Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1781/21.3T8PVZP2.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃOQ
Relator: MARIA DA GRAÇA TRIGO
Descritores: RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
ACIDENTE DE VIAÇÃO
TRABALHO DOMÉSTICO
DÉFICE FUNCIONAL
DANO BIOLÓGICO
PERDA DA CAPACIDADE DE GANHO
EQUIDADE
PRINCÍPIO DA IGUALDADE
INDEMNIZAÇÃO
CÁLCULO
INCAPACIDADE PERMANENTE PARCIAL
INCAPACIDADE TEMPORÁRIA
LESÃO DE INTERESSES PATRIMONIAIS
SEGURADORA
VEÍCULO
Data do Acordão: 09/18/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE
Sumário :
No caso dos autos em que a lesada tinha 28 anos à data do acidente, ficou a padecer de défice funcional permanente fixado em 2 pontos, sem que, contudo, houvesse “comprometimento da capacidade de angariação de rendimento”, pretendendo-se indemnizar a repercussão que o défice funcional da autora (previsivelmente) terá “ao nível do desempenho de actividades, sejam elas pessoais e/ou laborais”, afigura-se que as exigências do princípio da igualdade no tratamento de casos similares determinam que o valor da indemnização pelas consequências patrimoniais da lesão corporal seja aumentado para € 20.000,00 (a que acresce o montante indemnizatório de € 10.000,00 pelas consequências não patrimoniais da lesão).
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


I – Relatório

1. AA instaurou a presente acção judicial contra a Generali Seguros, S.A., pedindo a condenação da ré pagar-lhe a indemnização de € 54.180,87, assim discriminados no artigo 272.º da p.i.: a) danos de natureza não patrimonial € 20.000,00; b) TA de 13 meses – trabalho doméstico € 7.800,00 €; c) IPP - DFPIFP de 03,00% - 03,00 pontos, no mínimo € 25.000,00; d) despesas efectuadas € 1.380,87.

Indemnização essa acrescida de juros de mora à taxa legal, desde a instauração da acção até pagamento, bem como da indemnização que vier a ser fixada em decisão ulterior ou em incidente de liquidação.

Para fundamentar o seu pedido alegou, em síntese, que, quando era transportada como passageira num veículo automóvel, este se envolveu num acidente com outro veículo, segurado na ré, acidente ocorrido por culpa exclusiva do condutor deste último e do qual resultaram para a autora danos pelos quais pretende ser ressarcida.

2. A ré contestou, impugnado os factos alegados e concluindo no sentido de a acção ser julgada em conformidade com a prova a produzir.

3. Após julgamento foi proferida sentença com a seguinte decisão:

“Pelo exposto decide-se julgar a presente acção parcialmente procedente e, em consequência:

A) Condenar a ré a pagar à autora vinte e sete mil quatrocentos e trinta e dois euros e vinte e oito cêntimos (€27.432,28), acrescidos de juros de mora, contados à taxa legal para obrigações civis, desde a citação, até integral pagamento;

B) Condenar a ré a pagar à autora dez mil euros (€10.000,00), acrescidos de juros de mora, contados à taxa legal para obrigações civis, desde a data da presente decisão, até integral pagamento;

C) Condenar a ré a pagar à autora montante a liquidar em decisão ulterior, respeitante a custos consequente às lesões sofridas no acidente a suportar pela autora respeitantes a tratamentos de medicina física e de reabilitação e de medicação analgésica e/ou anti-inflamatória;

D) Julgar a presente acção improcedente no restante e, em consequência, absolver a ré do pedido nessa parte.”.

4. Ambas as partes interpuseram recurso para o Tribunal da Relação do Porto, pedindo a alteração da decisão relativa à matéria de facto e a reapreciação da decisão de direito.

Por acórdão de 20.02.2025 veio a ser proferida a seguinte decisão:

“Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação em julgar o recurso da autora totalmente improcedente e o recurso da ré parcialmente improcedente; em consequência, fixam o valor da indemnização pelo dano biológico que a 1.ª instância dividiu em €5.809 e €21.000, no valor único de €10.000 (dez mil euros), mantendo no mais a sentença recorrida.”.

5. Veio a autora interpor recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, formulando as seguintes conclusões:

“1. Vem o presente recurso interposto do Douto Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães, na parte em que, julgando procedente a apelação, fixou o valor da indemnização por dano biológico, que a 1.ª Instância dividiu em 5 809,00 e 21 000,00 €, no montante de 10 000,00 €.

2. A indemnização pelo dano corporal contempla 3 (três) vertentes: (i) indemnização pela perda de capacidade de ganho, traduzida no montante indemnizatório destinado a ressarcir o lesado pela perda de capacidade de criação de rendimento, quer na vertente profissional quer pessoal, independentemente da sua tradução em efectivas reduções ou perdas salariais (considerando que, ainda que não haja perda salarial, o sinistrado, por força da sua incapacidade, terá de fazer maior esforço para obter o mesmo rendimento); (ii) indemnização pelo dano biológico, correspondente à perda parcial da disponibilidade do uso do corpo para os normais afazeres do dia-a-dia (que não os profissionais) e fixados numa incapacidade geral ou anátomo-funcional/fisiológica e um dano autónomo que não se confunde com o dano patrimonial futuro; (iii) indemnização pelo dano moral, destinada a compensar as dores, os incómodos e o sofrimento causados ao lesado pelo evento lesivo, tanto no momento subsequente ao sinistro (período de recuperação) como ao longo da sua vida.

3. A indemnização por danos patrimoniais deve contemplar não só a parcela respeitante à perda de capacidade de ganho, como a respeitante ao dano biológico, enquanto perda parcial da disponibilidade do uso do corpo para os normais afazeres do dia-a-dia (que não os profissionais) e fixados numa incapacidade geral ou anátomo-funcional/fisiológica e um dano autónomo que não se confunde com o dano patrimonial futuro.

4. Para esse cálculo releva a retribuição auferida pela Autora aquando do acidente dos autos, que se cifrava em 625,34 €, recebidos em 14 (catorze) meses por ano, mas também o volume de trabalho doméstico desenvolvido pela Autora, a fixar por recurso à equidade, que deverá considerar um total não inferior a 4 (quatro) horas diárias de trabalho doméstico, em todos os dias do ano, bem como um valor horário de retribuição não inferior a 5,00 €, que é o valor mínimo pago, em regra, para contratação de trabalhador de serviço doméstico que desempenhe as mesmas funções.

5. Não deve ser aplicado qualquer factor de bonificação por antecipação do capital. No limite, a ser fixado, o mesmo nunca deverá exceder o limite de 10 %.

6. As razões que justificavam a aplicação de factores de penalização já não existem, o que obriga a uma revisão da aplicação da lei, neste contexto. Do ponto de vista da Recorrente, no cenário acima descrito, a aplicação de um factor de penalização por antecipação do capital deve ser eliminada ou, pelo menos, reduzida a montante não superior a 10 %.

7. Considerando a posição assumida nesses arestos, não deverá aplicar-se qualquer redução, decorrente da antecipação do capital, ao valor encontrado por recurso às fórmulas habituais.

8. Tendo presente o exposto, terá de concluir-se que o valor fixado, nesta sede, no Douto Acórdão recorrido para compensar a perda de capacidade de ganho e o dano biológico peca por defeito, mostrando-se idóneos os valores fixados, a este título, em 1.ª Instância, ou seja, 21.000,00 € e 5.809,00 €, num total de 26.809,00 €.

9. O Tribunal recorrido não fixou qualquer indemnização pelos períodos commumente designados como de incapacidade temporária para o trabalho.

10. Apurou-se que a Autora sofreu défice funcional temporário de 404 dias, com repercussão temporária total da actividade profissional de 2 dias e parcial de 402 dias.

11. Nessa medida, não poderia deixar de atender-se ao peticionado na p.i., a título de incapacidade temporária para o trabalho doméstico, fixando-se a indemnização devida a esse título em 7 800,00 €.

12. Ao decidir em sentido inverso, a douta sentença recorrida violou, além de outras, as disposições dos arts. 562.º e 564.º, n.º 1, do Cód. Civil, pelo que deve ser revogada, nessa parte, e substituída por Douto Acórdão que fixe em 7 800,00 € a indemnização devida pelos períodos de incapacidade temporária para o trabalho.”.

6. A recorrida contra-alegou, reiterando pedido de rectificação anteriormente formulado e pugnando pela manutenção da decisão do acórdão recorrido.

7. Por acórdão de 08.05.2025, o Tribunal a quo deferiu o pedido de rectificação do dispositivo do acórdão recorrido que passou a ter o seguinte teor:

“Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação em julgar o recurso da autora totalmente improcedente e o recurso da ré parcialmente improcedente; em consequência, revogam a sentença na parte em que condena a ré a pagar uma indemnização por danos futuros a liquidar ulteriormente, e fixam o valor da indemnização pelo dano biológico que a 1.ª instância dividiu em €5.809 e €21.000, no valor único de €10.000 (dez mil euros), mantendo no mais a sentença recorrida.”.

II – Fundamentação de facto

Vem provado o seguinte:

a) No dia D de M de 2019, pelas 20,00 horas, na Rua 1, junto ao n.º de polícia 307, ..., concelho da Póvoa de Varzim, ocorreu um acidente de viação, por colisão entre o veículo automóvel ligeiro de passageiros de matrícula n.º V1, conduzido por BB, e o veículo automóvel ligeiro de passageiros de matrícula V2, conduzido por CC.

b) O local do acidente configura um cruzamento entre a Rua 1, com orientação sul-norte, e a Rua 2, com orientação este-oeste onde o trânsito é regulado por sinalização luminosa.

c) BB conduzia o TD pela Rua 1 no sentido sul-norte, pela metade direita da faixa de rodagem atento o seu sentido e, quando se aproximou do cruzamento, a sinalização luminosa para si voltada apresentava a cor vermelha, mas não obstante BB não imobilizou o veículo e prosseguiu marcha, atravessando o cruzamento.

d) No momento em que atravessava o cruzamento o TD foi embatido na sua parte lateral direita pela parte frontal do FT, que momentos antes transitava pela Rua 2, no sentido nascente-poente.

e) Na circunstância do acidente a autora era transportada no TD no banco da frente do lado direito.

f) Em consequência do acidente a autora sentiu dor na articulação temporo mandibular e temporo occipital esquerda.

g) Em consequência das lesões sofridas no acidente a autora foi assistida no próprio dia 29-09-2019 no Centro Hospitalar da Póvoa de Varzim e Vila do Conde onde se submeteu a exames radiográfico e teve alta no mesmo dia, mantendo-se um dia em casa em descanso, sofrendo de dores.

h) Posteriormente, em 3-10-2019, com queixas de cefaleias, cervicalgia e dificuldade em mastigar, foi observada em consulta de ortopedia no Hospital Privado de Viana do Castelo.

i) Para tratamento das lesões sofridas no acidente foi sujeita a 20 sessões de fisioterapia entre 9-10-2019 e 11-11-2019.

j) Posteriormente, por persistência de cefaleias, foi observada em consulta de neurologia no Hospital ... em 6-12-2019, e foi sujeita a ressonância magnética e prescrita medicação analgésica e anti-inflamatória, que ingeriu.

k) Pontualmente, toma ainda hoje anti-inflamatórios ou paracetamol para alívio de dores.

l) Como sequelas das lesões após tratamento a autora sofre de dor a digito pressão nas apófises espinhosas cervicais e contractura para vertebral bilateral.

m) Em consequência de tais sequelas a autora tem dificuldade em posicionar os membros superiores no espaço, por vezes dorme mal, sofre de cervicalgia com irradiação ao ombro esquerdo, e frequentemente ao ombro direito, pontualmente agravadas com alterações climáticas e esforços, tem dificuldade em lavar o cabelo, realizar tarefas domésticas, como passar a ferro, aspirar e usar esfregona, sofre algumas dificuldades na condução automóvel em períodos de maior cervicalgia, reduziu a actividade de ... na paróquia e passou a sentir mais dificuldade em tocar em casamentos, actividade a que se dedica, e tem alguma dificuldade de permanecer muito tempo sentada ao computador.

n) Antes da consolidação das lesões, a autora sentiu grandes dificuldades em prestar cuidados ao seu filho, que à data do acidente não completara ainda dois anos de idade, e em algumas actividades profissionais que implicassem pegar em pesos, como distribuição de cabazes por pessoas necessitadas.

n’) As lesões sofridas pela autora tiveram consolidação médico-legal em 05/11/2020.

o) Em consequência das lesões sofridas, a autora sofreu défice funcional temporário de 404 dias, com repercussão temporária total da actividade profissional de 2 dias e parcial de 402 dias, quantum doloris de grau 3 em 7, e défice funcional permanente na integridade físico-psíquica fixado em 2 pontos.

o’) Em termos de repercussão permanente na actividade profissional, essas sequelas são compatíveis com o exercício da actividade habitual, mas implicam esforços suplementares na medida do défice funcional atribuído.

p) A autora nasceu em D de M de 1991.

q) Em consequência do acidente e das lesões sofridas, bem como ao longo do período de recuperação, a autora sentiu susto, dores, que ainda hoje mantém, e sente desgosto e frustração pelas limitações físicas de que padece.

r) À data do acidente a autora exercia as funções de assistente operacional por conta do Município de ... e auferia uma remuneração líquida pelo seu trabalho no montante de cerca €625,34 por mês, catorze meses por ano.

s) À data, a autora executava também as tarefas domésticas inerentes à sua vida familiar, com marido e um filho.

u) De futuro, em consequência das lesões sofridas no acidente, a autora continuará a necessitar de recorrer pontualmente à toma de medicação analgésica e anti-inflamatória nos períodos de agudização.

v) Em consultas médicas, meios auxiliares de diagnóstico e sessões de fisioterapia para tratamento das lesões consequentes ao acidente a autora despendeu €520,87.

w) A autora percorreu 502 km em deslocações para os tratamentos e consultas descritos em c) a e), o) e q).

x) A responsabilidade civil por danos causados pela circulação do veículo de matrícula n.º V1 foi assumida pela ré, mediante contrato de seguro titulado pela apólice n.º ........66, vigente à data do acidente.

Factos dados como não provados:

- Que em a autora tenha sido assistida no Centro de Saúde de ..., ..., para tratamento de lesões sofridas no acidente (resposta ao art. 134.º da p.i.).

- Que a autora tenha frequentado ginásio para tratamento de lesões sofridas no acidente (resposta ao art. 147.º da p.i.).

III – Objecto do recurso

Tendo em conta o disposto no n.º 4 do art. 635.º do Código de Processo Civil, o objecto do recurso delimita-se pelo conteúdo da decisão recorrida e pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso.

Deste modo, o presente recurso tem como objecto a seguinte questão:

• Necessidade de aumentar o valor da indemnização por “perda de capacidade de ganho e dano biológico” atribuído à autora pelo Tribunal da Relação (€10.000,00), sendo de repristinar o montante fixado pelo Tribunal da 1.ª instância (21.000,00 € e 5.809,00 €, num total de 26.809,00 €) de modo a:

i. Indemnizar a autora pela repercussão da sua incapacidade permanente na realização do trabalho doméstico;

ii. Indemnizar a autora pela repercussão da sua incapacidade temporária (414 dias) na realização do trabalho doméstico;

iii. Em qualquer caso, fixar um valor indemnizatório mais justo e adequado.

Importa assinalar que, para além do valor da indemnização pelas consequências patrimoniais da lesão da autora que se encontra em discussão (€ 10.000,00 atribuídos pela Relação versus € 26.809,00 atribuídos pela 1.ª instância, sendo € 5.809,00 por perda de capacidade de ganho e € 21.000,00 por “dano biológico”), não vem posto em causa o montante indemnizatório por danos não patrimoniais que ambas as instâncias fixaram em € 10.000,00.

Esclareça-se ainda que, apesar de, nas conclusões recursórias se afirmar que “[n]ão deve ser aplicado qualquer factor de bonificação por antecipação do capital. No limite, a ser fixado, o mesmo nunca deverá exceder o limite de 10 %”, certo é que não corresponde tal alegação a uma verdadeira questão recursória, uma vez que o valor indemnizatório fixado pelo Tribunal da Relação assentou exclusivamente na equidade sem se ter procedido a qualquer dedução por antecipação do capital.

IV – Fundamentação de direito

1. Pretende a recorrente que seja aumentado o valor da indemnização por “perda de capacidade de ganho e dano biológico” atribuído à autora pelo Tribunal da Relação (€10.000,00), sendo de repristinar o montante fixado pelo Tribunal da 1.ª instância (21.000,00 € e 5.809,00 €, num total de 26.809,00 €) de modo a: (i) indemnizar a autora pela repercussão da sua incapacidade permanente na realização do trabalho doméstico; (ii) indemnizar a autora pela repercussão da sua incapacidade temporária (414 dias) na realização do trabalho doméstico; (iii) em qualquer caso, fixar um valor indemnizatório mais justo e adequado.

Antes de mais, e socorrendo-nos das palavras do acórdão deste Supremo Tribunal de 16.12.2020 (proc. n.º 6295/15.8T8SNT.L1.S1), consultável em www.dgsi.pt, deve ter-se presente que a apreciação pelo Supremo Tribunal de Justiça de indemnizações fixadas segundo juízos de equidade, como sucede no caso dos autos, se encontra sujeita às seguintes condicionantes:

“- Como tem sido considerado pelo Supremo Tribunal de Justiça (cfr., por exemplo, o acórdão de 06.04.2015, proc. n.º 1166/10.7TBVCD.P1.S1, com remissão para o acórdão de 28.10.2010, proc. n.º 272/06.7TBMTR.P1.S1, e para o acórdão de 05.11.2009, proc. n.º 381/2002.S1, todos consultáveis em www.dgsi.pt), «a aplicação de puros juízos de equidade não traduz, em bom rigor, a resolução de uma ‘questão de direito’»; se é chamado a pronunciar-se sobre «o cálculo da indemnização» que «haja assentado decisivamente em juízos de equidade», não lhe «compete a determinação exacta do valor pecuniário a arbitrar (…), mas tão somente a verificação acerca dos limites e pressupostos dentro dos quais se situou o referido juízo equitativo, formulado pelas instâncias face à ponderação casuística da individualidade do caso concreto ‘sub iudicio’»;

- A sindicância do juízo equitativo não afasta a necessidade de ponderar as exigências do princípio da igualdade, o que aponta para uma tendencial uniformização de parâmetros na fixação judicial das indemnizações, sem prejuízo da consideração das circunstâncias do caso concreto. Nos termos do acórdão deste Supremo Tribunal de 31.01.2012, proc. nº 875/05.7TBILH.C1.S1, disponível em www.dgsi.pt, «os tribunais não podem nem devem contribuir de nenhuma forma para alimentar a ideia de que neste campo as coisas são mais ou menos aleatórias, vogando ao sabor do acaso ou do arbítrio judicial. Se a justiça, como cremos, tem implícita a ideia de proporção, de medida, de adequação, de relativa previsibilidade, é no âmbito do direito privado e, mais precisamente, na área da responsabilidade civil que a afirmação desses vectores se torna mais premente e necessária, já que eles conduzem em linha recta à efectiva concretização do princípio da igualdade consagrado no artº 13º da Constituição». Exigência plasmada também no art. 8.º, n.º 3, do CC: “nas decisões que proferir, o julgador terá em consideração todos os casos que mereçam tratamento análogo, a fim de obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito”. [bold nosso]

Tendo presentes estes parâmetros consideremos mais detidamente a argumentação da recorrente.

2. Invoca a autora, ora recorrente, a necessidade de se indemnizar autonomamente o dano biológico em relação à perda da capacidade de ganho.

O que, antes de mais e em seu entender, terá como consequência que lhe seja atribuída indemnização pela repercussão que a incapacidade permanente que lhe foi reconhecida tem na realização do trabalho doméstico (sendo que se “deverá considerar um total não inferior a 4 (quatro) horas diárias de trabalho doméstico, em todos os dias do ano, bem como um valor horário de retribuição não inferior a 5,00 €, que é o valor mínimo pago, em regra, para contratação de trabalhador de serviço doméstico que desempenhe as mesmas funções”).

Vejamos.

Relevam os seguintes factos provados:

l) Como sequelas das lesões após tratamento a autora sofre de dor a digito pressão nas apófises espinhosas cervicais e contractura para vertebral bilateral.

m) Em consequência de tais sequelas a autora tem dificuldade em posicionar os membros superiores no espaço, por vezes dorme mal, sofre de cervicalgia com irradiação ao ombro esquerdo, e frequentemente ao ombro direito, pontualmente agravadas com alterações climáticas e esforços, tem dificuldade em lavar o cabelo, realizar tarefas domésticas, como passar a ferro, aspirar e usar esfregona, sofre algumas dificuldades na condução automóvel em períodos de maior cervicalgia, reduziu a actividade de ... na paróquia e passou a sentir mais dificuldade em tocar em casamentos, actividade a que se dedica, e tem alguma dificuldade de permanecer muito tempo sentada ao computador.

n’) As lesões sofridas pela autora tiveram consolidação médico-legal em 05/11/2020.

o) Em consequência das lesões sofridas, a autora sofreu défice funcional temporário de 404 dias, com repercussão temporária total da actividade profissional de 2 dias e parcial de 402 dias, quantum doloris de grau 3 em 7, e défice funcional permanente na integridade físico-psíquica fixado em 2 pontos.

o’) Em termos de repercussão permanente na actividade profissional, essas sequelas são compatíveis com o exercício da actividade habitual, mas implicam esforços suplementares na medida do défice funcional atribuído.

p) A autora nasceu em D de M de 1991.

q) Em consequência do acidente e das lesões sofridas, bem como ao longo do período de recuperação, a autora sentiu susto, dores, que ainda hoje mantém, e sente desgosto e frustração pelas limitações físicas de que padece.

r) À data do acidente a autora exercia as funções de assistente operacional por conta do Município de ... e auferia uma remuneração líquida pelo seu trabalho no montante de cerca €625,34 por mês, catorze meses por ano.

s) À data, a autora executava também as tarefas domésticas inerentes à sua vida familiar, com marido e um filho.

O acórdão recorrido apreciou a questão do dano corporal sofrido pela autora e suas repercussões em termos particularmente claros e rigorosos:

“Na parte que interessa para o conhecimento do recurso, a autora, na formulação do seu pedido, decompôs do seguinte modo o montante que reclama para indemnização dos danos sofridos:

a) danos de natureza não patrimonial 20.000,00 €;

b) TA de 13 meses - trabalho doméstico 7.800,00 €;

c) IPP - DFPIFP de 3 pontos, no mínimo 25.000,00 €.

A isso acrescentou o pedido de condenação no que se vier a liquidar por danos futuros.

O tribunal a quo atribuiu à autora, a título de indemnização pela «perda de rendimento futuro por défice funcional permanente» o montante de €5.809 que disse ter apurado com recurso às fórmulas matemáticas habitualmente utilizadas para apurar um capital produtor de um certo rendimento, considerando a idade da autora, a sua esperança de vida, o seu rendimento e a dimensão do défice.

A seguir atribuiu o valor de €21.000 a título de indemnização pelo dano biológico, sem especificar o que entendia por dano biológico.

Depois atribuiu o valor de €10.000 a título de indemnização pelos danos não patrimoniais, por atenção ao «susto sofrido no acidente, as lesões sofridas, os tratamentos a que a autora se sujeitou, com um período de tratamentos de fisioterapia, o défice funcional temporário, o défice funcional permanente, quantum doloris 3 em 7, e os demais sofrimentos suportados, e a idade da autora».

Por fim, atendeu o pedido de condenação por danos futuros em indemnização a liquidar.

Os recursos de autora e ré colocam várias questões atinentes à determinação da indemnização.

Primeira questão: como fixar a indemnização pelo dano corporal sofrido pela autora e suas repercussões?

A utilização de categorias conceituais na abordagem doutrinal dos danos é útil para isolar os diversos danos ou sublinhar as variadas dimensões do dano. Todavia, o que é importante não são essas categorias, o modo como elas são definidas ou descritas e se compatibilizam entre si, mas sim que nenhum dano fique por indemnizar e a indemnização seja adequada ao efectivo ressarcimento e/ou compensação dos danos suportados pela vítima.

A figura do chamado “dano biológico” adquiriu relevo entre nós com a Portaria n.º 377/2008, de 26/05, na qual, por referência ao dano decorrente de lesões corporais que deixam sequelas, tradicionalmente chamado da “perda da capacidade de ganho”, se passaram a distinguir o “dano patrimonial futuro” e o dano da violação do direito à integridade física e psíquica, designado por dano biológico, em função da medida da incapacidade gerada e da sua repercussão na vida laboral do lesado.

Essa novidade, para além de constituir um estrangeirismo espúrio, uma importação um conceito criado noutro país para responder à idiossincrasia do respectivo sistema jurídico ao nível da indemnização por responsabilidade civil, mas que no nosso sistema jurídico era dispensável porque a nossa legislação já permitia a indemnização da totalidade dos danos, com excepção apenas dos não patrimoniais sem relevo, veio espoletar, como não podia deixar de suceder, o estabelecimento de uma polémica sobre o conceito e sobretudo criar dificuldades no estabelecimento de um novo arranjo das várias categorias que tradicionalmente eram usadas para definir os danos e calcular as respectivas indemnizações.

Não surpreende pois que a jurisprudência não convirja sobre onde inserir o dano biológico para efeitos de cálculo do seu ressarcimento. Uma parte da jurisprudência (talvez maioritária) configura-o como dano patrimonial, muitas vezes reconduzido ao dano patrimonial futuro; outra parte admite que pode ser indemnizado como dano patrimonial ou compensado como dano não patrimonial, segundo uma análise casuística. Assim, em função das consequências da lesão (entre patrimoniais e não patrimoniais) variará também o próprio dano biológico. Existe também uma terceira posição que o qualifica como dano base ou dano-evento que deve ser ressarcido autonomamente (apud Acórdão da Relação de Lisboa de 22.11.2016, proc. n.º 1550/13.4TBOER.L1-7, in www.dgsi.pt).

No Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 07.04.2016, proc. n.º 237/13.2TCGMR.G1.S1, in www.dgsi.pt, quanto à qualificação e reparação do dano biológico, consignou-se que deve procurar-se

«…ressarcir as consequências da afectação, em maior ou menor grau, da capacidade para o exercício de outras actividades profissionais ou económicas, susceptíveis de ganhos materiais. Trata-se das consequências patrimoniais do denominado “dano biológico”, expressão que tem sido utilizada na lei, na doutrina e na jurisprudência nacionais com sentidos nem sempre coincidentes. Certo é que a lesão físico-psíquica é o dano-evento, que pode gerar danos-consequência, os quais se distinguem na tradicional dicotomia de danos patrimoniais e danos não patrimoniais (…). Com esta precisão, a indemnização pela perda da capacidade de ganho tem a seguinte justificação, nas palavras do acórdão do Supremo Tribunal de 10 de Outubro de 2012, … “a compensação do dano biológico [dentro das consequências patrimoniais da lesão físico-psíquica] tem como base e fundamento, quer a relevante e substancial restrição às possibilidades de exercício de uma profissão e de futura mudança, desenvolvimento ou reconversão de emprego pelo lesado, implicando flagrante perda de oportunidades, geradoras de possíveis e futuros acréscimos patrimoniais, frustrados irremediavelmente pelo grau de incapacidade que definitivamente o vai afectar; quer a acrescida penosidade e esforço no exercício da sua actividade diária e corrente, de modo a compensar e ultrapassar as graves deficiências funcionais que constituem sequela irreversível das lesões sofridas.” Entende-se que o aumento da penosidade e esforço para realizar as tarefas diárias pode ser atendido no âmbito dos danos patrimoniais (e não apenas dos danos não patrimoniais), na medida em que tenha como consequência provável a redução da capacidade de obtenção de proventos, no exercício de actividade profissional ou de outras actividades económicas.” Situamo-nos, pois, no domínio dos danos patrimoniais indetermináveis, cuja reparação deve ser fixada segundo juízos de equidade (cf. art. 566º, nº 3, do CC).»

[…]

O que dizer, segundo a nossa opinião.

Quando o lesado é atingido no corpo ou na saúde, sofre um dano biológico (rectius, no corpo).

O dano biológico corresponde ao dano no corpo e/ou na saúde da vítima e a sua repercussão no desempenho das tarefas da vida da vítima, sejam elas pessoais ou profissionais (e aqui estamos a incluir o chamado dano do esforço e/ou sofrimento acrescido no desempenho das tarefas profissionais ou da vida pessoal), reiteradas ou ocasionais, instantâneas ou duradouras.

Sempre que há uma afectação ou perturbação da integridade psicofísica do indivíduo, produz-se este dano, independentemente das sequelas e consequências que venham depois a derivar da lesão.

Se a lesão é totalmente curada e não deixa sequelas, o dano biológico foi temporário e deve ser indemnizado como tal. Se, após a cura, a lesão deixa sequelas que se traduzem em défice funcional permanente da integridade físico-psíquica, o dano biológico é permanente e deve ser indemnizado, além do mais, como dano futuro.

As consequências desse dano podem ser bem distintas.

Nuns casos a perda genérica de potencialidades funcionais do lesado determina uma redução efectiva das capacidades para angariar rendimentos do trabalho e/ou para realizar as tarefas da vida privada quotidiana, pelo que o dano tem uma repercussão patrimonial inequívoca que deve ser levada em conta no método de cálculo da indemnização, autorizando o recurso ao cálculo do dano com as tabelas financeiras conhecidas.

São os casos, por exemplo, em que o lesado tem de ser objecto de uma reconversão profissional ou as suas funções têm de ser reduzidas e passa a receber um salário diferente; ou se torna incapaz de realizar determinada tarefa e necessita de contratar outrem para a realizar.

Noutros casos, as sequelas das lesões, não obstante determinarem um défice funcional permanente, permitem ao lesado continuar a desenvolver a sua actividade privada e/ou laboral, situação em que já não é tão líquida a repercussão patrimonial do dano, rectius, a sua recondução a uma diferença com expressão patrimonial.

Entre estes casos, podem ainda distinguir-se as situações em que o exercício da actividade profissional só é possível em condições mais penosas e/ou com maior sacrifício pessoal, das situações em que nem isso ocorre, ainda que o défice funcional exista e não deixe de se repercutir nas actividades da vida pessoal, social e profissional do lesado.

Na primeira das situações pode entender-se que o défice funcional tem repercussão ao nível da capacidade de angariação de rendimentos, não por determinar uma perda efectiva de rendimentos do trabalho, mas por ter a potencialidade de fazer diminuir a capacidade de melhorar a situação profissional (separando as noções de perda de capacidade de ganho e perda funcional com reflexo negativo nas possibilidades de incrementar os ganhos).

No caso, resulta da matéria de facto provada que as lesões determinaram para a autora sequelas que equivalem a um défice funcional permanente de apenas 2 pontos em 100.

Esse défice tem repercussão nas actividades da vida diária, profissionais e pessoais, na medida em que importa maior sacrifício ou mais dificuldade na sua execução, mas é impossível sustentar que tal défice, precisamente pela sua baixa expressão (2 pontos em 100) importa quer uma perda de capacidade de ganho quer uma perda funcional com reflexo negativo nas possibilidades de incrementar os ganhos.

Nessa medida, aplicando a interpretação que o Supremo Tribunal de Justiça vem fazendo, o dano biológico em causa deve ser avaliado com base na equidade e não com recurso às tabelas financeiras usadas para calcular o dano patrimonial futuro quando sobrevém uma perda da capacidade de ganho.

A essa indemnização apurada com base na equidade não acresce uma indemnização autónoma pela perda futura da capacidade aquisitiva de rendimentos, uma vez que os factos provados não revelam ter havido comprometimento da capacidade de angariação de rendimento.

Em sede de apuramento do valor da indemnização por recurso à equidade, cremos que não é necessário distinguir entre a repercussão das dores no âmbito profissional e no âmbito pessoal.

Desde logo, porque no caso a matéria de facto não contém qualquer descrição da natureza dos actos que a autora executa no exercício da sua profissão em ordem a permitir uma avaliação mais precisa do conteúdo que a expressão «esforços acrescidos» (usada pelos peritos médicos em todo e qualquer caso em que a pessoa exerce uma profissão!) pretende significar no caso, sendo certo que isso não pode ser idêntico para quem desempenha funções que implicam esforço e desenvoltura física ou para quem executa as suas tarefas profissionais sentado numa secretária.

Diga-se que na petição inicial só é alegado que a autora tem formação académica de nutricionista e é técnica superior por conta de um Município, que a fundamentação de facto apenas refere que a autora exerce funções de assistente operacional; e que a autora só juntou aos autos parte do contrato de trabalho em funções públicas sem a parte com a … definição do conteúdo das funções.

Depois não faz sentido porque sejam os actos profissionais ou pessoais (próprios da vida familiar, doméstica ou mesmo íntima) estamos sempre a falar do mesmo: das dores que a autora sente na realização de determinados actos, movimentos, posturas ou esforços. É disso e só disso que se trata.

Por fim, não faz sentido porque quanto mais distinguirmos o que é indistinguível em concreto maior risco corremos de incorrer em indemnizar mais que uma vez o mesmo dano.

Dito isso.

Levando em conta a afectação corporal suportada pela autora (apenas um traumatismo), os tratamentos que implicou (unicamente de fisioterapia) e as sequelas que determinou (apenas a maior dificuldade ou sacrifício pessoal), em particular o baixo grau de défice permanente da integridade física (2/100) e a sua repercussão ao nível das actividades pessoais e familiares, e tendo presentes os valores fixados noutras decisões dos tribunais superiores nacionais publicadas tendo por objecto situações em que as sequelas são aproximadas, afigura-se-nos que o valor indemnizatório fixado em 1.ª instância (€5.809 + €21.000 = €26.809) excede o adequado à justa indemnização pelo dano biológico, incluindo a sua repercussão ao nível do desempenho de actividades, sejam elas pessoais e/ou laborais.

Importa com efeito não descurar que se trata de uma fixação com base na equidade e para ressarcimento de danos que não têm expressão patrimonial directa (não são calculáveis por aplicação da teoria da diferença) e que a autora tem uma profissão que lhe proporciona um salário mensal inferior a €800.

Acresce que no caso concreto (e a justiça é sempre a que o caso concreto reclama e justifica) para além de o défice ser muito reduzido, quase nulo, não está demonstrado que a profissão da autora exija que ela que permaneça sentada durante períodos alargados e contínuos, que utilize incessantemente o corpo e, em particular, os membros, que realize tarefas e movimentos repetidos continuamente e para cuja execução se requeira disponibilidade física, agilidade e destreza (situação que justificaria uma indemnização superior).

Assim, e só porque se leva já em conta a circunstância de no futuro a autora ir necessitar por vezes de tomar alguma medicação para as dores (analgésicos e anti-inflamatórios), entende-se fixar o montante da indemnização pelo dano biológico suportado pela autora (note-se, correspondente à soma das duas parcelas da indemnização fixada na 1.ª instância e que são objecto do recurso) no montante de 10.000,00€.”. [bold nosso]

Temos, pois, que o Tribunal a quo, mantendo o valor da indemnização por danos não patrimoniais no montante de € 10.000,00 (valor que não vem posto em causa no presente recurso), decidiu fixar em (igual) montante de € 10,000,00 a indemnização pela repercussão que o défice funcional da autora terá “ao nível do desempenho de actividades, sejam elas pessoais e/ou laborais.”.

3. Acompanham-se, no essencial, as considerações do acórdão recorrido que, no que ora importa, se podem sintetizar nos seguintes termos:

- A expressão “dano biológico” tem sido utlizada em sentidos nem sempre coincidentes pelo que aquilo que importa é deixar claro qual a realidade em causa a fim de evitar o risco de duplicação de indemnização;

- Utilize-se ou não aquela expressão, o que importa ter presente é que a lesão corporal, em si mesma considerada, constitui um dano-evento que pode ter consequências tanto patrimoniais como não patrimoniais;

- No que se refere às consequências patrimoniais da lesão corporal há que distinguir diversas situações em função da sua gravidade:

- Num caso de micro-incapacidades, como o dos autos, em que a autora ficou com um défice funcional permanente na integridade físico-psíquica de 2 pontos, mas em que nada mais foi provado - para além de que, “em termos de repercussão permanente na actividade profissional, essas sequelas são compatíveis com o exercício da actividade habitual, mas implicam esforços suplementares na medida do défice funcional atribuído” - justifica-se fixar um valor indemnizatório unitário que tenha em conta a repercussão daquele défice funcional “ao nível do desempenho de actividades, sejam elas pessoais e/ou laborais.”.

4. Importa, porém, verificar especificamente se, no caso sub judice, foram ou não ponderadas as consequências do défice funcional permanente na integridade físico-psíquica na realização do trabalho doméstico.

A questão foi apreciada pelo acórdão recorrido em termos que – antecipe-se – merecem a nossa inteira concordância:

Terceira questão: deve ser atribuído um valor indemnizatório específico por a autora ter sido afectada na execução das tarefas da sua vida familiar e doméstica?

Conforme já foi referido a propósito do dano biológico, o dano corporal sofrido pela autora gerou efeitos tanto a nível profissional como a nível da vida familiar e doméstica.

Em consequência do traumatismo (golpe de coelho) causado pelo choque dos veículos a autora sofreu dores, as quais limitaram a sua capacidade de aproveitar o corpo para realizar actos que envolvessem a utilização dos membros, a realização de esforços, a movimentação do corpo.

Por isso a autora sofreu um dano e esse dano deve ser indemnizado na totalidade, quer no que respeita às respectivas consequências no desempenho da profissão, quer no que tange às consequências ao nível da vida pessoal, privada, familiar. Não há qualquer diferença; não há que excluir quaisquer consequências ou repercussões.

A questão não é essa, porém. O que a recorrente questiona é se a afectação da vida familiar e pessoal deve ser monetarizada, convertida em pecúnia, como se se tratasse de uma actividade geradora de riqueza económica.

Salvo melhor opinião, quando faz a vida doméstica, passa a ferro, faz as refeições, cuida dos filhos, faz compras, tem relações íntimas, etc., uma pessoa não gera rendimentos e, consequentemente, também não os perde quando executa essas actividades com dores, com mais esforço, com menos disponibilidade ou vontade!

Se a privação impuser a necessidade de a pessoa recorrer a um terceiro para a substituir mediante remuneração ou compensação pecuniária, a pessoa sofre um dano emergente, passível de ser computado economicamente através da teoria da diferença. Não sendo esse o caso, sofre um dano não patrimonial susceptível de mera compensação por equivalente, ou seja, fixando-se um valor indemnizatório, com base na equidade, para dar à pessoa um benefício que ela possa encarar como compensador do sofrimento suportado.

Foi isso que se fez em sede de apreciação do dano biológico e que esteve presente na aferição das consequências que conduziram ao valor da indemnização então fixado. Não há, pois, que fixar qualquer outro valor específico para indemnizar/compensar também esta repercussão além do já fixado. [bold nosso]

Temos, pois, que a resolução da questão da valorização da repercussão da incapacidade da autora sobre a realização do trabalho doméstico se mostra indissociável dos termos em que se fundamentou a indemnização pelas consequências patrimoniais de tal incapacidade. Na medida em que o acórdão recorrido levou “em conta a afectação corporal suportada pela autora (apenas um traumatismo), os tratamentos que implicou (unicamente de fisioterapia) e as sequelas que determinou (apenas a maior dificuldade ou sacrifício pessoal), em particular o baixo grau de défice permanente da integridade física (2/100) e a sua repercussão ao nível das actividades pessoais e familiares, (…) incluindo a sua repercussão ao nível do desempenho de actividades, sejam elas pessoais e/ou laborais, constata-se que, na fixação da indemnização (por danos patrimoniais) no montante de € 10.000,00 foram ponderadas todas as consequências danosas da incapacidade da autora, incluindo o esforço acrescido na realização das tarefas domésticas, nada mais havendo a indemnizar.

5. Passemos, em seguida, a conhecer da invocada necessidade de indemnizar pela repercussão da incapacidade temporária da autora (414 dias) na realização do trabalho doméstico.

Alega a este respeito a recorrente que “não poderia deixar de atender-se ao peticionado na p.i., a título de incapacidade temporária para o trabalho doméstico, fixando-se a indemnização devida a esse título em 7 800,00 €”.

Sendo que, em sede de petição inicial, a autora declarara que a situação de incapacidade temporária não teve consequências de perda de rendimento na sua profissão; tendo, porém, alegado o seguinte: “A Autora executava essas tarefas domésticas, ao longo de um período de tempo não inferior a quatro (04,00) horas por dia; Pelo que o rendimento do seu trabalho, como doméstica, não pode computar-se em menos de (4 horas x 5,00 €) 20,00 €, por dia – uma mulher assalariada doméstica, na freguesia de .../..., concelho de Ponte de Lima, auferia e aufere nunca menos do que 5,00 € por cada hora de trabalho; Ou seja (30 dias x 20,00 €) 600,00 €, por mês; durante o período de tempo de quatrocentos e um (401,00) dias – treze (13,00) meses, por aproximação – de doença com Incapacidade Temporária Absoluta para o trabalho/Repercussão Temporária na Actividade Profissional Total, a Autora viu-se impossibilitada de desempenhar as suas tarefas domésticas, na sua casa de habitação; E não produziu, nem auferiu, os rendimentos correspondentes: Com o que sofreu, a este título, um prejuízo de (13 meses x 600,00 €) 7.800,00 €.”.

Temos, pois, que a autora, ora recorrente, calculou o valor peticionado (€ 7.800,00) como se exercesse a profissão de empregada doméstica e como se, ao longo dos treze meses de incapacidade temporária, tivesse perdido cerca de metade do seu rendimento profissional.

Ora, nada disto encontra assento na factualidade dada como provada. Nem a profissão da autora é a de empregada doméstica, nem a autora viu afectado o seu rendimento profissional durante o período que antecedeu a consolidação médico-legal nem tampouco foi provado que tivesse ficado impossibilitada de realizar as suas próprias tarefas domésticas.

Apenas foi provado o seguinte: “Antes da consolidação das lesões, a autora sentiu grandes dificuldades em prestar cuidados ao seu filho, que à data do acidente não completara ainda dois anos de idade (…)” (primeira parte do ponto n) da factualidade provada)

Acompanha-se, por isso, o acórdão recorrido que se pronunciou da seguinte forma:

“Repare-se que no caso a autora pretende ser indemnizada como se durante a totalidade do período que decorreu até à consolidação médico-legal das lesões tivesse estado impedida de realizar qualquer todas as tarefas da sua via familiar e doméstica, quando não existe absolutamente nenhum facto que indicie sequer essa impossibilidade e muito menos uma impossibilidade dessa magnitude.

Bem andou pois o tribunal a quo ao recusar atribuir o valor indemnizatório reclamado pela autora com essa finalidade ressarcitória.”.

6. Por fim, e em razão do respeito pelo princípio da igualdade no tratamento de casos idênticos (cfr. art. 8.º, n.º 3, do Código Civil), consideremos se a indemnização fixada pelo Tribunal da Relação se encontra ou não em linha com a jurisprudência mais recente deste Supremo Tribunal.

Para efeitos comparativos relevam os seguintes dados do caso sub judice: a lesada tinha 28 anos à data do acidente; ficou a padecer de défice funcional permanente fixado em 2 pontos; não tendo “havido comprometimento da capacidade de angariação de rendimento” pretende-se indemnizar a repercussão que o défice funcional da autora (previsivelmente) terá “ao nível do desempenho de actividades, sejam elas pessoais e/ou laborais”; o acórdão da Relação fixou o montante de € 10,000,00, a título de indemnização pelas consequências patrimoniais de lesão corporal, a que acrescem € 10,000,00 pelas consequências não patrimoniais da mesma lesão, perfazendo o total de € 20.000,00.

Da pesquisa jurisprudencial da jurisprudência deste Supremo Tribunal relativa a casos similares não resultaram dados significativos, atendendo a que, mesmo nos casos de défice funcional permanente de 2 a 3 pontos (cfr., por exemplo, o acórdão de 01-10-2024, proc. n.º 758/22.6T8VRL.G1.S1, consultável em www.dgsi.pt) se entendeu, em função da factualidade provada, existir perda da capacidade de ganho do lesado.

Identificou-se, contudo, o recente acórdão de 30-01-2025 (processo n.º 3062/22.6T8VCT.G1.S1), disponível em www.dgsi.pt1, no qual se entendeu (ver ponto V do respectivo sumário) que “[t]endo o autor, à data do acidente, 19 anos de idade e tendo ficado afetado por um défice funcional permanente de integridade físico-psíquica de 3 pontos, compatível com a atividade profissional habitual, mas implicando esforços suplementares, exercendo a atividade de carpinteiro de cofragem e ficando com sequelas consistente numa cicatriz com alterações de sensibilidade e perturbação de dores temporomandibulares pós-traumáticas, passando a sentir comichão quando usa capacete de obra, atendendo aos valores que vêm sendo atribuídos pela jurisprudência para casos similares, entende-se justa e adequada a indemnização de € 25 000,00 arbitrada pelo défice funcional permanente, na sua dimensão patrimonial. Valor a que acresce a indemnização por danos não patrimoniais no montante de € 17.5000,00.

Afigura-se, assim, que, no caso dos autos, as exigências do princípio da igualdade determinam que seja aumentado o valor da indemnização pelas consequências patrimoniais da lesão corporal da autora. Sendo o défice funcional da autora ligeiramente inferior ao do referido ao caso decidido pelo acórdão de 30-01-2025, considera-se adequado fixar tal valor em € 20.000,00 (a que acresce o montante indemnizatório de € 10.000,00 pelas consequências não patrimoniais da lesão). Este valor aproxima-se do valor atribuído na sentença, mas não coincide com o mesmo porque o Tribunal da 1.ª instância considerou ter havido (efectiva) perda de capacidade de ganho, conclusão que, com detalhada fundamentação, foi afastada pelo acórdão da Relação.

Procede, pois, parcialmente a pretensão da recorrente.

V – Decisão

Pelo exposto, julga-se o recurso parcialmente procedente, fixando o valor da indemnização pelas consequências patrimoniais da lesão corporal da autora em €20.000,00 (a que acresce o montante indemnizatório de €10.000,00 por danos não patrimoniais que não se encontra em discussão no presente recurso).

Custas pela recorrente e pela recorrida na proporção de 1/3 e 2/3, respectivamente, sem prejuízo do regime de apoio judicial de que a primeira beneficie.

Lisboa, 18 de Setembro de 2025

Maria da Graça Trigo (relatora)

Carlos Portela

Orlando Nascimento

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1. Proferido na presente Secção do Supremo Tribunal de Justiça e votado pela relatora do presente acórdão.