Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 3.ª SECÇÃO | ||
Relator: | LOPES DA MOTA | ||
Descritores: | ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS COABITAÇÃO CÓPULA GRAVIDEZ INTERRUPÇÃO VOLUNTÁRIA DA GRAVIDEZ CONCURSO DE INFRAÇÕES PENA ÚNICA INDEMNIZAÇÃO DE PERDAS E DANOS DANOS NÃO PATRIMONIAIS CÁLCULO DA INDEMNIZAÇÃO | ||
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Data do Acordão: | 09/27/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | NEGADO PROVIMENTO | ||
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Sumário : | I. Estando em causa uma situação de concurso de crimes (artigos 30.º, n.º 1, e 77.º do CP), pode este tribunal conhecer de todas as questões de direito relativas à pena conjunta aplicada aos crimes em concurso e às penas aplicadas a cada um deles englobadas na pena única, se impugnadas, como sucede no caso presente (acórdão de fixação de jurisprudência n.º 5/2017, DR I, de 23.6.2017). II. A cada um dos 141 crimes de abuso sexual, da previsão dos artigos 171.º, n.º 1, com a agravação do artigo 177.º, n.º 1, al. b) (coabitação), do CP, cuja moldura penal se situa entre 1 ano e 4 meses e 10 anos e 8 meses de prisão, foram aplicadas, a 140 crimes, penas muito próximas do limite mínimo (1 ano e 8 meses) e a um deles a pena correspondente ao limite mínimo (1 ano e 4 meses). Ao crime de abuso sexual da previsão do artigo 171.º, n.º 2 (cópula), e do artigo 177.º, n.º 5 (gravidez), do CP, a que corresponde uma pena de 4 anos e 6 meses a 15 anos de prisão, foi aplicada uma pena de 9 anos. III. Na ponderação dos fatores relevantes para determinação da medida da pena, foram consideradas as circunstâncias alegadas pelo recorrente, e, em particular, o grau de ilicitude, o longo período de repetição dos atos, de cerca de dois anos, e a forte intensidade e permanência do dolo. Quanto ao crime de que resultou a gravidez ponderou o tribunal as consequências, que levaram ao internamento hospitalar e à interrupção voluntária da gravidez, com o sofrimento provocado por essa situação, a militar severamente contra o arguido. IV. Apesar da referência feita à coabitação, que funciona como elemento de qualificação do tipo incriminador, não se mostra que lhe seja dada relevância nos termos do artigo 71.º do CP, respeitando-se, assim, a proibição da dupla valoração. V. Não se pode afirmar que a pena tenha sido determinada mediante inadequada ponderação dos fatores relevantes por via da culpa e da prevenção, nos termos do artigo 71.º do CP, com inobservância dos critérios de adequação e proporcionalidade que presidem à sua aplicação, pelo que não se encontra base de discordância, a justificar uma intervenção corretiva. VI. As circunstâncias dos factos, nomeadamente o prolongado aproveitamento da situação de coabitação com a vítima e com a sua mãe e das relações de confiança estabelecidas com a vítima, da qual cuidava como pai, com violação gravíssima dos deveres que neste contexto se estabelecem, revelam uma personalidade particularmente desvaliosa, sendo evidente a falta de preparação para, neste domínio, manter uma conduta lícita e a necessidade de socialização. No mesmo sentido se deve considerar a sucessão e a frequência dos atos praticados, não meramente ocasionais, a revelarem, no seu conjunto, um muito elevado grau de ilicitude e uma tendência para a prática deste tipo de crimes. VII. Tendo em conta a moldura abstrata da pena aplicável aos crimes em concurso – de 9 a 25 anos prisão –, na ponderação, em conjunto, dos factos e da personalidade do arguido, não se identifica fundamento que possa constituir motivo para intervenção corretiva na medida da pena aplicada, de 14 anos de prisão, a qual se encontra justificada sem ocorrer violação dos critérios de adequação e proporcionalidade. VIII. Quanto aos critérios para fixação do montante indemnizatório por danos não patrimoniais, há que ter em atenção o n.º 4 do artigo 496.º do CC, que estabelece que “o montante da indemnização é fixado equitativamente pelo tribunal” e manda ter em conta “as circunstâncias referidas no artigo 494.º”, isto é, “o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso o justifiquem.” IX. Na determinação do montante da indemnização importa levar em conta as implicações do princípio da igualdade na aplicação do direito (artigo 13.º da Constituição) e, nessa conformidade, o disposto no artigo 8.º, n.º 3, do CC, segundo o qual, “Nas decisões que proferir, o julgador terá em consideração todos os casos que mereçam tratamento análogo, a fim de obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito”. X. A convocação da jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça mostra que o montante da indemnização fixado nestes autos, de 60.000 euros, se compreende dentro dos valores que, na consideração das especificidades de cada caso, se têm concretizado na ponderação dos critérios estabelecidos no artigo 494.º e 496.º do CC. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam na 3.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça: I. Relatório 1. AA, arguido, com a identificação dos autos, interpõe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão do tribunal coletivo do Juízo Central Criminal de... ..., do Tribunal Judicial da Comarca Braga, que o condenou nas seguintes penas, pela prática, em concurso, de: - Um (1) crime de abuso sexual de crianças, na forma agravada (pontos 14. e 15., e 75. a 79.), p. e p. pelos artigos 171.º, n.º 1, e 177.º, n.º 1, al. b), ambos do Código Penal, de uma pena de 1 ano e 4 meses de prisão; - Um (1) crime de abuso sexual de crianças, na forma agravada (pontos 16. A 21. e 75. a 79.), p. e p. pelos artigos 171.º, n.º 1 e 177.º, n.º 1, al. b), ambos do Código Penal, de uma pena de 1 ano e 8 meses de prisão; - Cada um dos dois (2) de abuso sexual de crianças, na forma agravada (pontos 24. a 31. e 75. a 79.), p. e p. pelos artigos 171.º, n.º 1 e 177.º, n.º 1, al. b), ambos do Código Penal, de uma pena de 1 ano e 8 meses de prisão; - Cada um dos cento e vinte e seis (126) crimes de abuso sexual e crianças, na forma agravada (pontos 36. a 41. e 43 e 75. a 79.), p. e p. pelos artigos 171.º, n.º 1 e 177.º, n.º 1, al. b), ambos do Código Penal, uma pena de 1 ano e 8 meses de prisão; - Um (1) crime de abuso sexual de crianças, na forma agravada (pontos 53. a 55. e 75. a 79), p. e p. pelos artigos 171.º, n.º 2 e 177.º, n.ºs 1, al. b), e 5, ambos do Código Penal, uma pena de 9 anos de prisão; - Cada um dos onze (11) crimes de abuso sexual e crianças, na forma agravada (pontos 46. a 51., 65. a 70. e 75. a 79), p. e p. pelos artigos 171.º, n.º 1 e 177.º, n.ºs 1, al. b), e 5, ambos do Código Penal, uma pena de 1 ano e 8 meses de prisão; e - Em cúmulo jurídico, nos termos do disposto pelo artigo 77.º do Código Penal, condenar o arguido numa pena única de 14 (catorze) anos de prisão. Foi ainda condenado: - Nas penas acessórias parcelares de proibição de assumir a confiança de menor e de inibição do exercício de responsabilidades parentais pelo período de 5 (cinco) anos, ao abrigo do artigo 69.º-C, nºs 2, 3 e 4, do Código Penal, relativamente a cada um dos crimes de abuso sexual cometidos; - Em cúmulo jurídico, nos termos do disposto pelo artigo 77.º do Código Penal, em duas penas acessórias únicas de 15 (quinze) anos; - Na procedência parcial do pedido de indemnização civil, ao pagamento da quantia de € 60.000,00 (sessenta mil euros), para ressarcimento dos danos morais causados com a sua atuação, acrescida dos juros vencidos desde a decisão até integral pagamento. 2. Apresenta motivação de que extrai as seguintes conclusões: «I. O ora recorrente não pode conformar-se com o Douto Acórdão do Tribunal a quo no tocante à fixação do quantum das penas parcelares, considerando as mesmas manifestamente excessivas, assim como a medida da pena única concretamente aplicada. II. Ora, a pena única aplicada ao arguido em cúmulo jurídico mostra-se excessiva assim como as penas parcelares da qual aquela resultou, tendo em conta os parâmetros legais que deverão ser considerados aquando da aplicação concreta da sanção, nomeadamente os ínsitos nos artigos 40.º, 70.º e 71.º do CP. III. É, pois, injusta, inadequada e excessiva a pena única que lhe foi fixada de 14 anos de prisão, a qual resultou das também injustas, inadequadas e excessivas penas parcelares no que respeita aos vários crimes em apreço. IV. Tal como decorre dos factos provados, da fundamentação do acórdão e do relatório social, o arguido não tem quaisquer antecedentes criminais, é pessoa social, profissional e familiarmente inserido, não lhe são conhecidos comportamentos de natureza idêntica em data posterior aos factos constantes da acusação, reconhece o impacto do abuso sexual na vida da Menor e mesmo não tendo lhe tendo sido identificado qualquer tipo de desajuste relativamente ao seu desenvolvimento e orientação sexual, manifestou, desde logo, disponibilidade para se sujeitar a acompanhamento psiquiátrico ou psicológico. V. O ora recorrente é ainda um adulto jovem (... anos), e no seu Certificado de Registo Criminal não consta nenhuma condenação, o arguido encontra-se socialmente e profissionalmente integrado, encontrando-se a trabalhar desde há longa data, o que permite concluir pela possibilidade ainda efetiva e séria de reinserção e reintegração do ora recorrente. Conforme consta igualmente no douto acórdão recorrido e do relatório social, o ora recorrente está social e familiarmente integrado. VI. Tais circunstâncias deveriam ter sido valoradas na determinação da medida da pena a seu favor. VII. Com efeito, “A sociedade não é apenas responsável pela proteção dos seus membros perante o criminoso, tem também uma responsabilidade perante este último, de contribuir para a sua possível recuperação”, nem que para isso se torne necessário desistir de uma parte da pena correspondente à culpa para respeitar a norma legal que impõe que se tenha em conta a prevenção especial. VIII. Atendendo a que o arguido não tem antecedentes criminais, está integrado social, profissionalmente familiarmente e não será a convivência com o mundo prisional durante largos e penosos anos que resolverá os eventuais distúrbios de personalidade apresentados pelo arguido e que conduziram à eventual prática dos factos descritos no Acórdão, mas sim o acompanhamento e tratamento médico especializado, tais factos deveriam ter sido determinantes na determinação da medida da pena. IX. Assim, o Douto Tribunal ora recorrido violou os dispositivos insertos nos artigos n.º 40º, 70º, 71º e 73º do C. Penal e foi bastante além do necessário, quer para punir, quer para prevenir. X. Sendo certa a verificação dos vários requisitos legais previstos no artigo 483.º, n.º 1 do CC, é, no entanto, exagerado o montante de 60.000,00 euros em que o arguido foi condenado a pagar à Ofendida, tendo em conta não só os mesmos pressupostos bem como as circunstâncias apuradas em sede de julgamento, devendo o montante indemnizatório ser reduzido. XI. O arguido considera que o Tribunal a quo, além da sua injustificável severidade, visto ser o mesmo primário, não levou em conta as suas condições pessoais, nos termos do art. 71° nº 2 do Código Penal. XII. Ademais a decisão que ora se recorre não fez correta aplicação dos artigos 40º nº 1 e 2, 70º do Código Penal. XIII. Obstando à correta aplicação do vertido no art. 72.º n.º 2 do Código Penal. XIV. Assim, apesar de ter o Tribunal a quo ter reconhecido que o mesmo não possui antecedentes criminais, não valorou devidamente: o relatório social, elemento fundamental para se aferir em como o arguido é merecedor de uma oportunidade; o apoio familiar; o enquadramento habitacional do arguido; o facto de ter hábitos de trabalho e por isso tem boas perspetivas de se inserir profissionalmente; XV. O Tribunal a quo não valorou o facto do aqui arguido ter apoio familiar. XVI. Mais releva que o Tribunal a quo também não valorou que, na data da prática dos factos e até à data da sua detenção para efeitos de cumprimento da prisão preventiva, o ora Recorrente encontrava-se a laborar. Nesse seguimento, assim que for colocado em liberdade vai voltar laborar, com efeitos imediatos. XVII. O Tribunal também não valorou o arrependimento sincero demonstrado, nem tampouco o facto de ter confessado a prática dos crimes. XVIII. A respeito do arrependimento demonstrado pelo arguido, em sede de audiência de julgamento admitiu que realmente não tinha conhecimento que a sua conduta era tão grave e que da mesma resultariam efeitos tão danosos na esfera da vítima. XIX. Mas, a nosso ver, e com o devido respeito por opinião diversa, tal não significa que não se encontre atualmente consciente da gravidade dos ilícitos que cometeu, e com isso se encontre paralelamente consciente dos danos que causou à vítima com o seu comportamento criminoso. XX. Destarte, quando deu entrada no Estabelecimento Prisional tomou, de imediato, consciência que o seu comportamento para com a menor em causa foi extremamente grave e sério. XXI. Posteriormente, o tempo de detenção fez com que refletisse na postura errada que teve, nos crimes que cometeu e como os mesmos afetou, de modo significativo, o psicológico da vítima. XXII. Mais releva que: o Recorrente é primário; já se encontra privado da sua liberdade desde 04-12-2021; cooperou ab initio com as autoridades policiais não resistindo à detenção, fornecendo a recolha do seu ADN desde logo, todas as palavras pass dos equipamentos informáticos que lhe foram apreendidos; em julgamento confessou, cooperando com a justiça e contribuindo para a descoberta e a verdade material; demonstrou um arrependimento sincero, apresentou-se choroso e bastante envergonhado do seu comportamento criminoso e verbalizou que se tivesse oportunidade para tal, apresentaria um franco pedido de desculpas à vítima e aos familiares das mesmas; possui enquadramento social, familiar, laboral e habitacional; por outro lado, o arguido nunca esteve detido e nunca havia conhecido o meio ambiente de um estabelecimento prisional; a condenação que ora se recorre é deveras violenta e humilhante no contexto sócio - familiar em que se insere; XXIII. O Recorrente desde que foi detido necessita de apoio psicológico, não dorme, nem se alimenta devidamente, encontrando-se sob constante sentimento de medo, face à moldura humana violenta em que se vê forçado a conviver, vivendo (ou sobrevivendo) em sofrimento e angústia constante, assim como, a sua família. XXIV. Todo este sofrimento descrito, aumentou desde a leitura do douto Acórdão. XXV. Não obstante, apresenta um percurso prisional exemplar, isento de reparos; XXVI. A condenação com uma pena privativa da liberdade de 14 anos irá limitar de conviver com a sua mãe, que possui idade avançada e que se encontra gravemente doente. XXVII. Ponderando todas as referidas circunstâncias, e tal qual se mostra a prova, afigura-se-nos que a punição ajustada à satisfação das finalidades consignadas no artigo 40.º do Código Penal, impõe a aplicação de penas parcelares mais próximas do mínimo legal previsto por lei, e bem assim numa pena única, nunca superior a 9 anos de prisão. XXVIII. Assim e em suma, foram violadas, entre outras, as disposições legais supra referidas e ínsitas nos artigos 40.º, 70.º, 71.º todos do C.P. e 483.º, n.º 1 do C.C., as quais, se tivessem sido corretamente aplicadas, na nossa perspetiva e com todo o respeito que nos merece a opinião contrária, levariam à redução quer das várias penas parcelares aplicadas e consequentemente à redução da pena única dali resultante aplicada ao arguido, XXIX. como à redução do montante indemnizatório que o arguido foi condenado a pagar à Ofendida. TERMOS EM QUE, nestes e nos demais de Direito que V. Exas., Senhores Conselheiros, doutamente suprirão, deve o presente recurso obter provimento, por provado, e em consequência o mui douto acórdão revogado, e substituído por outro que condene o arguido em penas parcelares muito próximas do limite mínimo previsto pela moldura penal de cada uma destas, bem como proceder à redução do montante indemnizatório que o arguido foi condenado a pagar à ofendida (…)» 3. A Senhora Procuradora da República no tribunal recorrido apresentou resposta em que, defendendo a improcedência do recurso em matéria penal, conclui: «(..) 3º- Antes do mais diga-se que, se deve ter por assente, a matéria de facto dada como provada no Acórdão recorrido, bem como o enquadramento jurídico efectuado e, atenta a factualidade apurada, ponderadas as circunstâncias que presidem à determinação da medida da pena - art.º 71.º do CP -, afigura-se razoáveis e equilibradas as penas parcelares fixadas no acórdão recorrido, pelo que merecem a nossa concordância. 4º- Acompanhamos a fundamentação do acórdão recorrido na determinação das medidas concretas da pena (parcelares e única) e as considerações efectuadas a este propósito, por serem jurídica e judiciosamente acertadas, uma vez que foram determinadas em função da culpa do agente e das exigências de prevenção geral e especial, atendendo o Tribunal “a quo” a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo, depuserem a favor ou contra o arguido, tendo em conta a sua personalidade e a imagem global dos factos, nos termos do previsto nos arts.º 40.º, 70.º, 71.º, 73.º do CP. 5º- Na determinação da medida concreta da pena, o Tribunal “a quo” teve em consideração que as molduras penais para os crimes imputados: para o crime de abuso sexual de crianças agravado p. e p. pelo artigo 171.º/1 e 177.º/1 al. b) do CP é punido com pena de prisão de um mínimo de um ano e quatro meses a um máximo de dez anos e oito meses; para o crime de abuso sexual de crianças agravado, prevista no art.º 171.º/1 e 2 e 177.º/5 do CP, é punido com um limite mínimo de quatro anos e seis meses a um limite máximo de quinze anos. 6º- Para a determinação da medida concreta das penas parcelares o Tribunal “a quo” considerou que as exigências de prevenção geral, nos crimes de natureza sexual cometidos contra crianças em contexto familiar chocam a sociedade em geral e, em particular, a família, suscitando grande alarme social, impondo que seja reassegurada a confiança da comunidade na validade das normas violadas e manter alerta a sua sensibilidade para o respeito do direito das crianças, em matéria de liberdade e autodeterminação sexual, sendo que, no caso concreto as exigências de prevenção geral e especial foram situadas num patamar médio-alto. 7º- O Tribunal “a quo” considerou que o recorrente actuou com dolo directo, intenso, persistente e reiterado, teve em conta o tempo de execução dos ilícitos (cerca de 2 anos) e que o mesmo teve oportunidade alterar o seu comportamento, o que não fez, sendo persistente na vontade dolosa e o grau de culpa foi considerado médio-alto. 8º- Tendo em conta o modo de execução dos factos, duração e frequência [prática de cópula vestibular (e sua reiteração durante cerca de 2 anos) e cópula completa (um episódio), com menor que na data dos factos tinha entre 11 e 13 anos de idade, sem recurso a coação e/ou ameaça, no interior da casa de morada de família], o Tribunal “a quo” considerou que o grau de ilicitude também era médio-alto, 9º- O Tribunal “a quo” ponderou as consequências da actuação do recorrente, designadamente, a prática de cópula completa, sem recurso ao uso de preservativo, expondo a vítima a doenças sexualmente transmissíveis e à ocorrência de gravidez. O facto de a vítima ter engravidado e, em consequência, ter sido submetida a uma interrupção voluntária da gravidez, constituiu para a mesma uma experiência dolorosa (física e emocionalmente) que gerou sentimentos de culpa e a baixa estima da criança, relevantes consequências psíquicas causadas na ofendida, conforme resulta dos pontos 85 a 87 dos factos provados. 10º- Na determinação das penas parcelares o Tribunal “a quo” teve em consideração, como circunstancias favoráveis ao recorrente, a mitigar exigências de prevenção especial, os seguintes aspectos: - a ausência de antecedentes criminais; a confissão parcial dos factos provados; o arrependimento e pesar manifestado; em termos de personalidade do arguido foi ponderado que este apresenta sinais de altruísmo e bons sentimentos; manifesta baixa consciência e escrúpulos na aplicação de princípios morais; revela fraca força de vontade e prevalência dos seus instintos libidinosos, o que levou o julgador “a quo” a considerar mitigada a culpa. a inserção familiar, social e laboral do recorrente; o seu bom comportamento em meio prisional e a sua capacidade de reconhecer a gravidade dos factos e dos danos. 11º- Assim, aderimos às considerações enunciadas pelo acórdão recorrido e acima sumariadas, pelo que se reputam que as penas parcelares aplicadas ao recorrente como sendo justas e adequadas, que se encontram mais próximas do limite mínimo (1 ano e 4 meses) do que o limite médio. 12º- Face à moldura do concurso de crimes, tendo em conta o previsto nos art.º 71.º e 77.º do CPP - entre o limite mínimo de 9 anos de prisão e o limite máximo de 25 anos de prisão –, sopesando-se a dimensão da ilicitude do conjunto dos factos, todas as circunstâncias relativas ao arguido, designadamente a sua a personalidade (que se extraem do elenco dos factos assentes e tendo em conta o que já se referiu supra quanto à medida concreta das penas), bem como a influência da pena conjunta sobre este, conclui-se ser justa, adequada e proporcional a fixação da pena única em 14 (catorze) anos de prisão, pelo que, o acórdão recorrido não é passível de censura. 13º- Em segundo lugar, o recorrente defende que o Tribunal “a quo” fez uma incorrecta aplicação dos artigos 40.º/1 e 2, 70.º do Código Penal, que obstou à correta aplicação do vertido no art.º 72.º/2 do Código Penal, que se refere à atenuação especial da pena; ou seja, o recorrente defende que na determinação da medida concreta das penas parcelares e consequentemente da pena única, as mesmas deveriam ter ido especialmente atenuada, por força da sua confissão (parcial) e do seu arrependimento (alínea c) do art.º 72.º/2) e da sua boa conduta (alínea d) do art.º 72.º/2), quer antes da privação de liberdade, quer em meio prisional, quer mal obtenha a liberdade, por perspectivar emprego imediato. 14º- A atenuação especial da pena, prevista no art.72.º do CP, visa casos em que a gravidade da infração é particularmente pouco acentuada, seja por via da culpa e da ilicitude, seja por via da necessidade da pena, porém, ponderados tais aspectos, tendo em conta a factualidade provada, é manifesto que é de rejeitar a aplicação ao recorrente da atenuação extraordinária. 15º- No caso concreto, em síntese apurou-se que, os factos imputados ao recorrente ocorreram entre 13/09/2019 e 14/05/2020, dezembro de 2020 e 08/07/2021, 15/09/2021 e Novembro de 2021, tendo a sua actuação sido efectuada ao abrigo da existência de uma relação especial entre a vítima e o arguido - uma relação pai-filha, que tinha na data dos factos entre 11 e 13 anos de idade, tendo os mesmos ocorrido na casa de morada de família, sendo que, na sua maioria, os actos praticados corresponderam a cópula vestibular e só uma vez ocorreu cópula completa da qual resultou uma gravidez e subsequente interrupção voluntária da mesma. 16º- Acresce que, a confissão parcial dos factos não é suficiente (nem a total seria diga-se), de molde a concluir pela acentuada diminuição da ilicitude do facto, da culpa do agente e da necessidade de aplicação da pena ao arguido, sendo que a imagem global dos factos praticados pelo recorrente (atenta a sua reiteração e prolongamento no tempo, assim como a intensa energia criminosa revelada e espelhada nos factos provados) não apresenta uma gravidade substancialmente reduzida. 17º- Por outro lado, a ausência de antecedentes criminais, mesmo que entendida no sentido de bom comportamento anterior, «tem escassa relevância quando esse bom comportamento não é superior ao comum e normal nas pessoas da classe do agente da infracção em idênticas condições de vida e de cultura» – Acórdão do STJ, de 04/07/1984, Boletim do Ministério da Justiça n.º 339-223. 18º- Ademais, a colaboração do arguido na investigação e o seu bom comportamento em meio prisional também não justificam a atenuação especial da penal, pelo que a situação concreta não apresenta, pois, características de excepcionalidade idóneas a desencadear a aplicação da atenuação especial da pena, nem para proceder à redução das penas parcelares e da pena única aplicada a 9 anos de prisão, como pugna o recorrente. (vide conclusão XXVII) 19º- Por fim, o Recorrente alega que, após a leitura do acórdão, o seu sofrimento [registado até essa data] aumentou e que a sua progenitora está doente, sendo que a pena aplicada não lhe permite conviver com a mesma, invocando estes argumentos para justificar/fundamentar a redução da pena, sendo que tal matéria constitui questão nova, por apenas ter sido alegada em sede de recurso. 20º- Como é próprio da natureza dos recursos, estes não se destinam a apreciar questões novas, que não tenham sido submetidas pelo recorrente ao tribunal de que se recorre, mas apenas a reapreciar uma questão decidida ou que deveria ter sido decidida pelo Tribunal “a quo”. 21º- Ora, a articulação de factualidade nova pelo recorrente, não conhecida em julgamento, pelo que, não pode o recorrente vir, em sede de recurso, suscitar questões novas, como se o Tribunal “ad quem” fosse realizar um novo julgamento, termos em que se entende que o recurso intentado deve improceder, nesta parte. Nestes termos, julgamos que o presente recurso não merece provimento devendo ser considerado improcedente e mantida na íntegra o Acórdão de Cúmulo Jurídico recorrido.» 4. Respondeu, igualmente, a demandante e ofendida BB, representada por sua mãe CC, pugnando pela improcedência do recurso, na sua totalidade, com as seguintes conclusões: «1ª- O douto Acórdão recorrido não merece a mais leve censura, porque prolatado de forma acertada, ponderada e muito bem fundamentada, usando de justo critério na fixação da compensação devida à vítima; 2ª- De tal sorte que nem o recorrente o questiona, limitando-se a afirmar tabelarmente que o montante da indemnização deve sofrer uma redução, sem adiantar qualquer argumento válido que possa levar a tal conclusão; 3ª- Parece, aliás, não haver qualquer discordância quanto à verificação dos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual ínsitos no artigo 483º do C.C. (“vários requisitos”, no dizer do recorrente); 4ª- Concordância que se estende também quanto às consequências resultantes da actuação criminosa do recorrente; 5ª- O critério usado pelo Tribunal ‘a quo’ para valorar e fixar por equidade o montante da indemnização pelos danos morais sofridos pela recorrida mostra-se justo, revela, aliás, bom senso, equilíbrio, objectividade e sentido das proporções; 6ª- Em relação ao quantitativo arbitrado o Tribunal ‘a quo’ atendeu acertadamente, além do mais, ao número e natureza dos actos sexuais que o recorrente/demandado manteve com a demandante/recorrida (uma criança de 11 anos de idade), ao facto desta manter com aquele, até então, uma relação filha-pai, de viverem debaixo do mesmo tecto, da criança ainda se encontrar em formação física e psíquica e da consciência do demandado/recorrente de que os actos punham em causa o desenvolvimento integrado e harmonioso da sua personalidade; 7ª- Não restaram dúvidas de que só ao demandado/recorrente coube a responsabilidade pelos ilícitos de cariz sexual a que sujeitou a demandante/recorrida; 8ª- Ademais, está também fora de quaisquer dúvidas que as referidas e repetidas práticas sexuais, a que o demandado/recorrente constrangeu a ofendida, foram indiscutivelmente portadoras para esta de inevitáveis e inapagáveis sentimentos de dor, mágoa e perda de inocência, a que se somarão as consequências psicológicas resultantes do aborto a que foi submetida; 9ª- O Tribunal não podia ter deixado de considerar – e não deixou de considerar – a enormidade do número de actos sexuais que o demandado manteve com a demandante, bem como a natureza dos mesmos (que a levou, inclusive, à gravidez); 10ª- Em face do exposto, e do que melhor consta do douto Acórdão recorrido, bem andou o Tribunal ‘a quo’ ao fixar em € 60 000,00 (sessenta mil euros) o montante da indemnização, uma vez que, sopesados todos os aspectos acima mencionados, atendeu aos critérios de equidade a que o caso em apreço está sujeito, por se tratar, como se trata, de danos morais.» 5. Recebidos, foram os autos com vista ao Ministério Público, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 416.º, n.º 1, do CPP, tendo o Senhor Procurador-Geral Adjunto emitido parecer no sentido da improcedência do recurso em matéria penal, nos seguintes termos: «(…) 2. - O arguido recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça, batendo-se apenas, conforme decorre das conclusões que delimitam o objeto do recurso, pela redução da medida das penas parcelares e da medida da pena única, que reputa de excessivas, e pelo abaixamento do valor indemnizatório atribuído à vítima. 2.1. - No que toca ao quantum das penas repete que o tribunal não valorou «a seu favor» as seguintes circunstâncias (conclusões VI, XI, XIV, XV, XVI, XVII): a. A ausência de antecedentes criminais (conclusões IV, V, VIII, XI e XXII); b. A sua inserção social, profissional e familiar (conclusões IV, V, VIII, XI, XIV, XV e XVI); c. O seu arrependimento sincero bem como a confissão e colaboração com a justiça (conclusões XVII, XVIII, XXI e XXII); d. O percurso prisional exemplar e isento de reparos (conclusão XXV). 3. - O MP na primeira instância respondeu ao recurso de forma meritória e defendeu que o recurso deve ser julgado improcedente e o acórdão confirmado na íntegra. (…) 5. - Por razões de economia expositiva, damos por integralmente reproduzida a factualidade assente no acórdão recorrido. Acompanhamos as contra motivações oferecidas na primeira instância pela Sr.ª procuradora da República em peça que, demonstrando e evidenciando a sem razão e falta de fundamento das pretensões do recorrente, tornam excrescentes quaisquer considerações adicionais. Permitimo-nos, apenas, vincar três ideias. Em primeiro lugar, uma vez que o arguido conformou-se com a factualidade provada e não se deteta nenhum dos vícios previstos no art. 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, este Tribunal apenas pode atender aos factos dados como assentes. Ora estes, no que toca à colaboração com a justiça e à confissão, apenas desvela que o recorrente «confessou, em parte, os factos que lhe são imputados» (facto provado 84.). Em segundo lugar, como é de jurisprudência, «nos crimes de natureza sexual, escasso ou nulo relevo assume a inserção social do agente já que é muito frequente a prática desse ilícitos por parte de pessoas bem inseridas e apresentando-se, sob a generalidade dos pontos de vista, como cidadãos normais e cumpridores das regras legais e sociais» (acórdão do Supre-mo Tribunal de Justiça de 10 de setembro de 2008, processo 2032/08, relatado pelo conselheiro Eduardo Maia Figueira da Costa, www.colectaneadejurisprudencia.com). Em terceiro lugar, alguém que, em três épocas distintas (entre 13 de setembro de 2019 e 14 maio de 2020, entre dezembro de 2020 e 8 julho de 2021 e entre 15 de setembro de 2021 e novembro de 2021), assedia sexualmente uma criança nascida em ... de ... de 2008 (facto provado 1.), filha da sua companheira (factos provados 1. e 3.), que se encontrava sob a sua assistência e proteção (facto provado 34.), que o tratava e respeitava como a um pai por ter sido por si criada (factos provados 5. a 7.), inicialmente acariciando-lhe as pernas e a zona vulvar (factos provados 14. e 15.), posteriormente friccionando-lhe o pénis ereto entre as nádegas e as pernas e em contacto direto com a vagina até ao momento imediatamente anterior à ejaculação (factos provados 16. a 21., 24. a 31., 36. a 41., 46. a 51. e 65. a 70.), numa ocasião colocando-lhe a boca na vagina (facto provado 31.), noutra acariciando-lhe as mamas (facto provado 43.), noutra, ainda, introduzindo-lhe o pénis ereto na vagina até ejacular e, dessa forma, engravidando-a (factos provados 53. a 55. e 58.), alguém que, no plano das consequências dos seus atos, causou, inevitavelmente, severos traumas psicológicos à sua vítima (factos provados 85. a 87.), alguém que agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente (facto provado 79.), não merece, de todo, uma redução da medida das penas, parcelares e/ou única, fixadas parcimoniosamente pelo tribunal coletivo do Juízo Central Criminal de .... Relativamente ao valor da indemnização abstemo-nos de tomar posição por falta de legitimidade e de interesse em agir em virtude de a vítima se encontrar devidamente representada e patrocinada. Acompanhando, em tudo o mais, as considerações vertidas no acórdão recorrido e na competente resposta da Sr.ª procuradora da República na primeira instância, emite-se parecer no sentido da improcedência do recurso.» Diz o Senhor Procurador-Geral Adjunto que “a referência no dispositivo do acórdão à aplicação da qualificativa do n.º 5 do art. 177.º do Código Penal aos onze crimes de abuso sexual de crianças a que se reportam os pontos de facto 46. a 51. e 65. a 70. deve-se a manifesto lapso que deverá ser corrigido nos termos do art. 380.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Penal”. 6. Notificado do parecer do Ministério Público, nos termos e para os efeitos do artigo 417.º, n.º 2, do CPP, o arguido nada disse. 7. Colhidos os vistos e não tendo sido requerida audiência, o recurso prosseguiu para julgamento em conferência – artigos 411.º, n.º 5, e 419.º, n.º 3, alínea c), do CPP. Apreciando e decidindo: II. Fundamentação 8. Factos provados O tribunal coletivo julgou provados os seguintes factos (transcrição): «1. BB nasceu a ... de ... de 2008, em ..., filha de DD e de CC. 2. EE nasceu a ... de ... de 2006, em ..., filho de DD e de CC. 3. O arguido AA e CC viveram em comunhão de cama, mesa e habitação, como se de marido e mulher se tratassem, desde o ano de 2008 até 14 de Maio de 2020, altura em que se separaram. 4. Até à data da sua separação, o casal residiu, com os menores BB e EE, nas localidades de ... e ... e, a partir do ano de 2018, em habitação sita na Rua ..., n.º 275, em São..., .... 5. Foi o arguido, juntamente com CC, e por via da união com esta, que sempre providenciou pelo sustento e cuidou da alimentação, saúde e educação de BB, como se do seu progenitor se tratasse. 6. Quando CC se encontrava ausente da habitação do casal, o arguido era o único adulto que se ocupava de BB, com o compromisso e encargo de velar pela sua saúde, segurança e bem-estar. 7. O arguido era, pela menorBB, respeitado e tratado como um pai. 8. Em Maio de 2020, CC e os filhos saíram de casa com o apoio do ..... (Centro de A.... ........ . .............. ........), na sequência de uma comunicação à CPCJ de ... de um episódio de violência doméstica. 9. O casal reconciliou-se, pelo menos, em Dezembro de 2020, voltando a viver como se de marido e mulher se tratassem, com os menores BB e EE, até Dezembro de 2021. Dos factos compreendidos entre 13 de Setembro de 2019 e 14 de Maio de 2020. 10. Em Setembro de 2019, BB frequentava o 5.º ano de escolaridade. 11. À data, o agregado familiar, composto pela menor, o irmão, EE, e o casal, CC e AA, habitava uma fracção sita na Rua ..., n.º 275, em ..., .... 12. A habitação era composta por dois quartos, uma sala, cozinha e casa de banho. 13. Os menores BB e EE dormiam nos quartos e o casal dormia na sala que estava dotada de mobiliário de quarto, entre este, de uma cama de casal. 14. Em dia não concretamente apurado, mas posterior ao dia 13 de Setembro de 2019, ao final do dia, enquanto CC se encontrava na cozinha a preparar o jantar, o arguido e a menor BB estavam deitados na cama do casal a ver um filme, permanecendo o menor EE sentado no chão, aos pés da cama. 15. A dada altura, sem nada dizer, o arguido começou a acariciar as pernas da BB com uma mão, que depois subiu e pousou, por tempo não concretamente apurado, sobre a zona vulvar e por cima da roupa que a mesma trazia vestida. 16. Cerca de um mês depois, em dia não concretamente apurado, da parte da tarde, encontrando-se o arguido e a menor BB sozinhos em casa, o arguido ordenou à menor que fosse ter consigo ao seu quarto/sala, ao que aquela acedeu. 17. Nessa sequência, estando ambos no interior do quarto/sala, o arguido ordenou à menor BB que despisse as calças e cuecas que trazia vestidas, ao que aquela obedeceu, ficando desnudada da cintura para baixo e, em seguida, o arguido tirou as próprias calças e cuecas que trazia vestidas, ficando desnudado da cintura para baixo. 18. Após, o arguido disse à BB para se deitar na cama, ao que ela anuiu e, acto contínuo, deitou-se ao seu lado, ordenando-lhe que se colocasse de lado e de costas para ele, ao que a menor também anuiu. 19. Após, o arguido encostou-se-lhe, metendo o seu pénis, erecto, entre as nádegas e pernas dela, em contacto directo com o orifício da vagina da menor. 20. Daí, abraçou-a, colocando ambos os braços ao seu redor, pousou as mãos sobre o seu ventre, puxando-a contra si, e efectuou movimentos para a frente e para trás que só cessou quando pressentiu que a sua ejaculação estava iminente. 21. Nessa altura, afastou a menor BB e projectou o sémen para as suas mãos. 22. Em seguida, limpou o pénis com toalhitas que guardava na mesinha de cabeceira e foi tomar banho. 23. Após os factos, supra, descritos, o arguido, conhecedor do horário escolar da menor BB e sabendo que a mesma tinha algumas manhãs e tardes sem aulas e, nesses períodos, estaria sozinho em casa com a mesma, firmou o propósito de, em tais ocasiões, a procurar para satisfazer os seus desejos sexuais, não obstante saber que a menor era filha da sua companheira e se encontrava à sua guarda e cuidados e sob a sua assistência e protecção. 24. Assim, no decurso do ano lectivo de 2019/2020, e até Maio de 2020, pelo menos, em duas ocasiões, sabendo que se encontrava sozinho em casa com a menor BB, o arguido ordenou à mesma que fosse ter consigo ao seu quarto, ao que aquela acedeu. 25. Estando ambos no interior do quarto, o arguido ordenou à menor BB que despisse as calças e cuecas que trazia vestidas, ao que aquela obedeceu, ficando desnudada da cintura para baixo; em seguida, o arguido tirou as calças e cuecas que trazia vestidas, ficando, também ele, desnudado da cintura para baixo. 26. Após, o arguido disse à BB para se deitar na cama, ao que ela anuiu e, acto contínuo, deitou-se ao seu lado, ordenando-lhe que se colocasse de lado e de costas para ele, ao que a menor também anuiu. 27. Após, o arguido encostou-se-lhe, metendo o seu pénis, erecto, entre as nádegas e pernas dela, em contacto directo com o orifício da vagina da menor. 28. Daí, abraçou-a, colocando ambos os braços ao seu redor, pousou as mãos sobre o seu ventre puxando-a contra si, e efectuou movimentos para a frente e para trás que só cessou quando pressentiu que a sua ejaculação estava iminente. 29. Nessa altura, afastou a menor BB e projectou o sémen para as suas mãos. 30. Em seguida, limpou o pénis com toalhitas que guardava na mesinha de cabeceira e foi tomar banho. 31. Numa das supra descritas situações, o arguido colocou a boca no orifício da vagina da menor BB. 32. Em 14 de Maio de 2020, o arguido e CC terminaram o seu relacionamento, tendo aquela, na companhia dos menores BB e EE, abandonado a residência comum. 33. Nessa sequência, CC e os menores BB e EE estiveram alojados em várias estruturas de alojamento e residenciais, com o apoio do CAFAP, e também viveram em casa da mãe da primeira e avó dos menores. Do período compreendido entre Dezembro de 2020 e o dia 8 de Julho de 2021. 34. Pelo menos, em Dezembro de 2020, o arguido e CC retomaram o seu relacionamento amoroso, fixando residência, juntamente com os menores BB e EE, em habitação sita na Estrada ..., n.º 44, em ..., ..., .... 35. Com o reinício da vida em comum, o arguido continuou a procurar a menor BB para satisfazer os seus desejos sexuais, mesma sabendo que esta era filha da sua companheira e se encontrava à sua guarda e cuidados e sob a sua assistência e protecção. 36. No período compreendido entre, pelo menos, Dezembro de 2020 e o dia 8 de Julho de 2021 (data em que terminou o ano lectivo de 2020/2021), todas as segundas-feiras, quartas-feiras, quintas-feiras e sextas-feiras, sabendo que se encontrava sozinho em casa com a menor BB, o arguido ordenou à mesma que fosse ter consigo ao seu quarto, ao que aquela acedeu. 37. Estando ambos no interior do quarto, o arguido ordenou à menor BB que despisse as calças e cuecas que trazia vestidas, ao que aquela obedecia, ficando desnudada da cintura para baixo; em seguida, o arguido tirou as calças e cuecas que trazia vestidas, ficando, também ele, desnudado da cintura para baixo. 38. Após, o arguido disse à BB para se deitar na cama, ao que ela anuiu e, acto contínuo, deitou-se ao seu lado, ordenando-lhe que se colocasse de lado e de costas e/ou de frente para ele, ao que a menor também anuiu. 39. Após, o arguido encostou-se-lhe, metendo o seu pénis, erecto, entre as nádegas e pernas dela, em contacto directo com o orifício da vagina da menor. 40. Daí, abraçou-a, colocando ambos os braços ao seu redor, pousou as mãos sobre o seu ventre e/ou sobre as suas nádegas, puxando-a contra si, e efectou movimentos para a frente e para trás que só cessava quando pressentiu que a sua ejaculação estava iminente. 41. Nessa altura, afastou a menor BB e projectou o sémen para as suas mãos. 42. Em seguida, limpou o pénis com toalhitas que guardava na mesinha de cabeceira e foi tomar banho. 43. Numa das supra descritas situações, o arguido colocou as mãos nas mamas da menor BB. 44. No dia 8 de Julho de 2021, com o final do ano lectivo, a menor BB foi para casa do padrinho, só regressando à habitação que partilhava com o arguido, com a mãe e com o menor EE, no dia 15 de Setembro de 2021 (dois dias antes do início das aulas), para o reinício do ano escolar. Do período compreendido entre os dias 15 de Setembro de 2021 e Novembro de 2021. 45. Com o regresso da menor BB à residência comum, o arguido continuou a procurá-la com o intuito concretizado de satisfazer os seus impulsos libidinosos, pese embora soubesse que a mesma era filha da sua companheira e que continuava à sua guarda e cuidados e sob a sua assistência e protecção. 46. No período compreendido entre o dia 15 de Setembro de 2021 e o dia 28 de Novembro de 2021, pelo menos uma vez por semana, sabendo que se encontrava sozinho em casa com a menor BB, o arguido ordenou à menor que fosse ter consigo ao seu quarto, ao que esta acedeu. 47. Estando ambos no interior do quarto, o arguido ordenou à menor BBque despisse as calças e cuecas que trazia vestidas, ao que aquela obedeceu, ficando desnudada da cintura para baixo; em seguida, o arguido tirou as calças e cuecas que trazia vestidas, ficando, também ele, desnudado da cintura para baixo. 48. Após, o arguido disse à BB para se deitar na cama, ao que ela anuiu e, acto contínuo, deitou-se ao seu lado, ordenando-lhe que se colocasse de lado e de costas e/ou de frente para ele, ao que a menor também anuiu. 49. Após, o arguido encostou-se-lhe, metendo o seu pénis, erecto, entre as nádegas e pernas dela, em contacto directo com o orifício da vagina da menor. 50. Daí, abraçou-a, colocando ambos os braços ao seu redor, pousou as mãos sobre o seu ventre e/ou sobre as suas nádegas, puxando-a contra si, e efectuou movimentos para a frente e para trás que só cessou quando pressentiu que a sua ejaculação estava iminente. 51. Nessa altura, afastou a menor BB e projectou o sémen para as suas mãos. 52. Em seguida, limpou o pénis com toalhitas que guardou na mesinha de cabeceira e foi tomar banho. 53. Em dia não concretamente apurado do mês de Outubro de 2021, encontrando-se o arguido e a menor BB sozinhos em casa, aquele ordenou à menor que fosse ter consigo ao seu quarto, ao que aquela acedeu. 54. Nessa sequência, estando ambos no interior do quarto, o arguido ordenou à menor BB que despisse as calças e cuecas que trazia vestidas, ao que aquela obedeceu, ficando desnudada da cintura para baixo; em seguida, o arguido tirou as calças e cuecas que trazia vestidas, ficando, também ele, desnudado da cintura para baixo. 55. Em seguida, o arguido disse à menor BB para se deitar na cama, de costas para ele, o que aquela fez; depois, o arguido posicionou-se também de lado e introduziu o pénis erecto na vagina da menor, efectuando movimentos para a frente e para trás e ejaculando no interior da vagina. 56. Depois, o arguido afastou-se e limpou o pénis com as toalhitas que guardava na mesinha de cabeceira. 57. Em seguida, a menor BB levantou-se, foi para a casa de banho onde tomou banho e foi para a escola. 58. Em consequência do facto descrito em 55. a menor Letícia veio a engravidar. 59. No dia 23 de Novembro de 2021, porque a menor BB sentisse náuseas e tivesse vomitado, CC pediu ao arguido que a transportasse até ao Centro de Saúde de .... 60. Assim, depois de almoço, o arguido e a menor deslocaram-se a pé até ao Centro de Saúde de..., tendo a menor, pelas 15h00, sido atendida em consulta do médico de família na presença do arguido. 61. Depois de observada, foi-lhe prescrita medicação anti-emética, tendo o arguido, no trajecto para casa, parado numa farmácia para adquirir tal medicação. 62. No dia 29 de Novembro, porque continuasse nauseada e a vomitar, a menor faltou à escola. 63. No dia 2 de Dezembro de 2021, porque a menor BB continuasse maldisposta, CC dirigiu-se com a mesma ao Serviço de Urgência do ..., onde lhe viria a ser diagnosticada uma gravidez com sete semanas e três dias. 64. Nessa sequência, a menor BB permaneceu internada no C... até ao dia 14 de Dezembro de 2021, tendo realizado interrupção médica voluntária da gravidez, ocorrendo a expulsão do conteúdo uterino em 12 de Dezembro de 2021. 65. Dias antes de 2 de Dezembro de 2021, pese embora a menor andasse mal-disposta e a vomitar, o arguido ordenou-lhe que fosse ter consigo ao quarto, ao que esta anuiu. 66. Estando ambos no interior do quarto, o arguido ordenou à menor BB que despisse as calças e cuecas que trazia vestidas, ao que aquela obedeceu, ficando desnudada da cintura para baixo; em seguida, o arguido tirou as calças e cuecas que trazia vestidas, ficando, também ele, desnudado da cintura para baixo. 67. Após, o arguido disse à BB para se deitar na cama, ao que ela anuiu e, acto contínuo, deitou-se ao seu lado, ordenando-lhe que se colocasse de lado e de costas para ele, ao que a menor também anuiu. 68. Após, o arguido encostou-se-lhe, metendo o seu pénis, erecto, entre as nádegas e pernas dela, em contacto directo com o orifício da vagina da menor. 69. Daí, abraçou-a, colocando ambos os braços ao seu redor, pousou as mãos sobre o seu ventre, puxando-a contra si, e efectuou movimentos para a frente e para trás que só cessaram quando pressentiu que a sua ejaculação estava iminente. 70. Nessa altura, afastou a menor BB e projectou o sémen para as suas mãos. 71.Em seguida, limpou o pénis com toalhitas que guardava na mesinha de cabeceira e foi tomar banho. 72. Nas actuações supra descritas nos pontos 17. a 21., 25. a 29., 37. a 41., 47. a 51., 54. e 55. e 66. a 70., o arguido nunca utilizou preservativo ou qualquer outro método contraceptivo. 73. A menor BB nunca teve relações sexuais de qualquer natureza com outra pessoa para além do arguido, o que era do conhecimento deste. 74. O arguido era o progenitor do feto. 75. Ao actuar da forma supra descrita, o arguido quis e logrou satisfazer os seus desejos sexuais, constrangendo, para o efeito, a menor BB à prática dos sobreditos actos sexuais, pese embora soubesse a sua idade, soubesse que tinha com ela uma relação como de pai-filha, soubesse que ofendia a sua autodeterminação sexual e o seu sentimento de pudor e vergonha, soubesse que a menina ainda se encontrava em formação física e psíquica e soubesse que os atos que praticou punham em causa o desenvolvimento integral e harmonioso da sua personalidade. 76. Mais sabia a menor BB era filha da sua companheira e que dela cuidara, desde os poucos meses de idade até então, como um pai, e, por isso, sabia que, nessa qualidade, lhe incumbia um especial dever de dela cuidar, proteger e promover o seu saudável e integral desenvolvimento e crescimento. 77. Ao contrário, agiu com aproveitamento do facto de fazer parte e coabitar com o agregado familiar, encoberto pelo tecto da casa de morada de família, e com aproveitamento do facto de ter ascendente, como pai, sobre a menor. 78. Também decidiu não usar preservativo nas relações sexuais que manteve com a menor, não ignorando que, por via disso, BB podia engravidar, como, efectivamente, sucedeu. 79. Agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal. 80. O arguido revela traços de instabilidade emocional, manifestando preocupação, nervosismos, insegurança, com sentimentos de incompetência e tendência para a descompensação emocional, ideias irrealistas, desejos e necessidades excessivas e respostas de coping desadequadas. 81. Revelou caraterísticas de altruísmo, bons sentimentos, benevolência, prestabilidade e disposição para acreditar nos outros e inclinação para perdoar, mas, no domínio da conscienciosidade, revelou baixo escrúpulo na aplicação de princípios morais, preguiça, despreocupação e com fraca força de vontade. 82. Não se lhe detectam sinais de psicopatia, nem atitudes e crenças associadas à legitimação do abuso sexual, mas expressa uma crença e atitude relacionada com o valor da agressão sexual (“há pessoas que merecem ser violadas”). 83. O arguido não tem antecedentes criminais. 84. Confessou, em parte, os factos que lhe são imputados. Também se provou que: 85. Em consequência dos factos supra descritos, a menorBB sentiu tristeza, vergonha e dor. 86. Evidencia uma autoestima negativa e uma percepção de fraca capacidade intelectual e social, isolando-se e considerando-se menos capaz para aprender que os outros da sua idade, com menos competências ao nível do relacionamento; sinais típicos nas situações supra descritas e indicadores da presença de perturbação depressiva. 87. Em consequência, a menor sofre por ansiedade de desempenho e preocupação, que a frustram. Provou-se ainda que: 88. AA nasceu e cresceu no agregado familiar de origem, composto pelos pais e sete irmãos, num contexto socioeconómico e cultural modesto e uma dinâmica relacional disfuncional, condicionada pelos episódios de violência do pai sobre o cônjuge e os filhos. 89. A economia familiar dependia da retribuição do progenitor, operário têxtil. 90. A mãe dedicava-se às lides domésticas e ao apoio à família. 91. O arguido frequentou o ensino, através da telescola, até ao 2º ciclo. 92. Iniciou-se, profissionalmente, como servente de pedreiro, permanecendo neste setor cerca dois anos. 93. Trabalhou, ainda, na área da panificação/pastelaria e na área têxtil, na qual laborou durante cerca de dez anos, até Janeiro de 2019. 94. Em 2008, o arguido conheceu CC, que, então, estava grávida, e iniciaram uma relação de namoro. 95. Meses após o nascimento de BB, o arguido passou a integrar o agregado da companheira, iniciando, com esta, uma relação de comunhão de cama, mesa e habitação. 96. O casal viveu, inicialmente, em casa dos pais de CC e, decorrido cerca de um mês, arrendou casa em .... 97. Em 2018, mudaram de residência para ..., .... 98. À data dos factos, AA vivia em união de facto com CC, integrando o agregado os dois enteados mais novos, EE e BB. 99. CC tem um filho mais velho que estava a cargo dos avós maternos. 100. O arguido trabalhava como operário têxtil, por turnos, suportando uma grande carga horária. 101. Nessa altura, passou a revelar desgaste emocional e irritabilidade, adoptando comportamentos de maior agressividade, em especial, para com a companheira e para com o filho, EE. 102. No início de 2018/2019, recorreu ao médico de família, no Centro de Saúde de ..., e foi encaminhado para as consultas de psicologia e de psiquiatria, no Hospital ..., com tratamento medicamentoso. 103. Esteve de baixa médica de cerca de um ano, altura em que passou à situação de desempregado, auferindo um subsídio de desemprego no valor de € 574,00 (quinhentos e setenta e quatro euros). 104. Em Maio de 2020, o arguido revelou novos comportamentos de instabilidade e conflituosidade, que levaram à intervenção da CPCJ de .... 105. Nessa sequência, CC e os filhos abandonaram a residência, ficando hospedados em várias pensões e, mais tarde, em casa da família materna. 106. Em, pelo menos, Dezembro de 2020, CC e o arguido retomaram o relacionamento afetivo, fixando residência em ..., .... 107. AA mantinha alguma convivência com a família de origem, particularmente, com a mãe, com quem estabelece consistente vinculação afetiva, e com os irmãos, assim como com os familiares de origem da companheira. 108. No meio comunitário, apesar de pouco conhecido, por ali ter residido por um curto período de tempo, é referenciado como pessoa de conduta pacata e cordata. 109. No meio prisional demonstra uma postura de cooperação, apresentou um discurso simples e directo. 110. Revela juízo crítico para os factos, e revelou percepcionar o impacto e os danos potencialmente causados nas vitimas. 111. Desvaloriza qualquer intervenção da área da adequação dos comportamentos sexuais ao normativo jurídico-penal.» Âmbito e objeto do recurso 9. O recurso tem por objeto um acórdão proferido pelo tribunal coletivo que aplicou uma pena de prisão superior a 5 anos. Visa exclusivamente o reexame de matéria de direito, da competência deste tribunal (artigo 434.º do CPP), não vindo invocados vícios ou nulidades que podem constituir fundamento do recurso [artigo 432.º, n.º 1, al. c), na redação da Lei n.º 94/2021, de 21 de dezembro]. O âmbito do recurso, que circunscreve os poderes de cognição deste tribunal, delimita-se pelas conclusões da motivação (artigos 402.º, 403.º e 412.º do CPP), sem prejuízo dos poderes de conhecimento oficioso, se for caso disso, em vista da boa decisão do recurso, de vícios da decisão recorrida a que se refere o artigo 410.º, n.º 2, do CPP (acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95, DR-I, de 28.12.1995), de nulidades não sanadas (n.º 3 do mesmo preceito) e de nulidades da sentença (artigo 379.º, n.º 2, do CPP, na redação da Lei n.º 20/2013, de 21 de fevereiro), que não se verificam. Estando em causa uma situação de concurso de crimes (artigos 30.º, n.º 1, e 77.º do Código Penal), pode este tribunal conhecer de todas as questões de direito relativas à pena conjunta aplicada aos crimes em concurso e às penas aplicadas a cada um deles englobadas naquela pena única, se impugnadas, como sucede no caso presente (acórdão de fixação de jurisprudência n.º 5/2017, DR I, de 23.6.2017). 10. Tendo em conta as conclusões da motivação do recurso, as questões colocadas à apreciação e decisão deste tribunal dizem respeito: (1) À medida das penas aplicadas aos crimes em concurso e da pena única, que o recorrente considera excessivas; e (2) Ao quantitativo da indemnização a pagar à ofendida, que o recorrente também considera excessivo. Quanto à medida das penas singulares 11. A determinação da medida das penas singulares vem fundamentada nos seguintes termos: “(…) O crime de abuso sexual de crianças p. e p. pelo artigo 171.º, n.º 1, do Código Penal é punido com pena de prisão de um a oito anos. No caso do n.º 2, a moldura penal eleva-se, situando-se num mínimo de três anos e um máximo de dez anos de prisão. Considerando a agravação, de um terço, nos limites mínimo e máximo da moldura, prevista no n.º 1, al. b), do artigo 177.º do Código Penal, a moldura penal prevista no n.º 1 do artigo 171.º, eleva-se para um mínimo de um ano e quatro meses a um máximo de dez anos e oito meses. A agravação de metade, nos limites mínimo e máximo da moldura, prevista no n.º 5, do artigo 177.º do Código Penal, eleva a moldura do n.º 2 do artigo 171.º para um mínimo de quatro anos e seis meses a um máximo de quinze anos. Se no mesmo comportamento concorrerem mais do que uma das circunstâncias de agravação só é considerada para efeito de determinação da pena aplicável a que tiver efeito agravante mais forte, sendo a outra ou outras valoradas na medida da pena. É o que dita o n.º 8 do artigo 177.º do Código Penal. É o artigo 40.º do Código Penal que estabelece, como finalidades das penas, a protecção de bens jurídicos e a reinserção do agente na sociedade. A determinação da medida da pena é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção (artigo 71º, n.º 1 do Código Penal) Como se disse, nos termos do artigo 40.º, n.º 1, “a aplicação de penas visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”. A determinação da medida concreta da pena a aplicar deverá ser levada a cabo de acordo com os critérios fixados no artigo 71.º, n.º 1 e n.º 2 do Código Penal. Assim, numa primeira aproximação, a pena deve ser concretizada em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, atendendo ainda, numa segunda fase, a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, rodearam o mesmo, antes ou depois do seu cometimento. A medida concreta da pena há-de, por isso, encontrar-se no espaço de liberdade fornecido por uma moldura que tem como limite máximo a culpa do agente e como limite mínimo as exigências de prevenção geral positiva. Na verdade, importa precisar que: - a culpa do agente assinala o limite máximo da moldura penal, dado que não pode haver pena sem culpa, nem a pena pode ser superior à culpa, de acordo com princípios fundamentais da Constituição da República Portuguesa – artigo 1.º, 13.º, 25.º e 40.º, todos do Código Penal – e no respeito pela dignidade inalienável do agente; - as exigências de prevenção geral (traduzidas na necessidade de tutela dos bens jurídicos face ao caso concreto, no respeito pelas legítimas expectativas da comunidade) têm uma medida ótima de proteção, que não pode ser excedida, e um limite mínimo, abaixo do qual não se pode descer, sob pena de se pôr em causa a crença da comunidade na validade da norma violada e os sentimentos de confiança e segurança dos cidadãos nos institutos jurídico-penais; trata-se, aqui, de determinar qual a pena necessária para assegurar o respeito pelos valores violados, pelo que, a pena a aplicar não pode ultrapassar os limites de prevenção geral, uma vez que, como dispõe o artigo 18.º, n.º2 da C.R.P., só razões de prevenção geral podem justificar a aplicação de reações criminais; e - dentro desses dois limites atuam, na graduação da pena concreta, os critérios de prevenção especial de ressocialização, pois só se protege eficazmente os bens jurídico-penais se a pena concreta servir a reintegração do agente ou não evitar a quebra da sua inserção social. Em suma, a realização da finalidade de prevenção geral que deve orientar a determinação da medida concreta da pena abaixo do limite máximo fornecido pelo grau de culpa, relaciona-se com a prevenção especial de socialização por forma que seja esta finalidade a fixar, em último termo, a medida final da pena. Para graduar concretamente a pena há que respeitar ainda, como supra foi dito, o critério fornecido pelo n.º 2 do artigo 71.º do Código Penal, ou seja, atender a todas as circunstâncias que não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor do agente ou contra ele. Este critério é fornecido, exemplificativamente, nas suas alíneas e podem e devem ajudar o tribunal a concretizar, no sentido de vir a quantificar, quer a censurabilidade ao facto a título de culpa, quer as exigências de prevenção geral e de prevenção especial. A exigência das referidas circunstâncias, favoráveis ou desfavoráveis ao agente (atenuantes ou agravantes), não integrarem o tipo legal de crime, ressalta de já terem sido levadas em conta pelo legislador na determinação da moldura legal, o que, no caso contrário, violaria o princípio ne bis in idem. Os crimes de natureza sexual, com ênfase para aqueles que são cometidos contra crianças, em contexto familiar, a coberto da intimidade proporcionada pela casa de morada de família, chocam a sociedade em geral e, em particular, a sua célula fundamental, a família, na medida em que degradam, em especial, o respeito e a pureza de afectos que estão associados a qualquer relação familiar, constituída de direito ou de facto, ofendendo as normas e princípios que constituem o Direito das Crianças e a moral pública. Suscitam, por isso, forte alarme social e estão associados a elevadas exigências de prevenção geral e especial, impondo-se, nessa medida, reassegurar a confiança da comunidade na validade das normas violadas e manter alerta a sua sensibilidade para o respeito do direito das crianças, em matéria de liberdade e autodeterminação sexual (tudo conforme se infere das molduras legais aplicáveis). Mas, vejamos, em concreto. Muito desfavoravelmente ao arguido, elevando, na mesma medida, quer as exigências de prevenção geral, quer especial, quer ainda a culpa, regista-se a actuação com dolo direto, que é o grau mais grave de censura jurídico-penal. Trata-se; aliás, de um dolo intenso, persistente e reiterado, ao longo de cerca de dois anos de actividade, apenas interrompida no período de separação do casal formado com CC e, seguramente, com a revelação da gravidez da jovem BB. O que também significa que o arguido teve mais do que tempo e possibilidade de reflectir na sua actuação, sobretudo, no período em que estiveram distanciados, e que isso não o fez recuar, retomando aquela actividade assim que reintegrou o agregado familiar da menina. Mostrou-se; pois, e como se disse, persistente na vontade dolosa e resistente ao dever ser. Todavia, o modo de execução revela, antes, um grau mediano de ilicitude; ainda desfavorável ao arguido, pautando as exigências de prevenção geral e especial no mesmo patamar mediano. Na verdade, tratou-se, essencialmente, da chamada cópula vestibular (ou simulação de coito), menos intrusiva e violenta para o corpo da criança. Em apenas duas ocasiões se sabe que o arguido tocou com as mãos nos seios e com a boca no orifício da vagina da menina. Em apenas uma ocasião, apurada, se chegou à relação de cópula completa, com a penetração da vagina pelo pénis. E, segundo se apura, toda a actividade decorre em ambiente, aparentemente, desprovido de ameaça de ordem física ou verbal e/ou constrangimento no antes e depois dos actos; ou seja, sem coação, sem ameaça e/ou injúria e/ou humilhação por gestos ou palavras, e sem aparente dinâmica de manipulação ou segredo. Sem dúvida, no entanto, que sucede a coberto do tecto da casa de morada de família; lugar onde a criança devia poder sentir-se totalmente segura e protegida, e não devassada e exposta. Há, ainda, a salientar a longa sucessão dos actos e, sobretudo, a sua frequência (quatro vezes entre Setembro de 2019 e Maio de 2020, quase todos os dias entre Dezembro de 2020 e Julho de 2021 e uma vez por semana entre Setembro e Novembro de 2021), apenas interrompida por circunstâncias exteriores, como já se afirmou, que, nem assim, servir para a conter. E ainda ressuma que o arguido, indiferente à saúde da criança, optou por não usar preservativo, expondo-a a doenças sexualmente transmissíveis e à ocorrência de gravidez. As consequências disso foram gravosas; em primeira linha, com a gravidez de BB; em segunda linha, com a sua interrupção, voluntária, muito precoce, em ambiente hospitalar e controlado, é certo; mas, de todo o modo, redundando numa experiência sempre dolorosa, física e emocionalmente, que gera sentimentos de culpa e a baixa estima da criança, conforme apurado. Dir-se-ia, à luz do exposto, que, globalmente considerado, o grau de ilicitude é médio-alto, a suscitar idênticas exigências de prevenção geral e especial. Sabe-se, noutra perspectiva, que o arguido não tem antecedentes criminais; o que traduz uma tendencial maior sensibilidade ao desvalor contido pelas incriminações violadas, diminuindo as exigências de prevenção geral e especial. O mesmo se dirá da confissão, embora parcial, e do arrependimento e pesar que revelou em audiência. Sabe-se, nesta parte, que é indivíduo que aponta sinais de altruísmo e bons sentimentos que, eventualmente, terão sido accionados com o despertar para o sofrimento da criança. Mau grado, a baixa conscienciosidade e escrúpulo na aplicação de princípios morais e a fraca força de vontade, seguramente, fizeram-no soçobrar perante os seus instintos e impulsos sexuais. O que, de algum modo, reaccionando num patamar mais instintivo/primitivo, vê mitigada a culpa. E, nessa medida, afigura-se que o grau de culpa é também médio-alto. A inserção familiar, social e laboral; mesmo em meio de reclusão, e a capacidade de reconhecer a gravidade dos factos e dos danos, diminuem, por fim, as exigências de prevenção especial. Por tudo isto, julga-se adequada a aplicação ao arguido AA: - pela prática de um (1) crime de abuso sexual de crianças, na forma agravada (pontos 14. e 15., e 75. a 79.), p. e p. pelos artigos 171.º, n.º 1, e 177.º, n.º 1, al. b), ambos do Código Penal, de uma pena de 1 ano e 4 meses de prisão; - pela prática de um (1) crime de abuso sexual de crianças, na forma agravada (pontos 16. a 21. e 75. a 79.), p. e p. pelos artigos 171.º, n.º 1 e 177.º, n.º 1, al. b), ambos do Código Penal, de uma pena de 1 ano e 8 meses de prisão; - pela prática de cada um dos dois (2) de abuso sexual de crianças, na forma agravada (pontos 24. a 31. e 75. a 79.), p. e p. pelos artigos 171.º, n.º 1 e 177.º, n.º 1, al. b), ambos do Código Penal, de uma pena de 1 ano e 8 meses de prisão; - pela prática de cada um dos cento e vinte e seis (126) crimes de abuso sexual e crianças, na forma agravada (pontos 36. a 41. e 43 e 75. a 79.), p. e p. pelos artigos 171.º, n.º 1 e 177.º, n.º 1, al. b), ambos do Código Penal, uma pena de 1 ano e 8 meses de prisão; - pela prática de um (1) crime de abuso sexual de crianças, na forma agravada (pontos 53. a 55. e 75. a 79), p. e p. pelos artigos 171.º, n.º 2 e 177.º, n.ºs 1, al. b), e 5, ambos do Código Penal, uma pena de 9 anos de prisão; - pela prática de cada um dos 11 (onze) crimes de abuso sexual e crianças, na forma agravada (pontos 46. a 51., 65. a 70. e 75. a 79), p. e p. pelos artigos 171.º, n.º 1 e 177.º, n.ºs 1, al. b), e 5, ambos do Código Penal, uma pena de 1 ano e 8 meses de prisão.» 12. Nos termos do artigo 40.º do Código Penal, “a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade” e “em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa”. Estabelece o n.º 1 do artigo 71.º do Código Penal que a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, devendo o tribunal atender a todas as circunstâncias relacionadas com o facto praticado (facto ilícito típico) e com a personalidade do agente (manifestada no facto), relevantes para avaliar da medida da pena da culpa e da medida da pena preventiva, que, não fazendo parte do tipo de crime (proibição da dupla valoração), deponham a favor do agente ou contra ele, considerando, nomeadamente, as indicadas no n.º 2 do mesmo preceito. Como se tem afirmado, este regime encontra os seus fundamentos no artigo 18.º, n.º 2, da Constituição, segundo o qual as restrições de direitos devem «limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos». A privação do direito à liberdade, por aplicação de uma pena (artigo 27.º, n.º 2, da Constituição), submete-se, desde a sua previsão legal, ao princípio da proporcionalidade ou da proibição do excesso, que se desdobra nos subprincípios da necessidade ou indispensabilidade, adequação e proporcionalidade em sentido estrito, de acordo com o qual a pena deve ser encontrada na “justa medida”, impedindo-se, deste modo, que possa ser desproporcionada ou excessiva. A projeção destes princípios na determinação da pena justifica-se pela necessidade de proteção do bem jurídico tutelado pela norma incriminadora violada, em conformidade com um critério de proporcionalidade entre a gravidade do facto praticado e gravidade da pena, em função da culpa do agente e das exigências de prevenção. A aplicação da pena exige que o agente do crime tenha agido com culpa, isto é, que deva ser censurado pela violação do dever de atuar de acordo com o direito e “pelas qualidades desvaliosas da personalidade que se exprimem no facto”, o que se requer como pressuposto e cujo grau se impõe como limite da pena (artigo 40.º, n.º 2). 13. Para a medida da gravidade da culpa há que considerar os fatores reveladores da censurabilidade manifestada no facto (n.º 2 do artigo 71.º), nomeadamente os fatores capazes de fornecer a medida da gravidade do tipo de ilícito objetivo e subjetivo – alínea a), 1.ª parte (grau de ilicitude do facto, modo de execução e gravidade das suas consequências), e alínea b) (intensidade do dolo ou da negligência) – e os fatores a que se referem a alínea c) (sentimentos manifestados no cometimento do crime e fins ou motivos que o determinaram) e a alínea a), parte final (grau de violação dos deveres impostos ao agente), bem como os fatores atinentes ao agente, que têm que ver com a sua personalidade – indicados na alínea d) (condições pessoais e situação económica do agente), na alínea e) (conduta anterior e posterior ao facto) e na alínea f) (falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto). Para a determinação das necessidades de prevenção, há que atender às circunstâncias relevantes em vista da satisfação de exigências de prevenção geral – traduzida na proteção do bem jurídico ofendido mediante a aplicação de uma pena proporcional à gravidade dos factos, dentro dos limites da culpa, reafirmando a manutenção da confiança comunitária na norma violada – e, sobretudo, de prevenção especial, as quais permitem fundamentar um juízo de prognose sobre o cometimento, pelo agente, de novos crimes no futuro, e assim avaliar das suas necessidades de socialização. Incluem-se aqui as consequências não culposas do facto [alínea a), v.g. frequência de crimes de certo tipo, insegurança geral ou pavor causados por uma série de crimes particularmente graves], o comportamento anterior e posterior ao crime [alínea e), com destaque para os antecedentes criminais] e a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto [alínea f)]. O comportamento do agente [circunstâncias das alíneas e) e f)] adquire particular relevo para determinação da medida concreta da pena em função das necessidades individuais e concretas de socialização, devendo evitar-se a dessocialização. Como se tem sublinhado, é na presença e na consideração destes fatores que deve avaliar-se a concreta gravidade da lesão do bem jurídico protegido pela norma incriminadora, materializada na ação levada a efeito pelo arguido pela forma descrita nos factos provados, de modo a verificar-se se a pena aplicada respeita os mencionados critérios de adequação e proporcionalidade que devem pautar a sua aplicação (assim, por todos, o acórdão de 29.06.2023, Proc. 15/11.3PEALM.L5.S1, e jurisprudência e doutrina nela citadas, em www.dgsi.pt). O que obriga a que a determinação da medida da pena se deva alhear da motivação pressuposta pelo legislador na identificação dos bens jurídicos protegidos, na construção dos tipos legais de crime e no estabelecimento das molduras das penas legalmente fixadas, assim se assegurando o respeito pelo princípio da proibição da dupla valoração. 14. A pena é determinada «dentro dos limites definidos na lei» (artigo 71.º, n.º 1, do Código Penal), que estabelece a moldura abstrata da pena correspondente ao tipo de crime praticado. É assim que a verificação da incriminação (ou da qualificação jurídica dos factos) traduz o primeiro momento das operações de individualização da pena. Vista a decisão recorrida, não se coloca qualquer questão de conhecimento oficioso que, a este respeito, deva ser resolvida. Há apenas que, como alerta o Senhor Procurador-Geral Adjunto, proceder à retificação do dispositivo do acórdão recorrido na parte em que condena o arguido «pela prática de cada um dos 11 (onze) crimes de abuso sexual de crianças, na forma agravada (pontos 46. a 51., 65. a 70. e 75. a 79), p. e p. pelos artigos 171.º, n.º 1 e 177.º, n.ºs 1, al. b), e 5, ambos do Código Penal, uma pena de 1 ano e 8 meses de prisão», eliminando-se a referência ao n.º 5 do artigo 177.º, de modo a que fique a constar «pela prática de cada um dos 11 (onze) crimes de abuso sexual e crianças, na forma agravada (pontos 46. a 51., 65. a 70. e 75. a 79), p. e p. pelos artigos 171.º, n.º 1 e 177.º, n.ºs 1, al. b), ambos do Código Penal, uma pena de 1 ano e 8 meses de prisão». Como se extrai do texto do acórdão recorrido trata-se de um evidente lapso de escrita, que o tribunal de recurso deve corrigir, quando possível, nos termos do artigo 380.º, n.º 2, do CPP. Com efeito, resulta dos factos provados e da fundamentação que o tribunal recorrido concluiu que o arguido, quanto aos factos respetivos (pontos 46 a 51, 65 a 70 e 75 a 79), deveria ser condenado nestes termos, como foi, com uma pena fixada dentro da moldura da pena correspondente ao crime da previsão do artigo 171.º, n.º 2, com a agravação da al. b) do n.º 1 do artigo 177.º (relação de coabitação e de dependência), pois que a circunstância de agravação prevista no n.º 5 do artigo 177.º («do comportamento descrito resultar gravidez»), que eleva o mínimo da pena para 4 anos e 6 meses de prisão, diz apenas respeito ao facto indicado nos pontos 53 a 55 e 75 a 79.º por cuja prática vem aplicada a pena de 9 anos de prisão (lê-se no dispositivo que o arguido é condenado “pela prática de um (1) crime de abuso sexual de crianças, na forma agravada (pontos 53. a 55. e 75. a 79), p. e p. pelos artigos 171.º, n.º 2 e 177.º, n.ºs 1, al. b), e 5, ambos do Código Penal, uma pena de 9 anos de prisão»). 15. Diz o recorrente, em síntese, que as penas singulares (parcelares) são excessivas, tal como a pena única, porque o tribunal não valorou devidamente, a seu favor, a ausência de antecedentes criminais e o comportamento posterior aos crimes, a sua inserção social, profissional e familiar, o seu arrependimento sincero bem como a confissão e colaboração com a justiça, o “percurso prisional exemplar e isento de reparos”. Conclui que o tribunal recorrido não fez “correta aplicação dos artigos 40.º nº 1 e 2, 70.º do Código Penal”, “obstando à correta aplicação do vertido no art. 72.º n.º 2 do Código Penal” (conclusões XII e XIII). 16. Começando pela referência feita ao n.º 2 do artigo 72.º do CP – que respeita à atenuação especial da pena por circunstâncias que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena –, cuja não aplicação, na alegação do recorrente, resultou da não correta aplicação do artigo 40.º– que, no contexto, parece invocada com relação à medida da pena pretensamente ultrapassar a medida da culpa – e do artigo 70.º – que estabelece o critério de preferência por pena não privativa da liberdade em caso de aplicabilidade em alternativa a pena privativa da liberdade – é manifesta a improcedência do argumento. Isto porque nenhum dos crimes é punível com pena não privativa da liberdade, mas ainda porque, como se verá, não se demonstra que as penas aplicadas excedam o limite imposto pela medida da culpa. 17. A cada um dos 141 crimes de abuso sexual, da previsão dos artigos 171.º, n.º 1, com a agravação do artigo 177.º, n.º 1, al. b) (coabitação), do Código Penal, cuja moldura penal se situa entre 1 ano e 4 meses e 10 anos e 8 meses de prisão, foram aplicadas, a 140 crimes, penas muito próximas do limite mínimo (penas de 1 ano e 8 meses) e a um deles a pena correspondente ao limite mínimo (1 ano e 4 meses). Ao crime de abuso sexual da previsão do artigo 171.º, n.º 2 (cópula), e do artigo 177.º, n.º 5 (gravidez), do Código Penal, a que corresponde uma pena de 4 anos e 6 meses a 15 anos de prisão, foi aplicada uma pena de 9 anos de prisão, aproximadamente, mas inferior, a meio da moldura abstrata. Na ponderação dos fatores relevantes para determinação da medida da pena foram consideradas as circunstâncias alegadas pelo recorrente, nomeadamente a ausência de antecedentes criminais, a confissão, o arrependimento e a inserção familiar, social e laboral, mesmo em meio prisional, e, em particular, o grau de ilicitude, o longo período de tempo de repetição dos atos, de cerca de dois anos, e a forte intensidade e permanência do dolo. Quanto ao crime de que resultou a gravidez ponderou o tribunal as consequências, que levaram ao internamento hospitalar e à interrupção voluntária da gravidez, com o sofrimento provocado por essa situação, a militar severamente contra o arguido. Apesar da referência feita à coabitação, que funciona como elemento de qualificação do tipo incriminador, não se mostra que lhe seja dada relevância para a determinação da pena, nos termos do artigo 71.º do Código Penal, respeitando-se, assim, a proibição da dupla valoração. Pelo que, tudo ponderado, não se pode afirmar que a pena tenha sido determinada mediante inadequada ponderação dos fatores relevantes por via da culpa e da prevenção, nos termos do artigo 71.º do Código Penal, com inobservância dos critérios de adequação e proporcionalidade que presidem à sua aplicação, pelo que não se encontra qualquer base de discordância relativamente às penas aplicadas, a justificar uma intervenção corretiva. Em consequência, improcede o recurso nesta parte. Quanto à medida da pena única 18. A determinação da medida da pena única aplicada aos crimes em concurso mostra-se fundamentada nos seguintes termos: «Em face do disposto no artigo 77.º do Código Penal e uma vez que estamos perante um concurso efectivo de crimes há que aplicar ao arguido uma pena única, em cuja medida são reflectidos os factos e a personalidade do agente (n.º 1). Nos termos do artigo 77.º, nº 2, do Código Penal, a moldura abstracta do concurso, no caso da pena de prisão, tem como limite máximo a soma das penas aplicadas, sem exceder 25 anos, e como limite mínimo a mais elevada das penas aplicadas aos vários crimes. No caso concreto, a moldura abstracta do concurso será de 9 anos de prisão a 242 anos de prisão; a qual, de acordo com o disposto pelo n.º 2 do artigo 77.º do CP, se limita a 25 anos. Atentando nos factos, o que se salienta é uma actividade, dolosa, de ilicitude mediana/alta, no modo de execução, e homogénea, mas longa (cerca de dois anos) e muito frequente, que atinge, reiteradamente, o mesmo bem jurídico, sem despertar da consciência jurídica, suscitando elevadas exigências de prevenção geral. Salienta-se, igualmente, o médio/alto grau da culpa; porque reflectido na baixa conscenciosidade na aplicação dos princípios morais, mas sem sinais de psicopatia, desvelando uma personalidade mal-formada, com fraca força de vontade, que o fez sucumbir perante o instinto sexual, mau grado tenha outros bons sentimentos que, eventualmente, terão sido accionados com o despertar para o sofrimento da criança, sujeita, tão precocemente, a uma gravidez e à experiência traumática do seu termo voluntário. A confissão parcial, integração social e profissional e arrependimento revelados atenuam as exigências de prevenção e culpa. Tudo ponderado, sublinhando-se que o STJ tem adoptado a jurisprudência, na formação da pena única, de fazer acrescer à pena mais grave o produto de uma operação que consiste em comprimir a soma das restantes penas com factores variáveis, mas que se situam, normalmente, entre um terço e um sexto, lendo-se no Acórdão do STJ de 29.04.20107 que “só em casos verdadeiramente excepcionais se deve ultrapassar um terço da soma das restantes penas”, entende-se ser adequada a aplicação de uma pena única de 14 anos de prisão (que não consente qualquer pena de substituição).» 19. Nos termos do artigo 77.º, n.º 1, do Código Penal, que estabelece as regras da punição do concurso de crimes (artigo 30.º, n.º 1), quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena, na qual são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente. A pena única corresponde a uma pena resultante das penas aplicadas aos crimes em concurso segundo um princípio de cúmulo jurídico, seguindo-se o procedimento normal de determinação e escolha das penas, a partir das quais se obtém a moldura penal do concurso (pena aplicável), que tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas, não podendo ultrapassar 25 anos, tratando-se de pena de prisão, e, como limite mínimo, a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes (artigo 77.º, n.º 2, do Código Penal). Assim definida a moldura do concurso, deve o tribunal determinar a pena conjunta, seguindo os critérios da culpa e da prevenção (artigo 71.º do Código Penal) e o critério especial fixado na segunda parte do n.º 1 do artigo 77.º do Código Penal, segundo o qual na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente, isto é, a personalidade do agente manifestada no facto, em que se incluem, designadamente, as condições económicas e sociais deste, reveladoras das necessidades de socialização, a sensibilidade à pena, a suscetibilidade de por ela ser influenciado e as qualidades da personalidade manifestadas no facto, nomeadamente a falta de preparação para manter uma conduta lícita. O substrato da medida da pena, devendo incluí-los, não pode, pois, bastar-se com os factos que constituem os elementos do tipo de ilícito ou do tipo de culpa, sendo necessário atender às circunstâncias que, deles não fazendo parte, possam depor a favor do agente ou contra ele, nos termos do n.º 2 do artigo 71.º do Código Penal (como se afirmou no acórdão de 06.07.2022, Proc. n.º 571/19.8T8AVR.P1.S1, em www.dgsi.pt, e na jurisprudência nele citada). 20. Recordando jurisprudência constante deste Supremo Tribunal e o que se tem consignado em acórdãos anteriores, com a fixação da pena conjunta pretende-se sancionar o agente, não só pelos factos individualmente considerados, mas também, e especialmente, pelo seu conjunto, enquanto revelador da dimensão e gravidade global do comportamento do agente. É o conjunto dos factos descritos na sentença que evidencia a gravidade do ilícito perpetrado, sendo decisiva, para a sua avaliação, a conexão e o tipo de conexão que se verifique entre os factos que constituem os tipos de crime em concurso. Há que atender ao conjunto de todos os factos cometidos pelo arguido e ao fio condutor presente na repetição criminosa, procurando estabelecer uma relação desses factos com a personalidade do agente, ter em conta a caracterização desta pela sua projeção nos crimes praticados, levando-se em consideração a natureza dos crimes e a verificação ou não de identidade dos bens jurídicos violados, tudo isto «tendo em vista descortinar e aferir se o conjunto dos factos praticados é a expressão de uma tendência criminosa, isto é, se significará já a expressão de algum pendor para uma “carreira”, ou se, diversamente, a repetição emergirá antes e apenas de fatores meramente ocasionais» [assim, o citado acórdão de 06.07.2022 e jurisprudência nele citada, retomando-se o que se afirmou em anteriores acórdãos, nomeadamente nos acórdãos de 2.12.2012, Proc. 923/09.1T3SNT.L1.S1, e de 21.11.2018, ECLI:PT:STJ:2018:114.14.0JACBR. A.S1.73, citando-se, entre outros, os acórdãos de 06-02-2008 (Proc. n.º 4454/07), de 18.1.2012, Proc. 34/05.9PAVNG.S1 (Raul Borges), de 14.07.2016 e de 17.06.2015 (Proc. 4403/00.2TDLSB.S1) (Pires da Graça) e 488/11.4GALNH (Maia Costa), em www.dgsi.pt]. «Na avaliação da personalidade relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma «carreira») criminosa, ou tão-só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido a atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta». «A personalidade do agente – se bem que não a personalidade no seu todo, mas só a personalidade manifestada no facto», – «é um factor da mais elevada importância para a medida da pena e que para ela releva, tanto pela via da culpa como pela via da prevenção» (Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra Editora, p. 291). 21. Tendo em conta estes critérios, não se justifica a crítica que o recorrente dirige à decisão de determinação da pena única e que se traduz nos argumentos de discordância relativamente à medida das penas parcelares. Em síntese, como se viu, diz o recorrente que a pena única é excessiva porque o tribunal não valorou devidamente, a seu favor, a ausência de antecedentes criminais e o comportamento posterior aos crimes, a sua inserção social, profissional e familiar, o seu arrependimento sincero bem como a confissão e colaboração com a justiça, o “percurso prisional exemplar e isento de reparos”. 22. Como resulta da fundamentação, o tribunal levou em consideração estas circunstâncias (supra, 18), as quais, como se referiu, adquirem densidade no processo de determinação da pena única, na sua relação com a personalidade manifestada no facto global (supra, 19). A este propósito, não se pode deixar de sublinhar que as circunstâncias dos factos, nomeadamente o prolongado aproveitamento da situação de coabitação com a vítima e com a sua mãe e das relações de confiança estabelecidas com a vítima, da qual cuidava como pai, com violação gravíssima dos deveres que neste contexto se estabelecem, revelam uma personalidade particularmente desvaliosa, no que se refere ao respeito pelos bens jurídicos protegidos pelas normas incriminadoras em matéria de abusos sexuais de crianças, sendo evidente a falta de preparação para, neste domínio, manter uma conduta lícita e a necessidade de socialização que se impõe pela aplicação da pena. No mesmo sentido se deve considerar a sucessão e a frequência dos atos praticados, não meramente ocasionais, a revelarem, no seu conjunto, uma tendência para a prática deste tipo de crimes e um muito elevado grau de ilicitude. O acórdão recorrido deu, justificadamente, particular relevo aos aspetos relativos à personalidade do arguido e à gravidade dos factos. Assim, tendo em conta a moldura abstrata da pena aplicável aos crimes em concurso – de 9 a 25 anos prisão –, na ponderação, em conjunto, dos factos e da personalidade do arguido projetada e revelada na sua prática, não se identifica fundamento que possa constituir motivo para intervenção corretiva na medida da pena aplicada, de 14 anos de prisão, a qual se encontra justificada sem ocorrer violação dos critérios de adequação e proporcionalidade, na consideração das necessidades de proteção dos bens jurídicos e de reintegração que a sua aplicação visa realizar. Pelo que, também nesta parte, deve o recurso improceder. Quanto ao quantitativo da indemnização a pagar à ofendida 23. A menor BB, representada pela mãe, CC, deduziu, pedido de indemnização civil, pedindo a condenação do arguido/demandado ao pagamento da quantia de 100.000,00 (cem mil euros) para ressarcimento dos danos que sofreu em consequência da atuação deste. Para o efeito, diz o acórdão recorrido, «salientou, em síntese, a ocorrência de uma gravidez consequente à actuação do demandado, que não utilizou preservativo ou outro método contraceptivo nas relações sexuais que mantiveram, mantendo a sua conduta mesmo quando a demandante já revelava enjoos e indisposição que conduziram ao dito diagnóstico de gravidez, interrompida voluntariamente às sete semanas. Mais alegou que o arguido quis e conseguiu, com tal actuação, satisfazer os seus desejos sexuais, mau grado soubesse que, para tanto, constrangia à prática de actos sexuais uma criança, filha da sua companheira, com quem mantinha uma relação de pai e filha, revelando-se indiferente aos danos que causava ao seu desenvolvimento físico, psíquico e intelectual e ao sofrimento e perturbação a que a sujeitava. Salienta a demandante que, em consequência da actuação do demandado, sofreu dores físicas, sofreu vergonha e tristeza que afetaram a sua auto-estima e o seu desenvolvimento físico e psíquico e para sua compensação pede a atribuição do montante, simbólico, peticionado.» Como se referiu, o tribunal a quo considerou parcialmente procedente o pedido de indemnização civil e condenou o arguido AA ao pagamento da quantia de € 60.000,00 (sessenta mil euros), para ressarcimento dos danos morais causados com a sua atuação, acrescida dos juros vencidos desde a decisão até integral pagamento. 24. O arguido limita-se a alegar que “[…] Sendo certa a verificação dos vários requisitos legais previstos no artigo 483.º, n.º 1 do CC, é, no entanto, exagerado o montante de 60.000,00 euros em que o arguido foi condenado a pagar à Ofendida, tendo em conta não só os mesmos pressupostos bem como as circunstâncias apuradas em sede de julgamento, devendo o montante indemnizatório ser reduzido. […]”. Pugnando, assim, pela «redução do montante indemnizatório». 25. O tribunal a quo fundamentou a sua decisão nos seguintes termos: “[…] Do pedido de indemnização civil BB, regularmente representada pela mãe, deduziu pedido de indemnização civil (suplantando o pedido de arbitramento apresentado pelo MP), pedindo a condenação do arguido/demandado ao pagamento da quantia de 100.000,00 (cem mil euros) para ressarcimento dos danos que sofreu em consequência da actuação deste. Para o efeito, salientou, em síntese, a ocorrência de uma gravidez consequente à actuação do demandado, que não utilizou preservativo ou outro método contraceptivo nas relações sexuais que mantiveram, mantendo a sua conduta mesmo quando a demandante já revelava enjoos e indisposição que conduziram ao dito diagnóstico de gravidez, interrompida voluntariamente às sete semanas. Mais alegou que o arguido quis e conseguiu, com tal actuação, satisfazer os seus desejos sexuais, mau grado soubesse que, para tanto, constrangia à prática de actos sexuais uma criança, filha da sua companheira, com quem mantinha uma relação de pai e filha, revelando-se indiferente aos danos que causava ao seu desenvolvimento físico, psíquico e intelectual e ao sofrimento e perturbação a que a sujeitava. Salienta a demandante que, em consequência da actuação do demandado, sofreu dores físicas, sofreu vergonha e tristeza que afetaram a sua auto-estima e o seu desenvolvimento físico e psíquico e para sua compensação pede a atribuição do montante, simbólico, peticionado. Nos termos do art. 128.º do Código Penal, a indemnização de perdas e danos emergentes de um crime é regulada pela lei civil, ou seja, de acordo com o previsto nos arts. 483.º e segs. e 562.º e segs. do Código Civil (doravante C.C.). Para que exista responsabilidade civil extracontratual, nos termos do art. 483.º, nº 1, do C.C., é necessário que se verifiquem determinados pressupostos; a saber que ocorra um facto humano (voluntário, no sentido de ser dominado ou dominável pelo agente), ilícito (que representa uma violação do direito de outrem ou de qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios), culposo (que revela uma atitude contrária ao direito, contrária à actuação de um bom pai de família – cfr. artigo 487.º, n.º 2, do CC), do qual resultem danos; danos esses que sejam efeito provável do facto ou que lhe sejam imputáveis (teoria da causalidade adequada - art. 563.º do C.C. ou teoria da imputação objectiva). Verificados os sobreditos pressupostos nasce a obrigação de indemnizar; indemnização esta com que se procura ressarcir todos os danos causados, de forma a reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação (art. 562.º do C.C.), e que é calculada nos termos do art. 564.º do C.C., abrangendo danos emergentes e lucros cessantes. Voltando ao caso concreto, provou-se que AA actuou, sexualmente, sobre BB, colocando, uma vez, a mão sobre a zona vulvar da criança, sobre a roupa que trazia vestida, friccionando, inúmeras vezes, o seu pénis entre as pernas daquela em contacto directo com o orifício da vagina, colocando aí a boca, por uma vez, e tocando nos seios dela, outra vez. Numa ocasião, manteve com a mesma uma relação de cópula, introduzindo o seu pénis na vagina dela. A sobredita actuação ocorreu entre Setembro de 2019 e Maio de 2020, entre Dezembro de 2020 e Julho de 2021 e entre Setembro e Dezembro de 2021, conforme se provou; períodos em que a menina contava, respectivamente, 11, 12 e 13 anos, pois também se provou que nasceu a ... de ... de 2008. Mais se provou que o arguido, embora soubesse que actuava, sexualmente, sobre esta menina, cuja idade não ignorava, e soubesse que, por isso, atentava contra a sua autodeterminação sexual, o seu sentimento de pudor e vergonha, e contra o livre desenvolvimento da sua personalidade, não se conteve, nem deteve, agindo, conforme provado, em prol da satisfação dos seus próprios impulsos sexuais, agindo sobre ela; filha da sua companheira, de modo livre, voluntário e consciente, bem sabendo do carácter proibido e punido da sua conduta. Em consequência da sobredita relação de cópula, desprotegida; pois o demandado não usou preservativo para proteger a saúde da menor, BB veio a engravidar, tendo sido sujeita a interrupção, voluntária, da gravidez às sete semanas. Em consequência da actuação do demandado, a menorBB sofreu tristeza, vergonha e dor, apresentando auto-estima negativa. Face ao exposto, dúvidas não subsistem de que estão verificados todos os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual. O arguido actuou voluntária e ilicitamente sobre o corpo e a saúde da menor (que são bens protegidos à luz do disposto pelos artigos 25.º da CRP e 70.º do CC), de modo avesso às responsabilidades de um bom pai de família (por isso, culposamente), causando, em consequência, directa e necessária, uma gravidez indesejada, que teve de ser, medicamente, interrompida, e, de modo geral, tristeza, vergonha e dor, fomentando nela uma auto-estima negativa. A demandada peticiona apenas danos não patrimoniais. Nesta matéria, dispõe o artigo 496.º do CC, no seu n.º 1, que: “Na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito”. No n.º 4 da norma em referência estipula-se que: “O montante da indemnização é fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 494.º; no caso de morte podem ser atendidos não só os danos não patrimoniais sofridos pela vítima, como os sofridos pelas pessoas com direito a indemnização nos termos dos números anteriores”. Segundo Antunes Varela (Das Obrigações em Geral, Vol. I, pág. 607) os danos não patrimoniais, como “as dores físicas, os desgostos morais, os vexames e os complexos de ordem estética, que sendo insuscetíveis de avaliação pecuniária, porque atingem bens (como a saúde, o bem-estar, a liberdade, a beleza, a perfeição física…) que não integram o património do lesado, apenas podem ser compensados com a obrigação pecuniária imposta ao agente, sendo esta mais uma satisfação … que uma indemnização.”. Assim, a respeito da fixação do “quantum indemnizatório”, o tribunal deve julgar, equitativamente, atendendo aos critérios estabelecidos no art.º 494.º do Código Civil, ou seja, à culpa do agente, à sua situação económica e demais circunstâncias do caso que o justifiquem (e também, à desvalorização da moeda e aos padrões geralmente utilizados na jurisprudência; cfr. Antunes Varela, in ob. citada, pág. 607). Será evidente, sem necessidade de grandes considerandos, que o transtorno de BB é grave de molde a merecer a tutela do direito. Atendendo à sua juventude, ao tipo de intrusão e entorse ao direito à sua autodeterminação sexual, às consequências sofridas, ao sofrimento subsequente, atendendo, ainda, à idade do demandado, ao dolo da sua actuação, mas também à modéstia da sua situação económico-financeira, ao arrependimento e juízo crítico revelado, atendendo, finalmente, aos atuais padrões jurisprudenciais, entende-se razoável e equitativo fixar uma indemnização no valor de € 60.000,00 (sessenta mil euros). Considerando que, no cálculo da indemnização, o Tribunal teve em consideração critérios actuais, vencem-se juros desde esta decisão até integral pagamento. […]» 26. A indemnização de perdas e danos emergentes de crime é regulada pela lei civil, conforme prescreve o artigo 129.º do Código Penal («CP»). Embora deduzido em processo penal, por força do princípio de adesão obrigatória (artigo 71.º do CPP), ao pedido de indemnização civil é, pois, aplicável, quanto à verificação dos pressupostos e à fixação do seu montante, o disposto nos artigos 483.º, 496.º, n.ºs 1, e 4, 562.º e 566.º, n.ºs 1, 2 e 3, do Código Civil («CC»). Dispõe o artigo 483.º do CC que, quem, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação. Tendo a indemnização carácter geral e atual, deve abarcar todos os danos, patrimoniais, presentes e futuros, mas quanto aos futuros só os previsíveis (artigos 562.º a 564.º e 569.º do CC) e não patrimoniais. Quanto aos danos não patrimoniais, estabelece o artigo 496.º, n.º 1, do CC, que na fixação da indemnização, deve atender-se aos danos que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito, devendo o montante da indemnização ser fixado equitativamente pelo Tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 494.º, i. e., o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso (artigo 496.º, n.º 4). O dano não patrimonial (dano moral), não implica uma diminuição do património nem a frustração do seu acréscimo; traduz-se antes na ofensa objetiva de bens imateriais (v.g. vida, integridade física, liberdade, honra, reputação, desenvolvimento da personalidade) e do efeito reflexo subjetivo dessa ofensa na vítima (dor ou sofrimento). Trata-se de um dano, em qualquer das modalidades, desprovido de conteúdo económico e nessa medida insuscetível de ser avaliado em dinheiro. Danos não patrimoniais são assim os prejuízos traduzidos em dores físicas, desgostos morais, vexames, perda de prestígio ou de reputação, complexos de ordem estética que, sendo insuscetíveis de avaliação pecuniária, porque atingem bens (como a saúde, o bem-estar, a liberdade, a beleza, a honra, o bom nome) que não integram o património do lesado, apenas podem ser compensados com a obrigação pecuniária imposta ao agente, sendo esta mais uma satisfação do que uma indemnização. Como vem afirmando a doutrina e jurisprudência dominantes, a indemnização por danos não patrimoniais é uma espécie de compensação, pois não visa eliminar o prejuízo, antes pretende conceder os meios económicos que, em alguma medida, possam compensar o dano sofrido, pela ofensa imerecida, do bom nome e da dignidade. "[…] Não há aqui indemnização no sentido etimológico de fazer desaparecer o prejuízo, concreta ou abstractamente considerado, eliminando-o na sua própria materialidade ou substituindo-o por um equivalente da mesma natureza, como é o dinheiro em relação aos valores patrimoniais. Mas há indemnização no sentido de proporcionar ao lesado meios económicos que dalgum modo o compensem da lesão sofrida. Trata-se, por assim dizer, de reparação indirecta. Na impossibilidade de reparar directamente os danos, pela sua natureza não patrimonial, procura-se repará-lo indirectamente através de uma soma de dinheiro susceptível de proporcionar à vítima satisfações, porventura de ordem estritamente espiritual, que representem um lenitivo, contrabalançando até certo ponto os males causados […] (Inocêncio Galvão Teles, Direito das Obrigações, 7.ª edição revista e actualizada, 2014, Coimbra Editora, pp. 379-380. Assim, e também no que se segue, o acórdão de 28.11.2018, Proc. 1079/15.6JAPRT.P1.S1, em www.dgsi.pt, e jurisprudência nele citada). A indemnização, nesta aceção, tem, não obstante, uma dupla finalidade, uma natureza acentuadamente mista. Pretende-se, através da atribuição de determinada quantia em dinheiro, não só, amenizar, mitigar e, em certa medida, compensar a dor e o mal-estar e consequentes angústia, sofrimento e desgosto suportados pelo lesado. "[…] A indemnização prevista no art. 496.º, n.º 1, do CC é mais propriamente uma verdadeira compensação. A finalidade que lhe preside é a de atenuar, minorar e de algum modo compensar os desgostos e sofrimentos já suportados e a suportar pelo lesado, através de uma quantia em dinheiro que, permitindo o acesso a bens, vantagens e utilidades, seja capaz de permitir ao lesado a satisfação das mais variadas necessidades e de, assim, lhe proporcionar um acréscimo de bem-estar que contrabalance os males sofridos, as dores e angústias suportadas e a suportar. […]” [Acórdão de 22-03-2018 (Souto Moura), Proc. n.º 467/16.5PALSB.L1-S1. Assim, também, entre outros, o acórdão de 28-11-2018, Proc. n.º 1079/15.6JAPRT.P1.S1, ambos em www.dgsi.pt]. Como também, por seu lado, visa censurar civilmente o infrator, impondo-lhe uma sanção em benefício do ofendido, que se traduz num substitutivo pecuniário que de algum modo possa equilibrar ou atenuar esses danos pela obtenção de distrações ou prazeres. “[…] A indemnização por facto ilícito decorrente de crime – considerada por alguns autores como a terceira sanção penal, para além da prisão e multa, na medida em que manda atender, escreve Antunes Varela (Das Obrigações em Geral, pág. 488), no caso de dano não patrimonial, não só à culpa, como também à condição económica do lesante e do lesado, por força da remissão para o art. 494.º, ex vi art. 496.º, n.º 3, ambos do CC –, reveste-se de uma natureza acentuadamente mista, qual seja a de compensar, mais do que indemnizar, não lhe sendo estranha a função de reprovar ou de castigar, no plano civilístico e com os meios próprios do direito privado, por certo incorporados no enxerto cível em processo penal, nos termos do art. 129.º do CP, a conduta do agente. […]” [Acórdão de 25-09-2008 (Armindo Monteiro), Proc. n.º 2846/08, sumário em www.stj.pt/Jurisprudencia/ Acórdãos/Sumários de acórdãos/ Criminal – Ano de 2008; e Antunes Varela, in Das Obrigações em Geral, ob. cit. supra, p. 578. Nesse sentido, também Menezes Cordeiro, referindo que “[…] a cominação de uma obrigação de indemnizar danos morais representa sempre um sofrimento para o obrigado; nessa medida, a indemnização por danos morais reveste uma certa injunção punitiva, à semelhança, aliás, de qualquer indemnização, que cumpre aplaudir. Mas a sua natureza não é a da pena, mas a de verdadeira indemnização […]” (Tratado de Direito Civil, VIII, Direito das Obrigações – Gestão de Negócios, Enriquecimento sem causa; Responsabilidade Civil, reimpressão da 1.ª edição do tomo III da parte II de 2010, 2014, Almedina, p. 515]. 27. Quanto aos critérios para fixação do montante indemnizatório por danos não patrimoniais, há que ter em atenção o citado n.º 4 do artigo 496.º do CC, que estabelece que “o montante da indemnização é fixado equitativamente pelo tribunal” e manda ter em atenção “as circunstâncias referidas no artigo 494.º”, isto é, “o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso o justifiquem.”. A lei não define a equidade. Não sendo sinónimo de arbitrariedade, exige-se ao julgador prudente arbítrio para a correção do direito, em ordem a que se tenham em consideração, fundamentalmente, as circunstâncias do caso concreto. “[…] A decisão segundo a equidade significa intervenção do justo critério do juiz na ponderação ex aequo et bono das circunstâncias particulares do caso, partindo das conjunções referenciais da ordem jurídica, e em função das finalidades a realizar; o julgamento de equidade não depende, por isso, da simples vontade, de inteira subjetividade ou de um modelo de discricionariedade. Os critérios de equidade remetem, assim, para uma operação complexa, que se não atém inteiramente a considerações de direito estrito, mas a referenciais que se acolhem a uma concreta ponderação de razoabilidade, ao prudente arbítrio, ao senso comum dos homens e à justa medida das coisas. Porém, na determinação equitativamente quantificada, os montantes não poderão ser tão escassos que sejam objetivamente irrelevantes, nem tão elevados que ultrapassem as disponibilidades razoáveis do obrigado, ou possam significar objetivamente um enriquecimento injustificado. […]” [Acórdão de 12-07-2012 (Henriques Gaspar), Proc. n.º 471/05.9JELSB.L1.S1, sumário em www.stj.pt/Jurisprudencia/ Acórdãos/Sumários de acórdãos/ Criminal – Ano de 2012]. O montante da indemnização correspondente aos danos não patrimoniais (haja dolo ou mera culpa do lesante) deve ser proporcional à gravidade do dano e calculado com respeito por todas as regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas, de criteriosa ponderação das realidades da vida (assim, Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. 1.º, 4.ª edição revista e actualizada, 1987, Coimbra Editora, p. 501). Com efeito, “[…] Para que o dano não patrimonial mereça a tutela do direito, tem de ser grave, devendo essa gravidade avaliar-se por critérios objectivos e, não de harmonia com percepções subjectivas, ou da sensibilidade danosa particularmente sentida pelo lesado, de forma a concluir-se que a gravidade do dano, justifica, de harmonia com o direito, a concessão de indemnização compensatória. [Acórdão de 20-11-2013 (Pires da Graça) Proc. n.º 1181/12.6JAPRT.P1.S1, em www.dgsi.pt]. Por outro lado, a indemnização deve ser relevante, adequada e proporcional ao dano causado e não meramente representativa de uma aparente compensação. “[…] Essa indemnização por danos não patrimoniais, para responder, actualizadamente, ao comando do art. 496º do Cód. Civil e, porque visa oferecer ao lesado uma compensação que contrabalance o mal sofrido, deve ser significativa, e não meramente simbólica, devendo o juiz, ao fixá-la segundo critérios de equidade, procurar um justo grau de “compensação” (v. por ex, Acórdão do S.T.J. de 11 de Setembro de 1994 (in Col. Jur. Acs do S.T.J. ano II tomo III -1994 p. 92). […] Sobre a actualidade da indemnização já o acórdão deste Supremo, de 16-12-1993, CJSTJ 1993, tomo 3, pág. 181 referia «É mais que tempo, conforme jurisprudência que hoje vai prevalecendo, de se acabar com miserabilismos indemnizatórios.” O aumento do custo de vida e as exigências da dignidade humana e de realização comunitária assim o exigem. […]” (idem). Razão pela qual, em caso de julgamento segundo a equidade, devem os tribunais de recurso limitar a sua intervenção às hipóteses em que o tribunal recorrido afronte, manifestamente, as ditas «regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas e de criteriosa ponderação das realidades da vida» [neste sentido, de entre outros, os acórdãos de 15-07-2021 (António Gama), Proc. n.º 260/16.5PBELV.E1.S1, em www.dgsi.pt; de 21-11-2018 (Pires da Graça), Proc. n.º 1377/13.3JAPRT.P1.S1 sumário em www.stj.pt/Jurisprudencia/ Acórdãos/Sumários de acórdãos/ Criminal – Ano de 2018; de 18-05-2016 (Pires da Graça), Proc. n.º 28/10.2GFBJA.E1.S1, em www.dgsi.pt; de 14-04-2016 (Arménio Sottomayor), Proc. n.º 51/12.2TALRS.L1.S1 sumário em www.stj.pt/Jurisprudencia/ Acórdãos/Sumários de acórdãos/ Criminal – Ano de 2016; de 22-10-2014 (Pires da Graça), Proc. n.º 84/13.1JACBR.S1, em www.dgsi.pt; de 17-09-2014 (Pires da Graça), Proc. n.º 158/05.2PTFUN.L2.S2, em www.dgsi.pt; de 16-01-2014 (Arménio Sottomayor), Proc. n.º 93/08.2GCMBR.P1.S1 sumário em www.stj.pt/Jurisprudencia/ Acórdãos/Sumários de acórdãos/ Criminal – Ano de 2014; de 15-02-2012 (Santos Carvalho), Proc. n.º 476/09.0PBBGC.P1.S1 em www.dgsi.pt). 28. Sem prejuízo do que vem de se afirmar, na determinação do montante da indemnização importa levar em conta as implicações do princípio da igualdade na aplicação do direito (artigo 13.º da Constituição) e, nessa conformidade, o disposto no artigo 8.º, n.º 3, do Código Civil, segundo o qual, “Nas decisões que proferir, o julgador terá em consideração todos os casos que mereçam tratamento análogo, a fim de obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito”. 29. A convocação da jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça mostra que o montante da indemnização fixado nestes autos se compreende dentro dos valores que, na consideração das especificidades de cada caso, se têm concretizado na ponderação dos critérios estabelecidos no artigo 494.º e 496.º do CC. A título de exemplo, podem ver-se os seguintes acórdãos: • o acórdão de 09-09-2021, Proc. 77/19.5T9PRG.S1, em que se considerou adequada a indemnização no montante de €20.000,00, a cada uma das vítimas com idades compreendidas entre os 11 e os 14 anos pela prática de 10 crimes de abuso sexual de crianças (artigo 171.º, n.º 1, CP); • o acórdão de 27.05.2020, Proc. 1203/19.0JAPRT.S1, com condenação, pela prática de 10 crimes de abuso sexual de crianças agravados (artigos 171.º, n.º 1, e 171.º, n.º 2, e 177.º, n.º 1, al. b), do CP), em indemnização no montante de €50.000,00; • o acórdão de 20-11-2013, Proc. n.º 1181/12.6JAPRT.P1.S1, em que o arguido, amigo da família, foi condenado a pagar indemnizações de €50.000 e de €40.000, por 22 crimes de abuso sexual de crianças (artigo 171.º, n.ºs 1 e 2, do CP), tendo as vítimas 7 e 6 anos de idade; • o acórdão de 22-03-2018, Proc. n.º 467/16.5PALSB.L1-S1, em que foi fixado um montante de €20.000,00, a pagar pelo progenitor da vítima, pela prática de 5 crimes de abuso sexual de crianças agravado (artigos 171.º, n.ºs 1 e 2, e 177.º, n.º 1, al. a) do CP), e 2 crimes de abuso sexual de menores dependentes agravado (artigos 172.º, n.º 1, 177.º, n.º 1, al. a), e 177.º, n.ºs 1, al. a), 5 e 8, do CP), por factos praticados entre 2008 e 2012; • o acórdão de 13-01-2010, Proc. n.º 213/04.6PCBRR.S1.S1, pela prática de 1 crime de abuso sexual de criança (artigo 172.º, n.º 2, do CP), em que foi fixado o montante de € 40.000, numa situação semelhante de coabitação e abuso da relação de confiança, com consequências similares (mas sem que tenha ocorrido gravidez e subsequente IVG); • o acórdão de 25-09-2008, Proc. n.º 2846/08, em que foi considerada adequado o montante de € 15 000 pela prática de um crime de abuso sexual de crianças (artigos 172.º, n.º 1, e 177.º, n.º 1, al. a), do CP); 30. No caso dos autos, o recorrente não indica, como se lhe impunha (artigo 412.º, n.º 2, do CPP), as razões da discordância quanto ao decidido, limitando-se a dizer que o montante da indemnização é “exagerado”. 31. Desde logo, importa notar que o tribunal a quo teve em consideração, para fixar o montante indemnizatório, as consequências da conduta do recorrente na pessoa da ofendida, nomeadamente, ao nível psicológico – “[…] sofreu tristeza, vergonha e dor, apresentando auto-estima negativa […]” – e que “[…] em consequência da sobredita relação de cópula, desprotegida; pois o demandado não usou preservativo para proteger a saúde da menor, BB veio a engravidar, tendo sido sujeita a interrupção, voluntária, da gravidez às sete semanas […]”. Ponderou, igualmente, o facto de que o recorrente,“[…] embora soubesse que actuava, sexualmente, sobre esta menina, cuja idade não ignorava, e soubesse que, por isso, atentava contra a sua autodeterminação sexual, o seu sentimento de pudor e vergonha, e contra o livre desenvolvimento da sua personalidade, não se conteve, nem deteve, agindo, conforme provado, em prol da satisfação dos seus próprios impulsos sexuais, agindo sobre ela; filha da sua companheira, de modo livre, voluntário e consciente, bem sabendo do carácter proibido e punido da sua conduta. […]”. 32. A alteração do comportamento da ofendida, isolando-se, tornando-se uma pessoa emocionalmente fragilizada, triste e envergonhada, ansiosa e frustrada, com sinais de perturbação depressiva, evidenciando uma autoestima negativa e uma perceção de fraca capacidade intelectual e social, considerando-se menos capaz para aprender que os outros da sua idade, com menos competências ao nível do relacionamento (pontos 85 a 87 dos factos provados da decisão recorrida), revela o imenso sofrimento vivenciado por BB, uma menina que entre os 11 e os 13 anos de idade, viu gravemente violada a sua integridade e autodeterminação, o direito a um desenvolvimento livre da sua personalidade do ponto de vista sexual, por força da prática dos factos, pelo companheiro da mãe, que via – à data – como seu pai. É consensual que as perturbações e traumas provocados por abusos sexuais na infância têm consequências múltiplas, causando danos psicológicos e emocionais que perduram ao longo da vida, sendo, muitas vezes, a sua completa perceção pela vítima, quando muito jovem, adquirida já em idades distantes da prática dos factos, comprometendo o seu desenvolvimento físico, psíquico e social e afetando os seus futuros relacionamentos íntimos. A menor suportou investidas sexuais do companheiro da sua mãe, que via como pai, contra a sua vontade, na casa em que coabitava com este, a mãe e o irmão, durante cerca de 3 anos, de forma persistente, sendo vítima de 141 crimes de abuso sexual, inclusivamente quando já se encontrava com sinais de manifesta indisposição, fruto de uma gravidez precoce. Em consequência desses factos, foi sujeita a uma experiência particularmente dolorosa, física e emocionalmente, de interrupção voluntária de gravidez, sendo, ela própria, ainda uma criança. Todos estes factos ocorreram por via do aproveitamento da inexperiência da vítima, criança de tenra idade, com quem o recorrente tinha uma relação de “pai-filha” (pois dela cuidara desde os poucos meses de idade até então, como pai), aproveitando-se dessa relação de confiança para satisfazer os seus desejos sexuais, com total desprezo pela sua idade e condição. Sendo certo que, na sua posição, lhe incumbia velar pela segurança, educação e desenvolvimento harmónico da criança, e que, com os factos descritos, o recorrente infringiu gravemente esses deveres, com perfeito conhecimento da perturbação que as atuações provocariam na formação e estruturação da personalidade da menor. Acresce que na conduta do recorrente posterior aos crimes, não se vislumbra ato de arrependimento, ou tão-pouco um esforço ou tentativa de reparação dos efeitos do ilícito. Aliás, revela, como resulta dos factos provados, uma crença e atitude relacionada com o valor da agressão sexual (“há pessoas que merecem ser violadas”) (sic) - cf. facto 82 dos factos provados. Tudo isto a revelar o elevadíssimo grau de culpabilidade do recorrente, nas concretas circunstâncias do caso, que a lei (artigo 496.º, n.º 4, do CC) impõe seja levada em conta na determinação do quantitativo da indemnização. 33. A fragilidade da situação económica do arguido, retratada nos pontos 88 e seguintes dos factos provados, que constitui outro elemento a ter em conta, não contém, neste quadro, a virtualidade de, perante a gravidade da situação e da culpa, determinar a redução do quantitativo fixado. Pelo contrário, deverá, na sua ponderação conjunta, ter-se como adquirido que já se comporta nessa avaliação. 34. Assim, nos termos das disposições legais acima mencionadas, e, tendo presente que a justiça da decisão não se compadece com uma mera compensação simbólica, não se encontra fundamento que permita concluir que o montante da indemnização fixado na decisão recorrida, de €60.000,00, se apresenta demasiado elevado, a justificar uma intervenção corretiva no sentido da sua alteração. Motivo por que o recurso também improcede nesta parte. III. Decisão 34. Pelo exposto, acorda-se na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em: a) Proceder à retificação do dispositivo do acórdão recorrido na parte em que condena o arguido «pela prática de cada um dos 11 (onze) crimes de abuso sexual de crianças, na forma agravada (pontos 46. a 51., 65. a 70. e 75. a 79), p. e p. pelos artigos 171.º, n.º 1 e 177.º, n.ºs 1, al. b), e 5, ambos do Código Penal», eliminando-se a referência ao n.º 5 do artigo 177.º, dela ficando a constar: «pela prática de cada um dos 11 (onze) crimes de abuso sexual e crianças, na forma agravada (pontos 46. a 51., 65. a 70. e 75. a 79), p. e p. pelos artigos 171.º, n.º 1 e 177.º, n.ºs 1, al. b), ambos do Código Penal»; b) Julgar o recurso totalmente improcedente, mantendo-se a decisão recorrida. Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 5 UC (artigo 513.º do CPP e tabela III anexa ao Regulamento das Custas Processuais). Custas cíveis pela demandante cível na proporção do respetivo decaimento, nos termos dos artigos 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, e 523.º do CPP. Supremo Tribunal de Justiça, 27 de setembro de 2023 José Luís Lopes da Mota (relator) Ana Maria Barata de Brito Ernesto Vaz Pereira |