1), de 09/07/2015 (proc. nº 1647/13.0TBBRG.G1.S1), de 09/07/2015 (proc. nº 2985/05.1TBVRL.P1.S1), de 15/09/2016 (proc. nº 492/10.0TBBAO.P1.S1), de 02/03/2017 (proc. nº 36/12.9TBVVD.G1.S1), de 08/03/2018 (proc. nº 209/13.7TBTMR.E1.S1) e de 05/06/2018 (proc. nº 370/12.8TBOFR.C1.S2), consultáveis em www.dgsi.pt ou em sumários da jurisprudência cível, www.stj.pt), relativamente à indemnização de um filho pela morte do pai ou mãe, tem fixado valores que têm variado, em razão da especificidade do caso, entre € 7.500,00 e € 30.000,00. Há decisões (cfr., por exemplo, os acórdãos de 10/01/2012 (proc. nº 4524/06.8TBBCL.L1.S1) e de 19/04/2012 (proc. nº 569/10.1TBVNG.P1.S1), consultáveis em www.dsgi.pt) que fixaram valores mais elevados devido a uma especial situação de fragilidade dos filhos em causa.

Tendo em conta estes elementos, assim como a necessidade de uma progressiva actualização dos valores indemnizatórios, tenhamos presente que, no caso dos autos, se provou tão-só que a mãe dos AA. tinha 55 anos à data do acidente, que “teve morte quase imediata”, que “Os Autores receberam com choque profundo a notícia do falecimento de EE, morte que lhes causou igualmente profunda tristeza e amargura também pelo seu caráter repentino e violento” e que “amavam sua mãe e eram amados por esta”.

Considera-se justo e adequado que a indemnização base pelos danos próprios de cada um dos AA. seja fixada em € 30.000,00, tendo cada um direito a 30% desse valor, atendendo à quota de responsabilidade imputada ao condutor do veículo seguro na R., o que perfaz € 9.000,00 para cada um.

8.6. A finalizar confirme-se que, respeitados os limites do pedido indemnizatório tal como definidos supra, ponto 8.1., são irrelevantes as diferenças na repartição das parcelas do quantum indemnizatório relativamente à repartição apresentada na pretensão recursória dos AA.

9. Pelo exposto, julga-se o recurso parcialmente procedente, condenando-se a R. a pagar aos AA. as quantias de:
a) € 24.000,00 (vinte e quatro mil euros), em conjunto aos dois AA., a título de compensação pela perda da vida da vítima;
b) € 6.000,00 (seis mil euros), em conjunto aos dois AA., pelos danos não patrimoniais da vítima que antecederam a morte;
c) € 9.000,00 (nove mil euros) para cada um dos AA. pelos danos não patrimoniais próprios.

Custas na acção e nos recursos pelas partes, na proporção do decaimento.

Lisboa, 21 de Março de 2019

Maria da Graça Trigo (Relatora)

Maria Rosa Tching

Rosa Maria Ribeiro Coelho